Cristianismo.
Orígenes de Alexandria (185-254). DE PRINCIPIIS – LIVRO IV – PARTE II. Feito
este breve comentário sobre a inspiração das Sagradas Escrituras pelo Espírito
Santo, parece-nos agora necessário explicar por que motivo alguns, ignorando o
caminho pelo qual se alcança o entendimento das letras divinas, não as lendo
corretamente, caíram em tantos erros. Os judeus, pela dureza de seu coração,
querendo parecer sábios diante de si mesmos, julgando que as coisas que foram
ditas de Cristo deviam ser entendidas segundo a letra, não creram em nosso
Senhor e Salvador. Julgaram que Ele pregaria a libertação aos cativos de modo
sensível e visível, que deveria antes edificar a cidade que verdadeiramente
consideram a cidade de Deus, exterminando simultaneamente as carroças de Efraim
e os cavalos de Jerusalém (Zacarias 9, 10), e que comeria manteiga e mel para
que, antes que soubesse rejeitar o mal, escolhesse o bem (Isaías 7, 15). Também
julgaram ter sido profetizado que, quando do advento de Cristo, o lobo, este
animal quadrúpede, seria apascentado com os cordeiros, que o leopardo
repousaria com os cabritos, que o bezerro e o touro se alimentariam junto com
os leões e que seriam conduzidos ao pasto por uma criança pequena. Que o boi e
o urso descansariam juntos nas pastagens e que suas crias seriam alimentadas
igualmente. Que os leões frequentariam as mesmas manjedouras que os bois e se
alimentariam de palha (Isaías 11, 6-9). Vendo que nenhuma destas coisas que
foram profetizadas se realizaram segundo a história, coisas que, consideravam
eles, seriam os principais sinais que se observariam quando do advento de
Cristo, não quiseram aceitar a presença de nosso Senhor Jesus Cristo. Ao
contrário, como se ele, contra o direito e o lícito, isto é, contra a fé da
profecia, tivesse assumido para si o nome de Cristo, o crucificaram. Os
hereges, por outro lado, lendo o que está escrito na Lei: "O fogo de meu
furor se acendeu"; (Jeremias 15, 14) e também "Eu sou o Senhor teu
Deus forte e zeloso, que vingo a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira
e quarta geração daqueles que me odeiam" (Êxodo 20, 5) "Arrependo-me
de ter ungido rei a Saul"; (I Samuel 15, 11) "Eu sou o Senhor, que
faço a paz, e que crio os males"; (Isaías 45, 7) "Haverá algum mal na
cidade que não tenha sido feito por Deus?" (Amós 3, 6) "Desceram do
Senhor os males sobre as portas de Jerusalém"; (Miquéias 1, 12) "O
espírito maligno, mandado por Deus, sufocava Saul" (I Samuel 18, 10) e muitas
outras coisas passagens semelhantes a estas, não ousaram dizer que elas não
fossem escrituras de Deus.Mas as julgaram que fossem daquele Deus criador que
os judeus cultuam, do qual afirmaram que seria apenas justo, não, porém, bom.
Julgaram dever crer também que o Salvador teria vindo para anunciar-nos um Deus
mais perfeito, que negam ser o criador do mundo, havendo, porém, entre eles,
até mesmo a este respeito, diversas opiniões discordantes. Uma vez que,
afastando-se da fé do Deus criador que o é de todas as coisas, na medida em que
a fantasia e a vaidade de suas almas sugeriam, entregaram-se a diversas fábulas
e ficções e disseram que algumas coisas seriam visíveis e criadas por um Deus,
enquanto outras seriam invisíveis e criadas por outro. Alguns, entretanto, dos
mais simples entre eles, os quais parecem manter-se dentro da fé da Igreja,
julgam que não há nenhum Deus maior do que o Criador, conservando a este
respeito uma reta e sadia sentença; julgam, porém, coisas tais sobre este Deus
que não poderiam ser julgadas sequer de um homem extremamente injusto e cruel.
A causa do entendimento errôneo de todas estas coisas por parte daqueles a quem
mencionamos acima não é outro senão que a Sagrada Escritura não é por eles
entendida segundo o sentido espiritual, mas segundo o som da letra. Por isso
nos esforçaremos em demonstrar, segundo a pequenez do nosso sentir, aos que
creem que as Sagradas Escrituras não foram compostas por palavras humanas, mas
redigidas por inspiração do Espírito Santo e transmitidas e confiadas a nós por
vontade de Deus Pai pelo seu Filho unigênito Jesus Cristo, o que a nós parece
ser a reta via dos que observam a inteligência. Aquela regra e disciplina
transmitida por Jesus Cristo aos apóstolos os quais, por sucessão, a transmitiram
também aos seus pósteros que haveriam de ensinar a santa Igreja. Todos,
conforme penso, até mesmo os mais simples dos fiéis, creem que há certas
dispensações místicas assinaladas pela Sagrada Escritura. Quais sejam estas,
porém, ou o que são, quem possuir reta mente e não for oprimido pelo vício da
jactância será religiosamente obrigado a confessar ignorá-lo. Se alguém, por
exemplo, nos questionar sobre as filhas de Ló, que contra o direito se
aproximaram carnalmente do pai, ou sobre as duas esposas de Abraão, ou sobre as
duas irmãs que se casaram com Jacó, ou sobre as duas servas que lhes aumentaram
a numerosidade dos filhos, o que mais poderá ser respondido senão que estas
coisas são certos sacramentos e formas de coisas espirituais, que nós todavia
ignoramos quais sejam? Quando lemos sobre a construção do tabernáculo, temos
como certo também que estas coisas que são escritas são figuras de outras
coisas ocultas. Adaptar, porém, cada uma ao seu modo e abrir e dissertar sobre
cada uma delas, considero ser coisa imensamente difícil, para não dizer
impossível. Todavia, conforme disse, é algo que não escapa até mesmo da
inteligência comum que aquela descrição é repleta de mistérios. Todas aquelas
narrativas que parecem terem sido escritas sobre núpcias, sobre procriação de
filhos, sobre guerras diversas ou quaisquer outras histórias, que outra coisa
devemos crer que sejam senão formas e figuras de coisas ocultas e sagradas?
Todavia, devido ao fato de que os homens usam de tão pouca aplicação para
exercitar o engenho e que, antes que aprendam, já consideram que sabem, decorre
que nunca começam a saber. No entanto, se não faltar o estudo nem o mestre, e
se estas coisas forem buscadas como divinas, isto é, religiosa e piamente, com
autêntica esperança de que muitas sejam abertas pelo Deus que revela, ainda que
para o entendimento humano sejam imensamente difíceis e ocultas, talvez quem
assim as busque facilmente encontrará o que é lícito buscar. Mas para que não
se julgue que a dificuldade esteja apenas nos discursos proféticos, já que para
todos é certo que o estilo profético está semeado de figuras e enigmas, o que
deveremos dizer quando nos aproximamos do Evangelho? Não se esconde ali também
um sentido interior, como que um sentido divino, que somente é revelado por
aquela graça que a recebeu aquele que dizia: "Nós, porém, temos o
pensamento de Cristo, para que conheçamos as coisas que por Deus nos foram
dadas. Falamos não com palavras aprendidas de humana sabedoria, mas na doutrina
do Espírito". (I Coríntios 2, 16-12-4) E quanto às coisas que foram
reveladas a João, como não se admirará, quem as ler, de que haja ali ocultos
tantos inefáveis mistérios, nos quais tão manifestamente também aqueles que não
podem entender o que neles se esconde, entendem, todavia, que algo se esconde?
Também as cartas dos apóstolos, as quais a alguns parecem que sejam mais
fáceis, não estão elas igualmente repletas de sentidos tão profundos que, para
aqueles que podem entender o sentido da sabedoria divina, parece que se lhes
infunde, por um pequeno receptáculo, a claridade de uma luz imensa? Já que
estas coisas são assim e há tantos que erram nesta vida, julgo que não é coisa
destituída de perigo que se declare facilmente que alguém as conhece ou as
entende. Trata-se de coisas que, para que possam ser abertas, é preciso usar a
chave da ciência, chave que o Salvador dizia estar com os doutores da lei.
Embora estejamos nos desviando de nosso tema, considero que deveria ser assunto
de reflexão para aqueles que dizem que antes do advento do Salvador não havia
verdade junto aos que eram versados na Lei, como é possível que Jesus Cristo,
Nosso Senhor, diga que as chaves da ciência estejam junto aos que tinham os
livros dos profetas e da Lei em suas mãos? De fato, é assim que ele diz:
"Ai de vós, doutores da Lei, que usurpastes a chave da ciência, e nem
entrastes vós, nem deixastes entrar os que queriam entrar" (Lucas 11, 52).
Retornando, porém, ao nosso assunto, conforme começávamos a dizer, julgamos que
a via que nos parece ser reta para entender as Escrituras e buscar o seu
sentido é aquela que é ensinada pela própria Escritura quando está nos mostra
como devemos sentir sobre ela mesma. No livro de Provérbios encontramos Salomão
ter preceituado o seguinte sobre a consideração da Sagrada Escritura: "E
tu", diz ele, "descreve para ti estas coisas três vezes, em conselho
e ciência, para que respondas as palavras da verdade aos que as propuserem a
ti". (Provérbio 22, 20-21) Cada um, portanto, deve descrever três vezes em
sua alma a inteligência das letras divinas. Deve fazê-lo, primeiro, para que os
mais simples sejam edificados pelo próprio corpo das Escrituras, por assim
dizer. É deste modo que chamamos ao entendimento comum e histórico. Se, porém,
eles já começam a adiantar-se um pouco, de tal modo que possam entender algo
mais profundamente, que sejam edificados também pela própria alma das
Escrituras. Quanto aos que, porém, forem perfeitos e semelhantes àqueles de
quem diz o Apóstolo: "Não obstante, é a sabedoria que pregamos entre os
perfeitos; não, porém, uma sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste
mundo, que serão destruídos; mas falamos da sabedoria de Deus encoberta no
mistério, e que Deus predestinou antes dos séculos para a nossa glória";
(I Coríntios 2, 6-7) que sejam estes edificados, como que pelo seu espírito,
pela própria lei espiritual que possui a sombra dos bens futuros. Assim como o
homem é dito ser constituído de corpo, alma e espírito, assim também o é a
Sagrada Escritura que pela liberalidade divina foi concedida para a salvação
dos homens. Tudo isto pode ser visto assinalado também no livro chamado "O
Pastor", que parece ser desprezado por alguns. Nele, com as seguintes
palavras, está escrito ter sido ordenado a Hermas que escreva dois livros, e
que depois anuncie aos presbíteros da Igreja aquilo que aprendeu pelo Espírito:
"Escreve", diz o livro, "dois livros, e darás um a Clemente, e
outro a Grapte. Que Grapte advirta as viúvas e os órfãos. Clemente seja enviado
por todas as cidades de fora. Tu, porém, as anunciarás aos presbíteros da
Igreja". (L. 1 Vis. 2,4) Grapte, ao qual se ordena que advirta os órfãos e
as viúvas, é o puro entendimento da própria letra, pela qual são advertidas as
almas infantis que ainda não mereceram ter Deus como pai, e que por causa disso
são chamados de órfãs. Já as viúvas são aquelas que se separaram do homem
iníquo ao qual foram unidas contra a Lei, permanecendo, todavia, viúvas, pelo
fato de ainda não se terem unido ao esposo celeste. A Clemente ordena-se que
envie as coisas que foram ditas às cidades de fora, que são aqueles que já se
afastam da letra, aquelas almas que começaram a ser edificadas fora dos
cuidados do corpo e além dos desejos carnais. Aquilo que, porém, Hermas
aprendeu do Espírito Santo, não por letras, nem por livros, mas por viva voz,
é-lhe ordenado que o anuncie aos presbíteros da Igreja de Cristo, isto é, aos
que possuem um maduro sentido da prudência capaz da doutrina espiritual. Não se
deve, todavia, ignorar que há algumas coisas nas Escrituras em que nem sempre
pode ser encontrado o que chamamos de corpo, isto é, o que se segue ao
entendimento da história, nas quais, conforme demonstraremos a seguir, somente
deverão ser entendidas as coisas às quais chamamos de alma ou espírito. Penso
que isto é apontado também no Evangelho, quando este diz que haviam sido postas
para a purificação dos judeus seis talhas de pedra, nas quais cabiam, cada uma,
duas ou três metretas (João 2, 6). Nesta passagem a palavra evangélica parece
referir-se aos que são chamados pelo Apóstolo de judeus que o são em oculto, os
quais se purificam pela palavra da Escritura, contendo às vezes duas metretas,
isto é, recebendo o entendimento da alma ou do espírito, contendo outras vezes
três metretas, quando a leitura pode conter, para a edificação, também o entendimento
corporal, que é a história. As seis talhas de pedra, por conseguinte, se
referem aos que, colocados neste mundo, buscam a purificação. De fato, lemos
ter-se consumado em seis dias, que é número perfeito, este mundo e tudo o que
nele existe. A multidão de todos os fiéis testemunha quanta utilidade há neste
primeiro entendimento que chamamos de histórico, o qual pode ser
suficientemente crido com fidelidade e simplicidade sem necessidade de muitas
explicações, conforme é bastante evidente para todos. Quanto à inteligência da
qual dissemos acima ser como que a alma da Sagrada Escritura, o apóstolo Paulo
dela nos deu numerosíssimos exemplos, como quando escreve na Primeira Epístola
aos Coríntios: "Está escrito na Lei de Moisés: `Não amordaçarás o boi que
tritura o grão'". (I Coríntios 9, 9) Em seguida, explicando como este
preceito deveria ser entendido, acrescenta dizendo: "Porventura Deus tem
cuidado dos bois? Não é antes por nós mesmos que Ele diz isto? Sim, é por causa
de nós que isto foi escrito, porque o que lavra deve lavrar com esperança, e o
que debulha deve-o fazer com esperança de participar dos frutos". (I
Coríntios 9, 10) Assim também uma multidão de outras coisas que são assim
interpretadas da Lei conferem aos ouvintes muitíssimo entendimento. Quanto à
explicação espiritual, esta é aquela pela qual alguém pode mostrar quais são as
coisas celestes às quais os que são judeus segundo a carne servem como imagens
e sombras, coisas futuras das quais a Lei é sombra, e outras tantas semelhantes
que se encontram nas Santas Escrituras. A inteligência espiritual é também
aquela pela qual buscamos qual seja a sabedoria escondida no mistério "que
Deus predestinou antes dos séculos para a nossa glória e nenhum dos príncipes
deste século conheceu". (I Coríntios 2, 7) É também aquela a que se refere
o próprio Apóstolo quando usa de alguns exemplos de Êxodo ou de Números e diz
que "estas coisas lhes aconteciam em figura, mas foram escritas por causa
de nós, para quem o fim dos séculos chegou", (I Coríntios 10, 11)
oferecendo-nos ocasião à inteligência para que possamos entender do que estas
coisas que lhes aconteciam eram figuras, quando nos diz também que "bebiam
da pedra espiritual que os seguia, e esta pedra era Cristo". (I Coríntios
10, 4) Quanto ao tabernáculo, o mesmo apóstolo nos lembra em outra epístola
aquelas palavras que foram preceituadas a Moisés: "Farás todas as coisas
segundo a forma que te foi mostrada no monte". (Hebreus 8, 5) Escrevendo
aos Gálatas, e repreendendo pela palavra a alguns que a si mesmos pareciam que
liam a Lei mas, por ignorarem haver alegorias nas coisas que foram escritas,
não a entendiam, assim lhes diz com uma certa repreensão: "Dizei-me vós,
os que credes estar debaixo da Lei, não lestes a Lei? De fato, está escrito que
Abraão teve dois filhos, um da escrava e outro da livre. Mas aquele que nasceu
da escrava, nasceu segundo carne; aquele, porém, que nasceu da livre, nasceu
segundo a promessa. Estas coisas são alegorias. De fato, estes são os dois
testamentos". (Gálatas 4, 21-24) Nisto deve-se também considerar o quão
cautelosamente o Apóstolo falou, ao dizer: "Vós, que estais sob a Lei, não
ouvistes a Lei?" `Ouvistes', isto é, `entendestes e conhecestes'. E, na
Epístola aos Colossenses, abraçando e resumindo brevemente o sentido de toda a
Lei: "Ninguém, pois, me condene pelo comer e pelo beber, ou pelos dias
solenes, ou pelas neomênias, ou pelo sábado, que são sombra de coisas
futuras". (Colossenses 2, 16- 17) É ele também que, escrevendo aos Hebreus
e aos que são da circuncisão, diz: "Eles que servem à imagem e à sombra
das coisas celestes". (Hebreus 8, 5) Tudo isto talvez não pareça matéria
de dúvida, para aqueles que recebem os escritos do Apóstolo como sentenças
divinas, no que diz respeito aos cinco livros de Moisés. Mas se investigarmos o
que se refere à história restante, veremos que mesmo as coisas que ali estão
contidas deverão também ser ditas terem acontecido em figura para aqueles dos
quais são escritas. É o que se encontra escrito na Epístola aos Romanos, quando
o Apóstolo coloca um exemplo tirado do Terceiro Livro dos Reis, dizendo:
"Eu reservei para mim sete mil homens, que não dobraram os joelhos diante
de Baal". (Romanos 11, 4) Paulo toma estas palavras como ditas
figurativamente daqueles que são chamados israelitas segundo a eleição, para
que fosse mostrado que o advento de Cristo não aproveita somente agora aos
gentios, mas a muitos outros chamados à salvação também da descendência de
Israel. De Principiis – Livro IV – Parte II. Abraços. Davi