Teosofia. Revista
Teosófica. Texto de Jiddu Krishnamurti (1895-1986). Palestra proferida em
Saanen – Suíça, 18 de julho de 1963. A COMPREENSÃO DO SOFRIMENTO. Se não há
compreensão do sofrimento, não há sabedoria; o fim do sofrimento é o começo da
sabedoria. Para se compreender o sofrimento e dele se ficar livre
completamente, requer-se compreensão, não só do sofrimento individual,
particular, mas também do imenso sofrer humano. Para mim, se não
estamos totalmente livres do sofrimento, não pode haver sabedoria e tampouco
terá a mente possibilidade de investigar deveras essa imensidade que se pode
chamar Deus, ou outro nome qualquer. A maioria de nós está sujeita ao
sofrimento em diferentes formas: nas relações, quando ocorre a morte de alguém,
quando não podemos preencher-nos e decaímos até nos reduzirmos a nada, ou
quando tentamos realizar algo, tornar-nos importantes e tudo redunda em
completo malogro. E temos também o “processo” do sofrimento no plano físico:
doença, cegueira, invalidez, paralisia, etc. Por toda a parte se encontra essa
coisa extraordinária chamada “sofrimento” – com a morte à espreita em cada
volta do caminho. E não sabemos enfrentar o sofrimento e, assim, ou o
divinizamos ou o racionalizamos, ou, ainda, tratamos de evita-lo. Ide a
qualquer igreja cristã e vereis que lá se diviniza o sofrimento, tornam-no algo
de grandioso, de sagrado, e fala-se que só pelo sofrimento, só pela mão de Cristo,
o Crucificado, se pode encontrar Deus. No Oriente, há métodos próprios de fuga,
outras maneiras de evitar o sofrimento; e é, para mim, um fato singular serem
tão raros – tanto no Oriente como no Ocidente – os que estão verdadeiramente
livres do sofrimento. Seria maravilhoso se, no processo de nosso escutar – sem
emocionalismo nem sentimentalismo – o que nesta manhã se está dizendo,
pudéssemos, antes de sairmos daqui, compreender realmente o sofrimento e dele
ficar completamente livres; porque, então, já não haveria automistificação, nem
ilusões, nem ansiedades, nem medo, e o cérebro poderia funcionar clara,
penetrante, logicamente. E, então chegássemos a conhecer o amor. Ora, para se
compreender o sofrimento é necessário investigar todo o “processo” do tempo.
Tempo é sofrimento, não só sofrimento do passado, mas também sofrimento que
inclui o futuro – a ideia de chegar, a esperança de algum dia nos tornarmos
algo, com sua inevitável sombra de frustração. Para mim, essa ideia de
consecução, de “vir a ser” algo no futuro (e isso é tempo psicológico)
representa o sofrer máximo – e não o fato de perder um filho, de ser abandonado
pela mulher ou marido, ou de se não alcançar êxito na vida. Tudo isso me parece
bastante trivial, se me é permitido pregar esta palavra, que espero não seja
mal compreendida. Há um sofrimento muito mais profundo, que é o tempo
psicológico: o pensar que mudarei em anos futuros, que, se houver tempo, me
transformarei, quebrarei as cadeias do hábito, alcançarei a liberdade, a
sabedoria, Deus. Tudo isso exige tempo – e este, para mim, é o sofrimento
máximo. Mas, para podermos aprofundar o problema, temos de descobrir porque há
sofrimento em nós – essa onda de sofrimento que nos envolve e aprisiona.
Compreendendo, primeiramente, o sofrimento existente em nós, talvez possamos
também compreender o sofrimento humano coletivo, o desespero da humanidade. Por
que sofremos? E tem fim sofrimento? Há tantas maneiras de sofrermos! A doença é
uma forma de sofrimento – a incapacidade de pensar, por debilidade do cérebro,
e tantas outras variedades da dor física. Temos, depois, todo o campo do
sofrimento psicológico – o sentimento de frustração, por não se poder realizar
nada, ou a falta de capacidade, de compreensão, de inteligência, e também está
constante batalha dos desejos antagônicos, da autocontradição, com suas ânsias
e desesperos. E há, ainda, a ideia de nos transformarmos através do tempo, de
tornar-nos melhores, mais nobres, mais sábios – ideia que também encerra
infinito sofrimento. E, por último, o sofrimento ocasionado pela morte, o
sofrimento da separação, do isolamento, o sofrimento de nos vermos
completamente sós, isolados e sem relação com coisa alguma. Todos conhecemos
essas variadas formas de sofrimento. Os eruditos, os intelectuais, os
virtuosos, os religiosos de todo o mundo veem-se tão torturados como nós pelo
sofrimento, e se dele existe alguma saída, ainda não a encontraram. Investigar
bem profundamente em nós mesmos é saber que esta é a primeira coisa que
desejamos: pôr fim ao sofrimento. Mas não sabemos de que maneira começar.
Estamos muito bem familiarizados com o sofrimento, vemo-lo em outros e em nós
mesmos, e ele se acha no próprio ar que respiramos. Ide a qualquer parte,
recolhei-vos a um mosteiro, caminhai pelas ruas apinhadas – o sofrimento está
sempre presente, declarado ou oculto, expectante, vigilante. Ora, de que
maneira enfrentamos o sofrimento? Que fazemos em relação a ele? E como teremos
possibilidade de nos libertarmos dele, não apenas superficialmente, porém
totalmente, de modo que se torne completamente inexistente? Estar completamente
livre de sofrimento não significa ausência de sentimento, de amor, de
compaixão, falta de bondade, de compreensão de outrem. Pelo contrário, na
completa liberdade, nesse estado livre de sofrimento não há indiferença. É uma
liberdade que traz grande sensibilidade, receptividade; e, como se alcança essa
liberdade? Todos conheceis o sofrimento, não vos tornais estranho. Ele está
sempre presente. E como o enfrentais? Apenas superficialmente, verbalmente?
Tende a bondade de seguir isto. Passo a passo, caminhemos juntos, até o fim.
Tentai nesta manhã, escutar com atenção completa, estar bem cônscios de vossas
reações e penetrar profundamente, junto comigo, este problema do sofrimento.
Mas isto não significa seguir-me – coisa extremamente absurda. Mas se, juntos,
pudermos compreender esta coisa, investiga-la ampla e profundamente, então,
talvez, ao sairdes daqui, possais olhar para o céu e nunca mais serdes
atingidos pelo sofrimento. Então, não mais haverá medo: e, uma vez livres de
todo temor, aquela imensidade poderá tornar-se vossa companheira. Assim, como
enfrentais o sofrimento? Parece-me que, em geral, o enfrentamos muito
superficialmente. Nossa educação, nossa instrução, nosso conhecimento, as
influências sociológicas a que estamos expostos – tudo isso nos torna muito superficiais.
A mente superficial é aquela que se refugia na igreja, em alguma conclusão,
conceito, crença ou ideia. Tudo isso são refúgios para a mente em sofrimento.
E, quando nenhum refúgio encontrais, construís em torno de vós uma muralha e
vos tornais acrimoniosos (sabor ácido, azedo; cor acre), duros, indiferentes,
ou buscais a fuga em alguma reação neurótica, fácil. Todas essas fugas ao
sofrimento impedem a investigação mais aprofundada. Espero me estejais
acompanhando, porque é justamente isto o que faz a maioria de nós. Pois bem;
observai um cérebro superficial – ou mente; notai, por favor que, quando digo
“mente” ou “cérebro”, refiro-me à mesma coisa. Outro dia estivemos considerando
a distinção entre “mente” e “celebro”, mas tal distinção é só verbal, sem
importância. Empregarei a palavra “mente” e espero que sigais e compreendais o
que se irá dizer. A mente superficial não pode resolver este problema do
sofrimento, porque sempre procura evitar o sofrimento. Foge ao fato – o
sofrimento – por meio de uma reação fácil e imediata. Se tendes uma forte dor
de dentes, naturalmente logo tratais de procurar o dentista, porque desejais
livrar-vos dessa dor física. E isso é uma reação normal e correta. Mas, a dor
psicológica é muito mais profunda e sutil, e não há médico, não há psicólogo,
não há nada que vos possa extingui-la. No entanto, vossa reação instintiva é
fugir dela. Tratais de ligar o rádio, de ver televisão, de ir ao cinema –
sabeis quantas distrações a civilização moderna inventou. Qualquer espécie de
entretenimento, seja uma cerimônia religiosa, seja uma partida de futebol, é
essencialmente a mesma coisa, mera fuga à vossa aflição, ao vosso vazio
interior; e é isto o que estamos fazendo em toda a parte: buscando em
diferentes formas de entretenimento o auto esquecimento. E, também, é a mente
superficial que procura explicações. Diz: “Desejo saber por que sofro. Por que
devo eu sofrer, e vós não?” Está cônscia de não ter praticado, na vida, nenhuma
iniquidade e, assim, aceita a teoria de vidas passadas e a ideia disso que na
Índia se chama Karma – causa e efeito. Diz ela: “Pratiquei antes alguma ação
injusta, e agora estou passando por ela”, ou “Estou agora fazendo algo de bom,
e colherei no futuro os correspondentes benefícios”. É assim que a mente superficial
se deixa enredar nas explicações. Observai, por favor, vossa própria mente,
observai como vos livrais de vossos sofrimentos com explicações, como vos
absorveis no trabalho, em ideias, ou vos apegais à crença em Deus ou numa vida
futura. E, se nenhuma explicação ou crença tiver sido satisfatória, recorreis à
bebida, ao sexo ou vos tornais mordaz, duro acrimonioso, melindroso. Consciente
ou inconscientemente, é isso o que de fato ocorre com cada um de nós. Mas a
ferida do sofrimento é muito profunda. Ela vem sendo transmitida de geração em
geração, de pais a filhos, e a mente superficial nunca retira a atadura que
cobre essa ferida: ela não sabe, em verdade, o que é o sofrimento, não o
conhece intimamente. Tem apenas uma ideia a seu respeito. Tem uma imagem, um
símbolo do sofrimento, mas nunca se encontra com ele próprio, só se encontra
com a palavra “sofrimento”. Compreendeis? Ela conhece a palavra “sofrimento”,
mas não estou certo se conhece o sofrimento. Conhecer a palavra “fome” e sentir
realmente fome são duas coisas muito diferentes, não? Quando sentis fome, não
vos satisfazeis com palavras “comida”. Quereis comida – o fato. Ora, quase
todos nos satisfazemos com palavras, símbolos, ideias, e com as nossas reações
a essas palavras, de modo que nunca estamos em intimidade com o fato. Quando
subitamente nos vemos frente a frente com o fato do sofrimento, isso nos causa
um choque, e nossa reação é a fuga a esse fato. Não sei se já notastes isso em
vós mesmos. Tende a bondade de observar o estado de vossa própria mente, e não
fiqueis meramente escutando as palavras que estão sendo proferidas. Nunca nos
encontramos com o fato, nunca “vivemos com ele”. Vivemos com uma imagem, com a
memória do que foi, e não com o fato. Vivemos com uma reação. Ora, se ao enfrentar
o sofrimento a mente tem um motivo, isto é, se deseja fazer algo a respeito do
sofrimento, não é possível compreendê-lo, assim como também não é possível
haver amor, se há motivo para amar. Entendeis? Em geral, temos um motivo quando
encaramos o sofrimento; desejamos fazer alguma coisa em relação a ele. Isto é,
suponhamos que eu tenha perdida alguém, por morte: profundamente,
psicologicamente, já não posso obter o que dessa pessoa desejava, e vejo-me a
sofrer. Se nenhum motivo tenho, ao olhar o sofrimento, ele é ainda sofrimento,
ou coisa totalmente diferente? Estais seguindo? Digamos que meu filho morre, e
eu estou a sofrer porque me vejo só. Nele eu depositara todas as minhas
esperanças e, agora, todo o meu mundo desabou. Desejara estabelecer para mim
próprio uma certa espécie de imortalidade, uma continuidade, através de meu
filho: ele deveria herdar meu nome, meus haveres, continuar com o meu negócio,
e o acabar de tudo isso causou-me choque. Ora, posso compreender o sofrimento
em que me acho, se algum motivo existe, que me impele a olhá-lo? E, se existe,
atrás de amor, algum motivo, isso é amor? Por favor, não concordeis comigo:
observai-vos, apenas. Por certo, não deve haver motivo algum, se desejo
compreender o sofrimento, se desejo descobrir a profundeza plena e a
significação do sofrimento – ou do amor, pois os dois andam sempre
juntos. A morte, o amor e o sofrimento são inseparáveis, estão
sempre juntos, e também os acompanha a criação: mas esta é outra questão, que
examinaremos noutra oportunidade. Se desejo compreender profundamente,
completamente, o fato do sofrimento, não posso ter um motivo a ditar minha
reação ao fato. Só posso viver com o fato e compreendê-lo, quando nenhum motivo
tenho. Entendeis? Se não, podeis fazer-me perguntas, depois, a respeito deste
ponto. Se vos amo porque podeis dar-me alguma coisa – vosso corpo, vosso
dinheiro, vossa lisonja, vossa companhia, ou o que quer que seja – isso por
certo, não é amor, e é claro que também vós obtendes algo de mim, e essa
permuta, para a maioria de nós se chama amor. Sei que encobrimos isso com
palavras bonitas, mas atrás dessa fachada, está a ânsia de ter, possuir, ser
dono. Agora, sofrimento não é autocompaixão? De certa maneira, fostes despojado
de alguma coisa, vossas relações com outro redundaram em fracasso, não vos
preenchestes do sentido de serdes reconhecido como pessoa importante, em
atividades de reforma social, em atividades artísticas e tantas outras coisas
mais – e todas as correspondestes frivolidades; assim, há sofrimento.
Compreender o sofrimento é viver com ele, olhá-lo, conhece-lo como realmente é;
mas não tendes possibilidade de conhece-lo quando o olhais com um motivo – que
supõe o tempo. A mente superficial, incessantemente ocupada em melhorar-se, em
lastimar-se, em torturar-se numa dada relação; desejosa de libertar-se do
sofrimento sem enfrentar o fato – essa mente prosseguirá sofrendo
indefinidamente. O fato é que estais sozinho. Em virtude de e vossa educação,
de vossas atividades, pensamentos e sentimentos, vos isolastes profundamente em
vosso interior e não sois capaz de viver com esse extraordinário sentimento de
solidão, não sabeis o que ele significa, porque dele sempre vos abeirais com
uma palavra que desperta o medo. Estais vendo, pois, a dificuldade – as maneiras
sutis com que a mente preparou suas vias de fuga, tornando-se incapaz de viver
com essa coisa extraordinária que chamamos “sofrimento”. Para se ser livre do
sofrimento, é necessário compreender, consciente e inconscientemente, todo o
seu “processo”, e isso só é possível vivendo-se com o fato, olhando o sem
motivo. Deveis perceber as manhas de vossa mente, suas fugas, as coisas
aprazíveis a que estais apegado e as coisas desagradáveis de que desejais
livrar-vos com rapidez. Cumpre observar o vazio, o embotamento e a estupidez da
mente que só trata de fugir. E pouca diferença faz, se se foge para Deus, para
o sexo, ou para a bebida, porquanto todas as fugas são essencialmente a mesma
coisa. Compreendeis? Que sucede quando perdeis alguém, arrebatado pela morte? A
reação imediata à uma sensação de paralisia, e ao sairdes desse estado vos
encontrais com o sofrimento. Ora, que significa esta palavra – “sofrimento”? A
camaradagem, os colóquios ditosos, os passeios e tantas outras coisas
agradáveis que fizestes e planejastes fazer em companhia um do outro – tudo
isso vos foi arrebatado num segundo, e ficastes vazio, desamparado, sozinho. É
contra isso que estais protestando, é contra isto que vossa mente se revolta:
ter ficado a sós consigo, isolada, vazia, sem amparo. Ora, o que
verdadeiramente importa é viver com esse vazio, com ele viver sem reação
alguma, sem racionalizá-lo, sem dele fugir com recorrer a médiuns espíritas, à
doutrina da reencarnação, e outras futilidades, viver com ele, com todo
sofrimento – um findar real, e não simplesmente verbal, não o findar
superficial, resultante de fuga, de identificação com um conceito ou
devotamento a uma ideia. Vereis que nada há para proteger, porquanto a mente
está toda vazia e já não reage no sentido de preencher o seu vazio; e quando
assim o sofrimento termina completamente, tereis encetado uma outra jornada –
jornada sem fim e sem começo. Existe uma imensidade que ultrapassa todas as
medidas, mas nesse mundo não ingressareis sem a prévia e total extinção do sofrimento.
Revista Teosófica. Abraço. Davi