Bodhichitta é a verdade essencial, universal. Esse pensamento
puríssimo é o desejo e a vontade de levar todos os seres sensíveis à realização
do seu mais elevado potencial: a iluminação. O bodhisattva vê a natureza
cristalina que há em cada um de nós e, ao reconhecer a beleza do potencial
humano, sempre demonstra respeito. Para a mente rude, seres humanos são como
ervas, algo para ser usado. "Ah, ele não significa nada para mim. Os seres
humanos não representam nada para mim". Todos tentamos nos aproveitar dos
outros, tirar proveito em causa própria. O mundo inteiro está construído sobre
o apego. Países grandes oprimem países pequenos, crianças maiores roubam balas
de crianças menores, maridos aproveitam-se de suas mulheres. Torno-me amigo de
alguém porque essa pessoa talvez me seja útil. O mesmo acontece com o resto do
mundo. Namorados, namoradas; todos querem alguma coisa. O desejo de fazer
amigos apenas para ajudá-los é extremamente raro, contudo, muito valioso. Buda
explicou que mesmo um único instante de pensamento da mente dedicada à
iluminação em favor dos outros pode destruir o carma negativo de cem mil
existências. O apego nos toma medíocres e incomodados. Mas basta um pouco do
calor de bodhichitta para aquecer-nos e acalmar o coração. Bodhichitta
é uma solução poderosa, é a energia atômica que destrói o reino do apego. Bodhichitta
não é o amor emocional. Ao compreender a natureza relativa dos seres sensíveis
e o seu destino mais elevado, e ao desenvolver a disposição de conduzir todos
os seres rumo a esse estado de iluminação, a mente é preenchida com um amor
nascido da sabedoria, não da emoção. Bodhichitta não é parcial. Onde
quer que você vá com bodhichitta, ao encontrar pessoas, sejam elas ricas
ou pobres, negras ou brancas, sentir-se-á bem e poderá comunicar-se com elas. Temos
uma ideia fixa: a vida é deste jeito ou daquele jeito. "Isto é bom. Isto é
mau." Não compreendemos os diferentes aspectos da condição humana. Mas,
tendo presente esse incrível pensamento universal, a nossa mente estreita
desaparece imediatamente, é tão simples; temos espaço e a vida fica mais fácil.
Por exemplo, alguém olha para nós, para a nossa casa, para o nosso jardim, e
ficamos preocupados. Somos tão inseguros e mesquinhos de coração! Somos
arrogantes. "Não olhe para mim". Mas com bodhichitta há
espaço. Quando alguém olhar, simplesmente diremos: "Pois bem. Estão
olhando para mim. Mas não faz mal!" Compreendem? Em vez de se preocuparem
acharão que está tudo bem. Bodhichitta é o agente tóxico que nos
entorpece contra a dor e nos enche de alegria. Bodhichitta é a alquimia
que transforma todas as ações em bem para os outros. Bodhichitta é a
nuvem que descarrega uma chuva de energia positiva que alimenta as coisas que
crescem. Bodhichitta não é doutrina. É um estado de espírito. Essa
experiência interior é completamente individual. Por isso, como podemos ver
quem é um bodhisattva e quem não é? Como podemos ver a
mente que tem auto estima? Se nos sentirmos inseguros, projetaremos esse
sentimento negativo sobre os outros. Precisamos do mais puro e íntimo
pensamento de bodhichitta; onde quer que vamos, ele tomará conta de nós.
Ensinamento do budismo tibetano. Lama Thubten Yeshe (1935- ). Abraço. Davi.
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015
Karma. O Coração é Nosso Jardim.
O Sutra Avatamsaka é o texto budista que descreve as leis
que governam os milhares de possíveis domínios do universo; domínios de prazer
e de dor, domínios criados pelo fogo, pela água, pelos metais, pelas nuvens ou
até mesmo pelas flores. Cada universo, diz-nos o sutra, segue a mesma
lei básica: em cada um desses domínios, se você plantar uma semente de manga,
terá uma mangueira, e se plantar uma semente de maçã, terá uma macieira. Assim
é em todos os domínios que existem no mundo dos fenômenos da criação. A lei do karma
descreve o modo como causa e efeito regem os padrões que se repetem através de
toda a vida. Karma significa que nada surge por si mesmo. Cada
experiência é condicionada por aquilo que a precede. Desse modo, nossa vida é
uma série de padrões inter relacionados. Os budistas dizem que a compreensão
dessa lei é suficiente para se viver sabiamente no mundo. O karma existe
em muitos níveis diferentes. Seus padrões governam as imensas formas do
universo, tais como as forças gravitacionais das galáxias, e os mais sutis e
diminutos modos pelos quais, a cada momento, nossas escolhas humanas afetam o
nosso estado mental. No nível da vida física, por exemplo, se uma pessoa olha
para um carvalho, ela pode ver o "carvalho" manifestando-se em algum
dos diferentes estágios de seus padrões vitais. Num determinado estágio do
carvalho padrão, o carvalho existe sob a forma de bolota; num estágio
subsequente, ele vai existir sob a forma de árvore nova; noutro estágio, sob a
forma de árvore adulta; e, ainda noutro, sob a forma de bolota verde crescendo
nessa árvore adulta. Em rigor, não existe o "carvalho" definitivo.
Existe apenas o carvalho padrão através do qual certos elementos seguem as leis
cíclicas do karma: um arranjo específico de água, minerais e a energia
solar que o transforma, infinitas vezes, de bolota em árvore nova e depois em
árvore adulta. De modo semelhante, as tendências e hábitos da nossa mente são
padrões kármicos que repetimos infinitas vezes, como a bolota e o carvalho.
Ao abordar esse tema, Buda perguntou: "O que vocês acham que é maior: a
mais alta montanha da Terra ou a pilha de ossos que representa as vidas que
vocês viveram infinitas vezes em cada domínio governado pelos padrões dos seus karmas?
Maior, meus amigos, é a pilha de ossos; maior do que a mais alta montanha da
Terra". Vivemos num oceano de padrões condicionadores que repetimos
infinitas vezes e, ainda assim, raramente notamos esse processo. Podemos
compreender com mais clareza o funcionamento do karma na nossa vida se
olharmos esse processo de causa e efeito nas nossas atividades comuns e
observarmos como os padrões repetitivos da nossa mente afetam o nosso
comportamento. Por exemplo, nascidos numa certa cultura em determinada época,
assimilamos determinados padrões de hábitos. Se nascermos numa taciturna
cultura pesqueira, aprendemos a ser calados. Se crescermos numa cultura
mediterrânea mais expressiva, talvez expressemos nossos sentimentos com gestos
amplos e tenhamos uma maneira de falar espalhafatosa. Nosso karma social, parental, escolar e condicionamento linguístico, cria padrões completos de
consciência que determinam o modo como vivenciamos a realidade e o modo como
nos expressamos. Esses padrões e tendências são, muitas vezes, bem mais fortes
do que as nossas intenções conscientes. Quaisquer que sejam as circunstâncias,
são os velhos hábitos que irão criar o modo como vivemos. Lembro de ter ido
visitar minha avó num prédio de apartamentos exclusivo para idosos. A vida ali
era tranquila e sedentária para a maioria dos moradores. O único lugar onde
algo acontecia era no saguão, e os moradores interessados iam até lá para
observar quem entrava e saía. No saguão, havia dois grupos de pessoas. Um grupo
sentava-se ali regularmente e se divertia, jogando cartas e cumprimentando
todos os que passavam. Tinham um relacionamento agradável e amistoso entre si e
com as circunstâncias à sua volta. Do outro lado do saguão, ficavam as pessoas
que gostavam de reclamar. Para elas, havia algo errado com todo mundo que
passava pela porta. Entre uma pessoa que passava e outra, reclamavam,
"Você viu que comida horrível nos serviram hoje?". "Viu o que
fizeram com o quadro de avisos?". "Você sabe para quanto vai subir o
nosso condomínio?". "Sabe o que disse o meu filho a última vez que
esteve aqui?" Esse era um grupo de pessoas cuja principal relação com a
vida era reclamar dela. Cada grupo levou para o edifício um padrão com o qual
tinha vivido durante muitos anos. Circunstâncias e atitudes mentais que se
repetem por muito tempo tornam-se a condição daquilo que chamamos de
"personalidade". Quando perguntaram ao Lama Trungpa Rinpoche o que
iria renascer nas nossas próximas vidas, ele respondeu brincando: "Seus maus
hábitos". Nossa personalidade é condicionada pelas causas passadas. Às
vezes isso é evidente, mas com muita frequência os hábitos que se originam do
passado distante e esquecido passam despercebidos. Na psicologia budista, o
condicionamento kármico da nossa personalidade é classificado de acordo
com três forças inconscientes básicas e tendências automáticas da nossa mente.
Existem os tipos marcados pelo desejo, cujos estados mentais mais frequentes
estão associados à avidez, à carência, ao sentimento de não ter o suficiente.
Existem os tipos marcados pela aversão, cujo estado mental mais comum é
rechaçar o mundo através do julgamento, do desagrado, da aversão e do ódio. E
existem os tipos marcados pela confusão, cujos estados mais fundamentais são a
letargia, a ilusão e a desconexão, não sabendo o que fazer a respeito das
coisas. Você pode testar qual o tipo que predomina em você observando sua
maneira peculiar de entrar num ambiente. Se seu condicionamento for mais
fortemente aquele do desejo e da carência, você tenderá a olhar em volta e ver
aquilo de que gosta, aquilo que você pode obter; você verá as coisas que o
atraem; observará o que é belo; apreciará um bonito arranjo de flores; gostará
do modo como algumas pessoas estão vestidas; encontrará alguém sexualmente
atraente ou vai imaginar que há pessoas simpáticas que valerá a pena
conhecer. Se você é do tipo aversão, ao entrar na sala, em vez de ver primeiro
aquilo que você deseja, você tenderá a ver o que está errado. "Ambiente
muito barulhento. Não gosto do papel da parede. As pessoas não estão vestidas
adequadamente. Não gosto do jeito como tudo foi organizado". E se você é
uma personalidade confusa, talvez entre na sala, olhe em volta e não saiba como
se relacionar, perguntando a si mesmo: "O que está acontecendo aqui? Onde
eu me encaixo neste ambiente? O que devo fazer?". Esse condicionamento
primário é, na verdade, um processo de grande influência. Ele cresce e se
transforma naquelas forças que levam sociedades inteiras para a guerra, criam o
racismo e dirigem a vida de muitas pessoas à nossa volta. Quando, pela primeira
vez, encontramos em nós mesmos as forças do desejo e da aversão, da avidez e do
ódio, podemos pensar que elas são inofensivas, contendo um pouquinho só
de carência, de desagrado, um pouquinho de confusão. No entanto, à medida que
observamos o nosso condicionamento, vemos que o medo, a cobiça e a fuga são, na
verdade, tão compulsivos que governam muitos aspectos da nossa personalidade.
Pela observação dessas forças, podemos ver como operam os padrões do karma.
Quando, na meditação, começamos a olhar atentamente nossa personalidade, em
geral nosso primeiro impulso é procurar livrar-nos dos nossos velhos hábitos e
defesas. De início, a maioria das pessoas acha a sua própria personalidade
difícil, desagradável e até mesmo insípida. A mesma coisa pode acontecer quando
olhamos para o corpo humano. Ele é belo quando visto a distância certa, na
idade certa e à luz certa, mas, quanto mais de perto o olhamos, mais
cheio de defeitos ele se torna. Quando notamos essa imperfeição, procuramos
fazer regime, jogging, tratamento de pele, exercícios e tirar férias
para melhorar o físico. Mas, embora tudo isso possa ser benéfico, continuamos a
estar basicamente presos ao corpo com que nascemos. A personalidade é ainda
mais difícil de ser modificada do que o corpo; contudo, o propósito da vida
espiritual não é fazer com que nos livremos da nossa personalidade. Parte dela
já existia quando nascemos, parte tem sido condicionada pela nossa vida e
cultura e, diga-se o que se quiser, não podemos viver sem ela. Todos nós, na
face desta Terra, temos um corpo e uma personalidade. Nossa tarefa é aprender
muitas coisas sobre esse corpo e sobre essa mente, e despertar dentro deles.
Compreender o jogo do karma é um aspecto do despertar. Se não estivermos
conscientes, nossa vida simplesmente irá seguir, infinitas vezes, o padrão dos
nossos hábitos passados. Mas, se formos capazes de despertar, estaremos aptos a
fazer escolhas conscientes quanto ao modo de responder às circunstâncias da
nossa vida. Nossa resposta consciente irá então criar o nosso karma
futuro. Podemos ser ou deixar de ser capazes de mudar as circunstâncias
externas, mas, com percepção consciente, podemos sempre mudar nossa atitude
interior, e isso é suficiente para transformar a nossa vida. Mesmo nas piores
circunstâncias externas, podemos escolher se vamos ao encontro da vida com medo
e ódio ou com compaixão e compreensão. A transformação dos padrões da nossa
vida sempre se processa no nosso coração. Para compreender como trabalhar com
os padrões kármicos precisamos observar que o karma tem dois
aspectos distintos: o karma que é o resultado do nosso passado e o karma
que as nossas respostas atuais estão criando para o nosso futuro. Recebemos
os resultados da ação passada; e isso é algo que não podemos mudar. Mas,
ao responder no presente, também criamos um novo karma. Semeamos as
sementes karmicas para colher novos resultados. Em sânscrito, a palavra "karma"
geralmente vem junto com outra palavra, "vipaka", karma-vipaka.
Karma significa "ação" e vipaka, "resultado".
Ao lidar com cada momento da nossa experiência, usamos meios hábeis
(conscientes) ou meios inábeis (inconscientes). Todas as respostas inábeis,
como avidez, aversão e confusão, inevitavelmente criam mais sofrimento e karma
doloroso. As respostas hábeis, baseadas na percepção consciente, no amor e na
receptividade, levam inevitavelmente ao bem-estar e à felicidade. Através de
meios hábeis, podemos criar novos padrões que transformam a nossa vida. Até
mesmo os padrões poderosos baseados na avidez, na aversão e na ilusão contêm
dentro de si as sementes de respostas hábeis. O desejo por prazer pode ser
transformado numa ação natural e compassiva que traz beleza à sociedade e ao
mundo que nos cerca. O temperamento que julga, do tipo aversão, através da
percepção consciente pode transformar-se naquilo que é chamado sabedoria
discriminativa: uma clareza associada à compaixão, uma sabedoria que vê
claramente através de todas as ilusões do mundo e usa a clareza da verdade para
ajudar e curar. Até mesmo a confusão e a tendência a desligar-se da vida podem
ser transformadas numa equanimidade sábia e ampla, num equilíbrio sábio e
compassivo que envolve todas as coisas com paz e compreensão. Tradicionalmente,
o karma é discutido nos ensinamentos budistas em termos de morte e
renascimento. Buda, o sublime, falou de uma visão na noite de sua iluminação, na qual viu
milhares de suas vidas passadas, bem como as de muitos outros seres, todos
morrendo e renascendo de acordo com os resultados da lei kármica de suas
ações passadas. Mas não é necessário ter a visão de Buda para compreender o karma.
As mesmas leis kármicas que ele descreveu agem na nossa vida momento
após momento. Podemos ver como a morte e o renascimento ocorrem a cada dia. A
cada dia, nascemos em meio a novas circunstâncias e experiências, como se fosse
uma nova vida. Com efeito, isso acontece a cada momento. Morremos a todo
momento e renascemos no momento seguinte. Ensina-se que existem quatro tipos de
karma no instante da morte ou em qualquer momento de transição: karma
denso, karma imediato, karma habitual e karma fortuito.
Nessa ordem, cada um representa uma tendência kármica mais forte do que
a seguinte. A imagem tradicional para explicar esse ensinamento é a do gado num
curral, com a porteira aberta. O karma denso é como um touro. É a força
das mais poderosas ações boas ou más que praticamos. Se um touro está no
curral, quando a porteira é aberta, ele é sempre o primeiro a sair. O karma
imediato é a vaca que está mais próxima à porteira. Ele se refere ao estado
mental que está presente no momento da transição. Se a porteira é aberta e não
há nenhum touro no curral, quem sai é a vaca mais próxima à porteira. Se
nenhuma vaca estiver perto da porteira, surge o karma habitual. É a
força do nosso hábito costumeiro. Se não estiver presente nenhum forte estado
mental, a vaca que costuma sair primeiro é a que irá sair primeiro. E, finalmente,
se nenhum forte hábito estiver operando, surge o karma fortuito. Isto é,
se não surgir nenhuma força mais impetuosa, nosso karma será o resultado
fortuito de um número qualquer de condições passadas. À medida que cada ação
(ou nascimento) surge, existem forças que a sustêm e forças que finalmente a
levam a termo. Essas forças kármicas são descritas fazendo-se uso da
imagem de um jardim. A semente que é plantada é o karma causal.
Fertilizar e regar a semente, cuidar das plantas, é chamado de karma sustentador.
Quando surgem dificuldades, trata-se do karma opositor, representado
pela seca; mesmo se plantarmos uma semente viável e a fertilizarmos, se não
houver água, ela irá secar. E então, finalmente, o karma
destrutivo é como o fogo ou os roedores no jardim, que o queimam ou o devoram
por completo. Essa é a natureza da vida em todos os domínios, em todas as
circunstâncias criadoras. Uma condição segue-se à outra e, no entanto, tudo
isso está sujeito a mudança. O karma das nossas circunstâncias exteriores
pode mudar com o agitar da cauda de um cavalo. A qualquer dia, uma imensa
fortuna ou a morte podem chegar para qualquer um de nós. O resultado kármico
dos padrões das nossas ações não decorre unicamente da nossa ação. À
medida que temos uma intenção e agimos, criamos karma; assim, uma outra
chave para compreender a criação do karma é a de tornarmo-nos
conscientes da intenção. O coração é o nosso jardim e, junto com cada ação,
existe urna intenção plantada como uma semente. O resultado dos padrões do nosso
karma é o fruto dessas sementes. Por exemplo, podemos usar uma faca
afiada para cortar alguém; se a nossa intenção é ferir, seremos um assassino.
Isso leva a certos resultados kármicos. Podemos executar uma ação quase
idêntica, usando uma faca afiada para cortar alguém, mas, se somos um
cirurgião, nossa intenção é curar e salvar uma vida. A ação é a mesma, mas, no
entanto, dependendo de seu propósito ou intenção, tanto poderá ser um ato
terrível quanto um gesto de compaixão. Na nossa vida cotidiana podemos estudar
o poder da intenção para criar o karma. Podemos começar prestando
atenção às nossas muitas ações que surgem ao longo do dia em resposta aos
problemas. De um modo automático, talvez ignoremos circunstâncias difíceis ou
respondamos de maneira crítica ou áspera. Talvez procuremos proteger ou
defender o nosso próprio interesse. Em todos esses casos, a intenção no nosso
coração estará associada à avidez, à aversão ou à ilusão, criando no futuro um karma
de sofrimento que irá nos trazer uma resposta equivalente. Se, em vez disso,
quando essas circunstâncias difíceis surgem na nossa vida levarmos a elas o
desejo de compreender, de aprender, de libertar ou de trazer harmonia e criar
paz, iremos falar e agir com uma intenção inerente. Nossas ações talvez sejam
bastante semelhantes, nossas palavras talvez sejam semelhantes, mas, se a nossa
intenção é criar paz e trazer harmonia, essa intenção irá criar um tipo muito
diferente de resultado kármico. Isso é fácil de se verificar nos
relacionamentos íntimos, pessoais ou profissionais. Podemos dizer uma mesma
frase ao nosso parceiro ou amigo e, se o espírito tácito ao proferi-la for:
"Eu amo você e espero que nós dois entendamos o que está
acontecendo", iremos obter um tipo de resposta. Se pronunciarmos a
mesma frase com uma atitude subjacente de censura, defesa e crítica, em um tom
sutil de: "O que há de errado com você?", ela dará outro rumo ao
nosso diálogo e poderá, facilmente, converter-se em uma briga.(...) A intenção
ou atitude que levamos a cada situação da vida determina o tipo de karma
que criamos. Dia a dia, momento a momento, podemos começar a ver a criação dos
padrões de karma baseados nas intenções do nosso coração. Quando
prestamos atenção, torna-se possível conscientizar-nos mais das nossas
intenções e do estado do nosso coração à medida que elas emergem junto com as
ações e palavras que são as nossas respostas. Em geral, não temos consciência
das nossas intenções. Por exemplo, uma pessoa decide parar de fumar. Lá pelo
meio do dia surge o desejo de fumar. Ela coloca a mão no bolso, pega o maço,
tira um cigarro do maço, leva-o à boca, acende-o e começa a dar uma bela
tragada. Nesse instante, ela acorda e lembra: "Ah, eu ia parar de
fumar!". Enquanto estava no piloto automático e sem percepção consciente,
essa pessoa realizou todos os movimentos habituais de pegar um cigarro e
acendê-lo. Não é possível mudar os padrões do nosso comportamento ou criar
novas condições kármicas até que tenhamos nos tornado presentes e
despertos no início da ação. Caso contrário, a ação já aconteceu. Como diz o
velho ditado: "É como fechar a porteira depois que o cavalo fugiu do
estábulo". O desenvolvimento da percepção consciente na meditação
permite que nos tornemos atentos ou conscientes o suficiente para reconhecer
nosso coração e nossas intenções à medida que atravessamos o dia. Podemos estar
conscientes dos diferentes estados de medo, carência, confusão, ciúme e raiva.
Podemos saber quando o perdão, o amor ou a generosidade estão ligados às nossas
ações. Quando sabemos qual é o estado do nosso coração, podemos começar a
escolher os padrões ou condições que iremos seguir, o tipo de karma que
criamos. Tente trabalhar com esse tipo de percepção consciente na sua vida.
Pratique-a com suas palavras. Preste a mais cuidadosa atenção e observe o
estado do seu coração; observe a intenção, quando você falar, mesmo sobre o
assunto mais insignificante. Sua intenção é ser protegido, obter coisas,
defender-se? Sua intenção é abrir-se com interesse, compaixão e amor?. Uma vez
observada a intenção, conscientize-se da resposta que vem à tona. Mesmo que
seja uma resposta difícil, continue com a intenção hábil por algum tempo e
observe os tipos de respostas que ela traz. Se a sua intenção era inábil ou
maldosa, tente mudá-la e ver o que acontece depois de algum tempo. De início, é
possível que você experimente apenas os resultados de sua atitude defensiva anterior.
Mas persista na sua boa intenção e observe os tipos de respostas que ela
finalmente irá evocar. Para compreender como o karma age, basta olhar
para os seus relacionamentos mais pessoais ou as suas interações mais simples.
Escolha um relacionamento ou local específicos e experimente. Tente responder
somente quando seu coração estiver receptivo e generoso. Quando não se sentir
assim, espere e deixe passar os sentimentos negativos. Como instruiu Buda,
deixe que suas palavras e ações aflorem suavemente, com um intento generoso, no
tempo devido, e para benefício delas próprias. À medida que você cultiva uma
intenção generosa e hábil, você poderá praticá-la no posto de gasolina ou no
supermercado, no lugar onde trabalha ou no trânsito. A intenção que trazemos
conosco cria o padrão que dela resulta. Ao tornar-nos mais conscientes da nossa
intenção e ação, o karma mostra-se a nós com mais clareza. O fruto
kármico parece amadurecer mais rápido, talvez apenas porque nós o percebemos.
Ao prestar atenção, o fruto de tudo aquilo que fazemos, hábil ou inabilmente,
parece manifestar-se mais depressa. À medida que estudarmos essa lei de causa e
efeito, iremos ver que toda vez que nós, ou o outro, agimos de um modo baseado
na avidez, no ódio, no preconceito, no julgamento ou na ilusão, os resultados
irão inevitavelmente causar algum sofrimento. Começamos a ver como aqueles que
nos ferem também criam um inevitável sofrimento para si mesmos. A lei de causa
e efeito nos faz querer prestar mais atenção e, ao observá-la, podemos ver
diretamente os estilos hábeis e inábeis no nosso próprio coração. A atenção
dada ao karma mostra-nos como as vidas são moldadas pela intenção do
coração. Quando lhe pediram para explicar a lei do karma de um modo bem
simples, Ruth Denison (1922- ), conhecida instrutora de vipassana, assim se
expressou: "Karma quer dizer que você nunca escapa impune". A
cada dia, estamos semeando as sementes do karma. Existe apenas um único
local no qual podemos exercer alguma influência sobre o karma: na
intenção das nossas ações. Na verdade, existe apenas um karma pessoal
que podemos mudar no mundo todo, o nosso próprio. Porém, aquilo que fazemos
com o nosso coração afeta o mundo todo. Se pudermos desfazer os nós kármicos
do nosso coração, o fato de sermos todos interligados irá, inevitavelmente,
trazer a cura para o karma de outra pessoa. Corno disse um
ex-prisioneiro de guerra ao visitar um colega sobrevivente: "Você já
perdoou aqueles que o prenderam?". O sobrevivente respondeu: "Não,
não os perdoei. Nunca os perdoarei". E o primeiro veterano disse:
"Então, de algum modo, eles ainda conservam você prisioneiro". Quando
minha mulher e eu viajávamos pela Índia há alguns anos, ela teve a visão
muito dolorosa de um de seus irmãos morrendo. De início, pensei que aquilo
fosse parte de um processo de morte/renascimento na sua meditação. No dia
seguinte, ela teve uma segunda visão do irmão, agora como guia espiritual,
acompanhado de dois índios americanos e oferecendo a ela apoio e
orientação. Cerca de uma semana mais tarde, chegou um telegrama para o ashram
onde estávamos, em Monte Abu, no Ragistão, estado da Índia. Pesarosamente, minha mulher
era informada de que seu irmão morrera, exatamente do modo como ela o
vira morrer. O telegrama fora enviado no dia em que ela teve a visão. Estando
do outro lado do mundo, como teria ela sido capaz de ver a morte do irmão?
Isso foi possível porque todos nós estamos interligados. E, porque é assim,
mudar um coração afeta todos os corações e o karma de todo o planeta. Num
retiro que dirigi há alguns anos, uma mulher lutava contra as consequências
dolorosas de abuso sofrido no início da sua vida. Ela sentira raiva, depressão
e dor durante muitos anos. Fizera terapia e meditação, atravessando um longo
processo para curar essas feridas. Finalmente, nesse retiro, ela chegou a um
estado de perdão para com o homem que havia abusado dela. Chorou com profundo
perdão, não pelo ato em si, que jamais pode ser justificado, mas porque ela
não queria mais carregar a amargura e o ódio no seu coração. Acabado o retiro,
ela voltou para casa e encontrou uma carta à sua espera na caixa de
correspondência. A carta havia sido escrita pelo homem que abusara dela e com o
qual não tivera contato por quinze anos. Embora, na maioria dos casos, as
pessoas que cometem abuso neguem veementemente suas ações apesar do perdão,
algo tinha mudado a mente daquele homem. Ele escreveu: "Por muitas razões,
sinto-me compelido a lhe escrever. Pensei muito em você esta semana. Sei que
lhe causei grande dano e sofrimento, e que também trouxe grande sofrimento para
mim. Mas quero apenas pedir o seu perdão. Não sei o que mais posso dizer".
E então ela olhou a data no alto da carta. Fora escrita no mesmo dia em que ela
completou seu trabalho interior de perdão. Existe uma famosa história hindu
sobre dois reinos que eram, ambos, governados em nome de Krishna.
Olhando lá do alto, dos céus, Krishna decidiu visitá-los e ver o que
estava sendo feito em seu nome. Desceu dos céus e surgiu diante da corte de um
dos reis. Esse rei era conhecido por ser depravado, cruel, avarento e invejoso.
Krishna surgiu em sua corte envolto no esplendor da luz celestial. O rei
prostrou-se diante dele e disse: "Deus Krishna, vieste me visitar". Krishna
respondeu: "Sim. Quero confiar-te unia tarefa. Eu gostaria que
viajasses por todas as províncias do teu reino e tentasses encontrar para mim
uma pessoa realmente boa". O rei viajou por todas as províncias de seu
reino, falando com as castas superiores e com as inferiores, com religiosos e
agricultores, com artesãos e curadores. Finalmente, retornou à sala do trono e
esperou pelo reaparecimento do deus Krishna. Quando Krishna
surgiu, o rei prostrou-se e disse: "Meu Senhor, cumpri tuas ordens. Viajei
de alto a baixo por todo o meu reino, mas não encontrei uma só pessoa
boa. Embora algumas delas tenham realizado algumas boas ações, quando as
conhecia melhor eu via que mesmo suas melhores ações acabavam sendo egoístas,
interesseiras, coniventes ou desonestas. Não consegui encontrar uma única pessoa
boa". E então Krishna foi à outra corte, governada por uma famosa
rainha chamada Dhammaraja. Essa rainha era conhecida por ser gentil,
graciosa, dedicada e generosa. E, do mesmo modo, Krishna deu-lhe uma
tarefa. "Eu gostaria que viajasses por todo o teu reino e encontrasses
para mim uma pessoa realmente má". E assim a rainha Dhammaraja
percorreu todas as províncias do seu reino, falando com as castas superiores e
com as inferiores, com agricultores, carpinteiros, enfermeiras e religiosos.
Depois de longa busca, a rainha retornou à sua corte e Krishna reapareceu.
Ela prostrou-se e disse: "Meu Senhor, fiz o que me pediste, mas falhei na
minha tarefa. Percorri todas as terras e vi muitas pessoas que se comportam
desastradamente, que são mal orientadas e agem de uma maneira que gera
sofrimento. No entanto, quando as ouvi de fato, não consegui encontrar nenhuma
pessoa verdadeiramente má, apenas pessoas mal orientadas. Suas ações sempre vêm
do medo, da ilusão e do equívoco". Em ambos os reinos, as circunstâncias
da vida eram governadas pelo espírito dos governantes, e o que eles encontraram
era um reflexo do seu próprio coração. À medida que prestarmos atenção e
compreendermos o nosso coração e desenvolvermos as respostas hábeis da
sabedoria e da compaixão, estaremos realizando nossa parte para pacificar toda
a Terra. Através do nosso trabalho e criatividade, podemos fazer surgir na
nossa vida circunstâncias exteriores benéficas. No entanto, a maioria das
coisas que nos acontecem, o local onde nascemos, quando morremos, as grandes
mudanças que arrastam nossa vida e o mundo à nossa volta são o resultado de
padrões kármicos antigos e influentes. Esses, não podemos mudar.
Eles vêm à nós como o vento e o mau tempo. A única previsão meteorológica que
podemos garantir é que essas condições continuarão a mudar. No processo de
compreender o karma, precisamos responder a uma pergunta simples: Como
nos relacionamos com essas condições mutáveis?. O tipo de universo que criamos,
o que decidimos plantar, o que fazemos nascer no jardim do nosso coração - isso
irá criar o nosso futuro. Buda começa os seus ensinamentos na grande Dhammapada
dizendo:
Somos aquilo que pensamos.
Tudo o que somos nasce dos nossos pensamentos.
Com o nosso pensamento, construímos o mundo.
Fale ou aja com uma mente impura,
e os problemas o seguirão como uma carroça
segue a parelha de bois.
Somos aquilo que pensamos.
Tudo o que somos nasce dos nossos pensamentos.
Com o nosso pensamento construímos o mundo.
Fale ou aja com uma mente pura
E a felicidade o seguirá
Como uma sombra, inabalável.
A longo prazo, nada possuímos nesta Terra, nem mesmo o
nosso corpo. Mas, através das nossas intenções, podemos moldar ou direcionar os
padrões do nosso coração e mente. Podemos plantar no nosso coração sementes que
irão criar o tipo de reino que será o mundo, seja ele depravado e mau ou bom e
compassivo. Através da simples percepção consciente da nossa intenção a cada
momento, podemos plantar um esplêndido jardim, criar padrões de bem-estar e
felicidade que perdurarão muito mais do que a nossa personalidade e a nossa
vida limitada. Sylvia Boorstein, espiritualista oriental americana, instrutora de vipassana, exemplifica
esse poder com uma história sobre um bom amigo seu, médico famoso que durante
muitos anos foi presidente da Associação Psiquiátrica Americana. Ele era
conhecido como um cavalheiro, um homem íntegro e gentil, que levava uma grande
alegria a tudo na sua vida. Ele sempre dedicava um respeito profundo aos
pacientes e colegas. Depois que se aposentou e envelheceu, começou a ficar
senil. Perdeu a memória e a capacidade de reconhecer as pessoas. Ainda vivia em
casa e a esposa ajudava a cuidar dele. Sendo amigos de longa data, Sylvia e
Saymour, seu marido e também psiquiatra, certa vez foram convidados a jantar em
sua casa. Já fazia algum tempo que não o viam e imaginavam se a sua senilidade
não teria aumentado. Chegaram à porta com uma garrafa de vinho e tocaram a
campainha. Ele abriu a poria e olhou-os com uma expressão vazia que não
mostrava nenhum reconhecimento de quem eles seriam, embora tivessem sido amigos
por muitos anos. E então sorriu e disse: "Não sei quem são vocês, mas
pouco importa, façam o favor de entrar e fiquem à vontade na minha casa",
oferecendo-lhes a mesma amabilidade com que tinha vivido durante toda a sua
vida. Os padrões kármicos que criamos com o nosso coração transcendem as
limitações do tempo e do espaço. Despertar um coração compassivo e sábio em
resposta a todas as circunstâncias é tornar-se Buda. Quando despertamos o Buda
dentro de nós, despertamos para a força universal do espírito que pode trazer
compaixão e compreensão ao mundo como um todo. Mahatma Gandhi (1869-1948) chamava
esse poder de "força da alma". Ela traz força quando uma ação firme é
necessária. Traz imenso amor e perdão, embora também defenda e fale a verdade.
É esse poder do nosso coração que traz sabedoria e liberdade em qualquer
circunstância, e que faz viver o reino do espírito aqui na Terra. Para Gandhi,
esse espírito estava sempre ligado ao seu coração, sempre aberto para ouvir e
pronto para responder ao mundo, compartilhando as bênçãos da compaixão com
todos os seres: "Além da minha não cooperação, existe sempre o mais
entusiástico desejo de cooperar, ao menor pretexto, mesmo com o pior dos meus
opositores. Para mim, um mortal muito imperfeito está sempre necessitado da graça
de Deus, sempre necessitado do Dharma. Ninguém está além da redenção". Um
caminho com o coração. Por Jack Kornfield. Shunya. Grupo de Estudo de Prática
Budista. Abraço. Davi.
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