quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

HUMILDE E BEM CONSIGO.

Hare Krishna. Texto de Archana Siddhi Devi Dasi. HUMILDE E BEM CONSIGO. Confundir a HUMILDADE que surge do amor espiritual com uma postura de baixa autoestima que nos torna presas fáceis de exploradores, é um equívoco perigoso que precisamos evitar. Como terapeuta de famílias, eu aconselho tantos membros do Movimento HARE KRISHNA como pessoas de fora do Movimento. Recentemente, recebi um e-mail de uma jovem devota que estava infeliz em seu casamento devido à POSTURA ABUSIVA QUE SEU ESPOSO tinha, mas estava em conflito quanto a deixá-lo. “Talvez seja bom que eu me sinta mal comigo mesma”, ela escreveu, “porque isso me fará desenvolver HUMILDADE”. Não foi a primeira vez que eu ouvi essa lógica. A Bhagavad-gita ensina que HUMILDADE é essencial para o progresso espiritual. Algumas vezes, os devotos, infelizmente, pensam que se sentir mal é um pré-requisito para a HUMILDADE. Diversas vezes, me deparo com devotos se complicando com o conceito de autoestima. Tendo lido as orações de santos de nossa linha, eles, algumas vezes, pensam que seus sentimentos deveriam se enquadrar nas declarações autodepreciativas de tais grandes almas. Por associarem baixa autoestima com avanço espiritual, tais devotos podem perpetuar por toda a vida o sentimento de estarem mal consigo. Eles podem acabar por atrair pessoas para suas vidas que lhes tratarão de acordo com a maneira que eles mesmos se sentem e se percebem. A confusão começa por tentarmos igualar sentimentos que se originam de nosso eu puro com sentimentos que se originam de nosso ego material, ou falso. As grandes almas expressam sentimentos que nascem do ego espiritual puro, sentimentos que não são contaminados pelas qualidades da natureza material. Quando eles se sentem, nas palavras do Senhor Chaitanya Mahaprabhu (1486-1534), “mais baixos que a palha na rua”, é uma emoção plena de prazer. O devoto puro vê a grandeza do Senhor e vê todos como mais qualificados do que ele próprio. Eles estão imbuídos de amor e apreciação por toda a criação de KRISHNA. Bhaktivinoda Thakura (1838-1914), um destacado mestre devotado a KRISHNA, escreveu belas canções expressando sua atração e seu amor por KRISHNA, músicas sobre alcançar a meta do coração – amor incondicional pelo Senhor – e canções autodepreciativas, nas quais ele lamenta sua falta de devoção. Como uma alma pura, ele expressa seu apego e amor pelo Senhor e, ao mesmo tempo, sua angústia de sentir-se desqualificado e sem esperança de atingir tal amor. Esses são SENTIMENTOS autênticos que NASCEM DA HUMILDADE e do APEGO e AMOR pelo SENHOR. RECONHECENDO NOSSAS FALHAS. Nas primeiras fases de nossa jornada espiritual, talvez experimentemos rapidamente essas emoções por KRISHNA estar preparando a terra de nossos corações para cultivar nossa devoção. Eu me lembro de uma importante experiência que tive antes de me tornar devota. Eu tinha grande dificuldade de aceitar críticas e achava que minha opinião era absolutamente certa. Essa mentalidade criou inúmeros problemas, tanto na área profissional quanto pessoal. Por meses, eu contestei as recomendações de meu supervisor quanto a como fazer meu trabalho como diretora residente de um dormitório universitário. Minha obstinação estava fazendo o meu trabalho muito difícil, e eu estava aflita por isso. Finalmente, um dia eu tive a poderosa realização de que eu estava errada. Não só eu estava errada quanto a esse problema em particular, mas em relação a várias outras coisas. É-me impossível descrever quão libertador foi para mim aceitar minha natureza falível. Eu não precisava mais carregar o peso de estar sempre certa em relação a tudo. Eu me senti pequena, mas, ao mesmo tempo, muitas possibilidades se abriram para mim. Pela primeira vez na minha vida adulta, eu pude ver meu autoritarismo assumir uma posição verdadeiramente submissa. Essa mudança de postura mental me preparou para tomar refúgio em meu mestre espiritual e nos devotos de KRISHNA de maneira geral. KRISHNA nos ajuda a ficarmos livres por um instante do falso prestígio para que possamos, como encorajamento, provar a doçura da HUMILDADE. Algumas vezes, todavia, quando ainda estamos contaminados pelos modos da natureza material e identificados com nosso corpo e mente materiais, sentirmo-nos inferiores à palha na rua pode nos tornar desmotivados, entediados ou deprimidos. Esses sentimentos, então, impedem nossas práticas devocionais. Nós temos que julgar se, para nossa psique específica, tal psicologia é favorável à consciência de KRISHNA ou se é um impedimento no momento. Paradoxalmente, muitas pessoas precisam desenvolver um saudável ego material antes de transcendê-lo e realizar seu eu espiritual. Eu ouvi uma vez um palestrante motivacional dizer que as pessoas com autoestima saudável pensam menos em si mesmas, e não menos de si mesmas. Quando nos sentimos bem quanto a nós mesmos, nós podemos devotar mais tempo e energia doando-nos aos outros, ao invés de absorvermo-nos em auto piedade. Alta autoestima também nos dá liberdade para agirmos de acordo com nossos valores e convicções. Quando nos sentimos mal conosco, às vezes fazemos coisas para agradar ou apaziguar os outros. Em um esforço para satisfazer o desejo dos outros, nós podemos acabar sendo influenciados a fazer coisas conflitantes em relação às nossas crenças e valores. SENTINDO-SE DIGNO E QUALIFICADO. Nathaniel Branden (1930-2014), um famoso psicólogo, define autoestima como “a disposição de sentir-se bem consigo e qualificado para lidar com os desafios básicos da vida e como sendo digno de ser feliz”. Como esses aspectos da autoestima – autoconhecimento e amor próprio – têm relação com a consciência de KRISHNA? KRISHNA quer que todas as almas aprisionadas no mundo material sejam pacíficas e felizes. A vida humana nos possibilita a oportunidade de ocuparmos nossos talentos e habilidades no serviço ao Senhor. Quando oferecemos a servir o Senhor, sentimos grande alegria. Um amigo, certa vez, deu ao meu esposo um quadrinho com os dizeres: “O que você é, torna-se um presente de Deus para você, e o que você se torna é seu presente para Deus”. Além de confundirem HUMILDADE com baixa autoestima, os devotos, às vezes, correlacionam o conceito de autoestima com orgulho e egoísmo. Mas é, de fato, o contrário. Pessoas que exibem alta autoestima também exibem uma atitude mais HUMILDADE perante os outros. Eles são mais inclinados a admitir e corrigir erros, enquanto pessoas com baixa autoestima são muitas vezes defensivas e têm a necessidade de provarem que estão certas. Em uma famosa história do Mahabharata, KRISHNA encontrou certa vez com Yudhisthira Maharaja e Duryodhana. Desejando glorificar seu devoto Yudhisthira, Krishna pediu a ele que encontrasse uma pessoa mais baixa que ele, e pediu ao pecaminoso Duryodhana para que procurasse uma pessoa mais gloriosa que ele. Yudhisthira tinha todas as boas qualidades. Ele era pacífico e auto satisfeito. Sem dúvida, ele possuía uma saudável autoestima. Mesmo assim, ele não conseguiu encontrar ninguém mais baixo que ele. Mais uma vez, aqui se tem o exemplo de uma vaishnava avançado que porta HUMILDADE GENUINA. Por outro lado, o perverso Duryodhana procurou por todo o seu reino o dia todo e não conseguiu encontrar ninguém que ele considerasse superior a ele mesmo. Duryodhana estava contaminado com orgulho e vaidade. Ele invejou e ofendeu grandes almas. Ele vivia em constante ansiedade para manter sua posição, sempre tentando eliminar seus competidores. Sua autoestima dependia de fatores externos como posição e poder, e assim ele não conhecia tal coisa como PAZ INTERIOR. Ele era atormentado por sua própria luxúria e ambição. ORGULHO VERSUS AUTO ESTIMA. Pensar em si mesmo como grandioso é orgulho, não autoestima. Uma pessoa com alta autoestima demonstra HUMILDADE. A perfeição da autoestima é percebida em pessoas completamente livres do falso ego, nas quais a humildade é produto da realização espiritual. No nosso estado condicionado, nós possivelmente nos identificaríamos mais com a mentalidade de Duryodhana do que com a de Yudhisthira Maharaja, mas, no nosso progresso na jornada espiritual, nós começamos a nos ver de forma diferente. Quanto mais realizamos não sermos o executor independente, mas o instrumento, mais saudável nossa autoestima se torna. Na vida material, os modos da bondade, paixão e ignorância nos influenciam. Esses modos se misturam e competem entre si para moldar nossa mente, incluindo o modo como nos sentimos em relação a nós mesmos. Pessoas no abismo do modo da ignorância se sentem felizes e bem em relação a si mesmas quando seus sentidos estão satisfeitos. Pessoas imersas no modo da paixão estão felizes e bem consigo mesmas quando outros valorizam e reconhecem suas atividades. Nesses modos inferiores, nossa ideia de eu oscila o tempo todo. Pessoas no modo da bondade são felizes e sentem-se bem em relação a si mesmas quando agem em conhecimento, de acordo com seus códigos e valores. Elas são menos reativas a estímulos externos, assim, a autoestima de tais pessoas depende mais de sua própria vida interior – consequentemente, têm mais controle sobre como se sentem. Pessoas em bondade pura, percebem a si mesmas como instrumentos do Senhor. Elas não se identificam mais como o agente de suas atividades. O EXEMPLO DE PRABHUPADA. Nosso mestre espiritual, Srila Prabhupada, demonstrou alta autoestima. Embora de baixa estatura, ele parecia grande para nós. Ele sempre mantinha sua cabeça alta e se movia com objetivo e confiança. Ele fala de forma direta, com convicção e coragem. Suas ações eram intrépidas e ousadas, e mesmo assim ele tinha uma atitude humilde, sabendo que seu sucesso era devido à providência do Senhor. Sua humildade é exemplificada em suas orações abordo do navio, quando ele estava vindo pela primeira vez aos Estados Unidos: “Ó Senhor, eu sou como uma marionete em Tuas mãos. Então, se me trouxeste aqui para que eu dance, faze-me dançar, faze-me dançar, ó Senhor, faze me dançar como quiseres. Não tenho nenhuma devoção, tampouco conhecimento, mas tenho grande fé no santo nome de KRISHNA. Eu fui designado como Bhaktivedanta, e agora, se assim quiseres, podes cumprir o verdadeiro propósito Bhaktivedanta”. Com grande HUMILDADE, Prabhupada finaliza sua carta assinando como “o mais desafortunado e insignificante mendigo, A. C. Bhaktivedanta Svami”. De um lado, essas preces demonstram que Prabhupada se sentia muito baixo, mas, por outro lado, ele confiava poder fazer qualquer coisa com a MISERICÓRDIA DO SENHOR. A ORAÇÃO também nos dá a chave para desenvolvermos PURAS QUALIDADES DEVOCIONAIS: fé no santo nome. Quanto mais forte a nossa fé na capacidade de purificação dos santos nomes, maior será nossa dedicação ao processo de cantar. Nós cantaremos com tanto foco e atenção quanto pudermos e evitaremos com muito cuidado as ofensas que retardam nosso progresso espiritual. Nós ficamos menos propensos a explorar os outros quando vemos a nós mesmos como servos, realizando a nossa natureza espiritual – bem como a dos outros – como servos de Deus. Nós somos gloriosas centelhas da energia espiritual, com todas as boas qualidades, embora sintamo-nos pequenos na presença do mais glorioso, nosso Senhor. Com esse verdadeiro conhecimento, a alma pura pode ter alta autoestima e HUMILDADE simultaneamente. Quando eu compartilhei alguns destes pontos com a jovem que havia me enviado sua pergunta por e-mail, ela me escreveu de volta: “É-me um grande alívio entender esses pontos dessa perspectiva. Agora eu entendo que não tenho que continuar convivendo desonrosamente com todo o tipo de abusos para ser espiritual”. Ela me sugeriu escrever um artigo sobre o tema para a revista Volta ao Supremo. Eu aceitei de todo o coração sua sugestão, uma vez que outros devotos haviam feito perguntas similares ao longo dos anos. Espero que o artigo seja útil para todos. www.voltaaosupremo.com.br. Abraço. Davi.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

TRATE A TODOS COMO O BUDA.

Budismo. Por Lama Yongey Mingyur Rinpoche. (1975 -  ). Tradução de Marcos Bauch. “As poucas vezes em que pessoas me perguntam sobre ética são quando ocorrem escândalos ou controvérsias nas comunidades budistas”, diz Mingyur Rinpoche. Mas, como ele observa, a conduta ética sempre foi central para o caminho budista. Aqui, ele explica o que significa viver uma vida virtuosa, o que um aluno deve procurar em um professor, o que fazer quando ocorrerem violações éticas graves e muito mais. Como professor budista, muitas vezes me perguntam sobre meditação e princípios budistas profundos, tais como interdependência e vacuidade. Fico feliz em compartilhar o que sei sobre esses tópicos. Mas tenho notado que as pessoas raramente me perguntam sobre ética e como viver uma vida virtuosa. É verdade que a meditação é importante na tradição budista. Não há dúvida sobre isso. O mesmo pode ser dito sobre estudar ideias e filosofias budistas. Mas, em muitos aspectos, a ética e a virtude são o fundamento do caminho budista. O próprio Buda viveu uma vida de bondade, humildade e compaixão. Ele incorporou completamente os ensinamentos que deu, e a sangha que cresceu ao seu redor seguia seu exemplo. Houve muitas ocasiões em que os alunos começaram a sair dos trilhos e agiram de forma inadequada – algumas vezes de forma hilária -, mas esses incidentes foram utilizados como oportunidades para esclarecer valores importantes e para mostrar à comunidade como viver uma vida de virtude. Desde os primórdios do budismo, a conduta ética foi tão central para o caminho quanto a meditação, o estudo e a contemplação. Hoje em dia, as poucas vezes em que as pessoas me perguntam sobre ética são quando ocorrem escândalos ou controvérsias nas comunidades budistas. Apesar da clara importância da não-violência e da compaixão na tradição budista, muitos estudantes não sabem como lidar com essas situações. Eu consigo entender por que eles ficam confusos. Existem muitas linhagens e escolas budistas diferentes e é difícil acompanhar todos os seus diferentes ensinamentos, práticas e estruturas éticas. Isto é especialmente verdadeiro na tradição tibetana, onde temos três abordagens diferentes – que chamamos de yanas ou “veículos” – unidas em um único caminho de prática budista. Estes são, o veículo Fundamental da liberação individual, o veículo Mahayana da grande compaixão e o veículo Vajrayana do despertar indestrutível. Essa combinação é um dos aspectos únicos e belos do budismo tibetano, mas que nem sempre torna as coisas mais simples. ÉTICA NO BUDISMO TIBETANO. No budismo tibetano praticamos os três yanas juntos, e isso inclui a prática da ética. Deixe-me esclarecer. O princípio ético mais básico no yana da liberação individual é a não-violência, o compromisso de evitar prejudicar os outros a todo custo. Quando adicionamos o Mahayana, não nos esquecemos da não-violência, mas damos um passo adiante, com a prática de bodhichitta. Este é o compromisso de ajudar todos os seres a se tornarem completamente iluminados. Por fim, o Vajrayana traz a noção de percepção pura. Ao praticar o Vajrayana, permanecemos firmemente fundamentados na não-violência e na motivação altruísta de bodhichitta, mas tomamos a visão da fruição. Nós tratamos tudo e todos como a personificação do despertar. Comprometemo-nos a ver a nós mesmos, aos outros e ao mundo que nos rodeia como fundamentalmente puro, completo e perfeito. Este ideal de percepção pura é incorporado no princípio de samaya, os compromissos formais aos quais um praticante Vajrayana adere. Há muitos detalhes sobre samaya, mas colocando de forma simples, a essência de samayaé praticar a percepção pura da melhor forma, dentro de suas habilidades. Muitas pessoas não compreendem samaya e pensam que se refere apenas a ver o professor como um buda, um ser completamente iluminado. Isso é parte dosamaya, mas falta o ponto chave. Samaya é sobre ver tudo e todos pela da lente da percepção pura. O único propósito de ver o professor como um buda é para que possamos ver essas mesmas qualidades despertas em nós mesmos, nos outros e no mundo que nos rodeia. É uma ferramenta que nos ajuda a ganhar confiança na pureza da nossa verdadeira natureza. A prática Vajrayana está enraizada nos ideais de não-violência e grande compaixão. Não há Vajrayana sem eles. Então como podemos usar esses princípios para nos guiar em questões importantes, como encontrar um professor autêntico e trabalhar com os inevitáveis desafios que surgem na vida em comunidade? O PONTO DA PRÁTICA. O primeiro ponto que eu gostaria de trazer é, provavelmente, óbvio. Nossa prática deveria revelar o melhor em nós enquanto seres humanos. Ela deveria aflorar a nossa sabedoria inata, a nossa sanidade básica e a bússola moral que todos nós temos (mesmo que a gente não saiba disso). A maneira mais básica de medir nossa prática, portanto, é o grau em que nos aproximamos dos ideais simples de bondade, humildade, honestidade e sabedoria. Se – como indivíduos ou como comunidades – nos vemos indo na direção contrária, algo está fora do trilho. Nenhum de nós atuará perfeitamente em todas as situações, mas com o tempo deveria haver um movimento claro em direção a esses valores humanos básicos e universais. Isto é especialmente verdadeiro para professores espirituais. Professores budistas são modelos e guias para as comunidades que lideram, e representam a tradição budista para o mundo não-budista. Se, como estudantes dos ensinamentos do Buda, nos esforçamos em sermos gentis, humildes e dedicados à prática, então faz sentido achar que nossos guias deveriam personificar essas qualidades. Eles deveriam nos inspirar com a sua bondade e devoção. Eles deveriam incutir confiança pelo cuidado e preocupação que eles demonstram com os outros. Claro, não devemos esperar a perfeição, mas nem é preciso dizer que as pessoas que guiam outros deveriam praticar o que pregam. ENCONTRANDO UM PROFESSOR GENUÍNO. Quando se trata de encontrar um professor genuíno, existem quatro coisas que são especialmente importantes. O primeiro é que o professor deveria fazer parte de uma linhagem autêntica. Os professores genuínos não se promovem; eles promovem sua linhagem. Se um professor se gaba de suas qualidades e realização e faz de sua prática um show, isso provavelmente é uma indicação de que algo não está certo. Mas se um professor estudou e praticou sob a orientação de outros professores respeitados e honra sua linhagem ao defender seus valores e tradições, isso é um bom sinal. A linhagem sozinha não faz um professor ser genuíno, mas é importante. A segunda qualidade que devemos procurar é o comprometimento em estudar e praticar. Este é bastante óbvio. Você não tomaria aulas de piano de alguém que não toca bem, não é mesmo? Claro que não. O mesmo se aplica aqui. Se você confia seu bem-estar espiritual à alguém, você deve ter certeza de que essa pessoa conhece o caminho em primeira mão. Para isso, eles devem ter um compromisso claro com sua própria prática e treinamento. A terceira qualidade essencial é a compaixão. Como estudantes, precisamos ter certeza de que nosso professor está do nosso lado – de que eles levem nossos melhores interesses no coração e se preocupem profundamente conosco e com nosso progresso no caminho. A confiança é fundamental aqui. Um professor genuíno é confiável e coloca as necessidades do aluno em primeiro lugar. O sinal de que um professor tem essa qualidade é que os alunos se sentem seguros e protegidos sob seus cuidados. Eles sabem que, não importa o que estiver acontecendo em sua vida, seu professor sempre estará lá para orientá-los e apoiá-los. A quarta e última qualidade é aquela que se relaciona mais diretamente com a ética. Um professor genuíno deveria sustentar seus votos e preceitos. Na tradição tibetana, isso significa que ele mantém todos os votos monásticos ou leigos que tenha tomado, adere aos votos de bodhisattva do Mahayana e mantém os votos de samaya do Vajrayana. Isso não é algo fácil, mas é muito importante. Há muitos detalhes incluídos neste ponto, e, como estudantes, talvez não possamos saber exatamente quais os votos que uma pessoa detém. Mas podemos perguntar e verificar se há alguma dúvida sobre o comportamento ou a conduta de um professor. Esse é uma boa forma de começar. Nestes tempos, não é fácil encontrar um professor perfeito. O tempo do Buda, quando as pessoas pareciam se iluminar simplesmente aparecendo na frente dele, já se foi. Podemos não encontrar um professor que incorpora perfeitamente essas quatro qualidades, mas ele deve ter todas elas até certo ponto. Se uma ou mais dessas qualidades está completamente ausente em um professor, provavelmente é melhor seguir procurando. DEIXANDO UM PROFESSOR. Essas quatro qualidades são uma boa orientação geral a seguir ao procurar um professor. Mas, mesmo quando fazemos o nosso melhor para primeiro investigar um professor, muitas vezes nós só conhecemos o professor realmente depois que nos tornarmos seus alunos. No mundo moderno, a maioria de nós não tem um mosteiro ou um especialista budista por perto. Nós não conhecemos, necessariamente, todos os detalhes sobre um professor, ou nem mesmo temos alguém a quem possamos perguntar. Então, o que fazemos quando descobrimos que um professor não é exatamente o que esperávamos? Muitos estudantes do budismo tibetano pensam, erroneamente, que não podem ou não devem abandonar um professor depois de se comprometerem com ele. Não é bem o caso. O ponto principal da relação professor-aluno é que ela deve beneficiar o aluno. Não deveria visar o ganho ou lucro do professor. Se você tentou o seu melhor e descobriu que não deu certo, você pode procurar outro professor. Isso não é um problema ou falha pessoal. É bom senso. A melhor maneira de sair é fazê-lo sem falar mal do professor ou criar dificuldades para aqueles que podem se beneficiar do professor e da comunidade. Saia de forma amigável, ou pelo menos, não saia em condições ruins. Basta seguir em frente com humildade e não se sinta mal com o fato de que não funcionou. A ressalva que eu gostaria de acrescentar aqui é que é importante ser honesto consigo mesmo. Deixar um professor ou uma comunidade em que você não se ajustou bem é compreensível, mas se você achar todos os professores indignos do seu tempo, então talvez você possa olhar mais fundo, olhar os seus próprios padrões, para ver o que está acontecendo. Pode ser difícil fazer qualquer progresso no caminho se você estiver procurando pela perfeição. VIOLAÇÕES ÉTICAS GRAVES. Contudo, o assunto é totalmente diferente quando um professor está cometendo graves violações éticas. Deixar um professor em condições amigáveis faz sentido quando o caso é apenas uma questão de adequação entre professor e aluno. Quando o caso é que pessoas estão sendo feridas ou leis estão sendo quebradas, a situação é diferente. Nesse caso, a violação das normas éticas precisa ser abordada. Se ocorreu abuso físico ou sexual, ou se há impropriedade financeira ou outras violações éticas, é do melhor interesse dos alunos, da comunidade e, em última instância, do professor, resolver os problemas. Acima de tudo, se alguém está sendo prejudicado, a segurança da vítima vem em primeiro lugar. Este não é um princípio budista. Este é um valor humano básico e nunca deve ser violado. A resposta apropriada depende da situação. Em alguns casos, se um professor atuou de forma inadequada ou prejudicial, mas reconhece o erro e se compromete a evitá-lo no futuro, então, lidar com o assunto internamente pode ser adequado. Mas se existe um padrão recorrente de violações éticas, ou se o abuso é extremo, ou se o professor não está disposto a assumir a responsabilidade, é apropriado trazer o comportamento à público. Nestas circunstâncias, não é uma violação de samaya trazer informações dolorosas à tona. Apontar comportamentos destrutivos é um passo necessário para proteger aqueles que estão sendo prejudicados ou que correm o risco de serem prejudicados no futuro e salvaguardar a saúde da comunidade. LOUCA SABEDORIA. A tradição Vajrayana tem histórias de iogues, ioguines e professores excêntricos que usaram métodos extremos para orientar seus alunos. A história de Marpa pedindo a Milarepa para construir e depois desmantelar uma série de torres de pedra é, talvez, o exemplo mais famoso disso. Esta tradição de “louca sabedoria” pode ser autêntica, mas, infelizmente, muitas vezes é invocada como uma racionalização para comportamentos antiéticos que não tem nada a ver com sabedoria ou compaixão. A coisa mais importante a saber sobre esses estilos de ensino incomuns é que eles são destinados a beneficiar o aluno. Se eles não estão enraizados na compaixão e na sabedoria, eles não são genuínos. Ações que são enraizadas na compaixão e na sabedoria – mesmo quando pareçam ser estranhas, excêntricas ou mesmo iradas – não provocam medo ou ansiedade. Elas fazem florescer a compaixão e sabedoria no aluno. Em outras palavras, os resultados de uma verdadeira “louca sabedoria” são sempre positivos e visíveis. Quando um professor usa uma abordagem extrema, enraizada na compaixão, o resultado é crescimento espiritual e não trauma. Trauma é um sinal claro de que o comportamento de “louca sabedoria” não contava com a sabedoria para ver o que realmente beneficiaria o aluno, ou a compaixão que coloca o interesse do aluno em primeiro lugar, ou ambos. Também vale a pena notar que esses estilos de ensinamentos extremos que vemos na história do Vajrayana ocorreram em um contexto de vínculo espiritual muito maduro entre professor e aluno. Eles não eram tão comuns. Marpa não fez todos os seus alunos construírem torres de pedra. Na verdade, ele tratou seus outros alunos de forma muito diferente de como tratou Milarepa. Mas ele viu o potencial de Milarepa e a abordagem que o beneficiaria mais. O resto é história. Milarepa se iluminou e se tornou um dos maiores sábios do Tibete. Não só esses métodos de ensino extremos são usados apenas com estudantes muito maduros e no contexto de uma relação de confiança e devoção estáveis, eles também são um último recurso. Diz-se que existem quatro tipos de atividades iluminadas: pacíficas, magnetizadoras, enriquecedoras e iradas. A atividade irada é usada apenas para aqueles que não são receptivos a abordagens mais sutis. Então, novamente, esse estilo não é uma norma, mas algo assim só é empregado em certas circunstâncias. Assim, devemos distinguir os professores excêntricos ou provocativos – mas fundamentalmente compassivos e habilidosos – daqueles que realmente estão prejudicando os alunos e causando trauma. Estas são duas coisas muito diferentes, e é importante que não as misturemos. Há muitos professores que forçam e provocam estudantes para ajudá-los a aprender sobre suas próprias mentes, mas isso não é abuso. O abuso físico, sexual e psicológico não são ferramentas para ensinar. O VAJRAYANA NO MUNDO MODERNO. Agora que o mundo está tão interligado, a ética é mais importante do que nunca. Em certo sentido, nós, praticantes budistas, estamos todos representando os ensinamentos do Buda para o mundo. Qualquer um pode aprender sobre este professor ou aquela sangha com alguns cliques do mouse e uma rápida pesquisa no Google. Isso é bom, porque torna toda a tradição mais transparente. O comportamento ético – e as violações éticas – são mais visíveis do que em tempos anteriores. Nem é preciso dizer que, quando se espera que escolas, empresas e outras instituições públicas adotem um código de conduta e as leis da terra, as organizações espirituais deveriam ser modelos de comportamento ético. E os professores ainda mais. Ao longo da história, um dos papéis mais importantes dos professores budistas e da sangha budista foi exatamente esse. Eles serviam como modelos de comportamento ético para suas comunidades. O budismo Vajrayana é considerado um tesouro precioso pelos tibetanos. É nossa herança espiritual e nosso presente para o mundo. Agora que os ensinamentos e práticas dessa tradição estão se espalhando pelo mundo, é importante entendermos a tradição e como trabalhar com seus ensinamentos poderosos. Como eu disse, o cerne da tradição Vajrayana é que nos esforcemos para personificar a visão pura. Olhamos nossos pensamentos e emoções – até os mais difíceis – como manifestações da consciência além do tempo. Vemos cada pessoa como um Buda, e nós as tratamos como tal. Vemos o mundo em que vivemos como uma terra pura, iluminada do jeito que é. Esta tradição, de tratar tudo e todos como se estivéssemos encontrando o Buda face-a-face, é a nossa principal prática no Vajrayana. É o sangue da nossa tradição e o padrão ético mais elevado a que podemos aspirar. Hoje em dia, com confusão e conflito por todos os lados, o mundo precisa disso mais do que nunca. www.budavirtual.com.br. Abraço. Davi.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

POR QUE BUDISMO NÃO MATA BARATA?

Budismo. Texto de Padma Dorje (1975 -  ). POR QUE BUDISMO NÃO MATA BARATA. Algumas pessoas pensam que budistas não matam baratas porque para nós cada um dos seres já foi nossa mãe várias vezes, ao longo de muitas vidas passadas. Aquela que tantas vezes cuidou tão bem de nós, agora caiu numa situação difícil – renasceu como um inseto nojento. Porém, embora isso seja verdade, não é bem porque todos os seres já foram nossos familiares que protegemos suas vidas – pensar assim apenas pode ajudar a aguçar nossa compaixão, caso ela esteja dormente. O fato é que qualquer ser – até mesmo uma barata – pode ser fonte de infinita alegria e mesmo de grande sabedoria, caso estejamos dispostos a encarar a realidade, abandonemos crenças arraigadas absurdas, e nos acostumemos com a receptividade natural da mente. O sentido mais essencial da ética no budismo é não prejudicar os outros. Evidentemente, “não prejudicar” pode, a princípio, parecer algo subjetivo, valorativo – até uma ideia pessoal do que seria causar dano. Porém, o budismo possui uma fundamentação decisiva sobre o que significa sofrimento, e o que é “causar sofrimento”. O budismo descreve dois níveis de sofrimento: um que vai da simples dor ou desagrado até o desespero convencional mais profundo, e outro que é simplesmente chamado de “sofrimento que tudo permeia”, o fato de que nossa experiência como seres temporários não tem “solução”, e todos nos encaminhamos para decrepitude e morte. Mais do que isso, para o budismo, depois que morremos, encontraremos os mesmos sofrimentos ocorrendo vez após vez, vida após vida. Não parece vantagem alguma renascer. O segundo sofrimento, portanto, inclui essa noção mais ampla, existencial. Um sofrimento que não só inclui a morte, mas também o nascimento – pelo menos o “nascimento condicionado”: isto é, o nascimento como um ser cativo nas prerrogativas das emoções aflitivas, que são a superestrutura que molda o samsara, esse ciclo de renascimentos sem sentido. Esse sofrimento que tudo permeia também aponta para o fato de que nenhuma vida possível, neste contexto, é “livre” de sofrimento. A visão e prática budista buscam eliminar os dois tipos de sofrimento, os que se podem chamar de sofrimentos temporários e o sofrimento mais basal ou onipresente. Nosso voto como praticantes não é apenas extinguir completamente os dois tipos de sofrimento para nós mesmos, mas para todos os outros seres. No sentido temporário, convencional, tendemos a ter muitos apegos, e sofremos com cada um deles. O apego mais forte que sentimos é ao nosso próprio corpo, e às extensões de nosso corpo, na forma de família, e até mesmo daqueles simplesmente mais parecidos conosco, ou que por acaso se encontram mais próximos, ou até mesmo aqueles que se encontram presentemente em nosso campo de visão e atenção. Sofremos mais quando alguém corta o dedo de nosso filho do que quando alguém corta o dedo de alguém desconhecido lá no Iraque. Sofremos mais quando vemos o dedo sendo cortado do que quando ouvimos uma história longínqua no tempo e no espaço de um dia um dedo ter sido cortado. Claro, todo apego é fruto de nossa ignorância – como acreditamos que o dedo de nosso filho é permanente, quando a impermanência do dedo, ou do filho todo, se apresenta, isso nos surpreende. Esse choque de reconhecer essa possibilidade é um sofrimento adicional ao fato simples de que nosso filho foi mutilado ou morreu. A partir disso, normalmente procuramos por um culpado, achamos natural que os sofrimentos de uns nos afetem mais do que os sofrimentos de outros, e assim por diante. E aqui temos o conceito de “compaixão”. Compaixão significa reconhecer o sofrimento do jeito que se apresenta, com certa equanimidade, isto é, sem julgar e colocar o sofrente ou a sofrência numa posição mais próxima ou afastada. Por exemplo, nós que somos adultos podemos ficar um pouco chateados caso nosso recém-adquirido sorvete caia na calçada, mas dificilmente cairemos em lágrimas por causa disso (a não ser que toda nossa semana tenha sido bem difícil, e essa seja a gota d’água (…) quem sabe?) – contudo uma criança facilmente chora aos berros por um acidente trivial desse tipo. Em certo sentido, o modo como lidamos com uma criança chorando por um sofrimento “bobo” tem muito a ver com como lidamos com todos os sofrimentos convencionais dos seres. Ao mesmo tempo em que entendemos aquele sofrimento da perspectiva da criança, a consolamos, e talvez até lhe compramos outro sorvete (sem dúvida alertando para que tome mais cuidado dessa vez). Também é possível que reflitamos cinicamente, pensando no câncer ou em Donald Trump, “essa criança não sabe o que espera por ela”. Não sabe o que é vida, inocente (…). Isto tudo ainda é compaixão ou empatia mundanas, bastante maculadas por nossas percepções arbitrárias, e pelo fato de que, se somos criteriosos e cuidadosos, mas não temos o darma, não vemos realmente solução. Para transformar isso em compaixão no sentido budista, é preciso adicionar o elemento do reconhecimento do sofrimento no sentido mais amplo – e mais do que isto, eliminar completamente a visão cínica de que o sofrimento é uma realidade necessária. Estas duas características – o sentido mais profundo de sofrimento, e a noção de que o sofrimento pode ser totalmente superado – precisam estar presentes. O sentido de tomar refúgio no Buda é acreditar que é possível superar completamente os dois tipos de sofrimento. Caso a pessoa não reconheça os dois tipos (e sua diferença), e não reconheça também que eles não são necessários – e que é possível superá-los completamente – essa pessoa efetivamente não reconhece as Quatro Nobres Verdades e não podemos dizer que possa praticar o que o budismo ensina – o budismo inteiro não passa de um treinamento da mente em termos desse reconhecimento. Para a maioria de nós ainda aperfeiçoando o refúgio – tentando ser praticantes budistas – é preciso não só refinar o entendimento do sofrimento, mas também das causas do sofrimento, e reconhecer que é exatamente porque o sofrimento – mesmo o sofrimento mais amplo, que tudo permeia – tem causas, que essas causas podem ser eliminadas. É pura lógica: caso houvesse algo que realmente existisse de forma independente, sem causas, então seria bem possível que o sofrimento fosse uma dessas coisas, e não tivesse solução. Porém, é bastante difícil (na visão budista impossível) encontrar alguma coisa neste mundo que não tenha causas. Quando chegamos à conclusão de que coisas sem causas são impossíveis, podemos regozijar no fato de que o sofrimento é uma dessas coisas com causa, e que, portanto, ele não é necessário. Este é um dos pontos mais cruciais e menos compreendidos na integração dos ensinamentos budistas com a modernidade. Algumas vezes foca-se numa ideia de budismo em que o sofrimento é inescapável – porque afinal de contas o budismo ensina que devemos entender bem todo o sofrimento, e como ele efetivamente permeia tudo, até mesmo as “melhores” coisas do mundo. Porém, se esquece de ensinar que essa coisa que examinamos cuidadosamente não é natural, não é algo que existe sem causas, por si só; e que embora ela pareça necessária, efetivamente não é este o caso. É nossa realidade presente porque sustentamos essas causas, porque acreditamos em certas coisas absurdas, e operamos por hábito com base nessas crenças – mas nada disso precisa ser assim. Se não houvesse como eliminar completamente o sofrimento, seria um absurdo adicionar mais essa coisa chamada “budismo” só para nos fazer ficar ainda mais chateados com a realidade! A prática vem da ideia de que é sim possível superar totalmente o sofrimento; porém, é primeiro importante ver onde ele está, o que ele é, e como ele é bem mais penetrante em todas as coisas do que normalmente pensamos. Caso contrário, seguiremos alienados, buscando as causas de certos sofrimentos como se fossem felicidade. E nesse caso, o sofrimento realmente não tem solução. Caso nos esforcemos para continuar sofrendo, procurando felicidade onde não há felicidade, evidentemente que seguiremos produzindo causas de sofrimento, estejamos cientes disso ou não. Do ponto de vista das causas do sofrimento, na lógica do samsara, o samsara não tem solução alguma. E não só o sofrimento em geral tem uma causa, cada um dos sofrimentos têm uma causa particular. Os sofrimentos convencionais, segundo o budismo, têm como causa mais essencial o fato de nós termos causado sofrimento a outros seres. Isso não exime alguém de ser o aparente causador de nosso sofrimento atual; apenas que o fato de estarmos na posição de vítima, e termos essa fragilidade, é principalmente devido ao que fizemos no passado. Mais do que um causador, esse agente “negativo” neste momento é um catalisador das fragilidades que criamos com nossas próprias ações passadas. Caso não tivéssemos essas fragilidades, ele não conseguiria nos atingir, ou não estaríamos numa circunstância em que ele pode nos atingir. Ele é a causa coadjuvante, não a causa principal – o que é bem o contrário do que pensamos normalmente. E é aqui que o budismo não tem uma visão pequena no sentido das vítimas de hoje serem culpadas de algum modo: no grosso da coisa, pensando em trilhões de vidas, todos somos igualmente vítimas e culpados. O objetivo de condenar alguém pela via legal e tolher sua liberdade não deve, na visão budista, ser revanchismo, mas em primeiro lugar proteger os outros de possíveis ações semelhantes, e, se possível, dar uma oportunidade para o arrependimento e a reforma. Desejar ou ficar feliz com o sofrimento de alguém que causou sofrimento, para o budismo, só gera mais sofrimento para você mesmo – e não faz nada pela pessoa que causou o sofrimento. Em nossa cultura, porém, alimentamos cada vez mais a ideia de que o outro é um ser terrível, e que “merece” todo sofrimento do mundo simplesmente por ter causado algum sofrimento temporário a alguém – por agudo e terrível que esse sofrimento pareça. Na visão budista, esse ser inexoravelmente vai sofrer por ter causado sofrimento, e isso não deveria ser motivo de regozijo por qualquer pessoa. O fato dele causar sofrimento para os outros é extremamente infeliz, e portanto, maior motivo ainda para compaixão. Um budista que seja vingativo, ou que deseje mal para um agressor, ou regozije com isso, está sendo ignorante de sua própria tradição, e do que é bom para ele mesmo, e do que se coaduna com a realidade. Na verdade, até mesmo o cristianismo prega coisa semelhante, mas nossa cultura parece não dar mais bola a isso. Se o budista tem compaixão pela vítima, ele tem ainda mais compaixão pelo perpetrador da ação negativa. Um dos seres está sofrendo agora, o outro vai sofrer depois. Aquele que já está vivenciando o sofrimento, em certo sentido, está até mesmo em certa vantagem – pelo menos ele pode estar encerrando aquele tipo de experiência. O outro não tem essa chance. No sentido profundo, não há seres “separados”, essa é a ignorância básica. O fato do dedo cortado do iraquiano doer menos em nós do que o dedo cortado do brasileiro, ou da pessoa conhecida, ou de nosso filho, ou nosso próprio dedo, não se deve a nada verdadeiro. Não se deve a uma característica das coisas “como elas são”, se deve sim ao fato de que somos ignorantes, isto é, termos certos hábitos cognitivos que projetam essa aparente separação. Quando vemos uma pessoa regozijando com o sofrimento dos inocentes, pensamos, “puxa, essa pessoa é um monstro” – e a grande maioria das pessoas concordará com isso, regozijar com o sofrimento de um inocente é abjeto. Quando, porém, vemos uma pessoa regozijando com o sofrimento de um “culpado”, é possível que encontremos algumas pessoas dizendo “essa gente que não acredita em direitos humanos é realmente torpe”. Agora, podemos de fato classificar também esse que regozija como “ralé” ou “white trash”, ou algo semelhante, e ele também será um objeto de compaixão, junto com aquele que o condena. Caso a pessoa seja muito cordata, ela sentirá compaixão daqueles que não têm compaixão, e pensará “puxa, essa gente não tem educação, não teve oportunidade de pensar melhor”. De fato, quem está mais próximo da realidade de que a separação entre os seres é uma artificialidade, é uma pessoa cheia de mérito, é um ser mais próximo da “nobreza de espírito”. Quem acredita muito fortemente em inimigos e na separação dos seres torna-se o objeto principal de compaixão – é este o ser que está mais distante do conhecimento das causas e condições do sofrimento, e, portanto, evitá-lo. Todos aí são objetos de compaixão, no fim das contas. Vítimas, agressores, julgadores e condenados. É assim que os bodhisattvas olham para os seres que veem distinções entre próximos e distantes, semelhantes e diferentes – eles têm compaixão por esses seres pouco sofisticados, imaturos. Os bodhisattvas reconhecem que essa falta de visão faz parte do sofrimento que tudo permeia. Eles sentem compaixão pelos seres que não reconhecem as verdadeiras causas do sofrimento, e mais do que isso, os que não reconhecem que o sofrimento tem causas. Estes são o objeto de compaixão dos budas e bodisatvas: os seres que têm inimigos, que separam os seres, e que não conhecem as causas do sofrimento, e assim se engajam em ações que trazem sofrimentos para eles e para outros seres. Ou que regozijam no sofrimento alheio, seja de “vítimas” ou de “algozes”. Entre as ações negativas que causam sofrimento aos outros, a mais negativa de todas é tirar a vida. Isso se deve porque mesmo o mais ignorante dos seres sencientes tem pelo menos algum resquício de compaixão, que – mesmo sendo muito pequena – se manifesta na forma de apego por, pelo menos, o próprio corpo. Até mesmo bactérias processam o que encontram na forma de alimento, e tentam evitar toxinas. Claro, podemos aqui objetar que um suicida, por exemplo, não teria esse tipo de apego. Porém, na verdade o que o suicida tem é um apego a um conceito que imputa sobre si mesmo, e que se torna maior que o apego ao próprio corpo. Assim ele acredita que, de acordo com a visão materialista predominante, destruir o corpo vai fazer com que o sofrimento desapareça junto com ele. Na visão budista, não é assim, e esse apego a um conceito imputado de “eu” – uma mera crença – morrerá junto com o corpo, enquanto que o sofrimento efetivamente persiste na forma de apego a um eu na forma de hábito, que é o que vai renascer, em condições bem piores, aliás, infelizmente, devido a ter cometido tamanha ação negativa. E o sofrimento não se dá apenas para a pessoa que comete o suicídio em seus renascimentos futuros infelizes, ao longo de várias vidas, mas para todas as pessoas que ele afetou com seu ato. Então, trata-se de outro exemplo de um ser que, não conhecendo as causas do fim do sofrimento, causa mais sofrimento ainda com suas ações. Algumas pessoas podem ler isso como uma condenação ao suicida, mas isso é porque temos esse hábito de condenação: isso é para ser lido como algo que desperta compaixão, exatamente da mesma forma que você sente compaixão daquelas crianças que uma vez brincaram com material radioativo em Goiânia. Elas estavam fazendo algo que não consideravam seria impactante como foi. Ninguém as pensaria culpadas (os culpados legais aqui foram os que despejaram um equipamento de radioterapia no lixão) – mas reconhecemos a magnitude da tragédia de uma forma que elas nunca poderiam imaginar. É assim com o suicida também, ele certamente não sabe que está causando muito mais sofrimento. E é assim, que, de forma geral, ainda que não tão extrema, a maioria das pessoas busca o fim do sofrimento ou a felicidade em coisas que não vão prover estas coisas. De forma geral, mesmo seres que não manifestam apego a conceitos imputados de “eu” e outras crenças errôneas tais como o materialismo, como digamos os animais, mesmo assim têm um forte hábito de eu, que se manifesta na proteção do próprio corpo, da própria vida. Em outras palavras, nenhum ser deseja sofrer. (Outra objeção comum que surge quando se fala isso é a do masoquista. No entanto, de forma semelhante ao exemplo dado acima do suicida, o masoquista também apenas está apenas buscando felicidade no lugar errado, do jeito errado. Como a grande maioria dos seres faz, o budismo reconhece). Cada um dos seres busca, como nós, evitar sofrer. Há seres, no entanto, que são difíceis de olhar positivamente. A sua manifestação em si nos causa inquietação e nojo. Se podemos chegar a conceber a felicidade desses seres, dificilmente a desejamos. Queremos mais é nem ver. A não ser que você seja um pesquisador examinando o comportamento das baratas, é bem difícil que não sinta nojo delas. Caso, porém, converse com pesquisadores que trabalham com elas, verá que a proximidade em geral já lhes mudou o olhar. Estas pessoas até podem manter certo nojo, mas também sem dúvida encontram admiração, e podem até mesmo começar a gostar de seus objetos de estudo. Isso é tão natural. Caso nos aproximemos dos seres, eles se revelam objetos de simpatia, de prática – mesmo os piores deles. Em outras palavras, é possível se acostumar até mesmo com baratas. Mesmo não budistas, não praticantes, pessoas que não estão deliberadamente tentando isso, podem se tornar “amigos” desses seres abomináveis. Porém, para a maioria de nós, avistar qualquer inseto desses é perder o controle da mente. Se voar, então (…) Bhuda nos acuda! Alguns caem em medo e nojo irracionais, enquanto outros se tornam caçadores, buscando o primeiro chinelo à vista. Para o praticante, no entanto, deparar-se com a experiência curiosa de permitir que a barata penetre a natureza bhúdica em nosso coração pode ser o começo de uma prática profunda. Abre-se aí um campo de mérito. Podemos começar a pensar em cuidar bem delas, como se fossem nossas mães! Em primeiro lugar, é bom deixar claro que budistas devem ser pessoas práticas. Caso a vigilância sanitária imponha a você que seu restaurante precisa matar pragas, você não tem muita escolha, mas seguir a lei – e então rezar muito pelos animais. O mesmo vale para vermífugos que você e seus animais de estimação precisem tomar. (E antibióticos – mesmo que seja bem duvidoso o status das bactérias, e outros seres sem sistema nervoso, como sencientes). Não é possível viver nesse mundo sem matar alguns seres vez que outra: a ideia aqui é matar o mínimo, sempre com essa consciência de que não estamos separados, e nunca por nojo, raiva ou medo. Caso seja preciso, para salvar outras vidas ou possibilitar nossa prática, devemos cuidadosamente pesar nossos impactos e agir como for preciso. Porém, por experiência pessoal, sei que caso a infestação não seja realmente enorme, é possível retirar até cerca de 100 baratas de uma residência, e acabar com a infestação com poucos danos colaterais. (Algumas baratas você inevitavelmente acaba matando ou aleijando na hora da captura). É preciso apenas paciência, algumas armadilhas, e acesso a uma área verde bastante distante de moradias para levar as bichas. Pode ser relativamente trabalhoso, mas pode ser encarado como prática espiritual, e como os pesquisadores, você pode até acabar com menos medo ou nojo de baratas – pessoalmente foi também essa minha experiência. Elas podem talvez até nos ensinar algo. Uma ocasião alguns anos atrás fui convidado para falar num centro espiritualista de uma tradição europeia, com um pouco mais de 100 anos de idade, que prefiro não nomear. Eles pediram ao centro budista em que eu praticava para enviar alguém para falar sobre budismo, e na indisponibilidade de alguém qualificado, acabaram mandando eu mesmo. A reunião tinha umas 20 pessoas, e meu plano era falar de uma forma geral sobre ética, cultivo e fruição – porém nunca saímos do primeiro preceito, que diz que matar é uma desvirtude. A pessoa responsável pela filial daquela organização supostamente espiritual, respeitosa e interessada no ensinamento do Bhuda, se sentia plenamente autorizada a matar insetos. Afinal de contas, ela era um ser humano, e, portanto, naturalmente superior a essas formas inferiores. Talvez ela – ao matar – até estivesse fazendo um favor para a barata, mandando o bicho para qualquer outro renascimento. Nada pode ser pior que barata, não é mesmo? (A resposta budista é, caso você não saiba, que existem muitos, mas muitos mesmo, renascimentos bem piores do que como barata!) Essa é nossa visão não espiritual, não educada, convencional. Não estamos nem aí para os sentimentos da barata, e achamos risível sequer considerá-los. E a extrapolação disso é a exploração descontrolada do meio ambiente, bem como até mesmo a propaganda dos maiores genocídios do séc. XX. Também, a partir do momento em que abrimos a porta para a desconsideração e eliminação de “inferiores”, são apenas uns poucos passos mais para considerar outros seres humanos como inferiores. A propaganda nazista, de fato, vez após vez tratava os judeus como uma praga a ser eliminada. E não foi só por motivos práticos que usaram um gás em seu extermínio. Havia uma visão pública cuidadosamente cultivada para transformar o judeu, a ideia do judeu, – como no episódio Men Against Fire, da série Black Mirror – num inseto nojento a ser exterminado. A resposta convencional a isto é dizer que a vida de um ser humano, de qualquer tipo, não é a vida de um inseto. E é evidente que comparar qualquer ser humano com um inseto é uma coisa kafkaesca, absurda, abominável. Mesmo na visão do darma, é claro que matamos até mesmo um mamífero – digamos um tigre – para preservar uma vida humana, e nesse caso trata-se de uma ação virtuosa – proteger uma vida. Se um inseto – ou uma infestação – está diretamente ameaçando a vida de outro animal ou ser humano, é compassivo matar. Porém, caso possamos evitar matar – nos esteja disponível uma arma com tranquilizante, por exemplo, ou a captura e soltura num espaço neutro –, e caso a questão não seja muito urgente, é meritório preservar qualquer vida, por menor que ela seja. “Meritório” significa que isso é causa verdadeira de felicidade para quem salva a vida, e uma causa particularmente propícia à prática do darma se tornar toda ela mais fácil. A razão pela qual uma vida aqui vale mais do que outra é o tipo de benefício que essa vida pode trazer. A vida de um parasita não lhe permite muita outra coisa do que prejudicar o hospedeiro. Então, nesse caso é adequado matar por compaixão. Normalmente os seres humanos podem ser capazes de virtude, e até mesmo de eventualmente se engajarem num treinamento sistemático para tornar a virtude mais natural – que é a prática sistemática de uma religião ou sistema filosófico positivo – e mais do que isso, podem vir a reconhecer a natureza das coisas e repousar nesse entendimento, trazendo extremo benefício aos outros com seu exemplo. Assim, de modo geral, uma vida humana vale mais do que as outras vidas – mas isso não quer dizer que só porque eu não vou com a cara da barata, que não está me fazendo nada naquele momento, eu tenho o direito e a autoridade moral de eliminá-la. De fato, fazer isso é buscar o fim de um sofrimento (insatisfação com a cara da barata) com uma causa (matar) que não vai produzir felicidade. Na verdade, o que matar a barata faz é reforçar nosso problema com as baratas. É transformar ele em um hábito cada vez mais forte e arraigado, de forma que até publicitários possam vir, trocar o objeto, e usar nosso nojo para cometer genocídio. Banalidade do mal? Começa em achar normal matar insetos. O fato é que há seres humanos que não se importam de matar dezenas de ostras para fazer uma refeição, ou mesmo dezenas de mamíferos para fazer um casaco, vender e comprar um videogame. A vida dos outros seres não se equipara a uma vida humana, mas provavelmente vale mais do que algumas moedas ou alguns momentos de “diversão”. Na perspectiva de não haver separação real entre os seres, precisamos realmente falar sobre o especificismo. Essa arrogância não é só ruim para o mundo, mas para a própria mente, particularmente se a pessoa se pensa em ter um caminho espiritual. Enquanto que os animais de estimação são defendidos, e os animais de abate e de valor para indústrias são também alvo de ativismo protetor, o único inseto que ganha alguma boa vontade humana é a abelha. Ocasionalmente os insetos são pensados como agentes biológicos, elementos de engenharia ambiental. Porém, esta perspectiva utilitarista também não é bem a visão do darma. No entanto, nos relacionamos diretamente com insetos o tempo todo! Sabemos que eles sentem dor, sabemos que ele tem até mesmo comportamento e personalidade (existe pesquisa nessa área – cada barata é um indivíduo, não é um ser geral clonado, que age sempre igual). Dentro do fato de que o sofrimento permeia tudo (ainda que não seja natural, que tenha uma causa, etc.) está o fato de que quase tudo que comemos envolve morte, e isto não se resume apenas à carne de animais. Quando campos são alagados para o cultivo de arroz – por mais que não sejam usados agrotóxicos – incontáveis insetos são afogados. Isso não serve como desculpa para “então tudo bem comer carne, já que não há saída”, e tampouco serve como desculpa para “bom, já que tudo tem uma implicação de sofrimento por trás, melhor esquecer e tomar uma cerveja e relaxar”. A consciência aguda do impacto de tudo que consumimos – dos insetos, passando pela exploração dos trabalhadores, as negociatas nem sempre éticas de transportadores e vendedores, até nossa boca ou nosso uso – é essencial. Faz parte daquele ponto essencial que diz respeito a “entender o sofrimento”, reconhecer quão vasto ele é, por onde ele se infiltra, e como ele é inescapável dentro do que podemos chamar de “suas próprias regras”. Porém, mesmo nessa perspectiva limitada, é claro, onde quer que possamos diminuir o impacto, é melhor diminuí-lo. A prática neste nível é de redução de danos. Em particular, não devemos nos considerar arrogantemente o ápice, merecedores irrevogáveis dos frutos de toda essa pilha enorme de sofrimento – que nem bem reconhecemos, e que é ativamente ocultada de nós por uma imensa indústria e por uma ideologia cuidadosamente desenhada. É preciso transpassar essa doutrinação e a visão convencional e focar agudamente esse reconhecimento, e entender a responsabilidade que é a prática espiritual. Estamos praticando para liberar todos esses seres que deram suas vidas para nosso sustento, e para que suas vidas não tenham sido em vão e sem sentido. Devemos transformar essa percepção aguda num senso de urgência para nossa prática. Esse é um dos sentidos para olhar agudamente para os sofrimentos do mundo. Esta é a perspectiva espiritual: o Bhuda é aquela natureza – presente em todos os seres – que revelada é a expressão dos méritos de todos os seres, como que condensadas num ponto. Ele é, em certo sentido, o humilde servo de todos os seres. Porém, não no sentido que ele obedeça aos impulsos de todos esses seres, ou realize seus desejos, mas no sentido que ele – nossa própria natureza mais essencial – é o resultado da purificação total dessas atividades de matar, comer, reproduzir, nascer, morrer. Caso nos alienemos da perspectiva do Bhuda, esse jogo segue indefinidamente, com os dois tipos de sofrimento latejando explicitamente, surgindo por vezes aguda e transitoriamente, e em outros momentos nos soterrando totalmente, nos deixando atropelados sem chance alguma de saber o que aconteceu. Quando descobrimos soterrados em nossos últimos momentos, considerando como nossas vidas foram aleatórias e mal aproveitadas, o que cai sobre nós são esses imensos recursos inestimáveis a que não demos valor. Todos estes seres amigos que não olhamos com o olho do darma, que não os direcionamos para o sentido último, e o fizemos assim apenas porque os olhamos como quem olha convencionalmente para baratas. Eles são o grande peso e o motivo do desespero – todos aqueles que prejudicamos, ou que ignoramos ou pelos quais agimos de forma neutra – e até mesmo os que beneficiamos sem qualquer visão profunda. Todos estes seres surgem para nos “torturar” com a perspectiva em que o sofrimento é inescapável, já que eles nos levam justamente à visão convencional que projetamos sobre eles. Não são eles os torturadores, mas nossas repetidas ações de indiferença, aversão e cobiça perpetradas contra eles. Agora mesmo já podemos vislumbrar em nossas depressões sazonais e tristezas cotidianas, ou quando a morte de alguém próximo por acaso e temporariamente nos lembra a seriedade das coisas, ou quando o próprio mundo parece andar tão errado, e nada de bom parece nos esperar – não só como indivíduos, ou país, mas como espécie. Esse lodaçal sem fim, e as tentativas de filosofia de almanaque com que tentamos justificá-lo e abafá-lo, isto é o que chamamos de “samsara”. Samsara não tem solução. A lógica de samsara é inerentemente furada. Ainda assim, nosso hábito e covardia nos faz defender visões e justificativas mesquinhas e convencionais. Esse sofrimento convencional todo precisa ganhar primeiro a sofisticação do entendimento do sofrimento onipresente, intrínseco a todas as coisas. Não precisamos olhar longe, uma só barata pode claramente nos levar a isso, se prestamos atenção. Caso olhemos com o olho da compaixão, o reconhecimento da vida e das tribulações de barata é o próprio Buda vindo dar um ensinamento. Ela surge, anda por aí fugindo e se achando esperta, procurando sexo e comendo lixo, resiste alguns golpes, e enfim, inexoravelmente, se torna ela mesmo alimento. Franz Kafka (1883-1924) é mais profundo do que parece. Todo e qualquer ser aponta incessante e diretamente as três realidades: sofrimento convencional, sofrimento onipresente, e o fato de que todo sofrimento tem causas. A partir daí, eliminar a causa, e buscar um caminho para isso se torna a única coisa óbvia. A barata pode não levar você aos estudos e práticas budistas – mas se você já está nos estudos e práticas budistas, a barata pode revelar o sentido desses textos. Ela também é o guru. Depois que estamos dispostos a reconhecer isto, e temos a habilidade de ler isto ou aquilo, a capacidade e a disposição de seguir e ouvir um professor, e podemos nos dispor num treinamento sistemático, somos capazes de viver de acordo com valores que uma barata – ou a maioria das pessoas – não concebe. Existe uma diferença, e apenas essa diferença pode nos ajudar a dar sentido para a vida de cada ser no mundo, de cada “barata” com que já nos deparamos, ou mesmo que já existiu, e que virá a existir. Esse conhecimento ilumina toda a esfera de experiência, sem deixar um só canto escuro. Essa é nossa responsabilidade. E a outra opção é evitar olhar o sofrimento no sentido mais profundo, e as causas dos vários sofrimentos. Até ser atropelado, de novo e de novo. Ou levar uma chinelada, vez após vez, e viver com medo da luz. O fato de que receberemos chineladas por isso ou aquilo é inexorável, mas o fato de que poderemos dar sentido a nossa experiência, e à dos outros, isso depende de assumirmos as rédeas e efetuarmos o treinamento da mente. A barata revela todas as qualidades do caminho: conhecer um ser é liberar a todos. Neste momento em que oscilamos entre achar que o budismo é mais uma coisa bonita que alguém ensinou, algo que possui umas ideias exóticas sobre não matar baratas, e que não conseguimos entender totalmente, podemos tentar repousar a mente nas qualidades do Bhuda. O Bhuda vê as coisas como elas realmente são, sem separação, e assim sua compaixão é infinita. “Bhuda” significa ver assim, não significa “uma pessoa que viu assim uma vez na história”. Caso tenhamos um instante de regozijo com a desconfiança breve de que isso é possível, o caminho budista também se torna possível. Esse não é um caminho livre de baratas, mas é livre de mesquinhez, parcialidade, medo e nojo. É um caminho livre de arrogância. É um caminho alegre. Mais que alegre. Nele, até mesmo preservar a vida de um pequeno inseto se revela mais prazeroso do que satisfazer um milhão de desejos egoístas. www.budavirtual.com.br. Abraço. Davi

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

SÓ A COMPAIXÃO É TERAPÊUTICA

Espiritualidade. Texto de Osho (1931-1990). Amado Osho. Você disse: Só a compaixão é terapêutica. Você poderia comentar sobre a palavra 'compaixão', compaixão por si mesmo e compaixão pelos outros? "Sim, somente a compaixão é terapêutica, porque tudo o que é doença no homem é causado pela falta de amor. Tudo o que está errado com o homem, está de alguma forma associado ao amor. Ele não tem sido capaz de amar ou ele não tem sido capaz de receber amor. Ele não tem sido capaz de compartilhar o seu ser. Essa é a miséria. Isso cria toda sorte de complexos internamente. Aquelas feridas internas podem vir à superfície de várias maneiras: elas podem se tornar doenças do físico e doenças mentais, mas no fundo o que o homem sofre é de falta de amor. Assim como o alimento é necessário para o corpo, o amor é necessário para a alma. O corpo não consegue sobreviver sem alimento e a alma não consegue sobreviver sem o amor. Na verdade, sem o amor a alma nunca nasce e nem há essa questão de sua sobrevivência”. Você simplesmente pensa que tem uma alma. Você acredita que você tem alma devido ao seu medo da morte. Mas você não a conheceu a não ser que você tenha amado. Somente no amor a pessoa vem a sentir que ela é mais do que o corpo, mais do que a mente. É por isso que eu digo que a compaixão é terapêutica. O que é compaixão? Compaixão é a forma mais pura de amor. No sexo, o contato é basicamente físico, na compaixão o contato é basicamente espiritual. No amor, compaixão e sexo estão misturados. O amor está no meio do caminho entre sexo e compaixão. Você também pode chamar a compaixão de prece. Você também pode chamar a compaixão de meditação. A forma mais elevada de energia é a compaixão. A palavra 'compaixão' é bela. Metade dela é 'paixão'. De alguma forma a paixão se tornou tão refinada que ela não é mais como uma paixão. Ela se tornou compaixão. No sexo, você usa o outro, você reduz o outro a um meio, você reduz o outro a uma coisa. É por isso que numa relação sexual você se sente culpado. Essa culpa nada tem a ver com ensinamentos religiosos, essa culpa é mais profunda que os ensinamentos religiosos. Numa relação sexual, enquanto tal, você se sente culpado. Você se sente culpado porque você está reduzindo um ser humano a uma coisa, a uma mercadoria para ser usada e jogada fora. É por isso que no sexo você também tem uma sensação de escravidão, você também está sendo reduzido a uma coisa. E quando você é uma coisa, a sua liberdade desaparece, porque a sua liberdade somente existe quando você é uma pessoa. Quanto mais você for uma pessoa, mais livre será; quanto mais você for uma coisa, menos livre será. Os móveis de seu quarto não são livres. Se você deixar o quarto fechado e voltar muitos anos depois, os móveis estarão nos mesmos lugares, com a mesma disposição, eles não se arrumarão numa nova disposição. Eles não têm liberdade. Mas se você deixar um homem num quarto, você não irá encontrá-lo do mesmo jeito, nem mesmo no dia seguinte, nem mesmo no momento seguinte. (...). Para uma coisa, o futuro está fechado. Uma pedra permanecerá uma pedra. Ela não tem qualquer potencial para o crescimento. Ela não pode mudar, ela não pode evoluir. O homem nunca permanece o mesmo. Ele pode retornar, ele pode ir adiante, ele pode ir para o inferno ou para o céu, mas nunca permanece o mesmo. Ele segue se movendo, deste ou daquele jeito. Quando você tem uma relação sexual com alguém, você reduz aquela pessoa a uma coisa. E ao reduzi-la, você também se reduz a uma coisa, porque isso é um acordo mútuo do tipo: 'Eu lhe permito reduzir-me a uma coisa e você me permite reduzi-lo a uma coisa. Eu lhe permito usar-me e você me permite usá-lo. Nós usamos um ao outro. Nós ambos nos tornamos coisas'. É por isso (...). Observe dois amantes: enquanto eles ainda não se acomodaram, o romance ainda está vivo, a lua de mel não termina e você vê as duas pessoas vibrando com a vida, prontas para explodir-se, prontas para explodir-se no desconhecido. E depois, observe um casal de marido e mulher, e você verá duas coisas mortas, dois cemitérios, lado a lado, ajudando um ao outro a se manter morto, forçando um ao outro a se manter morto. Esse é o conflito constante no casamento. Ninguém quer ser reduzido a uma coisa. O sexo é a forma mais baixa daquela energia 'X'. Se você é religioso chame isso de 'Deus"; se você é um cientista, chame isso de 'X'. Essa energia, X, pode se tornar amor. Quando ela se torna amor, então você começa a respeitar a outra pessoa. Sim, algumas vezes você usa a outra pessoa, mas você se sente agradecido por isso. Você nunca diz muito obrigado a uma coisa. Quando você está amando uma mulher e você faz amor com ela, você lhe diz: muito obrigado. Quando você faz amor com sua esposa, alguma vez você lhe disse muito obrigado? Não, você não dá valor algum. A sua esposa já lhe disse alguma vez obrigado? Talvez, muitos anos atrás, você consegue se lembrar de um tempo quando vocês ainda estavam indecisos, quando estavam experimentando, fazendo a sorte, seduzindo um ao outro, talvez. Mas uma vez que vocês se acomodaram, ela disse alguma vez muito obrigado a você por alguma coisa? Você tem estado fazendo tantas coisas por ela, ela tem estado fazendo tantas coisas por você, vocês ambos têm vivido um para o outro (...) mas a gratidão desapareceu. No amor existe gratidão, existe uma profunda gratidão. Você sabe que a outra pessoa não é uma coisa. Você sabe que o outro tem uma grandeza, uma personalidade, uma alma, uma individualidade. No amor você dá liberdade total ao outro. Na verdade você dá e você recebe, é uma relação de dar e receber, mas com respeito. No sexo há uma relação de dar e receber, mas sem respeito. Na compaixão, você simplesmente dá. Não há qualquer ideia, em lugar algum em sua mente, de receber algo em troca. Você simplesmente compartilha. Não que nada retorne. Mil desdobramentos retornam, mas espontaneamente, simplesmente como uma consequência natural. Não há qualquer espera por isto. No amor, se você dá alguma coisa, no fundo você fica esperando aquilo que deve vir em troca. Se aquilo não vem, você percebe uma reclamação interna. Você pode não dizer, mas de mil e uma maneiras você pode insinuar que você não está satisfeito, que você está se sentindo traído. O amor parece ser uma barganha sutil. Na compaixão, você simplesmente dá. No amor, você está agradecido porque o outro deu alguma coisa a você. Na compaixão você está agradecido porque o outro recebeu alguma coisa de você, porque o outro não rejeitou você. Você veio com energia para dar, você veio com muitas flores para compartilhar e o outro lhe permitiu, o outro estava receptivo. Você está agradecido porque o outro estava receptivo. A compaixão é a mais elevada forma de amor. Muita coisa vem em troca, mil desdobramentos eu digo, mas esse não é o ponto, você não fica esperando por isto. Se não vier, não há qualquer reclamação. Se vier, você simplesmente fica surpreso. Se vier, isso será inacreditável. Se não vier, não há qualquer problema, você nunca dá o seu coração a alguém por qualquer barganha. Você simplesmente distribui porque você tem. Você tem tanto que se você não distribuir, você se sentirá sobrecarregado. É exatamente como uma nuvem carregada que tem que chover. E da próxima vez quando uma nuvem estiver chovendo observe atentamente e você sempre ouvirá; quando a nuvem estiver chovendo e a terra tiver absorvido, você sempre ouvirá a nuvem dizendo à terra 'muito obrigado'. A terra ajuda a nuvem a se descarregar. Quando uma flor desabrocha, ela tem que compartilhar a sua fragrância ao vento. Isso é natural. Não é uma barganha, não é um negócio. Isso é simplesmente natural. A flor está repleta de fragrância. O que fazer? Se a flor mantiver a fragrância para si mesma, ela irá se sentir muito, muito tensa, em angústia profunda. A maior angústia na vida é quando você não pode expressar, quando você não pode comunicar, quando você não pode compartilhar. O homem mais pobre é aquele que nada tem a compartilhar, ou aquele que tem algo a compartilhar mas que perdeu a capacidade, a arte, a maneira de como compartilhar, aí o homem é pobre. O homem sexual é muito pobre. Em comparação, o homem amoroso é mais rico. O homem de compaixão é o homem mais rico, ele está no topo do mundo. Ele não tem qualquer confinamento, qualquer limitação. Ele simplesmente dá e segue o seu caminho. Ele nem mesmo espera você lhe dizer um muito obrigado. Com tremendo amor ele compartilha a sua energia. É isso que eu chamo terapêutico. (...). Para ser compassivo é preciso que se tenha, em primeiro lugar, compaixão por si mesmo. Se você não amar a si mesmo, você nunca será capaz de amar um outro alguém. Se você não for amável consigo mesmo, você não conseguirá ser amável com ninguém mais. Os seus chamados santos, que são muito duros consigo mesmos, estão simplesmente fingindo que são amáveis com os outros. Isso não é possível. Psicologicamente isso é impossível. Se você não puder ser amável consigo mesmo, como você poderá ser amável com os outros? Qualquer coisa que você for consigo mesmo, você será com os outros. Deixe que isso seja um ditado básico. Se você se detesta, você irá detestar os outros. E foi-lhe ensinado detestar a si mesmo. Ninguém jamais disse a você 'ame a si mesmo'. Essa própria ideia parece absurda: amar a si mesmo? A própria ideia não faz sentido: amar a si mesmo? Nós sempre pensamos que, para amar, nós precisamos de uma outra pessoa. Mas se você não aprender consigo mesmo, você não será capaz de praticar com os outros. Foi-lhe dito constantemente, você foi condicionado, que você não tem qualquer valor. De todas as direções lhe foi mostrado, lhe foi dito que você é sem valor, que você não é o que deveria ser, que você não é aceito como você é. Existem muitos 'deves' pendurados sobre a sua cabeça e todos esses 'deves' são quase impossíveis de serem satisfeitos. E quando você não consegue satisfazê-los, quando você tem um pequeno tropeço, você se sente condenado. Uma profunda raiva surge em você em relação a si mesmo. Como você pode amar os outros? Tão cheio de ódio, onde você irá encontrar amor? Assim, você simplesmente finge, você simplesmente demonstra que está amoroso. No fundo você não está amoroso com ninguém, você não pode estar. Esses fingimentos são bons por uns poucos dias, depois o colorido desaparece, então a realidade se revela por si mesma. Todo caso amoroso está em cima de pedras. Mais cedo ou mais tarde, todo caso amoroso se torna muito envenenado. E como ele se torna tão envenenado? Ambos fingem que estão amando, ambos seguem dizendo que amam. O pai diz que ama a criança, a criança diz que ama o pai, a mãe diz que ama a filha e a filha segue dizendo a mesma coisa. Irmãos dizem que amam um ao outro. Todo o mundo conversa a respeito de amor, canta canções de amor, e você poderia encontrar outro local tão destituído de amor? Nem uma pitada de amor existe, e  montanhas de falatórios, um Himalaia de poesias a respeito do amor. Parece que todas essas poesias são apenas compensações. Porque nós não conseguimos amar, nós temos que acreditar de alguma maneira, através da poesia, da canção, que nós amamos. Aquilo que nos falta na vida, nós colocamos na poesia. O que nós vamos perdendo na vida, nós colocamos no filme, na novela. O amor está absolutamente ausente porque o primeiro passo ainda não foi dado. O primeiro passo é: aceite-se como você é. Abandone todos os “deves". Não carregue qualquer 'deve' em seu coração. Não é para você ser algo diferente do que é. Não é de se esperar que você faça algo que não pertença a você. Você existe para ser exatamente você mesmo. Relaxe e seja simplesmente você mesmo. Seja respeitoso para com sua individualidade e tenha a coragem de assinar a sua própria assinatura. Não siga copiando as assinaturas de outros. Não é de se esperar que você se torne um JESUS ou um BHUDA ou um RAMAKRISHNA. O que se espera é que você se torne simplesmente você mesmo. Foi bom que RAMAKRISHNA nunca tentou se tornar alguma outra pessoa, assim ele se tornou RAMAKRISHNA. Foi bom que JESUS nunca tentou tornar-se ABRAÃO ou MOISÉS, assim ele se tornou JESUS. E é bom que BHUDA nunca tenha tentado tornar-se PATANJALI ou KRISHNA. Foi por isso que ele se tornou BHUDA. Quando você não está tentando se tornar um outro alguém, então você simplesmente relaxa e uma graça surge. Então você está cheio de grandeza, esplendor e harmonia, porque aí não existe qualquer conflito. Nenhum lugar para ir, nada pelo qual brigar, nada para forçar nem para obrigar-se violentamente. Você se torna inocente. Em tal inocência, você sentirá compaixão e amor por si mesmo. Você se sentirá tão feliz consigo mesmo que ainda que Deus venha bater em sua porta e diga: 'Você gostaria de se tornar uma outra pessoa?, você dirá: 'Você ficou louco? Eu sou perfeito! Obrigado, e nunca mais tente fazer isso, eu sou perfeito como sou.' (...). As rosas desabrocham tão lindamente porque elas não estão tentando se tornar lótus. E a flor de lótus desabrocha tão lindamente porque ela nunca ouviu as lendas a respeito das outras flores. Tudo na natureza segue tão belamente em harmonia porque ninguém está tentando competir com algum outro, ninguém está tentando se tornar algum outro. Tudo é do jeito que é. Simplesmente veja o ponto! Seja apenas você mesmo e lembre-se de que você não pode ser alguma outra coisa, faça o que você fizer. Todo esforço é fútil. Você tem que ser simplesmente você mesmo. Existem dois caminhos: um é: rejeitando, você pode permanecer o mesmo; condenando, você pode permanecer o mesmo. Ou, aceitando, entregando-se, curtindo, deliciando-se, você pode permanecer o mesmo. A sua atitude pode ser diferente, mas você vai continuar do jeito que você é, a pessoa que você é. Uma vez que você aceite, a compaixão surge. E então, você começa a aceitar os outros. (...). Mova-se lentamente, alerta, observando, estando amoroso. Se você for sexual, eu não digo para abandonar o sexo; eu digo faça-o mais alerta, faça-o como uma prece, faça-o mais profundo, assim ele pode tornar-se amor. Se você está amando, então faça isso com mais gratidão, traga uma gratidão, uma alegria, uma celebração e uma prece mais profunda ao amor, traga meditação para ele, assim ele pode se tornar compaixão. A não ser que a compaixão tenha acontecido para você, não pense que você viveu corretamente, ou que você viveu de alguma maneira. Compaixão é o florescimento. E quando a compaixão acontece para uma pessoa, milhões são curadas. Qualquer um que chegue ao seu redor será curado. A compaixão é terapêutica”. www.oshobrasil.com.br. Abraço. Davi.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

DISCERNIMENTO ESPIRITUAL

Bhagavad Gita. VIJNANA YOGA. Capítulo Sete. DISCERNIMENTO ESPIRITUAL. Neste e nos seguintes cinco capítulos expõe-se a doutrina de KRISHNA e a melhor maneira de praticar RAJA-YOGA. Esta parte trata do conhecimento espiritual. Isto é, do despertar da consciência da Divindade no homem. Deus é Amor, e por conseguinte, pode-se obter a consciência da Divindade só pela força do Amor Divino.

KRISHNA, o Verbo Divino, continua: Escuta as minhas palavras, ó Arjuna, para saberes como verdadeiramente e sem dúvida me conhecerás, se fixares em mim a tua mente e em mim descansares o teu coração

Eu te instruirei na sabedoria maravilhosa dos homens e dos deuses, sem reserva nem restrição; aprendendo estes ensinos, adquirirás o saber perfeito, e saberás tudo o que pode ser sabido por um homem.

Poucos são os homens que, no meio dos milhares da raça, têm suficiente discernimento para desejar chegar a PERFEIÇÃO. E, destes poucos, tão raros são os que a procuram com sucesso, que se acha apenas, cá e lá, alguém que me conhece em minha natureza essencial.

Em minha natureza, há oito formas elementais, conhecidas como: Terra, Água, Fogo, AR, ETER, MENTE, RAZÃO e CONSCIENCIA INDIVIDUAL.

Mas, além destas formas da minha natureza material, possuo uma natureza espiritual SUPERIOR e MAIS NOBRE: é o PRINCÍPIO que VIVIFICA E SUSTENTA O UNIVERSO.

Sabe que os elementos de que falei são a matriz de toda a CRIAÇÃO. Eu, porém, sou a fonte de que toda a CRIAÇÃO provém e à qual tudo volta: EU SOU o PRINCÍPIO DA CRIAÇÃO e da DISSOLUÇÃO DO UNIVERSO.

Acima de mim, não há nada. Todos os objetos do UNIVERSO dependem de mim e por mim são sustentados, assim como as pérolas dependem do fio que passa por elas todas, unindo-as e sustentando-as.

EU SOU o líquido da água; EU SOU a luz do Sol e da Lua; EU SOU a sílaba sagrada AUM (1); EU SOU o cântico dos livros sagrados; EU SOU a harmonia dos sons que vibram no ÉTER; EU SOU a virilidade dos homens. (1). Aum é o símbolo do Ser Supremo. A, simboliza o Criador ou Pai. U, o Conservador, Salvador ou Filho. M, tipifica o Destruidor, Renovador ou Espírito Santo.

EU SOU o perfume da Terra e o esplendor do Fogo; EU SOU a vida de todos os vivos; EU SOU a YOGA, a santidade dos santos.

EU SOU a semente eterna e imortal de todos os seres. EU SOU a sabedoria dos sábios, a razão dos racionais, a glória dos gloriosos, a nobreza dos nobres.

EU SOU a força dos fortes, livres de toda a avidez e paixão. EU SOU o AMOR PURO em todos os seres, que não pode ser proibido por lei alguma.

AS TRÊS QUALIDADES da minha natureza: a HARMONIA, a ATIVIDADE e a INATIVIDADE, as quais também se manifestam como a LUZ da VERDADE, o desejo da paixão e as trevas da ignorância, em mim têm o PRINCÍPIO e estão em mim, mas EU NÃO dependo delas (2). (2). Deus é superior natureza. A natureza não é Deus, mas é uma manifestação da força Divina. Deus está na natureza, mas não se limita a ela.

O mundo dos homens, achando, achando-se sob o domínio da ilusão dessas três qualidades da natureza, não compreende que EU SOU superior a elas, e conservo-me intacto e imutável no meio dos inúmeros acontecimentos e mudanças

Esta ilusão é muito forte, e tão denso é o seu véu que é difícil aos olhos humanos penetrá-lo. Só aqueles que a mim se dirigem e se deixam iluminar pela CHAMA que está detrás da fumaça vencem a ILUSÃO e chegam até mim.

Malfeitores e tolos não me procuram; nem aqueles que nutrem pensamentos baixos; nem aqueles que vêm, no vasto espetáculo da natureza, somente o jogo das forças, sem diretor. Nem aqueles que extinguiram em si a CENTELHA DA VIDA ESPIRITUAL e se tornaram plenamente materiais.

HÁ QUATRO CLASSES DE GENTE que a mim se dirigem: os INFELIZES, os que INVESTIGAM A VERDADE, os BONDOSOS e os SÁBIOS.

De todos eles, ó Arjuna! os SÁBIOS SÃO OS MELHORES, porque me reconhecem como o SER UNO, e incessantemente, a mim dedicando a sua VIDA, amam-me sobre tudo, e EU OS AMO com o mais intenso AMOR.

Todos os que me adoram são bons e todos a mim chegarão; mas o SÁBIO que se me entrega todo, sujeitando-se em tudo à minha vontade, é como o meu PRÓPRIO EU, repousando em mim, que SOU o seu alvo final.

Depois de MUITAS VIDAS, em que ACUMULEI SABEDORIA, vem o SÁBIO A MIM, e, realizando a sua UNIÃO COMIGO, compreende que o HOMEM PERFEITO é idêntico ao UNIVERSO (3). Poucos há que chegaram a este grau de adiantamento. (3).  O homem perfeito é chamado nas Escrituras Sagradas védicas de Vasudeva – Filho do Homem.

Os outros, por falta de conhecimento, impelidos a esta ou aquela deidade, com vários ritos e cerimoniais, vão a outros deuses. Todos acham o que procuram, DE ACORDO com a sua natureza.

Hás de saber, entretanto, ó Arjuna, que a VERDADE, apesar de ser desconhecida pelos FANÁTICOS e INTOLERANTES, é esta: Que, ainda que os homens adorem vários deuses e várias imagens, e tenham diferentes concepções da deidade adorada, e até pareçam as suas ideias ser contraditórias entre si, TODA A SUA FÉ SE INSPIRA EM MIM.

A SUA FÉ, em seus deuses e imagens não é senão a alvorecer da FÉ EM MIM; adorando essas formas e concepções, eles querem adorar A MIM, sem o saberem. E, em VERDADE te digo, EU ACEITO e recompenso essa fé e adoração, uma vez que seja honesta e conscienciosa. Esses homens fazem o melhor que podem, conforme o estado de seu desenvolvimento, e receberão os benefícios que procuram, CONFORME SUA FÉ. Todo benefício, porém, EMANA DE MIM. Tal é o MEU AMOR, a MINHA RAZÃO e a MINHA JUSTIÇA.

Mas lembra-te, ó príncipe, que as recompensas desses desejos momentâneos, finitos, perecíveis, são igualmente de POUCO DURAÇÃO. Os homens que adoram os deuses inferiores, as caricaturas e sombras IMPERFEITAS DE DIVINDADE, vão aos MUNDOS DAS SOMBRAS, governados por esses deuses-sombras. Mas aqueles que são sábios e capazes de me conhecer COMO SOU, UM e TUDO, vêm A MIM, ao MEU MUNDO DE REALIDADE, onde não há sombras, onde tudo é real. Até mesmo a CHAMA que faz a SOMBRA desaparecer.

Entre os homens, há muitos que, faltando-lhes o DISCERNIMENTO, pensam de MIM – O IMANIFESTO EM ESSÊNCIA – como se EU fosse manifesto e visível a seus olhos. Sabe, porém, ó Arjuna, que, em MINHA ESSÊNCIA, NÃO SOU manifesto ou VISÍVEL aos homens.

Detrás das minhas FORMAS EMANADAS, EU permaneço INDESCOBERTO e INVISÍVEL ao ignorante. INATO E IMORTAL SOU EU, mas o mundo obscurecido pela ilusão não o discerne, pensando que a sombra é a SUBSTÂNCIA.

EU BEM conheço todos os inumeráveis seres que existiram no vasto UNIVERSO, em todas as épocas passadas. Igualmente conheço todos os que existem presentemente; e, além disso – GRANDE MISTÉRIO para os homens, ó príncipe – conheço todos os que, no FUTURO, hão de aparecer no CAMPO DA EXISTÊNCIA. Mas todos os seres, passados, presentes ou futuros NENHUM ME CONHECE plenamente. EU OS TENHO todos em minha MENTE, mas as suas mentes não podem conter-me em minha essência.

Os seus olhos vivem enganados pela DUALIDADE DOS CONTRASTES, ó Arjuna, e em vez da UNIDADE, vêm as FORMAS OPOSTAS e de gosto e desgosto, simpatia e antipatia, desejo e aborrecimento.

Porém, não são todos assim; há um pequeno número de homens que se libertaram dessa ILUSÃO DA DUALIDADE DOS CONTRASTES, vencendo o EGOÍSMO e os PECADOS. Estes me conhecem como UM e TUDO e, firmes em sua vontade, constantes em SEU AMOR e sua DEVOÇÃO, comigo se unem e a MIM pertencem.

Os que em MIM se refugiam e a MIM pertencem, repousando EM MIM como a criança no seio da MÃE, esforçam-se por se libertar dos VÍNCULOS DA MORTALIDADE e reconhecem-me como BRAHMA, como o EU REAL, o INFINITO, O ETERNO, o ABSOLUTO.


Eles sabem que EU SOU Adhyatman – A ALMA DAS ALMAS. Karma – a LEI DA CAUSALIDADE. Adhibhuta – PRINCÍPIO UNIVERSAL DA VIDA. Adhidaiva – DEUS dos DEUSES, a Deidade Suprema. Adhiyajna – o Supremo Sacrifício. Quem assim me conhece, e com o CORAÇÃO cheio de AMOR e COM A MENTE FIRME em MIM pensa, na hora da morte comigo se UNIRÁ PARA SEMPRE. Livro Bhagavad Gita. A Mensagem do Mestre. Abraço. Davi.