Budha percorria certa vez um caminho quando um homem, percebendo que estava
diante de um ser incomum, perguntou-lhe: Você
é um deus? E o
Budha respondeu: Não.
É um demônio?
E o
Budha respondeu: Não.
É um homem? E o
Budha respondeu: Não. Quem
é você,
então? E o
Budha respondeu: Eu estou acordado. Esta pequena lenda talvez resuma todo o sentido da vida de Sidarta Gautama, o
Budha, título que significa justamente O desperto ou O iluminado.
Entender o que esse despertar ou essa iluminação querem dizer, porém,
é algo que, segundo seus seguidores, está além das palavras. Também chamado
Sakyamuni, que quer dizer O santo do clã dos
Sakya, ele nasceu provavelmente no século VI a.C. no principado indiano
de Kapilavastu, (na cidade de Lumbini) na região
da cordilheira do Himalaia, no sul do atual Nepal. Mais ainda do que a
de Cristo, sua biografia está de tal forma amalgamada com o mito que se
torna praticamente impossível separar vida e lenda. Até porque, de
acordo com os budistas, isso nem seria desejável,
pois o mito é considerado uma forma perfeitamente válida de
conhecimento. O próprio
Budha empregou largamente o discurso
mitológico em suas falas destinadas a um público mais amplo, enquanto em
comunicações mais restritas empregava uma requintada linguagem
filosófica. Seu pai,
Sudohodana, era o rajá de Kapilavastu,
o que significa que Sidarta nasceu príncipe. Sua casta de origem, a dos
guerreiros, não ocupava, entretanto, o topo da rígida hierarquia
indiana. O poder pertencia
aos brâmanes, os sacerdotes. Quando Sidarta nasceu, a casta dos
guerreiros contestava a estrutura social dominada pelos brâmanes. O nome
da localidade natal de Sidarta,
Kapilavastu, significa Morada de
Kapila. Fundador do Sankhyan, sistema filosófico que influenciou
fortemente o budismo e também o Yoga clássico,
Kapila dizia que uma das mais perniciosas
servidões humanas é a daqueles que tem de dar presentes aos sacerdotes.
Os ecos do pensamento desse antecessor estão claramente presentes na
doutrina do
Budha, que condenou o sistema de castas da Índia. Por uma série de complexas razões históricas, a principal delas, a invasão
muçulmana ocorrida no século
XII, o budismo não se enraizou na
Índia, embora tivesse conquistado espiritualmente quase todo o Extremo Oriente. Destino de certa
forma semelhante ao do cristianismo, que não foi aceito pelos judeus, mas espalhou-se pelo mundo.
Também como na biografia mítica de Cristo, a concepção e o nascimento de
Budha estão cercados de condições sobrenaturais. Sua mãe, Maya, na mitologia, o mesmo nome da força
mágica que cria o universo ilusório,
sonhou que entrava em seu flanco, lado, um elefante branco com a cabeça
cor de rubi e seis presas. Desse encontro Sidarta foi concebido. A
imagem tem evidentes conotações simbólicas. O elefante, na Índia,
representa a mansidão; seis, o número de presas, simboliza
os sentidos do Universo norte, sul, leste, oeste, para cima e para
baixo. No corpo de sua mãe,
o futuro Budha, o Bodhisatva, espera rezando a hora de seu nascimento, que se dará
pelo flanco direito de Maya, sem entretanto lhe causar mal. Quando nasce, uma série de marcas
evidenciam nele o incomparável, conforme proclama o vidente
Asita: tem cor dourada, altura igual à extensão
dos braços abertos, uma coroa orgânica
no alto do crânio, pestanas de boi, quarenta dentes alvíssimos
e unidos, membranas interdigitais e centenas de formas desenhadas nas plantas dos pés. A narrativa tradicional descreve o
Budha como belíssimo. A imagem popular que
se tem dele no Ocidente, que o apresenta como um homem obeso, se deve a
uma confusão entre a sua figura e a de uma divindade mitológica chinesa.
Maya morreu sete dias depois do parto e Sidarta
foi criado por uma tia, Mahaprajapati, que se tornaria a primeira monja budista. Sabendo que estava destinado a seu filho um futuro excepcional, diz ainda a lenda,
Sudohodana fez construir para ele três
palácios, dos quais excluiu tudo o que pudesse lembrar os males do
mundo. A narrativa indiana, que se caracteriza por exagerar os fatos,
sem maiores preocupações
com o que no Ocidente se chama verdade objetiva, se excede em exuberância ao descrever o fausto
da juventude do futuro Budha. Seu harém
tinha 84 mil mulheres e ele era o primeiro em todas as competições, que
incluíam modalidades tão diversas como caligrafia e natação, gramática e
corrida, botânica e luta. Aos 19 anos, Sidarta
se casa com sua prima Yasodhara e vive mais
dez anos nesse mundo de idílica (fantasia, sonho ou imaginação)
felicidade e requintada satisfação dos sentidos. Da união com
Yasodhara, nasce seu filho Rahula.
Mas essa vida privilegiada seria bruscamente sacudida, segundo a
tradição, em três passeios que Sidarta fez fora dos limites de seus
palácios. Na primeira, viu um homem
de aparência decrépita, moribundo, que precisava apoiar-se num bastão
para caminhar. O cocheiro de Sidarta explica que se trata de um velho e
que o destino de todos os homens é se tornar um dia como ele. Na
segunda, vê um homem com o corpo corroído pela lepra;
o cocheiro explica que é um doente e que qualquer pessoa está sujeita a
esse mal. Na terceira, vê um defunto transportado em cortejo fúnebre; o
cocheiro explica que é um morto e que a morte é o fim para o qual
caminham todos os seres vivos. O impacto dessas
três visões tumultua enormemente os pensamentos de Sidharta
e ele decide partir em busca do esclarecimento. Deixa para trás os
palácios, as mulheres, o filho e cavalga rumo ao Oriente. Como São
Francisco de Assis (1182-1226) na
Itália do século XIII, se desfaz das roupas. Entrega seu cavalo ao
criado que o acompanhara e corta os cabelos. Sozinho, decide iniciar uma
nova vida. Tem 29 anos de idade. Um asceta, ou, segundo a lenda, um
anjo que assumiu a forma de asceta, lhe entrega
os únicos pertences pessoais a que futuramente terão direito os monges
mendicantes budistas: o traje amarelo, o cinto, a navalha para raspar os
cabelos, a agulha, a tigela para esmolas e a peneira para filtrar a
água. Sidarta parte em busca dos grandes mestres
espirituais da época, homens como Alara Kalama e
Uddaka Ramaputta, mas estes não
conseguem satisfazer suas dúvidas. A tradição procurará apresentar todos
os elementos essenciais da doutrina budista como uma descoberta pessoal
do
Budha, decorrente de sua iluminação. Mas. se
há elementos que realmente lhe são próprios e inconfundíveis, há também
a influência da filosofia
Sankhyan e do hinduísmo, expresso nos Vedas,
a antiquíssima coleção de textos religiosos da Índia. Desta influência e
também de outras sínteses posteriores se formaram a cosmologia e a
mitologia budista. Abandonando seus mestres,
Sidarta refugiou-se por seis anos no bosque de Sena, território de
Magadha. É uma região escolhida pelos eremitas para afastar-se
dos apelos do mundo. Ali, junto a cinco companheiros, Sidarta se dedica à
auto mortificação. Faz jejuns prolongados; quando come, sua alimentação
se resume a frutos; permanece dias seguidos
imóvel em posição de meditação, castigado pela chuva ou pelo sol.
Enfraquecido física e mentalmente, percebe que essas práticas não o
aproximam do que mais procura, as respostas para os sofrimentos do
mundo. Deixando os companheiros, banha-se no rio
Nairanjana e se fortalece com o alimento oferecido por uma aldeã.
Depois, senta-se à sombra de uma figueira sagrada para meditar. Ali
vive a experiência da iluminação que lhe teria dado consciência plena da
verdade absoluta. Segundo o relato tradicional, ele vê
simultaneamente os infinitos mundos do Universo, suas infinitas
encarnações anteriores e as de todos os outros seres, a concatenação de
todas as causas e efeitos. Ao amanhecer, intui as Quatro Verdades
Nobres, as colunas mestras do budismo: 1. O sofrimento
é inerente a toda forma de existência. 2. A ignorância é a origem do
sofrimento. 3. Pela extinção da ignorância é possível extinguir o
sofrimento. 4. O caminho que leva a isso é equidistante da entrega aos
prazeres e apelos do mundo e dos rigores do ascetismo
e da auto mortificação. Budha vai
referir-se a esse caminho médio com a metáfora de um alaúde, cujas
cordas não podem estar nem muito frouxas nem muito tensas para que se
produza o som adequado. Ela se expressa na Nobre Senda Óctuplo:
compreensão correta, pensamento correto, palavra correta, ação correta,
modo de vida correto, esforço correto, atenção correta, concentração
correta. São oito atitudes de meditação cujo entendimento pleno não pode
ser dado por meio de palavras. Por essa senda
se chega à extinção da ignorância, que não é associada no budismo à
prosaica falta de informações, mas ao desconhecimento do sentido
profundo da existência. Depois da iluminação, Sidarta se tornou o
Budha e também adotou o título de
Tatághata, aquele que veio da verdade. Procurou seus cinco
antigos companheiros de ascetismo e os converteu numa única pregação. Em
seguida converteu os irmãos
Kassapa, adoradores do fogo, e os brâmanes
Sariputra e Moggollana, que serão seus mais importantes discípulos. É o início da
Sangha, a comunidade budista, que justamente com o
Budha e o Dharma, a doutrina, formam as Três Joias do budismo. Diz a lenda que o
Budha comunicou sua doutrina também aos
Nagas, serpentes com face humana que habitam o mundo subterrâneo,
e aos deuses dos vários céus, que, apesar de suas vidas imensamente
longas, ou talvez exatamente por causa delas, são incapazes de chegar
sozinhos à iluminação. Durante 45 anos, o
Budha caminhou ensinando. A região nordeste
da Índia, que acolheu em primeiro lugar os seus ensinamentos, vivia
então uma época de crise. Não havia centralização política: a antiga
unidade tribal fora rompida pelo surgimento e expansão
de vários pequenos reinos. A religião predominante, o bramanismo, que
cultuava um deus criador, Brahma. era contestada por numerosos
movimentos organizados em torno de mestres carismáticos.
Mais do que tudo, os unia uma oposição ao sistema de castas que dividia
a sociedade indiana e assegurava os privilégios da elite sacerdotal. O
terreno era propício à aceitação do budismo. No rastro da pregação de
Budha formou-se uma numerosa comunidade de
monges e monjas que renunciaram aos bens materiais e às atividades
profissionais para viver de esmolas, meditar e pregar a doutrina.
Formou-se também uma vastíssima comunidade de fiéis leigos
de ambos os sexos. Entre os convertidos pelo Budha estava seu próprio filho,
Rahula. Três marcas são características do
budismo; consideradas em conjunto, o distinguem de todas as outras
religiões. 1. As noções de impermanência, ou seja, todos os fenômenos
são efêmeros, sujeitos à contínua transformação.
2. Insubstancialidade, isto é, os seres não
possuem qualquer núcleo estável que determine sua natureza, mas são uma
complexa e sempre cambiante, variável teia de relações. 3. Nirvana, o
estado de extinção dos sofrimentos que se
manifesta quando o homem compreende profundamente a impermanência e a
insubstancialidade, e se libera de sua ilusão de Eu e dos apegos egoístas
que ela engendra. Budha superou o
Samsara, o mundo das aparências, e encontrou o Nirvana em sua Iluminação
sob a figueira. Segundo a doutrina, ele atingiu o Para Nirvana, ou
Nirvana pleno, após sua morte, ocorrida quando tinha mais de 80 anos.
Ela foi apressada pela ingestão, supostamente voluntária, de alimentos
deteriorados, que lhe teriam sido oferecidos pelo
ferreiro Cunda, na aldeia de Pava.
Ele se preparou para morrer banhando-se pela última vez e esperou a
consumação deitado sobre o lado direito, com a cabeça voltada para o
norte e o rosto virado para
o poente. Conforme a tradição, seu corpo foi cremado pelo discípulo
Aranda e coberto com mel para que nenhuma partícula se perdesse. Uma terça parte foi entregue aos
Nagas, outra aos deuses e a terceira aos
homens. Como ocorreu com praticamente todas as grandes religiões, o
budismo sofreu metamorfoses e divisões após a morte de seu fundador. O
principal cisma, que tomou forma apenas 140 anos
depois, foi entre a corrente Hinayana, Pequeno Veículo e a
Mahayana, Grande Veículo. Essas denominações
vêm de uma pergunta metafórica: no caso de um incêndio, como um homem
deveria se salvar? Num pequeno carro puxado por uma cabra, que
asseguraria a salvação individual, ou num grande carro
de bois, que permitiria levar muitos outros juntos? A corrente
Mahayana respondeu com a segunda alternativa e se tornou
amplamente predominante. Dela resultaram, através da fusão com numerosas
tradições religiosas orientais, Escolas tão diversas quanto o austero e
filosófico zen japonês, derivado do Chan chinês,
e o exuberante e mitológico lamaísmo tibetano. O budismo tem expressão
muito reduzida na Índia contemporânea, alcançando apenas 2 % da
população, mas tornou-se a principal religião do Extremo Oriente, com
mais de 250 milhões de adeptos espalhados por países
como o Nepal, Tibete, Butão, Sikkim (o menor estado da Índia), China, Mongólia, Birmânia, Tailândia. Laos,
Kampuchea (Cambodja), Vietnã, Sri Lanka, Coréia e Japão; além
de provocar interesse cada vez maior no Ocidente. Ao contrário do cristianismo, o budismo não
acredita num deus criador. Os infinitos universos de sua cosmologia passariam por um processo também
infinito de destruição e criação,
sem começo nem fim, regido por uma lei eterna. Os seres que povoam cada um desses universos,
e que podem assumir a forma de animais, homens, deuses, demônios etc.,
estariam sujeitos a sucessivos nascimentos e mortes. Não
há propriamente uma alma imortal: são
as ações, palavras e pensamentos de uma existência que tecem a trama (kármica)
que determina a existência futura. Esse processo é considerado
extremamente doloroso, e escapar dele deve ser o fim visado por todos os
seres. Eles têm a oportunidade rara de consegui-lo apenas quando
renascem na forma humana e conseguem desapegar-se totalmente
do mundo ilusório. Libertar-se é atingir o Nirvana, a cessação de todos
os desejos, a suprema e eterna paz.
http://www.budanaweb.com.br. Abraço. Davi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário