quinta-feira, 31 de outubro de 2019

II CARÁTER DA REVELAÇÃO ESPÍRITA.


Espiritismo. www.fetnet.org.br. Texto de Allan Kardec (1804-1869). Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Livro A Gênese – Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. Capítulo I. CARÁTER DA REVELAÇÃO ESPÍRITA II. Já não é o Deus que faz da vingança uma virtude e ordena se retribua olho por olho, dente por dente; mas o Deus de misericórdia, que diz: “Perdoai as ofensas, se quiserdes ser perdoados; fazei o bem em troca do mal; não façais a outrem o que não quereis que vos façam.” Já não é o Deus mesquinho e meticuloso, que impõe, sob as mais rigorosas penas, o modo como quer ser adorado, que se ofende com a inobservância de uma fórmula; mas o Deus grande, que vê o pensamento e não se honra com a forma. Enfim, já não é o Deus que quer ser temido, mas o Deus que quer ser amado. 24. Sendo Deus o eixo de todas as crenças religiosas e o objetivo de todos os cultos, o caráter de todas as religiões é conforme à ideia que elas têm de Deus. As religiões que fazem de Deus um ser vingativo e cruel julgam honrá-lo com atos de crueldade, com fogueiras e torturas; as que têm um Deus parcial e cioso são intolerantes e mais ou menos meticulosas na forma, por o acreditarem mais ou menos contaminado das fraquezas e bagatelas humanas. 25. Toda a doutrina do Cristo se funda no caráter que Ele atribui à Divindade. Com um Deus imparcial, soberanamente justo, bom e misericordioso, Ele fez do amor de Deus e da caridade para com o próximo a condição expressa da salvação, dizendo: Amai a Deus sobre todas as coisas e o vosso próximo como a vós mesmos; nisto estão, toda a lei e os profetas; não existe outra lei. Sobre esta crença, assentou o princípio da igualdade dos homens perante Deus e o da fraternidade universal. Mas era possível amar o Deus de Moisés? Não; só se podia temê-lo. A revelação dos verdadeiros atributos da Divindade, juntamente com a da imortalidade da alma e da vida futura, modificava profundamente as relações mútuas dos homens, impunha-lhes novas obrigações, fazia- -os encarar a vida presente sob outro aspecto e tinha, por isso mesmo, de reagir contra os costumes e as relações sociais. É esse incontestavelmente, por suas consequências, o ponto principal da revelação do Cristo, cuja importância não foi compreendida suficientemente e, é lamentável dizer, é também o ponto de que a humanidade mais se tem afastado, que mais tem ignorado na interpretação dos seus ensinos. 26. Entretanto, o Cristo acrescenta: “Muitas das coisas que vos digo ainda não as podeis compreender, e muitas outras eu teria a dizer, que não compreenderíeis; é por isso que vos falo por parábolas; mais tarde, porém, enviar-vos-ei o Consolador, o Espírito de Verdade, que restabelecerá todas as coisas e vo-las explicará todas.” (João, 14:16; Mateus, 17.) Se, pois, o ­Cristo não disse tudo quanto poderia dizer, é que julgou conveniente deixar certas verdades na sombra até que os homens estivessem em condição de compreendê-las. Como Ele próprio o confessou, seu ensino era incompleto, visto anunciar a vinda daquele que deveria completá-lo; previra, pois, que suas palavras seriam desprezadas ou mal interpretadas, e que os homens se desviariam do seu ensino; em suma, que desfariam o que Ele fez, uma vez que todas as coisas hão de ser restabelecidas. Ora, só se restabelece aquilo que foi desfeito. 27. Por que Ele chama de Consolador ao novo messias? Este nome, significativo e sem ambiguidade, encerra toda uma revelação. Assim, Ele previra que os homens teriam necessidade de consolações, o que implica a insuficiência daquelas que eles achariam na crença que iam fundar. Talvez nunca o Cristo fosse tão claro, tão explícito como nestas últimas palavras, às quais poucas pessoas deram a devida atenção, provavelmente porque evitaram esclarecê-las e aprofundar-lhes o sentido profético. 28. Se o Cristo não pôde desenvolver o seu ensino de maneira completa, é que faltavam aos homens conhecimentos que eles só podiam adquirir com o tempo e sem os quais não o compreenderiam; há muitas coisas que teriam parecido absurdas no estado dos conhecimentos de então. Completar o seu ensino entende-se no sentido de explicar e desenvolver, e não no de juntar-lhe verdades novas, porque tudo nele se encontra em estado de germe, faltando-lhe somente a chave para se apreender o sentido de suas palavras. 29. Mas quem se arroga o direito de interpretar as Escrituras Sagradas? Quem tem esse direito? Quem possui as luzes necessárias senão os teólogos? Quem o ousa? Primeiro, a Ciência, que não pede permissão a ninguém para dar a conhecer as leis da natureza e que salta sobre os erros e os preconceitos. Quem tem esse direito? Neste século10 de emancipação intelectual e de liberdade de consciência, o direito de exame pertence a todos, e as Escrituras não são mais a arca santa11 na qual ninguém se atreveria a tocar com a ponta do dedo sem correr o risco de ser fulminado. Quanto às luzes especiais necessárias, sem contestar as dos teólogos, por mais esclarecidos que fossem os da Idade Média, e, em particular, os Pais da Igreja, eles, contudo, ainda não eram esclarecidos o bastante para não condenarem, como heresia, o movimento da Terra e a crença nos antípodas.12 Mesmo sem ir tão longe, os teólogos dos nossos dias não lançaram anátema à teoria dos períodos de formação da Terra? Os homens só puderam explicar as Escrituras com o auxílio do que sabiam, das noções falsas e incompletas que tinham sobre as leis da natureza, mais tarde reveladas pela Ciência. Eis por que os próprios teólogos, de muito boa-fé, se enganaram sobre o sentido de certas palavras e fatos do Evangelho. Querendo a todo custo encontrar nele a confirmação de uma ideia preconcebida, giraram sempre no mesmo círculo, sem abandonar o seu ponto de vista, de modo que só viam o que queriam ver. Por mais instruídos que fossem, eles não podiam compreender as causas dependentes de leis que lhes eram desconhecidas. Quem, porém, julgará interpretações diversas e muitas vezes contraditórias, dadas fora do campo da Teologia? O futuro, a lógica e o bom senso. Os homens, cada vez mais esclarecidos, à medida que novos fatos e novas leis se forem revelando, saberão separar da realidade os sistemas utópicos. Ora, as ciências tornam conhecidas algumas leis; o Espiritismo revela outras; todas são indispensáveis à compreensão dos textos sagrados de todas as religiões, desde Confúcio13 e Buda14 até o Cristianismo. Quanto à Teologia, essa não poderá judiciosamente alegar contradições da Ciência, visto como também ela nem sempre está de acordo consigo mesma. 30. O Espiritismo, partindo das próprias palavras do Cristo, como este partiu das de Moisés, é consequência direta da sua doutrina. À ideia vaga da vida futura, acrescenta a revelação da existência do mundo invisível que nos rodeia e povoa o espaço, e com isso precisa a crença, dá-lhe um corpo, uma consistência, uma realidade à ideia. Define os laços que unem a alma ao corpo e levanta o véu que ocultava aos homens os mistérios do nascimento e da morte. Pelo Espiritismo, o homem sabe de onde vem, para onde vai, por que está na Terra, por que sofre temporariamente e vê por toda parte a Justiça de Deus. Sabe que a alma progride incessantemente, através de uma série de existências sucessivas, até atingir o grau de perfeição que a aproxima de Deus. Sabe que todas as almas, tendo um mesmo ponto de origem, são criadas iguais, com a mesma aptidão para progredir, em virtude do seu livre-arbítrio; que todas são da mesma essência e que não há diferença entre elas, senão quanto ao progresso realizado; que todas têm o mesmo destino e alcançarão o mesmo fim, mais ou menos rapidamente, conforme seu trabalho e boa vontade. Sabe que não há criaturas deserdadas, nem mais favorecidas umas do que outras; que Deus não privilegiou a criação de nenhuma delas, nem dispensou quem quer que fosse do trabalho imposto às outras para progredirem; que não há seres perpetuamente votados ao mal e ao sofrimento; que os que se designam pelo nome de demônios são Espíritos ainda atrasados e imperfeitos, que praticam o mal no Espaço, como o praticavam na Terra, mas que se adiantarão e aperfeiçoarão; que os anjos ou Espíritos puros não são seres à parte na Criação, mas Espíritos que chegaram à meta depois de terem palmilhado a estrada do progresso; que, desse modo, não há criações múltiplas, nem diferentes categorias entre os seres inteligentes, mas que toda a Criação resulta da grande lei de unidade que rege o universo e que todos os seres gravitam para um fim comum, que é a perfeição, sem que uns sejam favorecidos à custa de outros, visto serem todos filhos das suas próprias obras. 31. Pelas relações que agora pode estabelecer com aqueles que deixaram a Terra, o homem possui não só a prova material da existência e da individualidade da alma, como também compreende a solidariedade que liga os vivos aos mortos deste mundo, e os deste mundo aos dos outros planetas. Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos, acompanha-os em suas migrações, testemunha suas alegrias e penas; sabe por que são felizes ou infelizes e a sorte que lhes está reservada, conforme o bem ou o mal que fizeram. Essas relações iniciam o homem na vida futura, que ele pode observar em todas as suas fases, em todas as suas peripécias; o futuro já não é uma vaga esperança, mas um fato positivo, uma certeza matemática. Desde então, a morte nada mais tem de aterrador, por lhe ser a libertação, a porta da verdadeira vida. Pelo estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe que a felicidade e a infelicidade na vida espiritual são inerentes ao grau de perfeição e de imperfeição; que cada um sofre as consequências diretas e naturais de suas faltas, ou, por outra, que é punido no que pecou; que essas consequências duram tanto quanto a causa que as produziu; que, por conseguinte, o culpado sofreria eternamente se persistisse sempre no mal, mas que o sofrimento cessa com o arrependimento e a reparação. Ora, como depende de cada qual o seu aperfeiçoamento, todos podem, em virtude do livre-arbítrio, prolongar ou abreviar seus sofrimentos, como o doente sofre, pelos seus excessos, enquanto não lhes põe termo. 33. Se a razão repele, como incompatível com a bondade de Deus, a ideia das penas irremissíveis, perpétuas e absolutas, muitas vezes infligidas por uma única falta; a dos suplícios do inferno, que não podem ser minorados nem sequer pelo arrependimento mais ardente e mais sincero, a mesma razão se inclina diante dessa justiça distributiva e imparcial, que leva tudo em conta, que nunca fecha a porta ao arrependimento e estende constantemente a mão ao náufrago, em vez de o empurrar para o abismo. 34. A pluralidade das existências, cujo princípio o Cristo estabeleceu no Evangelho, sem, todavia, defini-lo como a muitos outros, é uma das leis mais importantes reveladas pelo Espiritismo, visto demonstrar a sua realidade e a necessidade para o progresso. Com esta lei, o homem explica todas as aparentes anomalias da vida humana; as diferenças de posição social; as mortes prematuras que, sem a reencarnação, tornariam inúteis para a alma as vidas de curta duração; a desigualdade de aptidões intelectuais e morais, pela ancianidade do Espírito que mais ou menos aprendeu ou progrediu, e que traz, ao renascer, o que adquiriu em suas existências anteriores. (Item 5.) 35. Com a doutrina da criação da alma no instante do nascimento, cai-se no sistema das criações privilegiadas; os homens são estranhos uns aos outros e nada os liga; os laços de família são puramente carnais; não são de nenhum modo solidários com um passado em que não existiam. Com a doutrina do nada após a morte, todas as relações cessam com a vida e, assim, os seres humanos não são solidários no futuro. Pela reencarnação, são solidários no passado e no futuro e, como as suas relações se perpetuam, tanto no mundo espiritual como no corpóreo, a fraternidade tem por base as próprias leis da natureza; o bem tem um objetivo, e o mal, consequências inevitáveis. 36. Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação firma numa Lei da natureza o princípio da fraternidade universal, também firma na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade.15 37. Tirai ao homem o Espírito livre e independente, sobrevivente à matéria, e fareis dele uma simples máquina organizada, sem finalidade nem responsabilidade, sem outro freio além da lei civil e pronta para ser explorada como um animal inteligente. Nada esperando depois da morte, faz de tudo para aumentar os gozos do presente; se sofre, só tem a perspectiva do desespero e o nada como refúgio. Com a certeza do futuro, com a convicção de encontrar novamente aqueles a quem amou e com o temor de tornar a ver aqueles a quem ofendeu, todas as suas ideias mudam. Ainda que o Espiritismo só servisse para libertar o homem da dúvida quanto à vida futura, já teria feito mais pelo seu aperfeiçoamento moral do que todas as leis disciplinares, que o detêm algumas vezes, mas que não o transformam. 38. Sem a preexistência da alma, a doutrina do pecado original não somente seria inconciliável com a Justiça de Deus, como tornaria todos os homens responsáveis pela falta de um só; seria um contrassenso, e tanto menos justificável porque, segundo essa doutrina, a alma não existia na época em que se pretende fazer remontar a sua responsabilidade. Com a preexistência o homem traz, ao renascer, o germe das suas imperfeições, dos defeitos de que não se corrigiu e que se traduzem pelos instintos naturais e pelos pendores para tal ou qual vício. É esse o seu verdadeiro pecado original cujas consequências sofre naturalmente, mas com a diferença capital de que sofre a pena das suas próprias faltas, e não a pena das faltas cometidas por outrem. Contudo, existe ainda outra diferença, ao mesmo tempo consoladora, animadora e soberanamente equitativa, segundo a qual cada existência lhe oferece os meios de progredir e de se redimir pela reparação, quer despojando-se de alguma imperfeição, quer adquirindo novos conhecimentos, até que, suficientemente depurado, o homem não mais necessite da vida corpórea e possa viver exclusivamente a vida espiritual, eterna e bem-aventurada. Pela mesma razão, aquele que progrediu moralmente traz, ao renascer, qualidades naturais, como o que progrediu intelectualmente traz ideias inatas. Identificado com o bem, pratica-o sem esforço, sem cálculo e, por assim dizer, sem pensar. Aquele que é obrigado a combater as suas más tendências vive ainda em luta; o primeiro já venceu, o segundo está prestes a vencer. Existe, pois, a virtude original, como existe o saber original, e o pecado ou, antes, o vício original. 39. O Espiritismo experimental estudou as propriedades dos fluidos espirituais e a ação deles sobre a matéria. Demonstrou a existência do perispírito, suspeitado desde a Antiguidade por Paulo sob o nome de corpo espiritual, isto é, corpo fluídico da alma, após a destruição do corpo tangível. Sabe-se hoje que esse envoltório é inseparável da alma, forma um dos elementos constitutivos do ser humano, é o veículo da transmissão do pensamento e, durante a vida do corpo, serve de laço entre o Espírito e a matéria. O perispírito representa importantíssimo papel no organismo e numa porção de afecções que se ligam à Fisiologia, assim como à ­Psicologia. 40. O estudo das propriedades do perispírito, dos fluidos espirituais e dos atributos fisiológicos da alma abre novos horizontes à Ciência e dá a solução de uma série de fenômenos incompreendidos até agora, por falta de conhecimento da lei que os rege; fenômenos, aliás, negados pelo materialismo, por se prenderem à espiritualidade, e qualificados como milagres ou sortilégios por outras crenças. Tais são, entre outros, o fenômeno da dupla vista, da visão a distância, do sonambulismo natural e artificial, dos efeitos psíquicos da catalepsia e da letargia, da presciência, dos pressentimentos, das aparições, das transfigurações, da transmissão do pensamento, da fascinação, das curas instantâneas, das obsessões e possessões etc. Demonstrando que esses fenômenos repousam em leis naturais, como os fenômenos elétricos, e em que condições normais se podem reproduzir, o Espiritismo destrói o império do maravilhoso e do sobrenatural e, por conseguinte, a fonte da maior parte das superstições. Se leva à crença na possibilidade de certas coisas consideradas por alguns como quiméricas, também impede que se creia em muitas outras, comprovando a sua impossibilidade e irracionalidade. 41. Longe de negar ou destruir o Evangelho, o Espiritismo vem, ao contrário, confirmar, explicar e desenvolver, pelas novas leis da natureza que ele revela, tudo quanto o Cristo disse e fez; elucida os pontos obscuros do ensino cristão, de tal sorte que aqueles para quem eram ininteligíveis certas partes do Evangelho, ou pareciam inadmissíveis, as compreendem e admitem, sem dificuldade, com o auxílio desta doutrina, veem melhor o seu alcance e podem distinguir entre a realidade e a alegoria; o Cristo lhes parece maior: já não é simplesmente um filósofo, mas um Messias divino. 42. Além disso, se se considerar o poder moralizador do Espiritismo, pela finalidade que confere a todas as ações da vida, por tornar quase tangíveis as consequências do bem e do mal, pela força moral, a coragem e as consolações que dá nas aflições, mediante inalterável confiança no futuro, pela ideia de ter, cada um, perto de si os seres a quem amou, a certeza de os rever, a possibilidade de conversar com eles; enfim, pela certeza de que tudo quanto se fez, quanto se adquiriu em inteligência, sabedoria, moralidade, até a última hora da vida, não fica perdido, que tudo aproveita ao adiantamento do Espírito, reconhece-se que o Espiritismo realiza todas as promessas do Cristo a respeito do Consolador anunciado. Ora, como é o Espírito de Verdade que preside ao grande movimento regenerador, a promessa do seu advento se acha por essa forma cumprida, porque, de fato, é ele o verdadeiro Consolador. 16 43. Se a estes resultados adicionarmos a rapidez prodigiosa da propagação do Espiritismo, apesar de tudo quanto têm feito para abatê-lo, não se poderá negar que a sua vinda seja providencial, visto que ele triunfa de todas as forças e de toda a má vontade dos homens. A facilidade com que é aceito por tão grande número de pessoas, sem constrangimento, apenas pelo poder da ideia, prova que ele corresponde a uma necessidade, qual a de crer o homem em alguma coisa para encher o vácuo aberto pela incredulidade e que, portanto, veio no momento preciso. 44. Os aflitos de toda sorte são em grande número. Não é, pois, de admirar que tanta gente acolha uma doutrina que consola, de preferência às que desesperam, porque aos deserdados, mais que aos felizes do mundo, é que o Espiritismo se dirige. O doente vê chegar o médico com maior satisfação do que aquele que está bem de saúde; ora, os aflitos são os doentes e o Consolador é o médico. Vós, que combateis o Espiritismo, se quereis que o abandonemos para vos seguir, dai-nos mais e melhor do que ele; curai com maior segurança as feridas da alma. Dai mais consolações, mais satisfações ao coração, esperanças mais legítimas, maiores certezas; fazei do futuro um quadro mais racional, mais sedutor; porém, não julgueis vencê-lo com a perspectiva do nada, com a alternativa das chamas do inferno ou com a inútil contemplação perpétua. 45. A primeira revelação teve a sua personificação em Moisés, a segunda no Cristo, mas a terceira não tem indivíduo algum a personificá-la. As duas primeiras foram individuais, a terceira foi coletiva; aí está um caráter essencial de grande importância. Ela é coletiva no sentido de não ser feita ou dada como privilégio a pessoa alguma; ninguém, por conseguinte, pode arrogar-se como seu profeta exclusivo. Foi espalhada simultaneamente por sobre toda a Terra, a milhões de pessoas, de todas as idades e condições, desde a mais baixa até a mais alta da escala, conforme esta predição registrada pelo autor dos Atos dos Apóstolos: “Nos últimos tempos, disse o Senhor, derramarei do meu espírito sobre toda a carne; os vossos filhos e filhas profetizarão, vossos jovens terão visões e vossos velhos sonharão.” (Atos, 2:17 e 18.) Ela não proveio de nenhum culto especial, a fim de servir um dia a todos de ponto de ligação. 46. As duas primeiras revelações, sendo fruto do ensino pessoal, ficaram forçosamente localizadas, isto é, apareceram num só ponto, em torno do qual a ideia se propagou pouco a pouco; mas foram precisos muitos séculos para que atingissem as extremidades do mundo, sem mesmo o invadirem completamente. A terceira tem isto de particular: não sendo personificada em um só indivíduo, surgiu simultaneamente em milhares de pontos diferentes, que se tornaram centros ou focos de irradiação. Multiplicando-se esses centros, seus raios se reúnem pouco a pouco, como os círculos formados por uma imensidade de pedras lançadas na água, de tal sorte que, em dado tempo, acabarão por cobrir toda a superfície do globo. Essa é uma das causas da rápida propagação da Doutrina. Se ela tivesse surgido num só ponto, se fosse obra exclusiva de um homem, teria formado seitas em torno dela e talvez decorresse meio século sem que atingisse os limites do país onde começara, ao passo que, após dez anos, já fincou balizas de um polo a outro. 47. Essa circunstância, verdadeiro fenômeno na história das doutrinas, lhe dá força excepcional e irresistível poder de ação. De fato, se a perseguirem num ponto, em determinado país, será materialmente impossível que a persigam em toda parte e em todos os países. Em contraposição a um lugar onde lhe dificultem a marcha, haverá mil outros em que florescerá. Ainda mais: se a ferirem num indivíduo, não poderão feri-la nos Espíritos, que são a fonte de que ela promana. Ora, como os Espíritos estão em toda parte e existirão sempre, se, por um acaso impossível, conseguissem sufocar a Doutrina Espírita em todo o globo, ela reapareceria pouco tempo depois, porque repousa sobre um fato que está na natureza e não se podem suprimir as leis da natureza. Eis aí o de que devem convencer-se aqueles que sonham com o aniquilamento do Espiritismo. (Revista espírita, fevereiro de 1865: Perpetuidade do Espiritismo.) 48. Entretanto, em virtude da disseminação dos centros, estes poderiam ainda permanecer por muito tempo isolados uns dos outros ou confinados em países longínquos, como sucede com alguns deles. Faltava entre eles uma ligação que os pusesse em comunhão de ideias com seus irmãos em crença, informando-os do que se fazia em outro lugar. Esse traço de união, que na Antiguidade teria faltado ao Espiritismo, hoje existe nas publicações que vão a toda parte, condensando, sob uma forma única, concisa e metódica, o ensino dado universalmente sob formas múltiplas e nas diversas línguas. 49. As duas primeiras revelações só podiam resultar de um ensino direto. Como os homens não estivessem ainda bastante adiantados a fim de concorrerem para a sua elaboração, elas tinham que ser impostas pela fé, sob a autoridade da palavra do Mestre. Contudo, notam-se entre as duas, bem sensível diferença, devida ao progresso dos costumes e das ideias, embora feitas ao mesmo povo e no mesmo meio, mas com dezoito séculos de intervalo. A doutrina de Moisés é absoluta, despótica; não admite discussão e se impõe ao povo pela força. A de Jesus é essencialmente conselheira; é livremente aceita e só se impõe pela persuasão; foi controvertida desde o tempo do seu fundador, que não desdenhava de discutir com os seus adversários. 50. A Terceira Revelação, vinda numa época de emancipação e de maturidade intelectual, em que a inteligência, já desenvolvida, não se conforma em representar um papel meramente passivo, em que o homem nada aceita às cegas, mas, ao contrário, quer ver aonde o conduzem, quer saber o porquê e o como de cada coisa, tinha ela que ser ao mesmo tempo o produto de um ensino e o fruto do trabalho, da pesquisa e do livre-exame. Os Espíritos só ensinam o que é preciso para guiar o homem no caminho da verdade, mas se abstêm de revelar o que ele pode descobrir por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, verificar e submeter tudo ao crivo da razão, deixando mesmo, muitas vezes, que adquira experiência à própria custa. Os Espíritos fornecem-lhe o princípio, os materiais, cabendo a ele aproveitá-los e pô-los em prática. (Item 15.) 51. Tendo sido os elementos da revelação espírita ministrados simultaneamente em muitos pontos, a homens de todas as condições sociais e de diversos graus de instrução, é claro que as observações não podiam ser feitas em toda parte com o mesmo resultado; que as consequências a tirar, a dedução das leis que regem esta ordem de fenômenos, em suma, a conclusão sobre a qual haviam de firmar-se as ideias não podiam sair senão do conjunto e da correlação dos fatos. Ora, cada centro isolado, circunscrito dentro de um círculo restrito, não vendo na maioria das vezes mais que uma ordem particular de fatos, não raro contraditórios na aparência, geralmente lidando com a mesma categoria de Espíritos e, além disso, embaraçados por influências locais e pelo espírito de partido, se achava na impossibilidade material de abranger o conjunto e, por isso mesmo, incapaz de conjugar as observações isoladas a um princípio comum. Apreciando cada qual os fatos sob o ponto de vista dos seus conhecimentos e crenças anteriores, ou da opinião particular dos Espíritos que se manifestam, bem cedo teriam surgido tantas teorias e sistemas quantos fossem os centros, todos incompletos por falta de elementos de comparação e exame. Numa palavra, cada um se teria imobilizado na sua revelação parcial, julgando possuir toda a verdade, ignorando que em cem outros lugares se obtinha mais e melhor. 52. Além disso, convém notar que em parte alguma o ensino espírita foi dado de maneira completa. Ele diz respeito a tão grande número de observações, a assuntos tão diferentes, exigindo conhecimentos e aptidões mediúnicas especiais, que seria impossível se acharem reunidas num mesmo ponto todas as condições necessárias. Tendo o ensino que ser coletivo e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho, disseminando os assuntos de estudo e observação como, em algumas fábricas, a confecção de cada parte de um mesmo objeto é repartida por diversos operários. A revelação fez-se assim, parcialmente, em diversos lugares e por uma multidão de intermediários, e é dessa maneira que ela prossegue ainda, pois nem tudo foi revelado. Cada centro encontra nos outros centros o complemento do que obtém, e foi o conjunto, a coordenação de todos os ensinos parciais que constituíram a Doutrina Espírita. Era, pois, necessário agrupar os fatos esparsos para se lhes verificar a correlação, reunir os documentos diversos, as instruções dadas pelos Espíritos sobre todos os pontos e sobre todos os assuntos, a fim de compará-las, analisá-las, estudar as suas analogias e diferenças. Vindo as comunicações de Espíritos de todas as ordens, mais ou menos esclarecidos, era preciso apreciar o grau de confiança que a razão permitia conceder-lhes, distinguir as ideias sistemáticas individuais ou isoladas das que tinham a sanção do ensino geral dos Espíritos; as utopias das ideias práticas; afastar as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da ciência positiva e da lógica, utilizar igualmente os erros, as informações fornecidas pelos Espíritos, mesmo os da mais baixa categoria, para conhecimento do estado do mundo invisível e formar com isso um todo homogêneo. Era preciso, em suma, um centro de elaboração independente de qualquer ideia preconcebida de todo prejuízo de seita, resolvido a aceitar a verdade tornada evidente, embora contrária às opiniões pessoais. Este centro se formou por si mesmo, pela força das coisas e sem desígnio premeditado. 18 53. De todas essas coisas resultou dupla corrente de ideias: umas se dirigindo das extremidades para o centro; as outras se encaminhando do centro para a periferia. Desse modo a Doutrina caminhou rapidamente para a unidade, apesar da diversidade das fontes de onde emanou; os sistemas diversos ruíram pouco a pouco, devido ao isolamento em que ficaram, diante do ascendente da opinião da maioria, por não encontrar repercussão simpática. Desde então, uma comunhão de pensamentos se estabeleceu entre os diversos centros parciais. Falando a mesma linguagem, eles se entendem e estimam, de um extremo a outro do mundo. Sentindo-se mais fortes, os espíritas lutaram com mais coragem, caminharam com passo mais firme, desde que não mais se viram isolados, desde que sentiram um ponto de apoio, um laço a prendê-los à grande família. Os fenômenos que presenciavam já não lhes pareciam singulares, anormais, contraditórios, desde que puderam conjugá-los a leis gerais de harmonia, perceber num piscar de olhos toda a obra e descobrir um fim grandioso e humanitário em todo o conjunto. www.fetnet.org.br. Abraço. Davi

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

I. CARÁTER DA REVELAÇÃO ESPÍRITA


Espiritismo. www.febnet.org.br. Texto de Allan Kardec (1804-1869). Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Livro A Gênese – Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. Capítulo I. CARÁTER DA REVELAÇÃO ESPÍRITA I. Pode-se considerar o Espiritismo como uma revelação? Neste caso, qual o seu caráter? Em que se funda a sua autenticidade? A quem e de que maneira ela foi feita? A Doutrina Espírita é uma revelação, no sentido teológico da palavra, isto é, o produto do ensino oculto vindo do Alto? É absoluta ou suscetível de modificações? Trazendo aos homens a verdade integral, a revelação não teria por efeito impedi-los de fazer uso das suas faculdades, pois que lhes pouparia o trabalho da investigação? Qual a autoridade do ensino dos Espíritos, se eles não são infalíveis nem superiores à humanidade? Qual a utilidade da moral que pregam, visto que essa moral não é diferente da moral cristã, já conhecida? Quais as verdades novas que eles nos trazem? O homem precisará de uma revelação? E não poderá achar em si mesmo e em sua consciência tudo quanto lhe é necessário para se conduzir na vida? Tais as questões que devemos considerar. 2. Definamos primeiro o sentido da palavra revelação. Revelar vem do latim revelāre, cuja raiz vēlum, véu, significa literalmente sair de sob o véu e, figuradamente, descobrir, dar a conhecer uma coisa secreta ou desconhecida. Em sua acepção vulgar mais genérica, diz-se de toda coisa ignorada que é divulgada, de qualquer ideia nova que nos põe ao corrente do que não sabíamos. Deste ponto de vista, todas as ciências que nos fazem conhecer os mistérios da natureza são revelações e se pode dizer que há para a humanidade uma revelação incessante. A Astronomia revelou o mundo astral, que não conhecíamos; a Geologia revelou a formação da Terra; a Química, a lei das afinidades; a Fisiologia, as funções do organismo etc. Copérnico,2 Galileu,3 Newton,4 Laplace,5 Lavoisier6 foram reveladores. 3. A característica essencial de qualquer revelação tem que ser a verdade. Revelar um segredo é tornar conhecido um fato; se é falso, já não é um fato e, por conseguinte, não existe revelação. Toda revelação desmentida pelos fatos deixa de o ser, caso seja atribuída a Deus. E, visto que não podemos conceber Deus mentindo, nem se enganando, ela não pode emanar dele; logo, deve ser considerada produto de concepção humana. 4. Qual o papel do professor diante dos seus discípulos, senão o de um revelador? O professor lhes ensina o que eles não sabem, o que não teriam tempo nem possibilidade de descobrir por si mesmos, porque a Ciência é obra coletiva dos séculos e de uma infinidade de homens que trazem, cada qual, o seu contingente de observações aproveitáveis àqueles que vêm depois. O ensino é, portanto, na realidade, a revelação de certas verdades, científicas ou morais, físicas ou metafísicas, feitas por homens que as conhecem a outros que as ignoram e que, se assim não fosse, as teriam ignorado sempre. 5. Mas o professor não ensina senão o que aprendeu: é um revelador de segunda ordem; o homem de gênio ensina o que descobriu por si mesmo: é o revelador primitivo; traz a luz que pouco a pouco se vulgariza. Que seria da humanidade sem a revelação dos homens de gênio que aparecem de tempos em tempos? Mas quem são esses homens de gênio? E por que são homens de gênio? De onde vieram? Que é feito deles? Notemos que a maioria deles traz, ao nascer, faculdades transcendentes e alguns conhecimentos inatos, que com pouco trabalho desenvolvem. Pertencem realmente à humanidade, pois nascem, vivem e morrem como nós. Onde, pois, adquiriram esses conhecimentos que não puderam aprender durante a vida? Dir-se-á, como os materialistas, que o acaso lhes deu a matéria cerebral em maior quantidade e de melhor qualidade? Neste caso, não teriam mais mérito que um legume maior e mais saboroso do que outro. Dir-se-á, como certos espiritualistas, que Deus lhes deu uma alma mais favorecida que a do comum dos mortais? Suposição igualmente ilógica, pois que qualificaria Deus de parcial. A única solução racional do problema está na preexistência da alma e na pluralidade das existências. O homem de gênio é um Espírito que, tendo vivido mais tempo, adquiriu e progrediu mais do que aqueles que estão menos adiantados. Ao encarnar, traz o que sabe e, como sabe muito mais do que os outros e não precisa aprender, é chamado homem de gênio. Mas seu saber é fruto de um trabalho anterior e não resultado de um privilégio. Antes de renascer, já era Espírito adiantado; reencarna para fazer que outros aproveitem do seu saber ou para adquirir mais do que possui. Os homens progridem incontestavelmente por si mesmos e pelos esforços da sua inteligência. Mas, entregues às próprias forças, só muito lentamente progrediriam, se não fossem auxiliados por outros mais adiantados, como o estudante o é pelos professores. Todos os povos tiveram homens de gênio, que surgiram em diversas épocas para impulsioná-los e tirá-los da inércia. 6. Desde que se admite a solicitude de Deus para com as suas criaturas, por que não se há de admitir que Espíritos capazes — por sua energia e superioridade de conhecimento —, de fazer que a humanidade avance, encarnem pela vontade de Deus, a fim de ativarem o progresso em determinado sentido? Por que não admitir que eles recebam missões, como um embaixador as recebe do seu soberano? É este o papel dos grandes gênios. Que vêm eles fazer senão ensinar aos homens verdades que estes ignoram e ainda ignorariam durante largos períodos, a fim de lhes dar um ponto de apoio mediante o qual possam elevar-se mais rapidamente? Esses gênios, que aparecem através dos séculos como estrelas brilhantes, deixando longo traço luminoso sobre a humanidade, são missionários ou, se o quiserem, messias. As coisas novas que ensinam aos homens, quer na ordem física, quer na filosófica, são revelações. Se Deus suscita reveladores para as verdades científicas, pode, com mais forte razão, suscitá-los para as verdades morais, que constituem elementos essenciais do progresso. Tais são os filósofos cujas ideias atravessam os séculos. 7. No sentido especial da fé religiosa, a revelação se diz mais particularmente das coisas espirituais que o homem não pode descobrir por si mesmo, nem com o auxílio dos sentidos; e esse conhecimento lhe é dado por Deus ou por seus mensageiros, quer por meio da palavra direta, quer pela inspiração. Neste caso, a revelação é sempre feita a homens predispostos, designados sob o nome de profetas ou messias, isto é, enviados ou missionários, incumbidos de transmiti-la aos homens. Considerada sob esse ponto de vista, a revelação implica a passividade absoluta e é aceita sem controle, sem exame, nem discussão. 8. Todas as religiões tiveram seus reveladores, e estes, embora estivessem longe de conhecer toda a verdade, tinham uma razão de ser providencial, porque eram apropriados ao tempo e ao meio em que viviam, ao caráter particular dos povos a quem falavam e aos quais eram relativamente superiores. Apesar dos erros das suas doutrinas, não deixaram de agitar os espíritos e, por isso mesmo, de semear os germes do progresso, que mais tarde haviam de desabrochar, ou se desabrochariam um dia à luz brilhante do Cristianismo. É, pois, injusto lançar anátema contra eles em nome da ortodoxia, porque dia virá em que todas essas crenças, tão diversas na forma, mas que repousam realmente sobre um mesmo princípio fundamental: Deus e a imortalidade da alma, se fundirão numa grande e vasta unidade, tão logo a razão triunfe dos preconceitos. Infelizmente, as religiões têm sido, em todos os tempos, instrumentos de dominação; o papel de profeta sempre tentou as ambições secundárias e tem-se visto surgir uma multidão de pretensos reveladores ou messias, que, valendo-se do prestígio deste nome, exploram a credulidade em proveito do seu orgulho, da sua ganância ou da sua indolência, achando mais cômodo viver à custa dos iludidos. A religião cristã não pôde evitar esses parasitas. A tal propósito, chamamos toda a atenção para o capítulo XXI de O evangelho segundo o espiritismo – Haverá falsos cristos e falsos profetas. 9. Haverá revelações diretas de Deus aos homens? É uma questão que não ousaríamos resolver, nem afirmativamente nem negativamente, de maneira absoluta. O fato não é radicalmente impossível, porém, nada nos dá dele prova certa. O que parece certo é que os Espíritos mais próximos de Deus pela perfeição se impregnam do seu pensamento e podem transmiti- -lo. Quanto aos reveladores encarnados, segundo a ordem hierárquica a que pertencem e ao grau de saber a que chegaram, esses podem tirar de seus próprios conhecimentos as instruções que ministram, ou recebê-las de Espíritos mais elevados, mesmo dos mensageiros diretos de Deus, os quais, falando em nome deste, têm sido às vezes tomados pelo próprio Deus. As comunicações deste gênero nada têm de estranho para quem conhece os fenômenos espíritas e a maneira pela qual se estabelecem as relações entre os encarnados e os desencarnados. As instruções podem ser transmitidas por diversos meios: pela inspiração pura e simples, pela audição da palavra, pela vidência dos Espíritos instrutores, nas visões e aparições, quer em sonho, quer em estado de vigília, como se vê tantas vezes na Bíblia e nos livros sagrados de todos os povos. É, pois, rigorosamente exato dizer-se que a maioria dos reveladores são médiuns inspirados, audientes ou videntes, o que não significa que todos os médiuns sejam reveladores, nem, ainda menos, intermediários diretos da Divindade ou dos seus mensageiros. 10. Só os Espíritos puros recebem a palavra de Deus com a missão de transmiti-la; mas sabe-se hoje que nem todos os Espíritos são perfeitos e que existem muitos que se apresentam sob falsas aparências, o que levou João a dizer: “Não acrediteis em todos os Espíritos; vede antes se os Espíritos são de Deus.” (1a Epístola, 4:1.) Pode, pois, haver revelações sérias e verdadeiras, como há revelações apócrifas e mentirosas. O caráter essencial da revelação divina é o da eterna verdade. Toda revelação eivada de erros ou sujeita a modificações não pode emanar de Deus. É assim que a lei do Decálogo tem todos os caracteres de sua origem, enquanto as outras leis mosaicas, essencialmente transitórias, muitas vezes em contradição com a lei do Sinai, são obra pessoal e política do legislador hebreu. Com o abrandamento dos costumes do povo, essas leis por si mesmas caíram em desuso, ao passo que o Decálogo ficou sempre de pé, como farol da humanidade. O Cristo fez dele a base do seu edifício, abolindo as outras leis. Se estas fossem obra de Deus, seriam conservadas intactas. O Cristo e Moisés foram os dois grandes reveladores que mudaram a face do mundo e nisso está a prova da sua missão divina. Uma obra puramente humana não teria tal poder. Importante revelação se opera na época atual: a que nos mostra a possibilidade de nos comunicarmos com os seres do mundo espiritual. Não é novo, sem dúvida, esse conhecimento; mas ficara até agora, de certo modo, como letra morta, isto é, sem proveito para a humanidade. A ignorância das leis que regem essas relações estava abafada sob a superstição; o homem era incapaz explicados pelas leis conhecidas, o Espiritismo os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os preside; depois, lhes deduz as consequências e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não estabeleceu como hipótese a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da Doutrina. Concluiu pela existência dos Espíritos quando essa existência ressaltou evidente da observação dos fatos, procedendo de igual maneira quanto aos outros princípios. Não foram os fatos que vieram depois confirmar a teoria: a teoria é que veio subsequentemente explicar e resumir os fatos. É, pois, rigorosamente exato dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação. As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, quando também se aplica às coisas metafísicas. 15. Citemos um exemplo: Passa-se no mundo dos Espíritos um fato muito singular, de que seguramente ninguém havia suspeitado: o de haver Espíritos que não se consideram mortos. Pois bem! os Espíritos superiores, que conhecem perfeitamente esse fato, não vieram dizer previamente: “Há Espíritos que julgam viver ainda a vida terrestre, que conservaram seus gostos, costumes e instintos.” Em vez disso, provocaram a manifestação de Espíritos desta categoria para que os observássemos. Tendo-se visto Espíritos incertos quanto ao seu estado, ou afirmando ainda serem deste mundo, julgando-se aplicados às suas ocupações habituais, deduziu-se a regra. A multiplicidade de fatos análogos provou que o fato não era excepcional, mas uma das fases da vida do Espírito; pode-se então estudar todas as variedades e as causas de tão singular ilusão, reconhecer que tal situação é sobretudo própria de Espíritos pouco adiantados moralmente e peculiar a certos gêneros de morte; que é temporária, podendo, todavia, durar dias, meses e anos. Foi assim que a teoria nasceu da observação. Deu-se a mesma coisa com relação a todos os outros princípios da Doutrina Espírita. 16. Assim como a Ciência propriamente dita tem por objeto o estudo das leis do princípio material, o objeto especial do Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual. Ora, como este último princípio é uma das forças da natureza, a reagir incessantemente sobre o princípio material e reciprocamente, segue-se que o conhecimento de um de tirar daí qualquer dedução salutar. Estava reservado à nossa época desembaraçá-las dos acessórios ridículos, compreender-lhes o alcance e fazer surgir delas a luz destinada a clarear o caminho do futuro. 12. O Espiritismo, dando-nos a conhecer o mundo invisível que nos cerca e no meio do qual vivíamos sem o suspeitarmos, assim como as leis que o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam e, por conseguinte, o destino do homem após a morte, é uma verdadeira revelação, na acepção científica da palavra. 13. Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da primeira porque foi providencial o seu aparecimento e não o resultado da iniciativa, nem de um desejo premeditado do homem; porque os pontos fundamentais da Doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens sobre coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer, já que hoje estão aptos a compreendê-las. Participa da segunda por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa; por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a Doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as consequências e aplicações. Em suma, o que caracteriza a revelação espírita é o fato de ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem. 14. Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma maneira que as ciências positivas, isto é, aplicando o método experimental. Quando fatos novos se apresentam, que não podem ser xplicados pelas leis conhecidas, o Espiritismo os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os preside; depois, lhes deduz as consequências e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não estabeleceu como hipótese a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da Doutrina. Concluiu pela existência dos Espíritos quando essa existência ressaltou evidente da observação dos fatos, procedendo de igual maneira quanto aos outros princípios. Não foram os fatos que vieram depois confirmar a teoria: a teoria é que veio subsequentemente explicar e resumir os fatos. É, pois, rigorosamente exato dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação. As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, quando também se aplica às coisas metafísicas. 15. Citemos um exemplo: Passa-se no mundo dos Espíritos um fato muito singular, de que seguramente ninguém havia suspeitado: o de haver Espíritos que não se consideram mortos. Pois bem! os Espíritos superiores, que conhecem perfeitamente esse fato, não vieram dizer previamente: “Há Espíritos que julgam viver ainda a vida terrestre, que conservaram seus gostos, costumes e instintos.” Em vez disso, provocaram a manifestação de Espíritos desta categoria para que os observássemos. Tendo-se visto Espíritos incertos quanto ao seu estado, ou afirmando ainda serem deste mundo, julgando-se aplicados às suas ocupações habituais, deduziu-se a regra. A multiplicidade de fatos análogos provou que o fato não era excepcional, mas uma das fases da vida do Espírito; pode-se então estudar todas as variedades e as causas de tão singular ilusão, reconhecer que tal situação é sobretudo própria de Espíritos pouco adiantados moralmente e peculiar a certos gêneros de morte; que é temporária, podendo, todavia, durar dias, meses e anos. Foi assim que a teoria nasceu da observação. Deu-se a mesma coisa com relação a todos os outros princípios da Doutrina Espírita. 16. Assim como a Ciência propriamente dita tem por objeto o estudo das leis do princípio material, o objeto especial do Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual. Ora, como este último princípio é uma das forças da natureza, a reagir incessantemente sobre o princípio material e reciprocamente, segue-se que o conhecimento de um não pode estar completo sem o conhecimento do outro. O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente; a Ciência sem o Espiritismo se acha na impossibilidade de explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria; ao Espiritismo, sem a Ciência, faltariam apoio e comprovação. O estudo das leis da matéria tinha que preceder o da espiritualidade, porque a matéria é que primeiro fere os sentidos. Se o Espiritismo tivesse vindo antes das descobertas científicas, teria malogrado, como tudo quanto surge antes do tempo. 17. Todas as ciências se encadeiam e se sucedem numa ordem racional; nascem umas das outras à medida que encontram um ponto de apoio nas ideias e conhecimentos anteriores. A Astronomia, uma das primeiras cultivadas, conservou os erros da infância até o momento em que a Física veio revelar a lei das forças dos agentes naturais; a Química, nada podendo sem a Física, teve de acompanhá-la de perto para depois marcharem ambas de acordo, amparando-se uma à outra. A Anatomia, a Fisiologia, a Zoologia, a Botânica, a Mineralogia só se tornaram ciências sérias com o auxílio das luzes que lhes trouxeram a Física e a Química. À Geologia, nascida ontem, sem a Astronomia, a Física, a Química e todas as outras ciências, teriam faltado elementos de vitalidade; ela só podia vir depois daquelas. 18. A ciência moderna refutou os quatro elementos primitivos7 dos antigos e, de observação em observação, chegou à concepção de um só elemento gerador de todas as transformações da matéria; mas a matéria, por si só, é inerte, não tem vida nem pensamento; é preciso a sua união com o princípio espiritual. O Espiritismo não descobriu nem inventou este princípio, mas foi o primeiro a demonstrá-lo, por meio de provas irrecusáveis; estudou-o, analisou-o e tornou-lhe evidente a ação. Ao elemento material, juntou ele o elemento espiritual. Elemento material e elemento espiritual, eis os dois princípios, as duas forças vivas da natureza. Pela união indissolúvel deles, facilmente se explica uma imensidão de fatos até então inexplicáveis.8 Tendo por objeto o estudo de um dos elementos constitutivos do universo, o Espiritismo toca forçosamente na maior parte das ciências; só podia, portanto, vir depois da elaboração delas; nasceu pela força das coisas, pela impossibilidade de o homem explicar todas as coisas apenas com o auxílio das leis da matéria. 19. Acusam o Espiritismo de parentesco com a magia e a feitiçaria, esquecendo, porém, que a Astronomia tem por irmã mais velha a Astrologia judiciária, ainda não muito distante de nós; que a Química é filha da Alquimia, com a qual nenhum homem sensato ousaria ocupar-se hoje. Ninguém nega, entretanto, que na Astrologia e na Alquimia estivesse o germe das verdades de que saíram as ciências atuais. Apesar das suas fórmulas ridículas, a Alquimia encaminhou a descoberta dos corpos simples e da lei das afinidades. A Astrologia se apoiava na posição e no movimento dos astros que ela estudara; mas, ignorando as verdadeiras leis que regem o mecanismo do universo, os astros eram, para o vulgo, seres misteriosos aos quais a superstição atribuía uma influência moral e um senso revelador. Quando Galileu, Newton e Kepler9 tornaram conhecidas essas leis, quando o telescópio rasgou o véu e mergulhou nas profundezas do espaço um olhar que algumas criaturas acharam indiscreto, os planetas apareceram como simples mundos semelhantes ao nosso, e todo o castelo do maravilhoso desmoronou. O mesmo se dá com o Espiritismo, relativamente à magia e à feitiçaria, que se apoiavam também na manifestação dos Espíritos, como a Astrologia no movimento dos astros; mas, na ignorância das leis que regem o mundo espiritual, elas misturavam, a essas relações, práticas e crenças ridículas, as quais o moderno Espiritismo, fruto da experiência e da observação, nada tem a ver. Certamente, a distância que separa o Espiritismo da magia e da feitiçaria é maior do que a que existe entre a Astronomia e a Astrologia, a Química e a Alquimia. Querer confundi-las é dar provas de que nada se sabe a respeito delas. 20. O simples fato de o homem poder comunicar-se com os seres do mundo espiritual, traz consequências incalculáveis da mais alta gravidade; é todo um mundo novo que se nos revela e que tem tanto mais importância, quanto a ele hão de voltar todos os homens, sem exceção. O conhecimento de tal fato não pode deixar de acarretar, generalizando-se, profunda modificação nos costumes, caráter, hábitos, assim como nas crenças que tão grande influência exerceram sobre as relações sociais. É uma revolução completa a operar-se nas ideias, revolução tanto maior e mais poderosa por não se circunscrever a um povo, nem a uma casta, visto atingir simultaneamente, pelo coração, todas as classes, todas as nacionalidades, todos os cultos. Razão há, pois, para que o Espiritismo seja considerado a terceira das grandes revelações. Vejamos em que essas revelações diferem e qual o laço que as liga entre si. 21. Moisés, como profeta, revelou aos homens a existência de um Deus único, soberano Senhor e Criador de todas as coisas; promulgou a lei do Sinai e lançou as bases da verdadeira fé. Como homem, foi o legislador do povo pelo qual essa primitiva fé, depurando-se, havia de espalhar-se por sobre a Terra. 22. O Cristo, tomando da antiga lei o que é eterno e divino, e rejeitando o que era transitório, puramente disciplinar e de concepção humana, acrescentou a revelação da vida futura, de que Moisés não falara, assim como a revelação das penas e recompensas que aguardam o homem depois da morte. (Veja-se a Revista espírita de março e de setembro de 1861.) 23. A parte mais importante da revelação do Cristo, no sentido de fonte primeira, de pedra angular de toda a sua doutrina é o ponto de vista inteiramente novo sob o qual Ele considera a Divindade. Esta já não é o Deus terrível, ciumento, vingativo, de Moisés; o Deus cruel e implacável que rega a terra com o sangue humano, que ordena o massacre e o extermínio dos povos, sem excetuar as mulheres, as crianças e os velhos, e que castiga aqueles que poupam as vítimas; já não é o Deus injusto, que pune um povo inteiro pela falta do seu chefe, que se vinga do culpado na pessoa do inocente, que fere os filhos pelas faltas dos pais; mas um Deus clemente, soberanamente justo e bom, cheio de mansidão e misericórdia, que perdoa ao pecador arrependido e dá a cada um segundo as suas obras. Já não é o Deus de um único povo privilegiado, o Deus dos exércitos, presidindo aos combates para sustentar a sua própria causa contra o deus dos outros povos, mas o pai comum do gênero humano, que estende a sua proteção por sobre todos os seus filhos e os chama todos a si; já não é o Deus que recompensa e pune só pelos bens da Terra, que faz consistir a glória e a felicidade na escravidão dos povos rivais e na multiplicidade da progenitura, mas sim um Deus que diz aos homens: “A vossa verdadeira pátria não é neste mundo, mas no reino celestial, lá onde os humildes de coração serão elevados e os orgulhosos serão humilhados. www.fetnet.org.br. Abraço. Davi.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

O CÉU É A MENTE


Budismo. Livro Meditação de Bakar Rinpoche. O CÉU É A MENTE. Muitas pessoas desejam meditar. Elas compreendem muito bem que a meditação concerne à mente, mas de um modo geral não sabem o que ela é com precisão. É um pouco como o céu. Todo mundo sabe o que ele é; ninguém jamais dirá: "O céu? não conheço." Todavia, a ideia que temos do céu é muito imprecisa e é raríssimo encontrar alguém capaz de defini-lo. Se perguntarem "O que e o céu?" a pessoa interrogada mal poderá apontar o dedo para o alto e dizer: "É aquilo o céu". O mesmo acontece com a meditação: sabe-se que ela existe, pensa-se na maioria das vezes que é uma boa coisa, mas não se sabe realmente o que ela é. O que é o céu? Dir se á habitualmente que o sol está no centro do céu, a noção de centro implicando a de confins. Um francês estará inclinado a conceber esse centro e esses confins em relação com a França, porém, um habitante de um outro país aplicará essa mesma relação a seu pais. Isso basta para mostrar que as noções de centro e confins do céu são subjetivas e não correspondem a uma descrição da realidade. As pessoas que tem a imensa felicidade de habitar a Provença (região situada no sudeste da França, estendendo-se desde a margem esquerda do rio Rôdano até a margem direita do rio Var limitando-se com o antigo condado de Nice, banhada pelo Mediterrâneo) dizem bem amiúde: "Como o céu é belo em nossa região!". Assim, é possível delimitar um pedaço de céu do qual se poderia dizer, de maneira exclusiva: "Essa parte do céu é o céu da Provença". Todo mundo sabe ainda que o céu é azul. Mas bem poucas pessoas sabem a razão dessa cor. De onde ela vem. É ela material? Imaterial? Qual é também a dimensão do céu? A meditação concerne à mente. A mente é muito semelhante ao céu: sem forma, sem substância, sem dimensão. Tal como o céu, todos sabem que ela existe, mas raríssimos são aqueles que sabem o que ela é verdadeiramente. Tal como o céu, a mente é desprovida de centro e de limites. Não temos, contudo, a experiência desse estado ilimitado; reduzimos, ao contrário, o infinito ao finito e permanecemos encerrados nos limites estreitos do que chamamos "eu". Esse estreitamento corresponde a limitação subjetiva implicada na noção de "nosso céu" quando um provençal, por exemplo, fala do céu do sul da França, como se existisse um pedaço de céu que se pudesse recortar e definir como se reportando especificamente a uma região. Na mente infinita, sem centro nem limites, nós nos assimilamos a uma entidade reduzidíssima: o ego. Daí surgem todos os nossos sofrimentos e todas as nossas dificuldades, tanto físicas como mentais. É verdade que certos sofrimentos estão em relação com as circunstâncias exteriores e que é mais ou menos possível proporcionar soluções materiais a eles. Perante os sofrimentos interiores, ao contrário, todo remédio material permanece inútil. Suponhamos um rei num pais em paz e próspero, a noite, em seu palácio bem guardado. Esse rei, que possui todas as circunstâncias exteriores da felicidade, dorme. Em seu sonho surge um inimigo que o persegue e procura matá-lo. O rei sofre de angústia e pavor. Os sofrimentos desse sonho não poderiam ser aliviados por nenhum remédio exterior à mente do sonhador. Podemos, do mesmo modo, possuir todas as condições materiais necessárias para ser felizes. No entanto, elas não tem utilidade para a mente que sofre. Só o caminho espiritual e a meditação permitem que libertemo-nos dos sofrimentos, das angústias e das dificuldades interiores. O EGO E OS CINCO VENENOS. Nossa mente é fundamentalmente infinita, não é limitada pelas opressões de uma existência individualizada. Não existe ego. Conquanto ele não exista, nós nos assimilamos a esse ego ilusório. Ele e o centro e a pedra de toque de todas as nossas relações: tudo o que reconforta sua existência, tudo o que lhe é favorável, torna-se objeto de apego; tudo o que, ao contrário, ameaça sua integridade torna-se um inimigo, fonte de aversão. Por sinal, a simples presença do ego oculta a verdadeira natureza de nossa mente e dos fenômenos, torna-nos incapazes de distinguir entre o real e o ilusório. Somos, nesse sentido, prisioneiros da opacidade mental. O ego também engendra a inveja em relação a toda pessoa considerada como um rival possível, em qualquer domínio que seja. Enfim, o ego deseja ser superior aos outros: é o orgulho. Apego, aversão, opacidade mental, inveja, orgulho, são os cinco venenos de base produzidos pela apreensão egocêntrica. Eles constituem um obstáculo irrevogável a paz interior, criando sem descontinuidade inquietudes, perturbações, dificuldades, angústias e sofrimentos. Não apenas para si mesmo, mas ainda para o próximo. É evidente, por exemplo, que a raiva é sofrimento para si mesmo e para aquele a quem ela se dirige, afligido por um rosto furioso, imprecações e palavras ofensivas. O ego e os cinco venenos levam-nos, além do mais, a realizar atos de caráter nocivo que imprimem em nossa mente um potencial cármico1 negativo, cuja maturação se exprimirá sob a forma de circunstâncias dolorosas. O ego e seu séquito são nossos verdadeiros inimigos, não inimigos visíveis que as armas ou algum objeto material poderiam vencer, mas inimigos invisíveis cuja derrota só a meditação e o caminho espiritual provocam. A ciência contemporânea criou armas de extremo poder, bombas capazes de matar de uma vez centenas de milhares de pessoas. Mas nenhuma bomba pode aniquilar o ego e os cinco venenos. Neste campo, a verdadeira bomba atômica é a meditação. (...). TOMAR UM OBJETO. (...). Com efeito, quando aprendemos a meditar, é amiúde (repetidas vezes, frequentemente) muito difícil repousar a mente em sua própria essência. Assim, tomamos suportes para conduzi-la à calma interior. Todo objeto exterior pode convir: um copo, uma mesa, uma luz, uma estátua do Buddha, qualquer objeto que nos agrade. Fixamos, então, toda a nossa atenção sobre o objeto, sem distração. É uma simples atenção que não implica nem análise nem comentário. Se, por exemplo, concentramo-nos sobre um copo como este (Bokar Rimpocbe mostra o copo pousado sobre a mesa diante dele quando do ensinamento), não examinamos sua forma, não discorremos sobre suas características, não avaliamos suas qualidades, assim como não nos perguntamos se ele contem água ou outra bebida. A mente simplesmente repousa sobre o copo, sem distração e sem discurso. Se, quando desse exercício, a aparência do copo é muito clara e precisa, é o sinal de que nossa mente está verdadeiramente concentrada. Se, ao contrário, o copo torna-se uma aparência vaga e imprecisa, é sinal de que nossa mente está arrebatada por outros pensamentos. Feito regularmente, esse tipo de exercício, qualquer que seja o objeto escolhido, trará grandes benefícios. Se você reside na cidade, você se encontra sem dúvida no meio de numerosos ruídos: os automóveis, as máquinas, etc., todas essas coisas das quais pensamos que elas nos impedem de meditar. Entretanto, se, em vez de considerar esses ruídos como obstáculos, você faz deles o próprio objeto de sua atenção, eles se tornam o suporte de sua meditação. Nesse caso, um ruído forte ou fraco, agradável ou desagradável, isso não faz nenhuma diferença. Ai, ainda, você pode verificar facilmente a qualidade de sua atenção: se os sons são percebidos sem interrupção e de maneira precisa, é o sinal que ela é boa. Uma percepção descontínua e vaga revelará, ao contrário, sua insuficiência. Podemos fazê-lo igualmente com os outros objetos dos sentidos: odores, sabores, contatos, de tal forma que, onde quer que estejamos, podemos aprender a meditar, sem que seja necessário abandonar tudo. Retirar-se para uma montanha não tem por objetivo senão isolar-nos dos objetos que provocam a distração. Se podemos meditar tomando por suporte esses mesmos objetos, é igualmente bom. MEDITAR SOBRE A MENTE. Esforçando-nos regularmente para concentrar-nos assim sobre objetos, nós nos preparamos para meditar sobre a mente. Vimos como nossa mente estava ocupada por um contínuo fluxo de pensamentos, apoiando-se principalmente sobre o passado e sobre o futuro. Um pouco de reflexão faz-nos, portanto, tomar consciência, em primeiro lugar, da inutilidade dos pensamentos concernentes ao passado. Fazemos ressurgir em nossa mente acontecimentos do passado, e sofremos por isso. Todavia, são apenas pensamentos, nada mais. Além disso, agitam o que não existe absolutamente mais: o passado passou, em definitivo. A partir do momento em que compreendemos a não existência presente desses acontecimentos, em que compreendemos a falta de sentido, de utilidade e de benefício desse tipo de pensamentos, desde logo eles cessam de nos prejudicar. Temos a mesma atitude em relação ao futuro: pensamos no que deveremos fazer num futuro próximo ou longínquo, o que engendra inquietudes e preocupações e, por consequência, sofrimento. Ai ainda, se refletimos bem sobre isso, compreendemos que o futuro, no momento, não existe em absoluto. Não há, portanto, nenhuma utilidade em criarmos dificuldades em relação com o que não tem existência. Meditar sobre a mente significa que não seguimos os pensamentos que nos levam para o futuro, que também não seguimos aqueles que nos puxam para o passado. Deixamos a mente no presente, tal como ela é, sem distração, sem procurar fazer nada. Assim, uma certa experiência nasce na mente. Permanecer nessa experiência o máximo de tempo que se puder, é isso meditar. Quando meditamos assim, permanecemos simplesmente nessa experiência, sem nada acrescentar a isso. Não nos dizemos: "Aqui está bem; aqui não está bem; pronto, aqui estou; não, não estou aqui; a mente é vazia; não, de fato ela não é vazia", etc. Permanecemos sem comentários. A experiência da meditação implica a paz e a felicidade, mas ela permanece fundamentalmente indescritível. É impossível dizer disso: "é isso" ou "não é isso". (...). A DISTRAÇÃO. Inúmeras pessoas creem que a meditação deve necessariamente ser um estado desprovido de todos os pensamentos. Ora, quando elas meditam, pensamentos aparecem e elas concluem disso que são incapazes de meditar, que a meditação é um exercício completamente fora de seu alcance. Esse a priori (através de dedução, a partir de dados ou fundamentos prévio) é um erro: meditar não é apagar todo pensamento. Como abordar o problema dos pensamentos? É preciso, antes de tudo, evitar dois erros: 1. O primeiro é não tomar consciência de que os pensamentos se produzem, nem segui-los mecanicamente. 2. O segundo é procurar detê-los. A atitude justa será, ao contrário, estar consciente da produção dos pensamentos, mas sem segui-los nem procurar pará-los, mas simplesmente não ocupar-se deles. Se não nos ocupamos dos pensamentos, os pensamentos não tem força. Enquanto não conhecemos a natureza de nossa mente, está produz pensamentos, que tanto podem ser positivos como negativos, dotados de uma grande força sobre nós mesmos, pois eles são apreendidos como reais. Sem esta apreensão, os pensamentos não tem nenhuma força. Quando deixamos a mente relaxada, vem de início um momento em que ela permanece sem pensamentos. Esse estado estável é como um mar sem ondas. Nessa estabilidade, surge em seguida um pensamento. Este é como uma onda que se forma na superfície do mar. Na medida em que deixamos este pensamento sem nos ocuparmos dele, sem o "deter", ele esvaece-se por si mesmo na mente de onde emanou. É como a onda que se desfaz de novo no mar de onde surgiu. 0 mar é a onda, se não refletimos sobre isso, podem aparecer como duas realidades separadas. De fato, elas são indiferenciadas em essência, pois a essência da onda é a água, bem como a essência do mar também o é. Não podemos dizer que ambos sejam entidades diferentes. Ondas sobem à superfície do mar, mas nada podem fazer além de fundir-se de novo no mar. No entanto, não podemos dizer que o mar estaria de início diminuído ou que estaria em seguida aumentado. Da mesma maneira, quando deixamos acontecer o movimento dos pensamentos sem nos ocuparmos deles, nossa mente não se encontra deteriorada quando os pensamentos se produzem, e ela não se encontra melhorada quando é desprovida de pensamentos. Enquanto não tivermos compreendido o que é a mente, somos um pouco como aquele que estando na praia pensasse que o mar deve absolutamente ser desprovido de ondas. Quando uma onda vem em sua direção, ele desejaria agarrá-la e jogá-la para um lado, depois, agarrar a seguinte e jogá-la do outro lado. E mesmo quando, independentemente de seus esforços, o mar se acalmasse por instantes, seria inevitável que ondas se formassem de novo ali. Aquele que esperasse estabelecer um mar definitivamente desprovido de ondas só poderia estar constantemente decepcionado. Querer, durante a meditação, eliminar os pensamentos, é colocar-se na mesma situação. Quando ondas surgem do mar, elas recaem no mar. Na realidade, o mar e as ondas não são diferentes. Se compreendemos isso, permanecemos sentados na praia, relaxados: não há então nem fadiga nem dificuldade. Do mesmo modo, quando observamos a essência de nossa própria mente, que existam pensamentos ou não, é sem importância; permanecemos simplesmente, relaxados. Nota: 1. A lei do carma, que significa literalmente lei de causalidade dos atos, diz que todo ato realizado na dualidade de um sujeito e de um objeto, quer seja esse ato físico, verbal ou mesmo mental, acarreta um efeito de volta para aquele que age. Esse efeito e de início completamente invisível e imperceptível, semelhante a uma marca ou uma semente que se inscreveria nas camadas mais sutis da consciência individualizada, aquém mesmo do inconsciente dos psicanalistas, na alayavijnana, isto é, o reservatório, ou melhor, o potencial de consciência. A partir desse estado latente começa um processo de maturação que se estende geralmente por várias vidas, até mesmo sobre centenas de vidas, ao fim do qual a semente cármica exprime-se determinando, sejam circunstâncias gerais de uma existência (sexo, nacionalidade, riqueza, possibilidades físicas, intelectuais e afetivas, etc), sejam condições passageiras (uma doença, um encontro, um sucesso, um fracasso, etc). O todo funciona, trata-se apenas de uma comparação, à maneira de um computador: os dados ali são extremamente numerosos, agindo uns sobre os outros, e a adição de novos dados modifica, mais ou menos, os resultados. Visto que agimos constantemente sob o império da dualidade, funcionamento deformado que só cessa com a liberação, é um fluxo permanente de novos elementos que nutre nosso potencial cármico, ao mesmo tempo que uma constante maturação elimina dele antigas impregnações. O conjunto do processo, longe de ser estático, é um movimento contínuo. Resta não esquecer que todos os fenômenos que regem nossa vida são a expressão de nosso carma e que isolar um elemento é um erro com frequência cometido. Pensar que, por exemplo, se caímos enfermos, é um resultado cármico e que é, portanto, inútil nos tratarmos é uma concepção completamente fragmentaria, esquecendo que nosso carma quer que tenhamos também médicos e hospitais a quem nos dirigirmos. A lei do carma é, de fato, uma visão muito ampla das leis físicas que regem nosso universo. Se semeamos trigo, não crescera arroz. O acaso não governa nesta matéria, assim como não interfere nas condições de existência dos indivíduos. Muito complexo esse processo, pois depende da interação de uma infinidade de elementos. A causalidade cármica, resume-se, portanto, a um princípio muito simples: quem cria o sofrimento imprime em seu próprio âmago um potencial de sofrimento, quem cria a felicidade imprime um potencial de felicidade. Extratos do livro Meditação de Bakar Rinpoche. Conselhos ao Principiante. Abraço. Davi.

domingo, 27 de outubro de 2019

A CRENÇA DA PESSOALIDADE DO DIABO.


Teosofia. A CRENÇA DA PESSOALIDADE DO DIABO. Palavras de Helena P. Blavatsky (1831-1899), no livro Ísis Sem Véu volume IV, páginas 135-140. "Parece impossível, e todavia esta é a triste realidade, que, entre todas as várias nações da Antiguidade, não houve uma só que acreditasse num diabo pessoal mais do que os cristãos liberais do século XIX. Nem os egípcios, que Porfírio chama de "a mais erudita nação do mundo", nem os gregos, seus fiéis imitadores, caíram em absurdo tão grande. Podemos acrescentar que nenhum deles, nem mesmo os judeus antigos, acreditou no inferno ou numa condenação eterna mais do que no diabo, embora nossas igrejas cristãs atribuem ao demônio tudo quanto se relacione com os gentios. Em todo lugar em que a palavra "inferno" ocorre nas traduções dos textos sagrados hebraicos, ela está distorcida. Os hebreus ignoravam essa ideia, mas os Evangelhos contêm exemplos frequentes de compreensões erradas. Assim, quando Jesus diz em Mateus 16:18 "( ... ) e as portas do hades não prevalecerão contra ela", o texto original apresenta "as portas da morte". Em nenhum lugar aparece a palavra "inferno", aplicada com o significado de condenação, seja temporária ou eterna, utilizada no Velho Testamento com o sentido que lhe deram os forjadores desse dogma."Tophet" ou o "Vale do Hinon" não tem esse significado. O termo grego "Gehenna" tem um sentido bastante diferente e equivalente, na opinião de escritores competentes, ao Tártaro homérico. O próprio Pedro nos dá prova desse fato. Em sua segunda Epístola 2:4 o apóstolo no texto original, diz, sobre os anjos pecadores, que Deus "os lançou ao Tártaro". Essa expressão, que lembra muito inconveniente a guerra entre Júpiter e os Titãs, foi alterada e agora, na versão bíblica  King James, apresenta "os lançou no inferno". No Velho Testamento as expressões "portas da morte" e "câmaras da morte" aludem simplesmente às "portas do túmulo", mencionadas especificamente nos Salmos e nos Provérbios. O inferno e seu soberano são ambos invenções do Cristianismo, contemporâneo do seu poder e do recurso à tirania. São alucinações nascidas dos pesadelos dos Antônios do deserto. Antes da nossa era, os sábios antigos conheciam o "Pai do Mal" e não o tratavam senão como asno, o símbolo escolhido de Typhon, "o diabo". Triste degeneração de cérebros humanos! Assim como Typhon era a sombra escura de seu irmão Osíris, Python é o lado mau de Apolo, o brilhante deus das visões, o vidente e adivinho. É morto por Python, mas mata-o por sua vez, redimindo a humanidade do pecado. Foi em memória dessa façanha que as sacerdotisas do deus Sol se vestiam com peles de serpente, típicas do fabuloso monstro. Sob sua poderosa influência, a pele da serpente era considerada magnética, as sacerdotisas caíam em transe magnéticos e "recebiam de Apolo as suas vozes", tornavam-se proféticas e proferiam oráculos. Além disso, Apolo e Python são apenas um, e moralmente andróginos (aquele que possui concomitantemente os dois sexos masculino e feminino). As ideias do deus Sol são todas duais, sem exceção. O calor benéfico do Sol traz o germe à existência, mas o calor excessivo mata a planta. Quando toca a lira planetária de sete cordas, Apolo produz a harmonia, mas, como outros deuses sóis, sob seu aspecto sombrio ele se torna o destruidor Python. Sabe-se que São Jão viajou pela Ásia, uma região governada pelos magos e imbuída de ideias zoroastrianas e, naqueles dias, repleta de missionários budistas. Se ele não tivesse visitado esses lugares e entrado em contato com os budistas, seria duvidoso acreditar que o Apocalipse pudesse ter sido escrito. Além das suas ideias do dragão, dá narrativas proféticas inteiramente desconhecidas dos outros apóstolos e que, relativas ao segundo advento, fazem de Cristo uma cópia fiel de Vshnu. Assim, Ophios e Ophiomorphos, Apolo e Python, Osíris e Typhon e Christos e a serpente são termos equivalentes. Todos eles são Logos e um é ininteligível sem o outro, como não se poderia saber o que é dia, se não se conhecesse a noite. Todos são regerneradores e salvadores, um num sentido espiritual, o outro num sentido físico. Um assegura a imortalidade para o Espírito Divino, o outro a concede através da regeneração da semente. O Salvador da Humanidad tem de morrer, porque ele oculta à Humanidade o grande segredo do ego imortal, a serpente do Gênesis é amaldiçoada porque disse à matéria "não morrerás". No mundo do Paganismo, a contrapartida da "serpente" é o segundo Hermes, a reencarnação de Hermes Trimegisto. Hermes é o companheiro constante e o instrutor de Osíris e Ísis. É a sabedoria personificada, como Caim, o filho do "senhor". Ambos construíram cidades, civilizaram e instruíram a Humanidade nas artes. Já foi repetidamente afirmado pelos missionários cristãos do Ceilão (atual Sri Lanka) e da Índia que as pessoas estão saturadas de idolatria, que são adoradoras do diabo, no sentido amplo da palavra. Sem qualquer, exagero, dizemos que elas não o são mais do que as massas de cristãos incultos. Mas eram adoradores do (o que é mais do que crentes no) diabo, embora haja uma grande diferença entre os ensinamentos do seu clero sobre o tema de um diabo pessoal. E os dogmas dos pregadores cristãos, e de muitos ministros protestante, também. Os sacerdotes cristãos estão presos, e se limitam a impô-la às mentes de seu rebanho, à existência do diabo, e as páginas inaugurais desse capítulo mostram a ração desse procedimento. Mas os Upassampanna cingaleses, que pertencem a um sacerdócio superior, não só não confessam acreditar num demônio pessoal, como também os Sâmanera, candidatos e noviços, ririam dessa ideia. Tudo na adoração externa dos budistas é alegórico e, por conseguinte, não é aceito, nem ensinado pelos punghis (pânditas) cultos. Tem um certo fundamento a acusação de que eles permitem e concordam permitem tacitamente em deixar o povo imerso nas mais degradantes supertições, mas negamos veementemente que eles reforcem essas superstições. E, nesse particular, eles parecem levar vantagem em relação ao nosso clero cristão, que (pelo menos aqueles que não permitem que seu fanatismo interfira em seus cérebros), sem acreditar numa só palavra disso, ainda prega a existência do diabo, como inimigo pessoal de um Deus pessoal e o gênio mau da Humanidade. O dragão de São Jorge, que figura com tanta evidência nas maiores catedrais dos cristãos, não excede em beleza o rei das serpentes, o Nammadâ Nârada budista, o grande dragão. Se a superstição popular dos cingales acredita que o demônio zodiacal Râhu destrói a lua devorando-a e se o povo da China e da Tartária sai às ruas batendo bombos, pratos e discos, com que fazem estrépito para afugentar o monstro durante os eclipses, por que o clero da França Meridional, ocasionalmente, no aparecimento de cometas, na ocorrência de eclipses ou outros fenômenos celestiais? Em 1456, quando o cometa de Halley fez sua aparição, "tão tremenda foi sua aparição", escreve Draper, "que o próprio Papa teve de interferir. ele o exorcizou e o afugentou dos céus. Foi lançado nos abismos do espaço, aterrorizado pelas maldições de Calixto III (1378-1458) e não se atreveu a voltar antes de setenta e cinco anos. Nunca ouvimos falar que um clérigo cristão ou o Papa houvessem tentado convencer as mentes ignorantes de que a crença no diabo tivesse algo a ver com eclipse e cometas, mas vemos um prelado budista dizendo a um oficial que lhe atirava na cara essa superstição: "Nossos livros religiosos cingaleses ensinam que os eclipses do sol e da lua denotam um ataque de Râhu, não de um diabo. A origem do mito do "dragão", que ocupa um lugar importante no Apocalipse e na lenda dourada, e da fábula sobre Simão Estilita convertendo o dragão e inegavelmente budista e até mesmo pré budista. Foram as doutrinas puras de Sidarta Gautama, Buda  (563 AC 483) que atraíram para o budismo os cachemirianos (Caxemira - um sub continente disputado pela Índia e o Paquistão desde o fim da colonização britânica) cuja adoração primitiva era a ofita, ou a adoração da serpente. O olíbano e as flores substituíam os sacrifícios humanos e a crença em demônios pessoais. O Cristianismo herdou a degradante superstição de diabos investidos de poderes pestilentos e assassinos. O Mahavansa, o mais antigo dos livros cingaleses, relata a história do rei Covercapal (cibra de capelo), o deus serpente, que foi convertido para o budismo por um santo Rahat.e desta lenda derivou seguramente a de Simão Eslita e seu dragão, que faz parte da Lenda dourada. O Logos triunfa uma vez mais sobre o grande  dragão, Miguel o arcanjo luminoso, chefe dos Aeóns, vence Satã. É digno de menção o fato de que, enquanto o iniciado mantiver em segredo "o que sabe", ele estará perfeitamente seguro. Isso acontecia nos tempos antigos e acontece agora. tão logo o Deus dos cristãos, emanando do Silêncio, se manifestava como a Palavra ou Logos, este último se tornava a causa de sua morte. A serpente é o símbolo da sabedoria e da eloquência, mas é também o símbolo da destruição. "Ousar, conhecer, querer e calar" são os axiomas cardeais dos cabalistas. Como Apolo e outros deuses, Jesus é morto por seu Logos, ele se ergue novamente, mata-o por sua vez e se torna seu senhor. Será que esse velho símbolo tem, como as outras concepções filosóficas antigas, mais de um sentido alegórico e insuspeitado? As coincidências são estranhas demais para resultarem do mero acaso. E agora que mostramos essa identidade entre Miguel e Satã e os salvadores e dragões de outros povos, o que pode ser mais claro do que todas essas fábulas filosóficas originadas na Índia, que viveiro universal do misticismo metafísico? "O mundo", diz Rmatsariar em seus comentários sobre os Vedas, "começou com uma luta entre o Espírito de Deus e o Espírito do Mal, e em luta há de acabar. Após a destruição da matéria, o mal não mais existirá, deverá voltar ao nada". Na sua Apologia, Tertuliano (160-220) falsifica evidentemente toda doutrina e toda crença dos pagãos relativas aos oráculos e aos deuses. Chama-os, indiferentemente de domônios e de diabos, acusando estes últimos de possuírem até mesmo as aves do ar! Que cristão ousaria duvidar de tal autoridade? Não afirmou o salmista que "Todos os deuses das nações são ídolos" e não explicou o anjo das Escolas, Tomás de Aquino (1225-1274), com sua autoridade cabalística, a palavra ídolos por diabos? "Eles vêm até os homens", diz ele, "e os incitam a adorá-los, valendo-se de certas obras que parecem milagrosas". Os padres foram tão prudentes, quanto sábios em suas invenções. Para ser imparciais, após terem criado um diabo, começaram a criar santos apócrifos. Nomeamos vários eles em capítulos precedentes, mas não devemos nos esquecer de Caesar Baronius (1538-1607), que, ao ler uma obra de João Crisóstomo (347-407) sobre o santo Xynoris, palavra que significa par, casal, tomou-a pelo nome de um santo e criou com ela um mártir da Antioquia e chegou a dar uma biografia detalhada e autêntica do "mártir ferido". Outros teólogos fizeram de Apollyon, ou antes Apolouôn, o Anticristo. Apolouôn é o "banhador" de Platão (428 AC 348), o deus que purifica, que lava e nos livra do pecado, porém que foi transformado naquele "cujo nome na língua hebraica é Abadon, mas na língua grega tem o nomo de Apollyon, diabo! Apocalipse 9: 11. Max Muller (1849-1874) diz que a serpente do paraíso é uma concepção que deve ter brotada entre os judeus e "dificilmente parece convidar a uma comparação com as concepções mais grandiosas do poder terrível de Vritra e de Ahriman no Veda e no Avesta". Para os cabalistas, o diabo foi sempre um mito, o aspecto invertido de Deus ou do bem. O mago moderno Eliphas Lévi (1810-1875), chama o diabo de "l ivresse astrale" (uma palavra francesa que traduzido em português significa a intoxicação astral). É uma força cega como a eletricidade, diz ele; e, falando alegoricamente, como sempre fez. Jesus observou que ele "considerava Satã com se fosse um raio caído do céu". O clero insiste que Deus enviou o diabo para tentar a humanidade, o que seria antes uma maneira singular de mostrar seu amor infinito para com o gênero humano! Se o Supremo foi realmente culpado dessa traição incompatível com sua augusta paternidade, ele é digno, certamente, de adoração por parte de uma Igreja que canta o Te Deum depois do massacre de São Bartolomeu (morte de aproximadamente 25.000 protestantes por católicos franceses em Paris nos dias 23 e 24 de agosto de 1574) e de abençoar as espadas maometanas feitas para exterminar os cristãos gregos! Isto soa ao mesmo tempo lógico e legal, não diz uma máxima da jurisprudência que "Qui facit per alium, facit per se"? A grande dessemelhança que existe entre as várias concepções do diabo é verdadeiramente ridícula. Enquanto os beatos o enfeitam invariavelmente com chifres e rabos e o concebem numa figura repulsiva que inclui um cheiro humano pestilento, John Milton (1608-1674), Lord Byron (1788-1824), Johann Goethe (1749-1832). Mikhail Lermontov (1814-1841) e um exército de romancistas franceses ergueram seu louvor em poesia graciosa e em prosa emocionante. O Satã de Milton e até mesmo o Mefistóles (personagem do romance Fausto) de Goethe possuem um relevo mais vigoroso do que alguns dos anjos representados na prosa de beatos estáticos. Comparemos duas descrições. Premiemos em primeiro lugar o incomparavelmente sensacional des Mousseaux. Ele nos dá uma narrativa emocionante de um íncubo, nas palavras da própria penitente: "Certa vez, ela conta, "durante  todo o espaço de meia hora, ela viu claramente perto dela um indivíduo com um corpo preto, espantoso, horrível, cujas mãos, de um tamanho enorme, exibiam dedos agatanhados estranhamente encurvados. Os sentidos da visão, do tato e do olfato foram corroborados pelo da audição"! E, pelo espaço de muitos anos, a donzela foi arrastada por tal herói! Quão distante desse galante odorífero está a majestosa figura do Satã miltoniano! Que o leitor então imagine, se puder, essa quimera soberba, esse ideal do anjo rebelde tornado o Orgulho encarnado, e encerrado na pele do mais repulsivo dos animais? Muito embora o catecismo cristão nos ensine que Satã in própria persona tentou nossa primeira mãe, Eva, num paraíso real, e na forma de uma serpente, que de todos os animais era o mais insinuante e o mais fascinante!. "Deus ordena a ela, (a serpente no jardim do Éden), arrastar-se eternamente sobre seu ventre, e comer a poeira do chão. "Uma sentença", observa Eliphas Levi (1810-1875), "que em nada se parece às tradicionais chamas do inferno". Não levaram em consideração os autores dessa alegoria que a serpente zoológica real, criada antes de Adão e Eva, arrastava-se sobre seu ventre e comia a poeira do chão, antes que existisse qualquer pecado original. Por outro lado, não foi Ophion, o Daimôn ou diabo, como Deus, chamado Dominus? A palavra Deus (deidade0 deriva da palavra sânscrita Deva, e diabo provém do persa daêva, palavra substancialmente semelhantes. Hércules, filho de Jove e de Alcmena, um dos deuses sóis mais elevados e também o Logos manifesto, e, não obstante. representado numa natureza dupla, como todos os outros. O Agathodimôn, o daêmon beneficente, o mesmo que encontramos posteriormente entre os ofitas com a denominação de Logos, ou sabedoria divina, era representado por uma serpente que se mantinha ereta sobre uma vara, nos mistérios das bacanais. A serpente com cabeça de falção está entre os emblemas egípcios mais antigos e representa a mente divina, diz Deane. Azâzel é Moloch e Samuel, diz Movers, e Aaron, o irmão do grande legislador Moisés, faz sacrifícios idênticos a Jeová e Azâzel. "E a Aarão deita sortes sobre os dois bodes, uma para o Senhor (Toth no original) e outra para o bode emissário (Azâzel). No Velho Testamento, Jeová exibe todos os atributos do velho saturno, apesar de suas metamorfoses de Aoni em Elói e em Deus dos deuses, Senhor dos senhores. Jesus é tentado na montanha pelo diabo, que lhe promete reino e glória se se prostrasse e o adorasse (Mateus 4: 8,9), Buda (563 AC 483) é tentado pelo demônio Wasawartti-Mâra, que lhe diz, no momento em que deixava o palácio de seu pai: "Fica, que possuíras as honras que estiverem ao teu alcance. Não vás, não vás". E com a recusa de Gautama em aceitar suas oferendas, rangeu seus dentes com raiva e prometeu vingar´se. Como Cristo, buda triunfa sobre o diabo. Nos mistérios báquicos, um cálice consagrado, chamado cálice de Agathodaimôn, passava de mão em mão entre os fiéis após o jantar. O rito ofita de mesma descrição foi evidentemente tomado desses mistérios. A comunhão, que consistia de pão e vinho, foi usada na adoração de quase todas as divindades importantes. Em relação com o sacramento semi mítrico adotado pelos marcosianos, uma outra seita gnóstica, totalmente cabalística e teúrgica, há uma estranha história oferecida por Epifânio como uma ilustração das artimanhas do diabo. Na celebração da sua Eucaristia, os  marcosianos traziam traziam três grandes vasos do cristal mais fino e mais claro para o meio da congregação e os enchiam de vinho branco. No transcorrer da cerimônia, à vista de todos, esse vinho era instantaneamente mudado para vermelho sangue, para púrpura e depois para azul celeste. "Então o Mago", diz Epifânio, "entrega um desses vasos para uma mulher da congregação e lhe pede que o abençoe. Feito isso, o mago despeja o seu conteúdo num vaso de maior capacidade, formulando o seguinte pedido: "Possa a graça de Deus, que está acima de tudo, é inconcebível e inexplicável, preencher o teu interior e aumentar o conhecimento daquele que está dentro de ti semeando o grão de mostarda em terreno fértil, Depois disso o licor do vaso maior aumenta e aumenta até chegar à borda. Em relação com muitas divindades pagâs que, após a morte, e antes de sua ressurreição, descem ao inferno, seria útil comparar as narrativas pré cristãs com as pós cristãs. Orfeu fez a sua viagem, e Cristo foi o último desses viajantes subterrâneos. No Credo dos Apóstolos, que está dividido em doze frases ou artigos, que foram inseridos cada um por um apóstolo em particular, segundo Santo Agostinho (354-430), a frase "Desceu ao inferno, no terceiro dia ressurgiu dos mortos" é atribuída a Tomé, talvez como uma expiação da sua incredulidade. Seja como for, diz-se que a frase é uma falsificação e não há evidencia "De que esse Credo tenha sido modelado pelos apóstolos, ou pelo menos que existisse como credo em sua época. Trata-se da adição mais importante que foi efetuada no Credo dos Apóstolos e data do ano 600. Esse artigo não era conhecido na época de Eusébio. O bispo J. Pearson diz que ele não fazia parte dos credos antigos ou das regras de fé. Irineu de Lyon (130-202), Orígenes de Alexandria (182-254) e Tertuliano (160-220) não parecem conhecê-lo. Não é mencionado em nenhum dos Concílios realizados antes do século VII. Theodoreto (393-457), Epifânio (310-403) e Sócrates (469-399) silenciam-se a seu respeito. Difere do credo de Santo Agostinho. Rufino afirma que, em sua época, ele não constava nem dos credos romanos nem dos orientais. Mas o problema se resolve quando lemos que séculos atrás Hermes falou da seguinte maneira a Prometeu, acorrentado no rochedo árido do Cáucaso. "Teu tormento não cessará até que Deus o substitua em tua aflição e desça ao lúgubre hades e às profundezas sombrias do tártaro. Esse deus era Hérculaes, o "Unigênito", e o salvador. E é ele que foi escolhido como modelo pelos padres engenhosos. Hércules, chamado Alexikakos porque converteu os malvados à virtude, Soter, ou Salvador, também chamado Neulos Eumélos, o Bom Pastor, astrochitón, o vestido de estrelas, e o senhor do fogo. "Ele não sujeitou as nações pela força, mas pela sabedoria divina e pela persuasão", diz Luciano. "Hércules disseminou cultura e uma religião suave e destruiu a doutrina da punição eterna expulsando Cérbero (demônio do poço - era um monstruoso cão de múltiplas cabeças e pescoço, que guardava a entrada do inferno - mundo inferior. O reino subterrâneo dos mortos, deixando as almas entrarem, mas jamais saírem e despedaçando os mortais que por lá se aventurassem). E, como vemos, foi também Hércules quem libertou Prometeu (o Adão dos pagãos), pondo um fim à tortuta infligida a ele por suas transgressões, descendo ao hades e ao tártaro. Como cristo, ele apareceu como um substituto para as aflições da humanidade, oferecendo-se em sacríficio numa pira funerária. "Sua imolação voluntária", diz Bart, "augurou o novo nascimento etêreo dos homens, ( ... ). Com a libertação de Prometeu, e a ereção de altares, vemos nele um mediador entre os credos antigos e os novos, ( ... ). Ele aboliu o sacrifício humano onde quer que fosse praticado. Desceu ao reino sombrio de Plutão, como uma sombra ( ... ) ascendeu como espírito a seu pai, Zeus, no Olimpo. A antiguidade estava tão marcada pela lenda de Hércules, que até mesmo os judeus monteístas daquela época, para não serem ultrapassados pelos seus contemporâneos, utilizaram-na na manufatura das fábulas originais. Hércules é acusado, em sua mito biografia, de uma tentativa de roubo do oráculo de Delfos. No Sepher Toledoth Yeshu, os rabinos acusam Jesus de roubar do seu santuário o Nome Inefável! Portanto, nada há de estranho em suas numerosas aventuras, mundanas e religiosas, tão fielmente espelhadas na Descida do Inferno. Por uma extraordinária ousadia de embuste e um plágio despudorado, o Evangelho de Nicodemo, só agora proclamado apócrifo, ultrapassa tudo que já lemos. Que o leitor julgue. No começo do capítulo XVI, Satã e o "Príncipe do Inferno" são apresentados conversando, amigavelmente. De repente, ambos são colhidos por "uma voz como de trovão" e pelo assalto dos ventos, que lhes ordenam abrir as portas para que "O Rei da Glória possa entrar". Logo após o Príncipe do Inferno ter ouvido esta ordem, "começa a discutir com Satã por não ter sido prevenido para tomar as precauções necessárias contra essa visita". A discussão termina como o príncipe lançando Satã "para fora de seu inferno", ordenando ao mesmo tempo que seus oficiais impiedosos "cerrassem as portas brônzeas da crueldade e as aferrolhassem com barras de ferro e lutassem corajosamente para não sermos tomados como prisioneiro". Mas "quando toda a companhia de santos( no inferno?) ouviu isto, todos eles disseram com voz encolerizada ao príncipe do inferno "Abre as portas, deixa O Rei da Glória entrar", provando que o príncipe precisava de arautos. "E o profeta Davi gritou: "Acaso não profetizei em verdade quando estava na terra?" Após isso, outro profeta, chamado Isaías, falou da mesma: "Não profetizei eu em verdade?", etc. Então, a companhia dos santos e profetas, deposi de se jactar por um capítulo inteiro e de comparar as notas de suas profecias, iniciou um tumulto, o que fez o príncipe do inferno, observar que "os mortos nunca se comportaram tão insolentemente, fingindo ignorar sobre quem estava pedindo admissão". Paramos por aqui quanto a transcrição do livro Ísis Sem Véu. Lembrando aos leitores que devem fazer seus juízos particulares dentro de suas perspectivas religiosas e espirituais. Não tenho a pretensão de formar opiniões com meus argumentos e nem influenciar nenhum de vocês. Considero-os corajosos por lerem alguns artigos do Mosaico, como esse, que desmistifica alguns dogmas milenares impostos pela Igreja para em muitos casos oficializar e fundamentar doutrinas baseadas em superstições e crendices. Aos amigos de outros países, no Brasil temos enormes problemas com esse tema específico, pois vemos em Igrejas Cristãs Protestante, shows com a invocação de espírito dos mundos inferiores. Onde eles se manifestam e criam um ambiente de engano e subordinação de todos os participantes, desde os líderes (pastores) que supostamente praticam o exorcismo, até os simples do povo que vão em busca de curas, alívio para suas dores, bençãos materiais e felicidade eterna. Assim, podemos tristemente assistir esses espetáculos na TV, nos cultos presenciais, e, campanhas missionárias organizadas por Igrejas Neo Pentecostais que usam mais esse tipo de artifício para atrair multidões necessitadas de refrigério para seus sofrimentos. O que é dito no texto com outras palavras "o diabo toma o lugar de Deus" é verdadeiro quando observamos os rituais de expulsão de demônios nesses ambientes carregados de emocionalismos e sensacionalismos exacerbados. Outro aspecto da demonização é culpar o demônio por todas as coisas negativas que nos acontecem, e creditar a Deus os sucessos que obtivemos em nossas convivências sociais, profissionais e espirituais. Isso representa nossa covardia e pulsilanimidade, pois não querendo assumir nossas escolhas certas ou erradas e nossas decisões em igual valor, jogamos a culpa no demônio que não tem nada haver com nossa maneira desidiosa de expressar nosso comportamento estereotipado. Assim descumprimos as Escrituras quando dizem: "O reino de Deus não é comida e nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo". Essas coisa são sutil e precisamos da intuição vinda dO Inefável para abarcarmos seu sentido completo. Não tendo medo de encarar de frente a questão e dando um basta nesse codinome, disfarçado de santo, com a essência e substância de demônio dos mundos inferiores. A pessoalidade desses seres (vulgarmente chamados de demônios) que habitam os mundos inferiores, divididos em hierarquias são representações de nosso inconsciente, vindas das correntes dos mundos das ideias e pensamentos. Tomo esse argumento da filosofia de Platão (428 AC 347) que baseia-se no mundo ideal e real. O real é esse mundo físico, material, grosseiro, enquanto que o mundo ideal é justamente o mundo dos pensamentos, das ideias, das coisas abstratas. Para Platão o corpo é o cárcere da alma que precisa se libertar para alcançar seu "eu" ideal, de modo a possuir seu verdadeiro conhecimento. Então, enquanto estivermos presos ao corpo (mundo real, físico) veremos demônios agindo por todos os lados e supostamente influenciando nossa vida, pois em uma condição corrupta seremos tendentes a negociar nossa culpa e ressentimento, como os demônios ou outros seres que nos iludam com suas dissimulações. Precisamos transcender  para o mundo ideal, dos pensamentos com nossa alma migrando das coisas fúteis e ilusórias da vida para uma dimensão de fraternidade e amor ao próximo.  Assim seremos nós mesmos no mundo, evoluindo com o que temos e somos. Às vezes involuindo devido aos vícios e deméritos, mas conscientes que o processo de desenvolvimento da divindade em nosso ser é nossa total responsabilidade e somos o auto fiador desse sistema de completude cósmica. Abraço. Davi.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

REVISITANDO O JARDIM DO ÉDEN.


Judaísmo. www.morasha.com.br. REVISITANDO O JARDIM DO ÉDEN. “E plantou o Eterno, D’us um jardim no Éden, no Oriente, e lá colocou o homem que criou. E, fez brotar da Terra, o Eterno, D’us, toda árvore cobiçável aos olhos e apetitosa ao paladar, e nesse jardim estava a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal”. Gênesis 2: 8-9. A história do Jardim do Éden – Adão e Eva e a serpente, e da partilha do fruto proibido é universal em seu escopo. Apesar de ser uma história da Toráh, não é dirigida exclusivamente ao Povo Judeu. Envolveu pai e mãe de toda a humanidade, pertencendo, portanto, a todos os seres humanos de todas as gerações. De fato, o ocorrido no Jardim do Éden, não constituiu um evento singular em um passado longínquo; constitui uma história recorrente na vida de qualquer homem e qualquer mulher. A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. O pecado de Adão e Eva é por demais conhecido. Enquanto viviam no Jardim do Éden, tinham permissão para comer de todas as árvores, exceto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. D'us previne Adão que a consequência de se violar a proibição seria a morte. Mas, a despeito do severo alerta, Eva se deixa seduzir pela serpente e partilha do fruto proibido, o qual, mais tarde, oferece ao marido e a todos os animais. Em decorrência disso, a morte é introduzida no mundo e Adão e Eva são banidos do Éden para sempre. O mais peculiar em todo o incidente é a natureza da proibição, em si. Por que razão haveria de ser proscrito o conhecimento e associado ao pecado e à morte? A superioridade do homem perante os demais reinos reside não apenas em sua capacidade espiritual, mas também na mental. Com efeito, essa mesma Toráh, que conta a história de Adão e Eva, exacerba o valor supremo do aprendizado e da busca pelo saber e pela verdade. Como diz o Talmud, quem possui conhecimento, tudo possui; quem não o possui, nada possui. Outro problema intrigante é o argumento usado pela serpente para convencer Eva a provar do fruto proibido. Era verdadeira a sua alegação de que "No dia em que do fruto comeres, teus olhos se abrirão e serás como D'us, que conhece o bem e o mal". Isto traz à tona a pergunta: por que razão D'us, que criou o homem à Sua imagem, não quis que desfrutasse de parte de Sua sabedoria? Ao tentar responder a tais perguntas, é preciso, primeiro, conhecer mais sobre a natureza do primeiro homem e da primeira mulher. Antes de incidir em pecado, a existência física do homem era pura santidade. Como nos ensina Rabi Shimon bar Yochai (século II), autor do Zohar, até o mais espiritual dos seres humanos na História não consegue se equiparar à estatura espiritual de Adão. Ele nasceu para ser imortal e para viver livre de preocupações, esforços e sofrimentos. Sua missão consistia em tornar o Éden mais perfeito e poderoso para que tal perfeição e força pudessem estender-se por todo o mundo. Adão nasceu sem maldade; mas isso não significa que o mal não existisse no mundo. De fato, o antagonista na história – a serpente – era a própria encarnação do Mal. Os livros místicos sugerem que a serpente, que também personificava a Árvore do Conhecimento, estava exasperada pela imunidade humana ao mal. Ressentia-se do fato de o homem viver livre dos conflitos e tormentos, e, por isso, tentou atraí-lo para um círculo vicioso de luta e sofrimento. Várias outras são as explicações para o que teria levado a serpente a tentar Eva, mas esta, em especial, alinha-se com os ensinamentos cabalísticos de que o mal sente uma irresistível atração pela bondade. Parasita por excelência, o mal se alimenta de santidade e é a bondade o que lhe dá sustento e significado. Exemplificado de forma simplista: o homem malvado apenas ascende ao status de "super vilão" quando se lança em guerra contra um "super-herói"; caso contrário, não passa de um simples malfeitor. De modo similar, o Mau Instinto não demonstra grande interesse nos indivíduos que com ele naturalmente se alinham. Ao invés disso, não mede esforços tentando atrair os bons e puros. Isto explica o ensinamento talmúdico de que "quanto maior o homem, maior seu instinto maligno". É por isso que Adão e Eva foram presa fácil da tentação: o Mau Instinto sobre eles lançou potentes forças hostis que os levaram a pecar. Uma das lições óbvias do episódio da Árvore do Conhecimento é que o homem tem atração pelo que lhe é proibido. A Torá reconhece que (…). "As águas roubadas são doces (…)" (Provérbios, 9: 17) - ou seja, é do gênero humano cobiçar o proibido. O fruto proibido se tornou uma metáfora, um símbolo da atração e do fascínio pelo pecado. Desde o Jardim do Éden, isto tem sido uma realidade na vida de praticamente todos os seres humanos. Para alguns, pode tratar-se de algo tão mundano quanto o alimento que não deve ser ingerido; para outros, pode ser uma tentação mais destrutiva, como um relacionamento proibido. Mas, qualquer tentação empalidece face ao que a serpente, falando em nome da Árvore do Conhecimento, ofereceu a Adão e Eva. O partilhar do fruto proibido significava a realização do maior desejo dos homens: a capacidade de se parecer a D'us – controlar o próprio destino e exercer poder sobre o mundo. Sem dúvida, a perspectiva mais atraente que pode ser oferecida a um ser humano: a possibilidade de "cruzar a barreira", de ir além e se tornar divino. Desde os dias de Adão, o homem tem tentado fazê-lo. Atrai-o a magia, o conhecimento esotérico, o misticismo, tudo na esperança de se sobrepor às dimensões do humano. À semelhança de outros vilões da história, a serpente foi fiel à sua palavra. Entregou o que prometera. Assim que Eva e Adão comeram do fruto da Árvore do Conhecimento, passaram a possuir algo que era reservado a D'us, algo com que nem mesmo os anjos mais elevados contavam - o livre arbítrio. Por ter provado do fruto do bem e do mal, descobriram dentro de si novas aptidões, tornando-se fatores mais dinâmicos no Universo. Como D'us, ganharam o poder de querer, criar e destruir. A serpente demonstrou astúcia extraordinária, pois contou a verdade a Eva – mas não a contou por inteiro. Após daquele fruto comer, o homem efetivamente passou a conhecer o bem e o mal; mas, ao contrário do Criador e dos seres espirituais, ele interiorizou tal conhecimento. Os animais não são dotados de livre arbítrio, nem os anjos, que são meros mensageiros divinos, e, portanto, impenetráveis ao mal. O homem, vulnerável a qualquer influência, não tem o dom de conhecer o maligno e permanecer imune ao mesmo. Uma vez tendo provado do fruto proibido, pode continuar sendo boa pessoa, mas jamais recuperará a inocência perdida. Não há riqueza nem sabedoria, por maior que seja, que possa restaurá-la. Em vista do que acabamos de discutir, podemos tratar do motivo para que o fruto da Árvore do Conhecimento fosse proscrito. Como se pode prever, as respostas são várias. Uma destas diz que o homem não foi criado para saber tudo. De fato, quantas pessoas excelentes e talentosas caíram vítima da confusão intelectual e espiritual, do vício e do comportamento destrutivo, simplesmente por buscarem conhecer e experimentar tudo o que a vida lhes tinha a oferecer? Adão foi proibido de comer da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal porque o homem não tem condições de se manter totalmente alheio e imune àquilo com o que tem contato. D'us sabia que se o homem viesse a conhecer a maldade os resultados seriam desastrosos, pois ele ficaria atraído pelo mal. E foi exatamente o que ocorreu. Após sentir o gosto do fruto proibido, bem e mal se fundiram no interior de Adão e Eva. Na língua hebraica, a palavra lada'at – “conhecer, saber” -  contém um elemento emocional. O versículo que aparece no mesmo capítulo do relato sobre a Árvore do Conhecimento – e que conta que "Adão conheceu Eva, sua mulher” – não contém um eufemismo, como se pensa. Pelo contrário. Conta-nos que um relacionamento físico entre duas pessoas nunca é completamente desvinculado de um elemento emotivo relacional. Assim o ensinou Rashi, clássico comentarista da Toráh: "Conhecer alguém é amá-lo". E como o amor é um vínculo mais profundo do que qualquer ato da mente ou do intelecto, conhecer algo significa estabelecer uma conexão com este algo. O homem foi criado para jamais conhecer o mal, assim como há situações às quais nenhuma criança jamais deveria ser exposta. Mas desde o pecado de Adão e Eva, a maldade se tornou parte intrínseca de seus descendentes. Sequer importa o que se pensa sobre isto – se o indivíduo desfruta do mal ou se este o repulsa. O simples ato de conhecer implica em arcar com as consequências. D'us queria que o homem continuasse santificado, como fora criado, e que não caísse presa da tentação. Pois que a presença da maldade no homem, especialmente em pessoa boa e conscienciosa, é fonte de contínuo sofrimento. É difícil ser bom e, mais ainda, ser espiritual, pois, no decorrer da vida o ser humano frequentemente se encontra diante da escolha entre duas alternativas terríveis: a frustração de um desejo não realizado ou - infinitamente pior - o amargo gosto do pecado, a dizer, a culpa e a vergonha e o temor da retribuição, quer humana quer Divina. Desde que provou do fruto proibido, o homem se tornou uma mescla entre bem e mal, luz e escuridão. Explica o Tanya, obra clássica da Cabalá, que o mal se manifesta, no homem, de inúmeras formas: como desejo pelo proibido; como orgulho e raiva indevidos; como depressão e indisposição para fazer o certo; e, talvez o mais frequente, como frivolidade e desperdício – em outras palavras, o uso inadequado da capacidade, energia e tempo que D'us confiou a cada um de nós. Somente Tzadikim Gamurim – homens e mulheres perfeitamente justos, como Avraham, Moshê Rabenu e Rabi Shimon bar Yochai - são totalmente destituídos de maldade. Mas, infelizmente, tais seres são raríssimos e mesmo esses podem errar. Ademais, mesmo o Tzadik Gamur é forçado a viver em um mundo em que coexistem bem e mal, no qual este ser "justo e puro" se vê cercado de situações em que sempre há uma opção reprovável, não importa em que ambiente se encontre. Consta que Moshê perdeu a paciência em várias ocasiões. Sua fúria, sem dúvida, foi uma falha de comportamento; mas as situações a que foi submetido não lhe permitiram agir de outro modo. A expressão da raiva foi o único meio que encontrou para corrigir alguns dos problemas surgidos em meio ao povo judeu durante sua jornada de 40 anos a caminho da Terra Prometida. Um dos temas atemporais na história de Adão e Eva é o fato de que, desde o Jardim de Éden, todos nós, em maior ou menor grau, mantemos um relacionamento de amor e ódio com a serpente. Como está na Toráh, "Na porta jaz o pecado; e a ti fazer pecar é o desejo do Mau Instinto; mas tu podes dominá-lo" (Gênese, 4: 7). A serpente aparece de diferentes formas para diferentes pessoas. Muitos seres humanos, como o primeiro casal da Terra, sucumbem a seu encantamento. Outros conseguem dominá-la. Mas, à exceção dos Tzadikim Gamurim, os justos perfeitos, a humanidade é fascinada pela mesma. Isto explica a razão para a mídia e a indústria do entretenimento nos sufocarem de notícias e imagens, a cada dia mais violentas e impróprias: fazem-no porque atraem nosso interesse, mesmo que em sã consciência consideremos repulsivas as imagens em outras palavras, a serpente. Se o homem apenas fizesse o que Eva devia ter feito, a dizer, ignorar a "tentação", esta "serpente" perderia sua razão de existir e acabaria desaparecendo. Não nos referimos, aqui, ao mal que se manifesta de forma explícita no mundo e que deve ser combatido e vencido. Estamos falando da "serpente" que vive dentro de cada um de nós. Esta não pode ser vencida enquanto estivermos obcecados, nela pensando e falando. Esta se encolhe e morre somente depois que o homem transfere seu pensamento para outros assuntos, de preferência mais elevados, os quais, pela própria natureza, são diametralmente opostos aos argumentos e tentações lançados pelo Mau Instinto. Banidos do Jardim do Éden. Pouco após comer da fruta da Árvore do Conhecimento, Adão e Eva são expulsos do Jardim do Éden, pois D'us não permitiria que o homem "estendesse sua mão, retirasse algo da Árvore da Vida, o ingerisse e vivesse para sempre". O motivo de sua expulsão traz à tona outra pergunta: por que o homem não podia comer da Árvore da Vida e viver para sempre, eliminando a maldição imposta pelo pecado inicial? Porque a Árvore da Vida não poderia servir como antídoto. Apenas agravaria o problema, pois, uma vez incorporado o mal no ser humano, a Vida Eterna significaria que também o mal viveria para sempre. Há uma história no Zohar que elucida a ideia. Consta que Rabi Acha, de Kfar Tarsha, tentou expiar uma pestilência em uma aldeia queimando incenso. Disseram-lhe que aquilo era inútil, pois os habitantes do vilarejo não haviam expiado seus próprios pecados. Tivessem eles demonstrado arrependimento, a oferenda do incenso promoveria a expiação; caso contrário, apenas serviria de paliativo para desaparecerem os sintomas, mas jamais traria cura à peste. De forma similar, o fruto da Árvore da Vida poderia curar a morte - sintoma do pecado – mas não o pecado em si. Após o pecado de Adão e Eva, era preciso corrigir as consequências de seu ato. Os limites entre bem e mal tinham sido confundidos não só no homem, mas em todo o mundo. Daí ter D'us expulso o ser humano do Jardim de Éden para que fosse cultivar a terra. Para corrigir o dano que causara, o homem teria que refinar o mundo, extirpando o bem que havia no mal. Isto só é alcançado através do cumprimento dos Mandamentos Divinos, meio pelo qual Ele ensinou ao homem o que não fazer, de modo a não aumentar as forças do mal. E pelo qual também determinou quais as ações a realizar com a matéria física, de modo a que o bem que há no mundo pudesse ser espiritualmente elevado. Neste ponto, a identidade do fruto proibido adquire relevância. Com certeza, esse fruto não era a maçã. Entre nossos Sábios predominava a opinião de que se tratava de uvas, que Eva comeu e utilizou para fazer vinho, que então serviu ao companheiro. Como as uvas foram o elemento físico envolvido no pecado inicial, ajudamos a retificar espiritualmente sua utilização imprópria mediante a oração do Kidush, com vinho santificar o Shabat e as festas judaicas. E, assim fazendo, a mesmíssima fruta que foi consumida em pecado é usada em um ato de santificação para proclamar que D'us é o Criador do mundo e para santificar Seus dias sagrados. A isto se chama, na Cabalá, Tikun retificação espiritual. Esta retificação do mundo ocorre quando o homem santifica o mundo físico, utilizando seus elementos com propósito sagrado. Por exemplo, quando o couro é usado para fazer os Tefilin, realiza-se um ato de fissão espiritual: são liberadas as centelhas sagradas existentes na matéria física. Se isso ocorresse constantemente se o ser humano apenas fizesse o certo sem nunca errar a "serpente" definharia até a morte, por inanição. O pecado de Adão e Eva seria, então, retificado e suas consequências luta e sofrimento e morte - deixariam de ser parte integral da vida. O banimento do homem do Jardim do Éden acabou sendo mais uma consequência do que uma punição. Ele teria que trabalhar com afinco para reparar o dano causado a si próprio e ao mundo. E pode-se dizer que até mesmo a praga de que "com o suor de teu rosto comerás o teu pão" não veio isenta de alguma bênção em seu interior. Pois o trabalho é o que dá significado à vida do ser humano. E o que se consegue com muita facilidade, dificilmente é valorizado. A serpente, grande vilã e instigadora, foi punida com exatamente o oposto - uma praga terrível que mais parece uma bênção. Diferentemente do homem que precisa se empenhar para ganhar o seu sustento, a serpente é amaldiçoada por D'us a buscar na terra a sua sobrevivência. De relance, isto parece uma bênção: como o solo é tão abundante, o réptil jamais passará fome. Mas, no íntimo, este decreto é o próprio significado do inferno. A serpente pode ser comparada a um filho que cometeu uma maldade tão monstruosa que leva o pai a expulsá-lo de casa. E lhe diz: "Eu o criei e, portanto, não posso deixá-lo morrer de fome. Por isso, dou-lhe agora todo o dinheiro de que necessitará, na vida, para que nunca mais me procure - pois jamais quero tornar a vê-lo ou saber de seu paradeiro". Aqui jaz outra grande lição na história do Éden. Por vezes, D'us provê pessoas malvadas de tudo o que necessitam e desejam porque Ele não deseja contatos com esses indivíduos. Ao mesmo tempo, muita gente boa passa por dificuldades na vida exatamente pelo fato de D'us se preocupar em ouvir suas preces. Ele sente falta desses Seus filhos e quer ver melhorar o seu comportamento, ligando sua alma a Ele por meio da prece, do estudo da Sabedoria Divina e da realização de atos de caridade e bondade. A pergunta de D'us a Adão. Ao estudar a história do Jardim do Éden, não podemos esquecer um princípio básico no judaísmo: sob circunstância alguma acreditamos na existência de poderes independentes; nada, nem mesmo o Mal, consegue se opor a D'us. A serpente personificou o Mau Instinto, que é o próprio Anjo da Morte. E, por se tratar de um anjo – simples mensageiro de D'us – entranhado na carne de um animal, este não possuía livre arbítrio. O castigo da serpente simboliza a maldição que é lançada contra os malfeitores, especialmente aqueles que influenciam terceiros a fazer o mal. Já que a serpente, agindo em nome da Árvore do Conhecimento, apenas desempenhava sua tarefa, podemos especular - como ousaram fazer alguns comentaristas – que D'us teria feito propositalmente com que Adão e Eva deslizassem, caindo em pecado. Pois se D'us não desejasse que o homem comesse do fruto proibido, por que razão teria criado a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal? A resposta não pode ser o "livre arbítrio", porque vimos acima que antes do pecado original, o homem não fora agraciado com esse dom divino. E, assim, ao contrário do que sugerimos acima, talvez o homem não tenha nascido para viver livre do mal. Como ensinam os livros místicos, se D'us tivesse desejado que o homem fosse perfeito, que orasse e estudasse a Toráh todas as horas do dia, ele poderia ter criado milhões de anjos mais, que nada fazem além de O servir e louvar. Ao invés disso, criou um ser diferente dos anjos e dos animais - uma criatura que pode livremente escolher entre o bem e o mal. Não fosse o pecado original, isto jamais teria sido possível. Como explica o Tanya, D'us permitiu que existisse o mal porque sem este o homem viveria sem se esforçar. Se não houvesse batalhas, não haveria vitórias. A existência humana adquire significado na batalha entre o bem e o mal: a bondade ganha força quando luta e vence o Mau Instinto. Retornando a uma analogia acima utilizada, um vilão necessita de um super-herói para justificar sua existência. Mas o oposto também é verdadeiro: se não houver vilões, para que heróis? O homem é a jóia da coroa da Criação porque, contrariamente a todas as demais criaturas, ele pode vencer batalhas interiores, em sua alma, e optar por fazer o certo - a despeito de todas as tentações, interiores e exteriores, com que sempre se defronta. Uma história que reflete o que talvez seja a maior mensagem que D'us nos transmite através do relato sobre o Éden envolve o autor do Tanya, Rabi Shneur Zalman de Liadi (1745-1813). Enquanto encarcerado em uma prisão russa - após a falsa acusação de atividades subversivas contra o Czar - ele foi submetido a intenso interrogatório. As autoridades carcerárias sabiam tratar-se de um grande erudito e filósofo, daí terem-no engajado em horas a fio de discussões teológicas e filosóficas. Certa vez, o investigador chefe lhe perguntou: "Sua Toráh relata que após o pecado de Adão, comendo do fruto da Árvore do Conhecimento, D'us o confronta com a pergunta: 'Onde estás?' D'us obviamente sabe onde estão os homens!" O Rebe, Baal HaTanya (o mesmo Rabi Shneur Zalman), retrucou: "Você acredita que a Toráh é eterna e que suas lições se aplicam a todos os homens, em todas as épocas? Quando o russo respondeu que sim, o Rabi Shneur Zalman começou a explicar: 'Onde você está' é o chamado de D'us a todos os homens da Terra. Ele está perguntando: 'Em que ponto de sua jornada você se encontra?'. Cada um de nós recebeu tantos dias e tantos anos na Terra, e portanto é necessário nos perguntarmos, constantemente, o que conseguimos realizar nesses anos e quanto de bem contribuímos ao mundo". A pergunta de D'us a Adão, pai de toda a humanidade, ecoa na eternidade. Continua a ser constantemente feita a todo ser humano. Quando o homem ousa respondê-la - quando percebe que não veio ao mundo por acaso, mas foi enviado por D'us para aqui cumprir uma missão Divina, ele atinge um nível mais alto de conscientização e embarca em um caminho que o levará a uma existência mais significativa. Esta percepção do homem - de que D'us o chama e sente sua falta, de que espera que ele faça algo construtivo e belo de sua vida e de seu mundo - esta percepção é o início de uma jornada longa e árdua, às vezes dolorosa, mas que o conduzirá de volta ao Jardim do Éden. www.morasha.com.br. Abraço. Davi.