Cristianismo.
Livro Pensamentos de Blaise Pascal (1623-1662). CONTRA A INDIFERENÇA DOS ATEUS.
Pascal nasceu em Clermont - França. Filho de Etienne Pascal e Antoniette Begon,
ficou órfão de mãe aos três anos de idade. Suas extraordinárias qualidades de
inteligência, reveladas desde os primeiros anos da infância, tornaram-se todo o
orgulho do pai de Pascal, que quis encarregar-se pessoalmente de sua educação.
O jovem Pascal manifestou, desde logo, um pendor excepcional pelas matemáticas,
a tal ponto que, segundo sua irmã Gilberte, chegou a descobrir os fundamentos
da Geometria Euclidiana. Aos dezesseis anos de idade, escreveu um tratado de
tal profundeza que se dizia não ter sido escrito outro, depois de Arquimedes
(287 AC 212), que se lhe pudesse comparar. Esse tratado despertou o entusiasmo
de René Descartes (1596-1650). Enquanto isso, continuava Pascal os seus estudos
do latim e o grego, nos quais seu pai o havia iniciado, e, nos intervalos,
dedicava-se também à lógica, à física, à filosofia. Aos dezoito anos de idade,
inventou uma máquina de calcular (protótipo das atualmente modernas). Aos vinte
e três anos, já era senhor de imenso cabedal (bens intelectuais e morais
adquiridos pelo estudo ou experiência) e científico, tendo descoberto várias leis
sobre a densidade do ar, o equilíbrio dos líquidos, o triângulo aritmético, o
cálculo das probabilidades, a prensa hidráulica etc. Um dia, porém, na ponte de
Neuilly, foi vítima de um acidente e começou a sofrer de alucinações, vendo
aparecer sempre diante de si um abismo aberto para tragá-lo. Desde então,
tornou-se profundamente religioso, renunciou a todos os seus conhecimentos, e
passando a viver solitariamente, internado na Abadia de Port Royal des Champs -
França, dedicando-se exclusivamente à defesa do Cristianismo. Dá-se, hoje, o
nome de abismo de Pascal à dificuldade que certos problemas sociais ou morais
oferecem em sua elucidação. A expressão grão de areia de Pascal encontra
explicação na seguinte passagem desta obra: "Oliver Cronwell (1599-1658) teria
destruído toda a cristandade, a família real se teria perdido e a sua se
tornado poderosa como nunca, se não fosse um pequeno grão de areia que se
introduzira em sua uretra. E até Roma teria tremido sob o seu domínio, se essa
areiazinha, que não valia nada em outro lugar, introduzindo-se ali, não o
tivesse, morto, derrubando sua família e restabelecendo o rei". Assim, com
aquela locução, se exprime a ideia de que pequenas causas podem acarretar
grandes efeitos. Toda a vida de Pascal é tida como um grande exemplo de
sofrimento resignado e de piedade. Morreu com trinta e nove anos, no dia 19 de
agosto de 1662. Após essa introdução comecemos o texto em sua íntegra. Contra a
Indiferença dos Ateus. Saibam, ao menos, que religião combatem, antes de
combatê-la. Se essa religião se gabasse de ter uma visão clara de Deus e de
possuí-lo com clareza e sem véu, seria combatê-la dizer que não se vê nada, no
mundo, que a mostre com tal evidência. Mas, como afirma, ao contrário, que os
homens se acham nas trevas e afastados de Deus, que se oculta ao seu
conhecimento, sendo mesmo esse Deus Absconditus (escondido) o nome com que se
apresenta nas Escrituras Sagradas. Em suma, se trabalha igualmente para
estabelecer duas coisas: que Deus estabeleceu na Igreja marcas sensíveis para
ser reconhecido pelos que o procurarem sinceramente, e que, no entanto, as
cobriu de tal forma que só será percebido pelos que o procurarem de todo o
coração. Que proveito, podem eles tirar, quando, na negligência em que fazem
profissão de estar procurando a verdade, exclamam não haver nada que a mostre,
de vez que essa obscuridade em que se encontram e que objetam à Igreja não faz
senão estabelecer uma das coisas que ela sustenta, sem tocar na outra,
estabelecendo assim a sua doutrina, em lugar de arrumá-la? Para combatê-la,
ser-lhes-ia preciso exclamar que fizeram todos os esforços em procurá-la por
toda parte, mesmo naquilo que a Igreja propõe com o fim de nela se instruírem,
mas sem nenhuma satisfação. Se falassem do destino, combateriam, na verdade,
uma das suas pretensões. Espero mostrar aqui, porém, que não há ninguém capaz
de falar razoavelmente do destino. Ouso mesmo dizer que jamais alguém fez.
Sabe-se muito bem de que maneira agem os que têm esse intuito. Acreditam ter
feito grandes esforços para instruir-se, por terem empregado algumas horas na
leitura de um dos livros sagrados (Bíblia) e por terem interrogado algum
eclesiástico (padre, bispo, abade, monsenhor, arcebispo, cônego) sobre as
verdades da fé. Gabam-se, depois, de terem investigado em vão nos livros e
entre os homens. Mas, na verdade, não posso deixar de lhes dizer o que
frequentemente tenho dito: que essa negligência é inadmissível. Não se trata,
no caso, do irrefletido interesse de um estranho, para assim proceder;
tratar-se, de nós próprios e do nosso Todo. A imortalidade da alma é uma coisa
que nos preocupa tanto, que tão profundamente nos toca, que é preciso ter
perdido todo sentimento para permanecer indiferente diante dela. Todos os
nossos pensamentos e ações devem tomar caminhos tão diferentes, conforme se
esperem ou não os bens eternos, que é impossível fazer uma pesquisa sensata e
criteriosa sem ter em vista esse ponto que deve ser o nosso último objeto.
Assim, o nosso primeiro interesse, o nosso primeiro dever, é esclarecer bem o
assunto, do qual depende toda a nossa conduta. Eis porque, dentre os que não
estão persuadidos disso, eu estabeleço uma extrema diferença entre os que
trabalham com todas as suas forças para instruir-se a respeito e os que vivem
sem se dar a esse trabalho e sem pensar nisso. Só posso ter compaixão dos que
gemem sinceramente nessa dúvida, do que observam como a última das desgraças e
dos que, sem nada poupar para sair dela, fazem de tal pesquisa as suas
principais e mais sérias ocupações. Mas, quanto aos que passam a vida sem
pensar nesse último fim da existência, de forma que, por essa única razão, não
descobrem em si próprios as luzes que os persuadam, deixando de procurá-las em
outra parte e de examinar a fundo se essa opinião é daquelas que o povo recebe
com uma simplicidade crédula ou daquelas que, embora obscuras por natureza,
possuem, contudo, um fundamento bastante sólido e inabalável, eu os considero
de maneira bem diferente. Tal negligência numa questão em que se trata da
própria pessoa, da própria eternidade, do próprio Todo, não me irrita mais do
que enternece; assombra-me e espanta-me, sendo para mim uma monstruosidade. Não
o afirmo pelo zelo piedoso de uma devoção espiritual. Entendo, ao contrário,
que se deve ter esse sentimento por um princípio de interesse humano e por um
interesse de amor-próprio; é preciso não ver nisso, apenas, o que vêm as
pessoas menos esclarecidas. É preciso ter a alma muito elevada para compreender
que não há ai satisfação verdadeira e sólida. Que todos os nossos prazeres não
passam de vaidade. Que os nossos males são infinitos; e que, finalmente, a
morte que nos ameaça a cada instante deve colocar-se infalivelmente, dentro de
poucos anos, na terrível necessidade de sermos eternos, ou aniquilados, ou
infelizes. Nada mais real nem mais terrível do que isso. Por mais corajosos que
desejemos ser, é esse o fim que espera mesmo a mais bela vida do mundo. Que se
reflita sobre isso e se diga, depois, se não é indubitável que o único bem da
vida presente é a esperança de uma vida futura. Que só somos felizes na medida
em que dela nos aproximamos, e que, não havendo mais infelicidades para os que
têm inteira certeza da eternidade, também não há felicidade para os que não
possuem luz alguma. É, por conseguinte, um grande mal permanecer nessa dúvida,
sendo ao menos um dever indispensável investigar quando ela existe, porque
aquele que duvida e não investiga se torna, então, não só infeliz, mas também
injusto. Com efeito, se com isso se mostra tranquilo e satisfeito, se disso faz
profissão e se por isso se sente orgulhoso, fazendo disso o motivo de sua
alegria e de sua vaidade, não tenho termos para qualificar tão extravagante
criatura. Onde se foram buscar tais sentimentos? Que motivo de alegria existe
quando só se esperam misérias sem remédio? Que motivos de orgulho pode haver
nas obscuridades impenetráveis e como admitir que tal raciocínio seja o de um
homem razoável? Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o
que sou. Estou numa ignorância terrível de todas as coisas. Não sei o que é o
meu corpo, nem o que são os meus sentidos, nem o que é a minha alma, e até esta
parte do meu ser que pensa o que eu digo, refletindo sobretudo e sobre si
própria, não se conhece melhor do que o resto. Vejo-me encerrado nestes medonhos
espaços do universo e me sinto ligado a um canto da vasta extensão, sem saber
por que fui colocado aqui e não em outra parte, nem porque o pouco tempo que me
é dado para viver me foi conferido neste período de preferência a outro de toda
a eternidade que me precedeu e de toda a que me segue. Só vejo o infinito em
toda parte, encerrando-me como um átomo e como uma sombra que dura apenas um
instante que não volta. Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém,
mais ignoro é essa morte que não posso evitar. Assim como não sei de onde
venho, também não sei para onde vou. Sei, apenas, que, ao sair deste mundo,
cairei para sempre no nada ou nas mãos de um Deus irritado, sem saber em qual
dessas duas situações deverei ficar eternamente. Eis a minha condição, cheia de
miséria, de fraqueza, de obscuridade. Concluo, de tudo isso, que devo passar
todos os dias da minha vida sem pensar em descobrir o que me deve acontecer.
Talvez pudesse encontrar algum esclarecimento nas minhas dúvidas, mas não quero
dar-me a esse trabalho, nem dar um passo nesse sentido. Tratando com desprezo
os que com isso se preocupam, quero experimentar esse grande acontecimento sem
previdência e sem temor, deixando-me passivamente conduzir à morte, na
incerteza da eternidade da minha condição futura. Quem desejaria ter como amigo
um homem que assim falasse? Quem o escolheria para lhe comunicar as suas
intimidades (confidências)? Quem recorreria a ele em suas aflições? Finalmente,
a que utilidade, na vida, se poderia destiná-lo? Na verdade, é glorioso, para a
religião, ter como inimigos homens tão insensatos, pois a sua oposição lhe é
tão pouco perigosa que serve, ao contrário, para o estabelecimento de suas
principais verdades. Com efeito, a fé cristã não visa, principalmente, senão a
estabelecer estas duas coisas: a corrupção da natureza e a redenção de Jesus
Cristo. Ora, se eles não servem para mostrar a verdade da redenção
pela santidade dos seus costumes, servem ao menos, admiravelmente, para
mostrar a corrupção da natureza com sentimentos tão desnaturados. Nada é tão
importante para o homem como a sua condição, e nada lhe é tão temível como a
eternidade. Por conseguinte, se se acham homens indiferentes à perda do próprio
ser e ao perigo, de uma eternidade de miséria, isso não é natural. Procedem de
modo inteiramente diverso em relação a todas as outras coisas: temem até as
mais insignificantes, e as preveem, e as sentem. O mesmo homem que passa tantos
dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido um cargo,
ou por alguma ofensa imaginária à sua honra, sabe também que vai perder tudo
com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova. É uma coisa monstruosa
ver, num coração e ao mesmo tempo, essa sensibilidade pelas menores coisas e
essa estranha insensibilidade pelas maiores. É um encantamento incompreensível
e um adormecimento sobrenatural, marcando uma força todo poderosa que os causa.
É preciso haver um estranho abalo na natureza do homem para que possa
vangloriar-se de se achar nesse estado em que parece incrível que uma só pessoa
possa estar. No entanto, a experiência me faz ver tão grande número delas que
seria de nos surpreendermos, se não soubéssemos que quase todas fingem ser
assim e que não o são. São pessoas que ouviram dizer que as belas maneiras do
mundo consistem em fazer-se de louco. É o que chamam ter sacudido o jugo e o
que experimentam imitar. Mas, não seria difícil explicar-lhes quanto se
arriscam quando dessa forma procuram a estima. Não é esse o meio de granjeá-la,
mesmo quando se trata de pessoas que julgam sensatamente as coisas e que sabem
que o único caminho para triunfar é aparentar honestidade, fidelidade, critério
e capacidade de bem servir o amigo. De vez que os homens só gostam,
naturalmente, do que lhes possa ser útil. Com efeito, que vantagem temos em
ouvir um homem dizer que sacudiu o jugo, que não crê na existência de um Deus
que vele sobre suas ações, que se considera como único senhor de sua conduta e
que não pensa em prestar contas senão a si próprio? Pensarão, por isso,
que nos levarão a depositar-lhes mais confiança e a esperar seus consolos,
conselhos e socorros em todas as necessidades da vida? Pretenderão alegrar-nos
dizendo-nos que estão convencidos de que a nossa alma não passa de um pouco de
vento e de fumaça, e isso num tom orgulhoso e satisfeito? Será coisa que se
diga com alegria? Não será, ao contrário, uma coisa que deva ser dita com
tristeza, como sendo a mais triste do mundo? Se pensassem nisso seriamente,
veriam que isso é tão mal apanhado, tão contrário ao bom senso, tão oposto à
honestidade e tão afastado em tudo dessa boa aparência que mostram, que seriam
antes capazes de regenerar do que de corromper os que tivessem alguma
inclinação para segui-los. E, com efeito, fazei-os prestar contas dos seus
sentimentos e das razões que possuem para duvidar da religião (cristã); dirão
coisas tão frívolas e tão baixas que vos persuadirão do contrário. Foi o que
muito a propósito lhes disse um dia alguém: "Se continuardes a discorrer
dessa maneira, na verdade me convertereis". E tinha razão, de fato, quem
não teria horror de se ver com sentimentos em que se têm como companheiros
pessoas tão desprezíveis? Eis porque os que não fazem senão fingir esses
sentimentos seriam bem desgraçados em contrariar seu natural para tornar-se os
mais impertinentes dos homens. Se se desgostam, no fundo do coração, por não
terem mais luz, não o dissimulem, pois tal declaração não será vergonhosa. Só
há vergonha em não a possuir. Nada acusa tanto uma extrema fraqueza de espírito
como não conhecer qual é a desgraça de um homem sem Deus. Nada marca tanto uma
disposição má de sentimentos como não desejar a verdade das promessas eternas;
nada é mais covarde do que mostrar valentia contra Deus. Deixem, pois, essas
impiedades para os que são de índole bastante má para serem
verdadeiramente capazes disso, sejam ao menos homens de bem, se não
puderem ser cristãos. E reconheçam, finalmente, que só há duas espécies de
pessoas que podem ser chamadas de razoáveis: ou os que servem Deus de todo o
coração porque o conhecem, ou os que o procuram de todo o coração porque não o
conhecem. Mas, quanto aos que vivem sem conhecê-lo e sem procurá-lo dignos de
seu próprio cuidado que não são dignos do cuidado dos outros, sendo preciso ter
toda a caridade da religião (cristã) que eles desprezam para não os desprezar
até abandoná-los em sua loucura. Mas, como essa religião (cristã) nos obriga a
observá-los sempre, enquanto estiverem nesta vida. Como capazes da graça que
pode esclarecê-los, e a acreditar que podem em pouco tempo tornar-se mais
cheios de fé do que nós o somos, podendo nós, ao contrário, cair na cegueira em
que eles se acham. É preciso fazer por eles o que desejaríamos que se fizesse
por nós se estivéssemos em seu lugar, e chamá-los a ter piedade de si próprios
e a dar ao menos alguns passos para tentar descobrir luzes. Dediquem a esta
leitura algumas horas que tão inutilmente empregam fora. Se alguma aversão
experimentarem, talvez reconheçam ainda assim alguma coisa ou, pelo menos, não
perderão muito. Quanto aos que nisso usarem de toda a sinceridade e mostrarem
um verdadeiro desejo de descobrir a verdade, espero que se satisfarão e ficarão
convencidos das provas de uma religião (cristã) tão divina por mim coligidas
(chegar a uma conclusão fazendo inferência sobre o assunto abordado) aqui.
Livro Pensamentos de Blaise Pascal. Abraço. Davi.