sábado, 30 de novembro de 2019

SANHEDRIN - A SUPREMA CORTE DO POVO JUDEU


Judaísmo. www.morasha.com.br. O SANHEDRIN: A Suprema Corte do Povo Judeu. Juízes e guardas designarás para ti, em cada uma de tuas tribos, em todas as tuas cidades que o Eterno, teu Deus, te der, para que julguem o povo com reto juízo. (Deuteronômio, 16:18). Quando D'us outorgou a Torá ao povo judeu, no Sinai, Ele ordenou-lhes constituir um sistema de tribunais para preservar a justiça e executá-la segundo as leis que Ele transmitira a Moisés. Essas cortes jurídicas deveriam ter autoridade abrangente, abarcando todas as facetas da legislação judaica, quer fossem de teor civil, criminal ou religioso. Era sua missão manter e ensinar o judaísmo e, sempre que necessário, julgar os atos do homem perante D'us e sobretudo perante seu semelhante. A dicotomia existente entre a legislação civil e a religiosa na maioria dos países e sociedades, inexiste na Torá. Toda e qualquer matéria sobre a Lei Judaica é regida pelos mandamentos Divinos, encontrados em detalhe na Torá Escrita ou esmiuçados, em todas as suas interpretações, pela Torá Oral. Essas leis foram ministradas por D'us a Moisés ao pé do Sinai e posteriormente transmitidas - sem interrupção - pelos sábios, de geração em geração. Até os dias de hoje, um judeu que se tenha envolvido em uma disputa com um correligionário, é obrigado, de acordo com a lei da Torá, a levar essa pendência a um tribunal judaico - um Beit Din, literalmente, "uma casa da legislação". É vedado a um judeu encaminhar sua reivindicação a um tribunal secular ou não judeu, a não ser que, tendo primeiramente apresentado seu caso a um tribunal judeu, a parte oponente a isto se recuse. Maimônides escreveu que aquele que desafia esse preceito judaico e tramita sua queixa em uma corte de justiça laica ou secular, é considerado como tendo blasfemado e atacado a Torá, pois, ao assim agir, deu provas de desdenhar as Leis promulgadas por Ele. Desnecessário mencionar, mas é proibido um judeu delatar outro judeu às autoridades para ser julgado por uma corte não-judaica. Um Beit Din consiste de um grupo de juízes que ouvem os casos e proferem a sua sentença. Na lei judaica, não há a figura do júri; são os próprios juízes que interrogam as testemunhas, analisam as evidências e questões relativas ao caso, para então aplicar o veredicto e proferir a sentença. Quando há desacordo entre os juízes, prevalece a maioria simples. No entanto, em épocas ancestrais, quando as cortes judaicas julgavam um caso capital, era necessária uma maioria de no mínimo dois juízes para sentenciar que o réu era culpado. Composição e estrutura do Sanhedrin. Na lei judaica, há três instâncias nos tribunais, cada qual com jurisdição sobre determinadas especialidades. Esses níveis são diferenciados pelo número de juízes que compõem o tribunal e também pelo grau de conhecimentos dos mesmos sobre os assuntos da Torá, bem como seus atributos pessoais de sabedoria, dons e habilidades. O nível mais baixo dos tribunais judaicos - o único que ainda funciona, em nossos dias - é composto por três juízes. Esta classe de tribunal, conhecido simplesmente como Beit Din, ocupa-se geralmente de demandas pecuniárias: empréstimos, furtos, dano à propriedade e ao indivíduo. A instância intermediária, que deixou de existir há quase dois milênios, era formada por vinte e três juízes e conhecida como Sanhedrin Ktaná - Sanhedrin Inferior. Estas cortes examinavam casos capitais. As leis que regiam o julgamento de um crime grave, sujeito à pena capital, eram extremamente complexas e se tomavam todas as precauções para evitar uma aplicação indevida da força da lei. Os processos sempre pesavam a favor do acusado, pois a lei judaica dificultava muito - de fato, quase impedia - que uma pessoa fosse sentenciada à morte. No entanto, se alguém fosse condenado à morte pelo Sanhedrin Ktaná, não havia o recurso de apelação. Uma vez pronunciado um veredicto de culpa, procedia-se à execução imediata da sentença. A razão para tal era poupar o condenado da angústia da espera, dia após dia, até o momento de sua inevitável execução. Em toda a história judaica, raramente sentenciaram-se pessoas à morte. Nos casos em que isso ocorreu, a intenção era preservar a integridade da sociedade judaica ou corrigir uma grande maldade cometida. Ademais, o Talmud e o misticismo judaico ensinam que até mesmo o castigo capital tinha um objetivo humanitário: a execução do autor de um crime passível de morte era a forma de expiação para seu pecado; ajudava-o a purificar sua alma e, portanto, permitia que merecesse participar do Mundo Vindouro. Na tradição judaica, a vida humana tem valor inestimável e, quando os sábios que compunham o Sanhedrin deviam condenar alguém à morte, faziam-no com profunda apreensão e coração pesado. Comenta o Talmud que um tribunal que pronuncia uma pena capital uma única vez em sete anos - e, segundo os mesmos sábios, uma única vez em setenta anos - era considerado um "tribunal destrutivo". Rabi Akiva declarou que se dependesse dele, nenhum ser humano jamais seria executado. A terceira e mais alta das cortes do sistema jurídico judaico era um tribunal composto por setenta e um juízes, dentre os maiores sábios de Israel, e era conhecida como "o Grande Sanhedrin". O primeiro Grande Sinédrio foi convocado no Deserto de Sinai e era encabeçado por Moshé. A partir de então, o principal juiz do Sanhedrin assumia o título oficial de Rosh Ha'Yeshivá - "Presidente da Assembléia". Mais tarde, passaram a se referir a essa personalidade como o Nassi - o "Príncipe". Em matéria pertinente à lei e à justiça judaica, o Nassi era o líder de facto do povo judeu. Era invalidada qualquer sentença pronunciada pelo Sanhedrin sem a presença do Nassi. O juiz que ocupava o segundo lugar nessa hierarquia tinha a função de assistente do Nassi e era conhecido como o Av Beit Din - o "Pai da Corte Rabínica". O Grande Sanhedrin examinava crimes capitais que estavam além da jurisdição da Corte Inferior e, se porventura, um caso não pudesse ser julgado adequadamente pelas demais cortes, era também transferido para a corte suprema. Esta tinha a responsabilidade de julgar os casos mais chocantes e notórios, como os que diziam respeito a um falso profeta ou a uma cidade inteira que se tivesse subvertido à idolatria. Se o Cohen Hagadol - o Sumo Sacerdote de Israel - fosse culpado de um delito máximo, seria julgado pela instância suprema. Esta Corte Superior também se pronunciava sobre questões que afetassem todo o povo judeu, como a indicação de um rei ou do Sumo Sacerdote, a demarcação do calendário judaico, uma declaração de guerra e a nomeação dos juízes do Sanhedrin Inferior. Suas sentenças vinculavam todas os tribunais inferiores e somente podiam ser revogadas por outra decisão judicial do Grande Sanhedrin. Se algum juiz se recusasse a aceitar a sentença desse tribunal máximo e, de público, continuasse a aplicar sua opinião contrária, era passível de condenação à morte. Durante todo o tempo em que existiu o Sanhedrin, era sua a palavra final e autoritária em todas as questões pertinentes à Lei da Torá. Como um braço legislativo do poder, o Sinédrio possuía autoridade outorgada por D'us para promulgar leis que tinham vinculação legal sobre todo Israel. Qualquer legislação promulgada por esse tribunal é chamada de Lei Rabínica; e, apesar de vez por outra admitir certa flexibilidade, o Sanhedrin tem poder compulsório e tão vinculatório quanto um mandamento bíblico. Tamanha autoridade foi-lhe imputada por D'us, Ele próprio, em Sua Torá, como está escrito: "Conforme o mandado da lei que te ensinarem... farás" (Deuteronômio, 17:11). Aquele que acreditava na autoridade da Torá era obrigado a aceitar as determinações e as decisões judiciais do Grande Sanhedrin. Sua função mais importante era a preservação, interpretação e transmissão da Torá Oral. Esta consiste de todas as interpretações e elucidações do corpo de leis escritas, bem como das inúmeras leis que foram outorgadas a Moisés por D'us e que, por um propósito determinado, jamais foram escritas. Desde o Sinai, a Torá Oral foi transmitida oralmente e confiada a uma assembléia de anciãos que a preservaram e ensinaram. Foi transmitida dos mestres para os discípulos durante quase 1.500 anos, dos dias de Moshé até depois de os romanos terem destruído Jerusalém. Ao longo de todo esse período, a Lei e as tradições judaicas foram sagradamente preservadas pelo Sanhedrin. Somente após ter sido exilada e, por fim, dispersada aquela santa assembléia de sábios, é que a Torá Oral foi escrita na forma do Talmud e do Midrash. Após ser construído o Templo Sagrado de Jerusalém, o Grande Sanhedrin reunia-se e decidia sobre as matérias julgadas em uma de suas câmaras, conhecida como a Câmara da Pedra Talhada. O Grande Sanhedrin somente se investia de seus plenos poderes quando despachava desse local. Esse tribunal supremo podia ser instituído em qualquer parte da Terra de Israel, porém, se não se reunisse na Câmara da Pedra Talhada, sua autoridade e seus poderes sofriam drásticas limitações. Os sábios do Sanhedrin. Para que um judeu fosse qualificado a servir no Sinédrio, tinha que possuir grande sabedoria, conhecimento e sagacidade. Acima de tudo, tinha que ter notável domínio das questões da Torá, bem como vasto conhecimento de outras disciplinas que poderiam ter relevância no julgamento de uma ação. Os juízes que o compunham deviam, também, ser fluentes em vários idiomas para que pudessem julgar um réu ou examinar testemunhas que falassem uma língua estrangeira. Deviam, também, esses magistrados, ter conhecimentos sobre outras religiões, bem como sobre práticas da idolatria e do ocultismo, de modo a poder ajuizar e pronunciar veredictos em casos que versassem sobre tais temas. Por essa razão, mesmo as matérias cujo estudo era vedado ou não recomendado aos judeus, eram conhecidas a fundo pelos juízes do Sanhedrin, pois que poderiam ser requisitadas durante um julgado. Todos os juízes, mesmo os que integravam a instância inferior dos tribunais, possuíam atributos e qualidades pessoais irrepreensíveis. Seu caráter tinha que ser exemplar e sua integridade, impecável. Como o disse Maimônides, tinham que ser homens sábios, humildes, tementes a D'us, incorruptivelmente honestos, amantes da verdade; tinham que possuir boa disposição no trato com seus semelhantes e a reputação ilibada. E para que o tribunal do Sanhedrin impusesse o maior respeito possível ao povo, seus magistrados deviam ainda ser indivíduos maduros e de boa aparência. Portanto, dava-se preferência a que tivessem quarenta anos, no mínimo, exceção feita a alguém que tivesse sabedoria e conhecimentos incomparáveis. Para a autoridade máxima do Sanhedrin dava-se preferência a alguém que tivesse entrado na casa dos cinquenta. Em hipótese alguma uma pessoa com menos de dezoito anos era indicada para compor a Corte Suprema do judaísmo. Tampouco tinha assento nessa assembléia o homem estéril ou sem filhos - pois que conforme explicavam os Sábios, o homem se torna mais misericordioso depois de ser pai. Considerava-se inválida, portanto, a composição de um Sanhedrin se um de seus membros se enquadrasse nesta condição. A pessoa que tivesse sido culpada de roubo ou de qualquer transgressão que envolvesse ganho pecuniário era considerada inapta para a nobre função. Obviamente, não podia ter assento em um julgamento o juiz que tivesse algum parentesco com o indiciado, litigantes ou uma das testemunhas. Para compor um Sanhedrin, o magistrado tinha que ser ordenado com uma Semichá. No entanto, esta não deve ser confundida com a ordenação que é pronunciada, hoje, na formatura de um rabino). Essa Semichá também era um pré-requisito para os juízes do Sanhedrin Inferior, mesmo que se tratasse apenas de um tribunal de três membros para julgar algo tão trivial como uma multa. A instituição da Semichá era uma forma singular de ordenação que remontava à época de Moisés, que recebera a sua de D'us. Era transmitida de mestre a discípulo, em uma corrente inquebrantável, até ter caducada a sua vigência, no final do século IV da era comum. A cerimônia de outorga da Semichá somente podia ser realizada na Terra de Israel. Quando a perseguição das autoridades romanas aos judeus fez com que a maioria da população fosse exilada da Terra, foi interrompida a significativa ordenação da Semichá. No ano de 28 E.C., quando os romanos dominavam a Terra de Israel, o Sanhedrin foi destituído de grande parte de seu poder. Sua assembléia deixou de se reunir na Câmara da Pedra Talhada, transferindo-se para outro cômodo do Monte do Templo, em nítida indicação de que tinha sido forçada a abdicar de sua autoridade de julgar casos capitais. Posteriormente, deixou por completo o recinto do Templo, transferindo-se para Jerusalém. Quando a mais sagrada das cidades foi destruída pelas legiões romanas, em 70 da era comum, o Sanhedrin foi para Yavne. Durante o século seguinte, sua sede alternou-se entre Yavne e Usha. De lá, transferiu-se para Shafaram, Beth Shearim, Séforis e Tiberíades. Continuou a funcionar em Tiberíades até pouco antes de ser completada a compilação do Talmud. Durante as perseguições de Constantino, entre 337-361 E.C., o Sanhedrin foi forçado a passar à clandestinidade e acabou por ser dissolvido. A autoridade do Sanhedrin. Ordena a Torá que todo o povo judeu obedeça o que determinam as decisões judiciais do Sanhedrin e suas sentenças. É proibido contestar ou mesmo ignorar sua autoridade, pois que D'us ordenou em sua Torá: "Conforme o mandado da lei que te ensinarem e conforme o juízo que te disserem, farás; da sentença que te anunciarem não te desviarás, nem para a direita nem para a esquerda" (Deuteronômio, 17:11). As determinações do Sanhedrin tinham que ser aceitas ainda que parecessem ilógicas ou erradas. No entanto, esta corte não tinha o poder de promulgar um decreto - jamais o tendo feito - que abolisse um mandamento da Torá nem de proibir algo que a Torá expressamente permitia. Mas, por outro lado,tinha o poder de promulgar uma legislação consoante com as necessidades da época. Qualquer lei decretada pelo Sanhedrin é chamada de Mandamento Rabínico. E quem, porventura, desrespeitasse um mandamento rabínico estaria transgredindo a própria Torá. Os juízes, apesar de humanos e falíveis, eram guiados pelo espírito de D'us, que os ajudava a perseguir a verdade e a justiça. Com efeito, a Torá e o Talmud referem-se, ocasionalmente, aos magistrados do Sanhedrin como Elo-im, que é um dos Nomes que a Torá utiliza para se referir a D'us, Todo Poderoso! Por definição, suas sentenças representam a Vontade Divina. Era, portanto, algo extremamente sério contestar a autoridade do Sanhedrin. Em determinados casos, quem o fizesse poderia ser condenado à morte, pois está escrito: "Se um homem, pois, agir com soberba e não der ouvidos ao... juiz, tal homem morrerá; e assim eliminarás o mal de Israel" (Deuteronômio, 17:12). Era a autoridade desse tribunal supremo o que garantia a preservação da Torá e que fazia ser único e unificado o judaísmo, não estando sujeito aos caprichos e interpretações de quem quer que fosse. Os Sábios que o compunham eram os líderes - as mentes mais elevadas, os homens mais santos de Israel. Até em nossos dias, quando não mais existe a grande assembléia do Sanhedrin, menosprezá-lo é mostrar total desrespeito ao povo judeu, à Torá e mesmo a D'us. Como vimos acima, tratava-se de uma Corte Suprema humanitária e justa, que funcionava sob os auspícios do Juiz Celestial. E, assim sendo, fazia tudo a seu alcance para evitar sentenciar pessoas à morte é uma inverdade histórica. O libelo de sangue que, infelizmente ainda perdura, de que o Sanhedrin teria julgado Jesus, um judeu, no ano de 33 de nossa era, sentenciando-o à morte e, a seguir, entregando-o aos romanos para que o executassem. Como vimos acima, o Sanhedrin deixou de examinar casos capitais no ano de 28 E.C., quando se retirou da Câmara de Pedra Talhada. E o que é ainda mais grave em tal acusação infundada é o absurdo teológico que encerra. É um despropósito e uma ironia sugerir que os maiores mestres nas questões da Torá teriam violado grosseiramente a Sua Lei, que proíbe, de forma inarredável, a um judeu entregar outro judeu para ser julgado por autoridades não judias - muito menos se este ato redundasse em sua execução. É mister, também, que fique muito claro que o Sanhedrin, de acordo com a sagrada Torá, não podia julgar casos capitais - como nunca o fez - na véspera de Shabat, de Pessach nem de qualquer de suas datas sagradas, pois é contra a lei judaica executar quem quer que seja nos Dias Santificados. Quando o Sanhedrin era forçado a condenar um judeu à morte, ainda que pelo mais hediondo dos crimes ou pecados, essa assembléia de homens sábios empenhava-se ao máximo para preservar a dignidade do indiciado e minimizar sua dor física. No dia da execução do culpado, todos os juízes jejuavam, em sinal de luto pelo réu judeu - um de seus irmãos - que eles próprios haviam condenado à morte. Os magistrados que compunham o Sanhedrin tinham consciência de sua terrível responsabilidade: a de se tornarem parceiros Divinos ao ser o braço da justiça no mundo que Ele criou. Ao tentar emular o Juiz de toda a Terra, eles temperavam a justiça com misericórdia, decretando a pena capital muito raramente, apenas quando de fato não lhes restava alternativa. A restauração do Sanhedrin. Referindo-se ao Sanhedrin, a Torá afirma:.. "deverás... subir ao local (...)" indicando que o lugar escolhido para acolher a Suprema Corte era um dos mais elevados na Terra de Israel. Ao tentar determinar o lugar escolhido por D'us para a construção do Templo Sagrado, o Rei David e o Profeta Samuel guiaram-se por esse versículo. O fato de o local escolhido ter sido determinado por um verso da Torá que, por sua vez, se refere à localização do Sanhedrin, nos revela que a razão primária para a existência do Templo Sagrado era a de sediar a magna instituição. Com efeito, uma das principais funções do Templo era a educativa - "... para que aprendas a temer o Eterno, teu D'us, todos os dias de tua vida" ((Deuteronômio, 14:23). A principal fonte de instrução era o Sanhedrin, cujos magistrados ensinavam a Torá a todo o povo de Israel. E a Lei de Moisés era preservada pelo Sinédrio, que, desta maneira, evitava sua interpretação errônea e aplicação indevida, pois isso daria motivo a fricção e dissidência no seio do povo judeu. Pois que nos ordena a Torá: "Uma mesma Lei, um mesmo estatuto (Torá) haverá para vós..." (Números, 15:16). Hoje, quase dois mil anos depois de destruído o Templo, o Sanhedrin continua a desempenhar um papel dominante na vida do povo judeu. Foi essa corte moldou o judaísmo. Uma tradição diz que a restauração do Sanhedrin precederá a chegada do Messias. Pois que este será Rei de Israel e, portanto, precisa ser confirmado por uma ordenação direta do Sanhedrin. Eis que D'us disse a Seu profeta: "Restituir-te-ei os teus juízes, como eram antigamente, os teus conselheiros, como no princípio; depois te chamarão Cidade da Justiça, Cidade da Fé. Sion será redimida pelo direito; e os que se arrependem, pela justiça" (Isaías, 1:26-27). Por outro lado, um ensinamento nos diz que o Sanhedrin será restaurado após uma parcial reunião dos exilados judeus, antes que seja reconstruída e restaurada Jerusalém; e que o Profeta Eliahu se apresentará perante esta Corte Suprema dos judeus, ao anunciar a chegada do Messias. Por isso, na Amidá, a oração recitada três vezes ao dia, rogamos a D'us que "restitua nossos juízes, como no passado, e nossos conselheiros, como outrora". Por trás desse rogo sente-se a nostalgia judaica que clama pela reconstrução do Templo Sagrado de Jerusalém, para que todos os judeus voltem a se reunir na Terra de Israel e D´us contemple a humanidade com uma era de prosperidade e paz absoluta. www.morasha.com.br. Abraço.Davi


sexta-feira, 29 de novembro de 2019

A PRECIOSIDADE DA NOSSA VIDA HUMANA


Budismo. www.budismomoderno.org.br. Livro Budismo Moderno. Autor Geshe Kelsang Gyatso (1931 - ). O CAMINHO DE UMA PESSOA DE ESCOPO INICIAL. Neste contexto, uma “pessoa de escopo inicial” refere-se a alguém que tem uma capacidade inicial para desenvolver compreensão e realizações espirituais. A PRECIOSIDADE DA NOSSA VIDA HUMANA. O propósito de compreender a preciosidade da nossa vida humana é encorajarmo-nos a extrair o sentido da nossa vida humana e não desperdiça em atividades sem significado. Nossa vida humana é muito preciosa e significativa, mas somente se a usarmos para obter libertação permanente e a felicidade suprema da iluminação. Devemos nos encorajar a realizar o verdadeiro significado da nossa vida humana por meio de compreender e contemplar a seguinte explicação. Muitas pessoas acreditam que o desenvolvimento material é o verdadeiro sentido da vida humana, mas podemos ver que não importa quanto desenvolvimento material exista no mundo, ele nunca reduz os sofrimentos e os problemas humanos. Em vez disso, ele frequentemente faz com que os sofrimentos e os problemas aumentem; portanto, ele não é o verdadeiro sentido da vida humana. Devemos saber que, vindos das nossas vidas anteriores, alcançamos agora o mundo humano por apenas um breve instante e que temos a oportunidade de obter a felicidade suprema da iluminação praticando o Dharma. Essa é a nossa extraordinária boa fortuna. Quando alcançarmos a iluminação, teremos satisfeito todos os nossos desejos e poderemos satisfazer os desejos de todos os demais seres vivos; teremos libertado a nós próprios permanentemente dos sofrimentos desta vida e de incontáveis vidas futuras, e poderemos beneficiar diretamente todos e cada um dos seres vivos, todos os dias. A conquista da iluminação é, portanto, o verdadeiro sentido da vida humana. A iluminação é a luz interior de sabedoria que é permanentemente livre de toda aparência equivocada e que atua concedendo paz mental para todos e cada um dos seres vivos, todos os dias – essa é a função da iluminação. Agora mesmo obtivemos um renascimento humano e temos a oportunidade de alcançar a iluminação pela prática do Dharma; assim sendo, se desperdiçarmos esta preciosa oportunidade em atividades sem significado, não haverá maior perda nem maior insensatez do que essa. O motivo é que tal oportunidade preciosa será extremamente difícil de ser encontrada no futuro. Em um Sutra, Buda torna isso claro por meio da seguinte analogia. Ele pergunta aos seus discípulos: “Imaginem que exista um vasto e profundo oceano do tamanho deste mundo; que, em sua superfície, haja uma canga dourada flutuando; e que, no fundo do oceano, viva uma tartaruga cega que vem à superfície apenas uma vez a cada cem mil anos. Quantas vezes a tartaruga colocaria sua cabeça no meio da canga?” Ananda, seu discípulo, respondeu que, certamente, isso seria extremamente raro. Nesse contexto, o vasto e profundo oceano refere-se ao samsara – o ciclo de vida impura que temos experienciado desde tempos sem início, continuamente, vida após vida, sem-fim; a canga dourada refere-se ao Budadharma, e a tartaruga cega refere-se a nós. Embora não sejamos fisicamente como uma tartaruga, mentalmente não somos muito diferentes; e embora os nossos olhos físicos possam não ser cegos, os nossos olhos de sabedoria o são. Na maioria das nossas incontáveis vidas anteriores, permanecemos no fundo do oceano do samsara, nos três reinos inferiores – no reino animal, no reino dos fantasmas famintos e no reino do inferno – emergindo como ser humano apenas a cada cem mil anos, mais ou menos. Mesmo quando alcançamos brevemente o reino superior do oceano do samsara como um ser humano, é extremamente raro encontrar a canga dourada do Budadharma: o oceano do samsara é extremamente vasto, a canga dourada do Budadharma não permanece num único lugar, mas move-se de um lugar a outro, e os nossos olhos de sabedoria estão sempre cegos. Por essas razões, Buda diz que, no futuro, mesmo se obtivermos um renascimento humano, será extremamente raro encontrar o Budadharma novamente; encontrar o Dharma Kadam é ainda mais raro que isso. Podemos ver que a grande maioria dos seres humanos no mundo, embora tenham brevemente alcançado o reino superior do samsara como seres humanos, não encontraram o Budadharma. O motivo é que os seus olhos de sabedoria não se abriram. O que significa “encontrar o Budadharma”? Significa ingressar no Budismo buscando sinceramente refúgio em Buda, Dharma e Sangha e, assim, ter a oportunidade de ingressar e fazer progressos no caminho à iluminação. Se não encontrarmos o Budadharma, não teremos oportunidade para fazer isso e, assim, não teremos oportunidade de obter a felicidade pura e duradoura da iluminação, o verdadeiro sentido da vida humana. Concluindo, devemos pensar: Agora eu alcancei, por um breve momento, o mundo humano, e tenho a oportunidade de obter a libertação permanente do sofrimento e a felicidade suprema da iluminação por meio de colocar o Dharma em prática. Se eu desperdiçar esta preciosa oportunidade em atividades sem significado, não haverá maior perda nem maior insensatez. Com esse pensamento, tomamos a firme determinação de praticar agora o Dharma dos ensinamentos de Buda sobre renúncia, compaixão universal e visão profunda da vacuidade, enquanto temos esta oportunidade. Então, meditamos repetidamente nessa determinação. Devemos praticar essa contemplação e meditação todos os dias em muitas sessões e, desse modo, nos encorajarmos a extrair o verdadeiro sentido da nossa vida humana. Devemos nos perguntar o que consideramos mais importante – o que desejamos, pelo que nos dedicamos ou com o que sonhamos? Para algumas pessoas são as posses materiais, como uma casa grande com os últimos requintes de conforto, um carro veloz ou um emprego bem remunerado. Para outros é reputação, boa aparência, poder, excitação ou aventura. Muitos tentam encontrar o sentido de suas vidas em relacionamentos familiares e círculo de amigos. Todas essas coisas podem nos fazer superficialmente felizes por pouco tempo, mas elas também causam muita preocupação e sofrimento. Elas nunca irão nos dar a verdadeira felicidade que todos nós, em nossos corações, buscamos. Já que não podemos levá-las conosco quando morrermos, com certeza irão nos decepcionar se tivermos feito delas o principal sentido da nossa vida. As aquisições mundanas, tomadas como um fim em si mesmas, são ocas: elas não são o verdadeiro sentido da vida humana. Com a nossa vida humana podemos, ao colocar o Dharma em prática, obter a suprema paz mental permanente, conhecida como “nirvana”, e a iluminação. Uma vez que essas aquisições são não enganosas e são estados últimos de felicidade, elas são o verdadeiro sentido da vida humana. No entanto, porque o nosso desejo por prazer mundano é tão forte, temos pouco ou nenhum interesse pela prática de Dharma. Do ponto de vista espiritual, essa ausência de interesse pela prática de Dharma é um tipo de preguiça denominado “preguiça do apego”. A porta da libertação permanecerá fechada para nós enquanto tivermos essa preguiça e, consequentemente, continuaremos a vivenciar infortúnio e sofrimento nesta vida e em incontáveis vidas futuras. A maneira de superar essa preguiça, o principal obstáculo para a nossa prática de Dharma, é meditar sobre a morte. Precisamos contemplar a nossa morte e meditar sobre ela repetidamente, até obtermos uma profunda realização sobre a morte. Embora, num nível intelectual, todos nós saibamos que definitivamente iremos morrer, nossa percepção sobre a morte permanece superficial. Na medida em que a nossa compreensão intelectual da morte não toca o nosso coração, continuamos a pensar todos os dias “eu não vou morrer hoje, eu não vou morrer hoje”. Mesmo no dia da nossa morte, ainda estaremos pensando sobre o que faremos no dia ou na semana seguintes. Essa mente que pensa todo dia “eu não vou morrer hoje” é enganosa – ela nos conduz na direção errada e faz com que a nossa vida humana se torne vazia. Por outro lado, meditando sobre a morte, substituiremos gradativamente o pensamento enganoso “eu não vou morrer hoje” pelo pensamento não enganoso “pode ser que eu morra hoje”. A mente que espontaneamente pensa todos os dias “pode ser que eu morra hoje” é a realização sobre a morte. É essa realização que elimina diretamente a nossa preguiça do apego e abre a porta para o caminho espiritual. Em geral, podemos ou não morrer hoje – não sabemos. No entanto, se pensarmos todos os dias “talvez eu não morra hoje”, esse pensamento irá nos enganar porque vem da nossa ignorância; porém, se em vez disso pensarmos todos os dias “pode ser que eu morra hoje”, esse pensamento não irá nos enganar porque vem da nossa sabedoria. Esse pensamento benéfico impedirá a nossa preguiça do apego e irá nos encorajar a preparar o bem-estar das nossas incontáveis vidas futuras ou a aplicar grande esforço para ingressarmos no caminho da libertação e da iluminação. Desse modo, tornaremos significativa nossa vida humana atual. Até agora desperdiçamos, sem sentido algum, nossas incontáveis vidas anteriores: não trouxemos nada conosco das nossas vidas passadas, exceto delusões e sofrimento. www.budismomoderno.org.br. Abraço. Davi

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

DEUS


Espiritismo. www.fetnet.org.br. Texto de Allan Kardec. Tradução Evandro Noleto Bezerra. Livro A Gênese – Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. Capítulo II. DEUS. Existência de Deus. A Natureza Divina. A Providência. A Visão de Deus. 1. Sendo Deus a causa primeira de todas as coisas, a origem de tudo que existe, a base sobre a qual repousa o edifício da Criação, é o ponto que importa considerar-se antes de tudo. 2. Constitui princípio elementar que pelos efeitos é que se julga uma causa, mesmo quando ela se conserve oculta. Se, pois, rasgando os ares, um pássaro é atingido por mortífero grão de chumbo, deduz-se que um hábil atirador o alvejou, ainda que este último não seja visto. Assim, nem sempre é preciso que se veja uma coisa para ficar-se sabendo da sua existência. Em tudo, é observando os efeitos que se chega ao conhecimento das causas que os produzem. 3. Outro princípio igualmente elementar e que, de tão verdadeiro, passou a axioma é o de que todo efeito inteligente tem que resultar de uma causa inteligente. Se, por exemplo, alguém perguntar qual o construtor de certo mecanismo engenhoso, que pensaríamos de quem respondesse que ele se fez a si mesmo? Quando se contempla uma obra-prima da arte ou da indústria, diz-se que só um homem de gênio seria capaz de produzi-la, visto que só uma alta inteligência poderia concebê-la. Reconhece-se, no entanto, que ela é obra do homem, porque não está acima da capacidade humana; a ninguém, porém, acorrerá a ideia de dizer que saiu do cérebro de um deficiente mental ou de um ignorante, nem, ainda menos, que seja trabalho de um animal, ou simples produto do acaso. 4. Em toda parte se reconhece a presença do homem pelas suas obras. A existência dos homens antediluvianos não se provaria unicamente por meio dos fósseis humanos, mas também, e com muita certeza, pela presença, nos terrenos daquela época, de objetos trabalhados pelos homens. Um fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma, um tijolo bastarão para lhe atestar a presença. Pela grosseria ou perfeição do trabalho, reconhecer- -se-á o grau de inteligência ou de adiantamento dos que o executaram. Se, pois, achando-vos numa região habitada exclusivamente por selvagens, descobrirdes uma estátua digna de Fídias,25 não hesitareis em dizer que ela é obra de uma inteligência superior à dos selvagens, visto que estes seriam incapazes de fazê-la. 5. Pois bem! Lançando o olhar em torno de si, sobre as obras da natureza, observando a previdência, a sabedoria, a harmonia que preside a todas as coisas, reconhece-se não haver nenhuma que não ultrapasse os limites da mais talentosa inteligência humana. Ora, desde que o homem não as pode produzir, é que elas são produto de uma inteligência superior à humanidade, salvo se sustentarmos que há efeitos sem causa. 6. A isto algumas pessoas opõem o seguinte raciocínio: as obras ditas da natureza são produzidas por forças materiais que atuam mecanicamente, em virtude das leis de atração e repulsão; as moléculas dos corpos inertes se agregam e desagregam sob o império dessas leis. As plantas nascem, brotam, crescem e se multiplicam sempre da mesma maneira, cada uma na sua espécie, por efeito daquelas mesmas leis; cada indivíduo se assemelha ao de que ele proveio; o crescimento, a floração, a frutificação, a coloração se acham subordinados a causas materiais, tais como o calor, a eletricidade, a luz, a umidade etc. O mesmo se dá com os animais. Os astros se formam pela atração molecular e se movem perpetuamente em suas órbitas por efeito da gravitação. Essa regularidade mecânica no emprego das forças naturais não acusa de modo algum a ação de uma inteligência livre. O homem movimenta o braço quando quer e como quer; aquele, porém, que o movimentasse no mesmo sentido, desde o nascimento até a morte, seria um autômato. Ora, as forças orgânicas da natureza são puramente automáticas. Tudo isso é verdade, mas essas forças são efeitos que devem ter uma causa e ninguém pretende que constituam a Divindade. Elas são materiais e mecânicas; não são por si mesmas inteligentes, o que também é verdade; mas são postas em ação, distribuídas, apropriadas às necessidades de cada coisa por uma inteligência que não é a dos homens. A aplicação útil dessas forças é um efeito inteligente que denota uma causa inteligente. Um pêndulo se move com automática regularidade e é nessa regularidade que está o seu mérito. A força que o faz mover-se é toda material e nada tem de inteligente. Mas que seria esse pêndulo se uma inteligência não houvesse combinado, calculado, distribuído o emprego daquela força para fazê-lo andar com precisão? Pelo fato de não estar a inteligência no mecanismo do pêndulo e também pela circunstância de que ninguém a vê, seria racional concluir-se que ela não existe? Podemos julgá-la pelos seus efeitos. A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro; a engenhosidade do mecanismo atesta a inteligência e o saber de seu fabricante. Quando um relógio vos dá, no momento preciso, a indicação de que necessitais, acaso já vos terá vindo à mente dizer: aí está um relógio bastante inteligente? Dá-se a mesma coisa com o mecanismo do universo: Deus não se mostra, mas se revela pelas suas obras. 7. A existência de Deus é, pois, um fato comprovado não só pela revelação, como pela evidência material dos fatos. Os povos selvagens não tiveram nenhuma revelação; entretanto, creem instintivamente na existência de um poder sobre-humano. Eles veem coisas que estão acima das possibilidades do homem e deduzem que essas coisas provêm de um ser superior à humanidade. Não demonstram raciocinar com mais lógica do que os que pretendem que tais coisas se fizeram a si mesmas? A natureza divina 8. Não é dado ao homem sondar a natureza íntima de Deus. Para compreendê-lo, ainda nos falta um sentido próprio que só se adquire por meio da completa depuração do Espírito. Mas se não pode penetrar na essência de Deus, o homem, desde que aceite a sua existência como premissa, pode, pelo raciocínio, chegar ao conhecimento de seus atributos essenciais, porquanto, vendo o que Ele absolutamente não pode ser, sem deixar de ser Deus, deduz daí o que Ele deve ser. Sem o conhecimento dos atributos de Deus, seria impossível compreender-se a obra da Criação. Esse é o ponto de partida de todas as crenças religiosas e é por não se terem reportado a isso, como o farol capaz de as orientar, que a maioria das religiões errou em seus dogmas. As que não atribuíram a Deus a onipotência imaginaram muitos deuses; as que não lhe atribuíram a soberana bondade fizeram dele um Deus ciumento, colérico, parcial e vingativo. 9. Deus é a suprema e soberana inteligência. A inteligência do homem é limitada, visto que não pode fazer nem compreender tudo o que existe. A de Deus, abrangendo o infinito, tem que ser infinita. Se a supuséssemos limitada num ponto qualquer, poderíamos conceber outro ser mais inteligente, capaz de compreender e fazer o que o primeiro não faria, e assim por diante, até o infinito. 10. Deus é eterno, isto é, não teve começo e não terá fim. Se tivesse tido começo, é porque teria saído do nada. Ora, como o nada não existe, não pode gerar coisa alguma. Ou, então, teria sido criado por outro ser anterior e, nesse caso, este ser é que seria Deus. Se lhe supuséssemos um começo e um fim, poderíamos conceber uma entidade existente antes dele e capaz de lhe sobreviver, e assim por diante, até o infinito. 11. Deus é imutável. Se estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o universo não teriam nenhuma estabilidade. 12. Deus é imaterial, isto é, a sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria. De outro modo, não seria imutável, pois estaria sujeito às transformações da matéria. Deus não tem forma apreciável pelos nossos sentidos, sem o que seria matéria. Dizemos: a mão de Deus, o olho de Deus, a boca de Deus, porque o homem, nada mais conhecendo além de si mesmo, toma a si próprio por termo de comparação para tudo o que não compreende. São ridículas essas imagens em que Deus é representado pela figura de um ancião de longas barbas e envolto num manto; têm o inconveniente de rebaixar o Ser supremo às mesquinhas proporções da humanidade. Daí a lhe emprestarem as paixões humanas e dele fazerem um Deus colérico e ciumento não vai mais que um passo. 13. Deus é onipotente. Se não possuísse o poder supremo, poder-se-ia conceber um ser mais poderoso e assim por diante, até chegar ao ser cujo poder não fosse ultrapassado por nenhum outro. Esse então é que seria Deus. 14. Deus é soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das Leis divinas se revela nas menores como nas maiores coisas, e essa sabedoria não permite que se duvide nem da sua justiça, nem da sua bondade. O fato de ser infinita uma qualidade exclui a possibilidade da existência de uma qualidade contrária, que a diminuiria ou anularia. Um ser infinitamente bom não poderia conter a mais insignificante parcela de maldade, nem o ser infinitamente mau conter a mais insignificante parcela de bondade, do mesmo modo que um objeto não pode ser de um negro absoluto com a mais ligeira nuança de branco, nem de um branco absoluto com a mais leve mancha preta. Deus, pois, não poderia ser simultaneamente bom e mau, porque então, não possuindo quaisquer dessas duas qualidades no grau supremo, não seria Deus; todas as coisas estariam sujeitas ao seu capricho e não haveria estabilidade para nenhuma delas. Não poderia Ele, por conseguinte, deixar de ser ou infinitamente bom ou infinitamente mau. Ora, como suas obras dão testemunho da sua sabedoria, da sua bondade e da sua solicitude, concluir-se-á que, não podendo ser ao mesmo tempo bom e mau sem deixar de ser Deus, Ele necessariamente tem de ser infinitamente bom. A soberana bondade implica a soberana justiça, porquanto, se Ele procedesse injustamente ou com parcialidade numa única circunstância que fosse, ou com relação a uma só de suas criaturas, já não seria soberanamente justo e, por conseguinte, já não seria soberanamente bom. 15. Deus é infinitamente perfeito. É impossível conceber-se Deus sem o infinito das perfeições, sem o que não seria Deus, pois sempre se poderia conceber um ser que possuísse o que lhe faltasse. Para que nenhum ser possa ultrapassá-lo, é preciso que Ele seja infinito em tudo. Sendo infinitos, os atributos de Deus não são suscetíveis nem de aumento nem de diminuição, visto que do contrário não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se lhe tirassem a mínima parcela de um só de seus atributos, já não haveria Deus, pois que poderia existir um ser mais perfeito. 16. Deus é único. A unicidade de Deus é consequência do fato de serem infinitas as suas perfeições. Não poderia existir outro Deus, salvo sob a condição de ser igualmente infinito em todas as coisas, visto que, se houvesse entre eles a mais leve diferença, um seria inferior ao outro, subordinado ao poder desse outro e, então, não seria Deus. Se houvesse entre ambos igualdade absoluta, isso equivaleria a existir, por toda eternidade, um mesmo pensamento, uma mesma vontade, um mesmo poder. Confundidos quanto à identidade, não haveria, na realidade, mais que um único Deus. Se cada um tivesse atribuições especiais, um não faria o que o outro fizesse; mas, então, não existiria igualdade perfeita entre eles, pois que nenhum possuiria a autoridade soberana. 17. Foi a ignorância do princípio de que são infinitas as perfeições de Deus que gerou o politeísmo, culto adotado por todos os povos primitivos. Eles atribuíam à Divindade todo poder que lhes parecia acima dos poderes inerentes à humanidade. Mais tarde, a razão os levou a reunir essas diversas potências numa só. Depois, à medida que os homens foram compreendendo a essência dos atributos divinos, retiraram dos símbolos, que haviam criado, a crença que implicava a negação desses atributos. 18. Em resumo, Deus não pode ser Deus, senão sob a condição de que nenhum outro o ultrapasse, porquanto o ser que o excedesse no que quer que fosse, ainda que apenas na espessura de um fio de cabelo, é que seria o verdadeiro Deus. Para que assim não aconteça, é indispensável que Ele seja infinito em tudo. Comprovada, pois, pelas suas obras a existência de Deus, chegamos, por simples dedução lógica, a determinar os atributos que o caracterizam. 19. Deus é, pois, a inteligência suprema e soberana, é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as perfeições, e não poderia ser outra coisa. Tal o eixo sobre o qual repousa o edifício universal, o farol cujos raios se estendem sobre o universo inteiro, única luz capaz de guiar o homem na procura da verdade. Orientando-se por essa luz, ele nunca se transviará. Se, portanto, o homem tem errado tantas vezes, é unicamente por não ter seguido o roteiro que lhe estava indicado. Tal também o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas e religiosas. Para apreciá-las, o homem dispõe de uma medida rigorosamente exata nos atributos de Deus e pode afirmar com certeza que toda teoria, todo princípio, todo dogma, toda crença, toda prática que estiver em contradição com um só que seja desses atributos, que tenda não só a anulá-lo, mas simplesmente a diminuí-lo, não pode estar com a verdade. Em filosofia, psicologia, moral e religião só há de verdadeiro o que não se afaste nem um milímetro das qualidades essenciais da Divindade. A religião perfeita será aquela em que nenhum artigo de fé esteja em oposição com aquelas qualidades; aquela cujos dogmas suportem a prova desse controle sem nada sofrerem. A Providência 20. A Providência é a solicitude de Deus para com as suas criaturas. Deus está em toda parte, tudo vê e a tudo preside, mesmo às coisas mais insignificantes. É nisto que consiste a ação providencial. “Como pode Deus, tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, intrometer-se em pormenores sem importância, preocupar-se com os menores atos da nossa vida e com os mais ínfimos pensamentos de cada indivíduo?” Tal a interrogação que o incrédulo dirige a si mesmo, concluindo por dizer que, admitida a existência de Deus, só se pode aceitar, quanto à sua ação, que ela se exerça sobre as leis gerais do universo; que o universo funcione de toda a eternidade, em virtude dessas leis, às quais toda criatura se acha submetida na esfera de suas atividades, sem que seja preciso a intervenção incessante da Providência. 21. No estado de inferioridade em que ainda se encontram, só com muita dificuldade os homens podem compreender que Deus seja infinito, visto que, sendo eles mesmos limitados e circunscritos, imaginam também que Deus seja circunscrito e limitado, figurando-o à imagem e semelhança deles. Os quadros em que o vemos com traços humanos não contribuem pouco para entreter esse erro no espírito das massas, que nele adoram mais a forma que o pensamento. Para a maioria, Ele é um soberano poderoso, sentado num trono inacessível e perdido na imensidade dos céus. Como suas faculdades e percepções são limitadas, não compreendem que Deus possa ou se digne de intervir diretamente nas pequeninas coisas. 22. Impotente para compreender a essência mesma da Divindade, o homem não pode fazer dela mais que uma ideia aproximada, mediante comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que, ao menos, servem para lhe mostrar a possibilidade daquilo que, à primeira vista, lhe parece impossível. Suponhamos um fluido bastante sutil para penetrar todos os corpos. Sendo ininteligente, esse fluido atua mecanicamente, tão só por meio das forças materiais. Se, porém, o imaginarmos dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, ele já não atuará às cegas, mas com discernimento, com vontade própria e liberdade: verá, ouvirá e sentirá. 23. As propriedades do fluido perispiritual dão-nos disso uma ideia. Ele não é inteligente por si mesmo porque é matéria, mas é o veículo do pensamento, das sensações e percepções do Espírito. O fluido perispiritual não é o pensamento do Espírito, mas o agente e o intermediário desse pensamento. Sendo ele que o transmite, fica, de certo modo, impregnado do pensamento transmitido. Na impossibilidade em que nos achamos de isolar o pensamento, parece-nos que ele faz coro com o fluido, dando a entender que são uma coisa só, como sucede com o som e o ar, de maneira que podemos, a bem dizer, materializá-lo. Assim como dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos, tomando o efeito pela causa, dizer que o fluido se torna inteligente. 24. Seja ou não assim no que respeita ao pensamento de Deus, isto é, quer o pensamento de Deus atue diretamente ou por intermédio de um fluido, representemo-lo, para facilitar a nossa compreensão, sob a forma concreta de um fluido inteligente preenchendo o universo infinito, e penetrando todas as partes da Criação: a natureza inteira está mergulhada no fluido divino. Ora, em virtude do princípio de que as partes de um todo são da mesma natureza e têm as mesmas propriedades que ele, cada átomo desse fluido, se assim nos podemos exprimir, possuindo o pensamento, isto é, os atributos essenciais da Divindade e estando o mesmo fluido em toda parte, tudo está submetido à sua ação inteligente, à sua previdência, à sua solicitude. Não haverá nenhum ser, por mais ínfimo que o suponhamos, que de algum modo não esteja saturado dele. Achamo-nos, assim, constantemente em presença da Divindade; não lhe podemos subtrair ao olhar nenhuma de nossas ações; o nosso pensamento está em contato incessante com o seu pensamento, havendo, pois, razão para dizer-se que Deus vê os mais profundos refolhos do nosso coração. Estamos nele, como Ele está em nós, segundo a palavra do Cristo. [I João, 4:13.] Para estender a sua solicitude a todas as criaturas, Deus não precisa lançar o olhar do alto da imensidade. Para que nossas preces sejam ouvidas, não precisam transpor o espaço, nem serem ditas com voz retumbante, porque, estando Deus continuamente ao nosso lado, os nossos pensamentos repercutem nele. Os nossos pensamentos são como os sons de um sino, que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente. 25. Longe de nós o pensamento de materializar a Divindade. A imagem de um fluido inteligente universal evidentemente não passa de uma comparação, mas capaz de dar uma ideia mais exata do que os quadros que o representam sob uma figura humana. Tem por objetivo tornar compreensível a possibilidade que tem Deus de estar em toda parte e de se ocupar com todas as coisas. 26. Temos constantemente sob as vistas um exemplo que nos permite fazer ideia da maneira pela qual talvez se exerça a ação de Deus sobre as partes mais íntimas de todos os seres e, por conseguinte, do modo por que lhe chegam as mais sutis impressões de nossa alma. Colhemos esse exemplo de uma instrução transmitida por um Espírito a tal respeito. 27. “O homem é um pequeno mundo, que tem como diretor o Espírito e como princípio dirigido o corpo. Nesse universo, o corpo representará uma criação cujo Espírito seria Deus. (Compreendei bem que aqui há uma simples questão de analogia e não de identidade.) Os membros desse corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os músculos, os nervos, as articulações são outras tantas individualidades materiais, se assim se pode dizer, localizadas em pontos especiais do corpo. Embora seja considerável o número de suas partes constitutivas, de natureza tão variada e diferente, ninguém, contudo, poderá supor que se possam produzir movimentos, ou uma impressão em qualquer lugar, sem que o Espírito tenha consciência do que ocorra. Há sensações diversas em muitos lugares simultaneamente? O Espírito as sente todas, distingue, analisa, atribui a cada uma a causa determinante e o ponto em que se produziu, tudo por meio do fluido perispirítico. “Ocorre fenômeno semelhante entre Deus e a Criação. Deus está em toda parte, na natureza, como o Espírito está em toda parte, no corpo. ­Todos os elementos da Criação se acham em relação constante com Ele, como todas as células do corpo humano se acham em contato imediato com o ser espiritual. Não há, pois, razão para que fenômenos da mesma ordem não se produzam da mesma maneira, num e noutro caso. “Um membro se agita: o Espírito o sente; uma criatura pensa: Deus o sabe. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos estão a vibrar; o Espírito se ressente de todas as manifestações, as distingue e localiza. As diferentes criações, as diferentes criaturas se agitam, pensam, agem diversamente: Deus sabe tudo o que se passa e atribui a cada um o que lhe diz respeito. “Daí se pode igualmente deduzir a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade entre si de todos os seres de um mundo, a de todos os mundos e, por fim, de todas as criações com o Criador.” (Quinemant, Sociedade de Paris, 1867.) 28. Compreendemos o efeito, o que já é muito. Do efeito remontamos à causa e julgamos da sua grandeza pela grandeza do efeito. Sua essência íntima, contudo, nos escapa, como a da causa de uma imensidão de fenômenos. Conhecemos os efeitos da eletricidade, do calor, da luz, da gravitação; calculamo-los e, entretanto, ignoramos a natureza íntima do princípio que os produz.26 Será então racional negarmos o princípio divino simplesmente porque não o compreendemos? 29. Nada impede que se admita, para o princípio da soberana inteligência, um centro de ação, um foco principal a irradiar incessantemente, inundando o universo com seus eflúvios, como o Sol o faz com a sua luz. Mas onde está esse foco? É o que ninguém pode dizer. Provavelmente, não se acha fixado em determinado ponto, como não o está a sua ação, sendo também provável que percorra constantemente as regiões do espaço ilimitado. Se simples Espíritos têm o dom da ubiquidade, em Deus há de ser sem limites essa faculdade. Enchendo Deus o universo, poder-se-ia ainda admitir, a título de hipótese, que esse foco não precisa transportar-se, por se formar em todas as partes em que a soberana vontade julga conveniente que ele se produza, levando-nos a dizer que está em toda parte e em parte alguma. 30. Diante desses problemas insondáveis, a nossa razão deve humilhar-se. Deus existe: não há como duvidar disso. Por sua própria essência, Ele é infinitamente justo e bom. A sua solicitude se estende a tudo: compreendemo-lo. Só o nosso bem, portanto, Ele pode querer, razão pela qual devemos confiar nele: eis o essencial. Quanto ao mais, esperemos que nos tenhamos tornado dignos de o compreender. A visão de Deus 31. Se Deus está em toda parte, por que não o vemos? Vê-lo-emos quando deixarmos a Terra? Tais as questões que se formulam todos os dias. A primeira é fácil de responder. Nossos órgãos materiais têm percepções limitadas que os tornam inaptos à visão de certas coisas, mesmo materiais. Assim é que alguns fluidos nos fogem totalmente à nossa visão e aos instrumentos de análise; entretanto, nem por isso duvidamos da existência deles. Vemos os efeitos da peste, mas não vemos o fluido que a transporta;27 vemos os corpos em movimento sob a influência da força de gravitação, mas não vemos essa força. 32. Os nossos órgãos materiais não podem perceber as coisas de essência espiritual. Só podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial com a visão espiritual. Apenas a nossa alma, portanto, pode ter a percepção de Deus. Será que ela o vê logo após a morte? A esse respeito, só as comunicações de além-túmulo nos podem instruir. Por meio delas ficamos sabendo que a visão de Deus constitui privilégio das almas mais depuradas e que bem poucas, ao deixarem o envoltório terrestre, possuem o grau de desmaterialização necessária para tal efeito. Uma comparação vulgar tornará facilmente compreensível essa condição. 33. Uma pessoa que se ache no fundo de um vale, envolvido por densa bruma, não vê o Sol. Entretanto, pela luz difusa, percebe a claridade do Sol. Se resolve subir a montanha, à medida que for ascendendo, o nevoeiro se irá dissipando cada vez mais e a luz se torna cada vez mais viva. Contudo, ainda não verá o Sol. Só depois que se haja elevado acima da camada brumosa e chegado a um ponto em que o ar esteja perfeitamente límpido, ela contemplará o astro em todo o seu esplendor. Dá-se a mesma coisa com a alma. O envoltório perispirítico, embora nos seja invisível e impalpável, é, com relação a ela, verdadeira matéria, ainda grosseira demais para certas percepções. Esse envoltório se espiritualiza à medida que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são quais camadas nevoentas que lhe obscurecem a visão. Cada imperfeição de que ela se desfaz é uma mácula a menos; todavia, só depois de se haver depurado completamente é que goza da plenitude das suas faculdades. 34. Sendo Deus a essência divina por excelência, não pode ser percebido em todo o seu esplendor senão pelos Espíritos que atingiram o mais alto grau de desmaterialização. Pelo fato de não verem a Deus, não se segue que os Espíritos imperfeitos estejam mais distantes dele do que os outros, visto que, como todos os seres da natureza, estão mergulhados no fluido divino, do mesmo modo que nós o estamos na luz. O que ocorre é que as imperfeições daqueles Espíritos são quais vapores que os impedem de vê-lo. Quando o nevoeiro se dissipar, vê-lo-ão resplandecer. Para isso, não lhes é preciso subir, nem procurar nas profundezas do infinito. Desimpedida a visão espiritual das manchas morais que a obscureciam, eles o verão de todo lugar onde se achem, mesmo da Terra, porque Deus está em toda parte. 35. O Espírito só se depura com o tempo, sendo as diversas encarnações o alambique em cujo fundo deixa, de cada vez, algumas impurezas. Ao abandonar o seu envoltório corpóreo, os Espíritos não se despojam instantaneamente de suas imperfeições, razão por que, depois da morte, não veem a Deus mais do que o viam quando vivos; mas, à medida que se depuram, têm dele uma intuição mais clara; se não o veem, compreendem- -no melhor, pois a luz é menos difusa. Quando, pois, alguns Espíritos dizem que Deus lhes proíbe que respondam a uma pergunta, não é que Deus lhes tenha aparecido ou dirigido a palavra para lhes ordenar ou proibir isto ou aquilo. Não; é que eles o sentem; recebem os eflúvios do seu pensamento, como sucede conosco em relação aos Espíritos que nos envolvem em seus fluidos, embora não os vejamos. 36. Nenhum homem, portanto, pode ver a Deus com os olhos da carne. Se essa graça fosse concedida a alguns, só o seria no estado de êxtase, quando a alma se acha tão desprendida dos laços da matéria que torna possível o fato durante a encarnação. Tal privilégio, aliás, pertenceria exclusivamente a almas de escol, encarnadas em missão, e não em expiação. Mas como os Espíritos da mais elevada categoria resplandecem de ofuscante brilho, pode acontecer que Espíritos menos elevados, encarnados ou desencarnados, maravilhados com o esplendor de que aqueles se mostram cercados, suponham estar vendo o próprio Deus. É como quem vê um ministro e o toma por seu soberano. 37. Sob que aparência Deus se apresenta aos que se tornam dignos de vê-lo? Será sob uma forma qualquer? Sob uma figura humana ou como um foco resplandecente de luz? A linguagem humana é impotente para descrevê-lo, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação que nos possa dar uma ideia de tal fato. Somos quais cegos de nascença a quem procurassem inutilmente fazer que compreendessem o brilho do Sol. O nosso vocabulário é limitado às nossas necessidades e ao círculo das nossas ideias; a dos selvagens não poderia descrever as maravilhas da civilização; a dos povos mais civilizados é extremamente pobre para descrever os esplendores dos céus; a nossa inteligência muito restrita para os compreender, e a nossa vista, fraca demais, ficaria deslumbrada. www.fetnet.org.br. Abraço.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

INTRODUÇÃO V


Confucionismo. www.https//rt.br. OS ANALECTOS. Tradução do inglês de Caroline Chang. Tradução do chinês. Introdução e notas de D. C. Lau. INTRODUÇÃO V. Já que a influência de um bom exemplo funciona de um modo imperceptível, o governante ideal é frequentemente caracterizado não apenas como alguém que não sabe, mas também como alguém que aos olhos do povo, nada fez que pudesse ser valorizado. “O governo pela virtude pode ser comparado à estrela Polar, que comanda a homenagem da multidão de estrelas sem sair do lugar” (II.1). T’ai Po abdicou do seu direito de governar, “sem dar ao povo oportunidade de louvá-lo” (VIII.1). Yao foi o rei que se espelhou no Céu, o único que é grande, mas “ele era tão grandioso que o povo não tinha palavras para louvar as virtudes” (VIII.19). Essa descrição do governante ideal é aparentemente muito semelhante à oferecida pelos taoístas, mas na verdade as duas são bem diferentes. O governante taoísta genuinamente não faz nada porque o Império funciona melhor quando deixado em paz. O governante confucianista apenas aparenta nada fazer porque a influência moral que ele exerce funciona de modo imperceptível. Não podemos encerrar o assunto do governo sem discutir a atitude de Confúcio para com o povo (min) ou as pessoas. Ele não tentou disfarçar o fato de que, no seu ponto de vista, o povo era muito limitado intelectualmente. Ele disse: “O povo pode ser obrigado a seguir um caminho, mas não pode ser forçado a entendê-lo”. (VIII.9). O povo não consegue entender por que razão é conduzido ao longo de um caminho em específico, pois nunca se dá o trabalho de estudar. Ele disse: “Aqueles que nascem com conhecimento são os mais elevados. A seguir vêm aqueles que atingem o conhecimento por meio do estudo. A seguir vêm aqueles que voltam para o estudo depois de terem passado por dificuldades. No nível mais baixo estão as pessoas comuns, por não fazerem esforço algum para estudar mesmo depois de terem passado por dificuldades” (XVI. 9). Não é de surpreender que Confúcio tivesse tal opinião. O estudo, tal qual por ele concebido, é um árduo processo que nunca se completa. As pessoas comuns são imensamente prejudicadas. Raramente têm a capacidade de estudar e praticamente nunca têm a oportunidade. Nas raras ocasiões em que têm tanto a capacidade e a oportunidade, é pouco provável que consigam aguentar o rigor da tarefa. Confúcio descreveu como o seu discípulo favorito, Yen Hui, conseguiu seguir os estudos obstinadamente nas seguintes palavras. “Como Hui é admirável! Morar em um pequeno casebre com uma tigela de arroz e uma concha de água por dia é uma provação que a maioria dos homens acharia intolerável, mas Hui não permite que isso atrapalhe sua alegria. Como Hui é admirável” (VI.11). Confúcio podia não ter uma opinião muito boa quanto às capacidades intelectuais e morais das pessoas comuns, mas absolutamente não é verdade que ele tenha diminuído a importância delas no esquema geral das coisas. Talvez seja precisamente porque o povo é incapaz de garantir seu próprio bem-estar sem receber auxílio que o dever supremo do governante é trabalhar em benefício do povo, proporcionando a ele o que lhe é benéfico. As pessoas comuns deveriam ser tratadas com o mesmo amor e carinho dispensados a nenês, que são indefesos. Isso é anunciado em um comentário memorável do Livro da História citado por Mêncio: os governantes antigos agiam “como se estivessem cuidando de um recém-nascido”. [17] Mêncio (372 AC 289) descreve tais governantes como mãe e pai do povo. É, portanto, inegável que Confúcio advogava um forte paternalismo no governo, e isso permaneceu imutável como princípio básico ao longo de toda a história do confucionismo. A importância das pessoas comuns e seu bem-estar é enfatizada repetidas vezes em Os analectos. Por exemplo, Tzu-kung disse: “Se houvesse um homem que desse generosamente ao povo e trouxesse auxílio às multidões, o que você pensaria dele? Ele poderia ser considerado benevolente? O Mestre disse: “Nesse caso não se trata mais de benevolência. Se precisa descrever tal homem, ‘sábio’ é, talvez, a palavra adequada. Mesmo Yao e Shun achariam difícil realizar tanto.” (VI.30) Se lembrarmos que Yao e Shun eram tidos em alta conta por Confúcio e o quão pouco inclinado ele era a dar o título de “sábio” para qualquer pessoa, podemos ver o imenso significado do comentário. Finalmente, Confúcio disse que se ele elogiava alguém, podia-se ter certeza de que esse alguém havia sido testado. O teste se revelou ser o governo das pessoas comuns, pois ele continuou ao dizer: “Essas pessoas comuns são a pedra de toque por meio da qual as Três Dinastias foram mantidas no caminho certo” (XV. 25). O único teste ao qual é submetido um bom governante é quanto a se ele tem êxito em promover o bem-estar das pessoas comuns. Até agora examinamos apenas as qualidades morais indispensáveis ao cavalheiro, mas o ideal do cavalheiro é mais amplo do que o do homem moral. É necessário, mais atributos para se ter o perfeito cavalheiro. Para entender isso, é preciso primeiro darmos uma olhada em dois termos, wen e chih. Chih, dos dois, é o mais fácil de ser compreendido. É a matéria-prima ou a substância nativa da qual um homem ou uma coisa é feita. Wen é mais difícil de compreender por causa da sua ampla aplicação. Em primeiro lugar, wen significa um belo padrão. Por exemplo, o padrão das estrelas é o wen do céu, e o padrão da pele de um tigre é o seu wen. Aplicado ao homem, refere-se às belas qualidades que ele adquiriu por meio da educação. Daí o contraste com chih. Aquilo que um homem adquire por meio da educação cobre uma ampla gama de realizações. Inclui talentos como arqueiro ou na condução de carruagens, de escrita e matemática, mas os campos mais importantes são a literatura e a música, uma conduta condizente à de um cavalheiro. Literatura, na época de Confúcio, significava, basicamente, as Odes, enquanto que música para Confúcio era a música tocada em cerimônias da corte e em cerimônias sacrificiais. Um comportamento condizente a um cavalheiro significava observância dos ritos, que incluía entre outras coisas o código da conduta correta. Além de denotar as realizações de um indivíduo, wen também pode ser usado para designar a cultura de uma sociedade como um todo. Assim, wen é uma palavra com uma ampla gama de significados, que em inglês [e português] são cobertos por uma variedade de palavras, como ornamento, adorno, refinamento, realização, boa educação e cultura. Não é suficiente para um homem nascer com uma boa substância nativa. Um longo processo de amadurecimento é necessário para dar a ele a educação indispensável a um cavalheiro. Quando Chi Tzu-ch’eng disse “O mais importante a respeito de um cavalheiro é o material do qual ele é feito. Para que ele precisa de refinamento?”, a opinião de Tzu-kung foi a de que não se podia separar refinamento da matéria, pois “a pele de um tigre ou de um leopardo, desprovida de pelos, não é diferente da de um cachorro ou de uma ovelha” (XII.8). O que Tzu-kung está dizendo é que são as qualidades totais de um cavalheiro – matéria prima assim como refinamento – que o distinguem dos “homens vulgares”, e é fútil separar a matéria-prima do refinamento, na equivocada tentativa de aponta-la como o fator básico. Em toda parte, encontramos Confúcio enfatizando a importância do equilíbrio entre os dois elementos. Ele disse: “Quando a natureza de alguém prevalece sobre a educação recebida, o resultado será uma pessoa intratável. Quando a educação prevalece sobre a natureza, o resultado será uma pessoa pedante. Apenas uma mistura bem equilibrada das duas resultará em cavalheirismo” (VI.18). Há um comentário de Confúcio que joga alguma luz sobre o que seria essa substância nativa ou natureza. Ele disse: “O cavalheiro tem a moralidade como matéria-prima e, ao observar os ritos, coloca-a em prática, ao ser modesto dálhe expressão e, ao ser fiel às próprias palavras, a completa. Assim é um cavalheiro, de fato!” (XV.18). Aqui vemos que a relação entre chih e wen corresponde à relação entre moralidade (yi) e os ritos (li). Não basta um homem ter a inclinação natural de fazer o que é certo; é essencial que ele seja versado de modo que possa dar uma expressão refinada a essa inclinação. Um homem pode ter uma forte necessidade de mostrar respeito por outro homem em uma dada sociedade, mas, a menos que ele saiba o código de comportamento pelo qual esse respeito é expresso, ele ou falhará completamente em expressá-lo ou, no máximo, conseguirá expressá-lo de modo não totalmente aceito naquela sociedade. Isso traz à tona uma questão importante quanto aos ritos. Moralidade não consiste apenas na ação que afeta o bem-estar de outras pessoas. Às vezes também requer comportamentos que expressem uma atitude em relação às outras pessoas. Isso explica o fato de que a palavra li, embora tenha também uma conotação moral, é mais apropriadamente traduzida como “ritos” ou “ritual”. Como vimos, além da observância dos ritos, a parte mais importante de wen é a poesia e a música. É por isso que, quando um equivalente teve que ser encontrado para o termo ocidental “literatura”, a expressão usada foi naturalmente “wen hsüeh”. Esse parece ser um ponto conveniente a partir do qual avaliar a atitude de Confúcio para com a poesia e a música, já que a influência que o pensador exerceu nas gerações subsequentes foi imensa. O primeiro ponto a salientar é que na época de Confúcio a conexão entre a poesia e a música era muito próxima. Embora houvesse música que não envolvesse palavras, toda poesia podia, provavelmente, ser cantada. Por essa razão, Confúcio provavelmente tinha a mesma atitude para com ambas. Comecemos com a seguinte passagem: O Mestre disse, sobre shao, que era perfeitamente linda e perfeitamente boa e, sobre wu, que era perfeitamente linda, mas não perfeitamente boa. (III.25) Podemos ver com essa passagem que Confúcio exigia da música e, consequentemente, da literatura, não apenas perfeição estética, mas também que fosse perfeitamente boa. Shao era a música de Shun, que, escolhido por sua virtude, subiu ao trono por meio da abdicação de Yao, enquanto wu era a música do rei Wu, que, apesar da própria virtude, conquistou o Império apenas depois de recorrer à força – daí o nome wu, “força militar”. Por esta razão, o primeiro era não apenas perfeitamente belo, mas também perfeitamente bom, enquanto o último, embora perfeitamente belo, deixou a desejar quanto à sua bondade. Que Confúcio considerasse o wu inferior ao shao não é surpreendente se lembrarmos sua ojeriza em relação ao uso da força ou à violência, que se dizia estarem entre as coisas sobre as quais ele nunca falava (VII.21). Para Confúcio, algo ser perfeitamente bom era mais importante do que a perfeição estética. Se uma peça de música é ou não aceitável depende de sua qualidade moral. A perfeição estética é importante porque é o único veículo apropriado para conduzir a perfeita bondade. Amúsica esteticamente perfeita pode-se ouvir com alegria, mas apenas quando a perfeição moral é fundida com a perfeição estética é que pode ser experimentada a alegria que vai além de qualquer expectativa. O Mestre ouviu o shao em Ch’i e por três meses não sentiu o gosto das refeições que comia. Ele disse: “Jamais sonhei que as alegrias da música pudessem chegar a tais alturas”. (VII.14) Não é por acaso que a música que encantava Confúcio fosse precisamente shao, que ele elogiava por ser perfeitamente bom assim como por perfeição estética. Quando lhe perguntaram como um reino deveria ser governado, Confúcio disse: “Quanto à música, adote o shao e o wu. Bane as melodias de Cheng e mantenha homens de fala persuasiva à distância. As melodias de Cheng são insolentes, e homens de fala persuasiva são perigosos” (XV.11). Depois ele disse: “Detesto o púrpura por deslocar o vermelho. Detesto as melodias de Cheng por corromperem a música clássica. Detesto homens de fala esperta que derrubam reinos e famílias nobres” (XVII.18). Não há dúvida de que Confúcio detestava “as melodias de Cheng”, mas ele as detestava não devido à falta de beleza, mas por causa de sua falta de disciplina. Deve ser observado que cada uma das coisas que Confúcio detestava ofereciam uma aparente semelhança à coisa certa, e é por causa dessa semelhança superficial que os hipócritas podem ser confundidos com os genuínos. A ojeriza de Confúcio é dirigida contra a falsidade. As “melodias de Cheng” são colocadas juntas aos “falantes espertos” e “homens de fala persuasiva”, já que, como “falantes espertos” e “homens de fala persuasiva”, as “melodias de Chang” são capazes de conquistar nossa preferência caso estejamos desatentos. Não são, portanto, pouco atraentes como música. No final das contas, não é a falta de beleza, mas a falta de correção ou moralidade que marca a música chamada de “melodias de Cheng”. As “melodias de Cheng” certamente não diziam respeito somente à música. O que é dito sobre as melodias aplica-se também às palavras, já que a falsidade existe tanto no significado das palavras quanto no charme da música. Em oposição às melodias de Cheng, encontramos Confúcio aclamando o Kuan chü, com os quais as Odes abrem: No kuan chü há alegria sem futilidade, e tristeza sem amargura. (III.20) Isso mostra que não era pela expressão de prazer em si, mas pela expressão de imoderado prazer que Confúcio condenava as melodias de Cheng. Em contraposição, o Kuan chü é um exemplo da expressão de prazer e de tristeza exatamente na mesma medida. Confúcio resumiu suas opiniões sobre poesia nas seguintes palavras: As Odes são trezentas, em número. Podem ser resumidas a uma frase: Não se desvie do caminho. (II.2) Edificação, entretanto, não é o único propósito da poesia. Entre outras coisas, as Odes podem “estimular a imaginação” (XVII.9). Quando se lê poesia, uma pessoa acorda para as similaridades subjacentes entre fenômenos que, para os de pouca imaginação, parecem não ter nenhuma relação. Tzu-hsia perguntou: “Seu encantador sorriso com covinhas, Seus belos olhos esgazeando, Padrões de cores em seda lisa.” Qual o significado de tais linhas? O Mestre disse: “As cores são acrescentadas após o branco”. “E a prática dos ritos, também vem depois?” O Mestre disse: “É você, Shang, quem iluminou o texto para mim. Apenas com um homem como você é possível discutir as Odes”. (III.8) O Mestre elogiou Tzu-hsia pela sua compreensão das Odes porque ele viu que, assim como na pintura as cores são acrescentadas depois que as linhas gerais são dadas em branco, também o refinamento de observar os ritos é inculcado em um homem que já nasceu com a substância certa. [18] As Odes têm um outro uso, que é possibilitar que um homem fale bem. O filho de Confúcio relatou uma conversa que certa vez teve com seu pai. “Você estudou as Odes?” “Não.” “Amenos que estude as Odes, não será capaz de sustentar uma conversa” (XVI.13). As Odes eram uma antologia que todo homem educado conhecia plenamente, de modo que uma citação correta delas extraída, podia ser usada para comunicar a opinião de alguém em situação delicada ou que requeressem extrema polidez. OS ANALECTOS. www.https//rt.br. Abraço. Davi

terça-feira, 26 de novembro de 2019

APRESENTAÇÃO II


Religião Afrodescendente. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO II. Universidade de São Paulo – USP. Em seguida, "a cabeça, os intestinos, as asas e as patas são cozidas no azeite de dendê, com camarões e cebolas, mas sem sal", e este prato é depositado, juntamente com outros alimentos, diante dos tambores, onde ficarão um dia inteiro para que tenham tempo suficiente para "comer". Compreende-se por que razão os instrumentos apresentam algo de divino, que impede sejam vendidos ou emprestados sem cerimônias especiais de dessacralização ou de consagração, interessando-nos saber que somente por meio da música fazem baixar os deuses na carne dos fiéis. Eis porque, uma vez terminado o padê de Exú, a cerimônia prossegue com o toque musical dos tambores que, sozinhos, sem acompanhamento de cânticos nem de danças, falam aos Orixá e pedem lhes que venham da África para o Brasil. Em geral, os etnógrafos não têm prestado muita atenção a este diálogo preliminar dos tambores e das divindades. Creio que seu estudo revelaria a existência, na Bahia, de fenômenos análogos aos que Fernando Ortiz tão bem analisou para Cuba, onde, como se sabe, a religião é igual, isto é, yoruba. Mas não são apenas os três tambores que têm o poder de evocar a vinda dos Orixá; os agidavi também, isto é, as varetas com as quais são batidos e que, antes de serem utilizados, dormiram "junto dos deuses", no santuário, para se impregnarem de força sagrada; ou, mais exatamente sem dúvida, para entrarem em correspondência com os Orixá. O agôgô (corruptela de akoko, que quer dizer tempo, hora, em língua yoruba), sino simples ou duplo, algumas vezes mero pedaço de metal batido por outro pedaço de metal, desempenha também papel importante no candomblé. Quando as possessões estão custando para se produzir, sacerdote ou sacerdotisas agitam o aja junto ao ouvido das filhas de santo que dançam e não é raro que, importunada por esse ruído agudo e alucinante, a divindade se decida a montar em seu cavalo. Infelizmente, não sabemos se este último instrumento de música sofre uma preparação religiosa análoga à dos tambores ou dos simples agidavi. As danças preliminares. Em seguida são chamados os deuses, numa certa ordem que varia de candomblé para candomblé, mas que, por ocasião das festas públicas, são muitas vezes a mesma em santuários determinados. Esta ordem é conhecida como xiré: começa obrigatoriamente por Exu para terminar por Oxalá, que é o Senhor do céu e o mais elevado dos Orixá. Mas com exceção do primeiro e do último termo do xiré, reina a maior variedade na ordem dos termos intermediários; quando muito poder-se-ia dizer que, nas manifestações, muitas vezes se começa pelas divindades mais jovens ou mais violentas, como Ogun, para ir progressivamente para as mais velhas ou as mais calmas. Cada divindade recebe um mínimo de três cânticos; e ainda me lembro do protesto dos fiéis, uma noite em que não sei por que razão um dos seus deuses só recebeu dois, em lugar dos três cânticos regulamentares. O número de três não é, porém, senão um mínimo; pode-se cantar quantidade maior de cânticos. Nos candomblés bantos, as palavras são geralmente portuguesas, mas nos candomblés yoruba ou dahomeanos, os cânticos são "na língua", isto é, em africano, o idioma variando naturalmente de acordo com a origem étnica da "nação" egba, fon, etc. Para empregar um termo wagneriano, constituem, juntamente com os ritmos sonoros dos tambores que os acompanham outros tantos, motivos destinados a atrair os Orixá. Os cânticos, todavia, não são apenas cantados, são também dançados", pois constituem a evocação de certos episódios da história dos deuses, são fragmentos de mitos, e o mito deve ser representado ao mesmo tempo que falado para adquirir todo o poder evocador. Ao gesto juntando-se à palavra, a força da imitação mimética auxiliando o encantamento da palavra, os Orixá não tardam a montar em seus cavalos à medida que vão sendo chamados. Pode acontecer, porém, que a cerimônia prossiga durante muito tempo sem que haja possessões. Neste caso, os tambores fazem soar o toque adarrum, que não é acompanhado de cânticos, pois trata-se de chamar desta vez, não apenas uma, mas todas as divindades ao mesmo tempo. Seu ritmo cada vez mais rápido, cada vez mais implorante, acaba por abrir os músculos, as vísceras, as cabeças à penetração do deus que se esperou durante tanto tempo. Produzida a “crise” de possessão, as ekedy encarregadas de velar os filhos e filhas de santo, retiram-lhe o casaco se se trata de um homem, ou, em se tratando de mulher, o xale que a poderia estrangular no caso de convulsões, e antes de mais nada, os sapatos. O gesto é altamente simbólico: trata-se de despojar o indivíduo de sua personalidade brasileira para que retome à condição de africano. Os sapatos tiveram importância capital na vida do negro americano. Foram o sinal da sua libertação; quando um escravo era alforriado, seu primeiro cuidado era comprar um par de sapatos para se igualar ao branco, embora muitas vezes não os calçasse, pois, seus pés habituados a andar nus não os suportavam. Trazia-os, porém, suspensos ao pescoço pelo amarrilho, ou levava-os na mão; em casa, colocava-os bem à vista sobre um móvel, em lugar de honra. Quando o Orixá baixa, o negro é recolocado na condição de africano, de participante da vida tribal de seus pais; então pisará com seus pés nus a terra, que é também uma deusa. A violência da “crise” varia segundo as circunstâncias, o temperamento do indivíduo, a natureza do deus que o possui. No caso de certas faltas, pode mesmo tomar a forma de castigo. Se é muito violenta, o sacerdote ou sacerdotisa que dirige o culto, babalorixá ou ialorixá, coloca a mão na nuca do cavalo para acalmá-lo, ou assopra-lhe no ouvido. As ekedy então auxiliam o indivíduo, que titubeia sob o abraço divino, a sair do salão de dança para ir ou para o pegi, onde estão as pedras dos Orixa, ou para um quarto vizinho; se caiu ao chão, carregam-no como um corpo morto, ainda agitado por movimentos convulsivos. O êxtase tomará ali forma mais calma, não desaparecendo, terminando somente com os últimos cânticos. O fiel é revestido com as roupas litúrgicas de sua divindade, colocam-lhe nas mãos os objetos simbólicos da nova posição, espada de Ogum, arco de Oxossi, xaxara (membro viril) de Omolú, abébé (leque) de Oxun, paxoro (vara de ferro) de Oxalá. Cada integrante da confraria só pode receber o deus ao qual está ligado pelos ritos de iniciação. Certo número de casos excepcionais, podem, todavia, suceder, e deles diremos algumas palavras. Há alguns Orixá que não "baixam", como por exemplo Xangô Dada em Porto Alegre, ou Orunmila, na Bahia; nesse caso, a pessoa que lhe foi consagrada recebe uma divindade da mesma família; é esta a ocasião única em que é permitida a possessão por divindade diferente daquela a que se pertence de direito. Pode também acontecer que um Orixá turbulento ou ciumento monte cavalo que não é o seu, embora o caso seja muito raro (nunca assisti a nenhum). O sacerdote deve então despachá-lo imediatamente, mandá-lo embora. Exú não se encarna nunca embora por vezes tenha filhos; conhecemos pelo menos uma filha de Exu e citaram-nos nomes de outros. Mas a possessão de Exú se diferencia da dos outros Orixá pelo seu frenesi, seu caráter patológico, anormal, sua violência destruidora.Se quisermos uma comparação, é um pouco a diferença que fazem os católicos entre o êxtase divino e a possessão demoníaca. Se Exú ataca um membro do candomblé, é preciso, pois, despachá-lo também, afugentá-lo imediatamente. Mas, com exceção destes casos aberrantes que, afirmamos outra vez, são extremamente raros, a função desta parte do ritual que descrevemos tem realmente por objetivo a possessão dos homens pelos seus deuses. Por outro lado, nem todos os iniciados são possuídos. Não falamos das mulheres menstruadas, que não devem nem mesmo assistir à festa pois as divindades têm horror ao sangue catamenial; se uma delas ousa desobedecer, imediatamente os tambores o reconhecem, pois, sua simples presença perturba o toque musical. Porém as que estão grávidas ou de luto, mesmo presentes, nunca são "montadas" pelo seu Orixá. Numerosos membros de outros terreiros ou de outras seitas comparecem como visitantes ou como curiosos às cerimônias tradicionais dos grandes candomblés. Não é de bom-tom e é mesmo muito mal visto para os de fora caírem então em transe. O êxtase só é permitido no enquadramento do santuário onde foi feita a iniciação. Acontece, no entanto, às filhas de santo em visita, sentirem o apelo insistente da divindade desabrochar no íntimo; bebem então grandes copos de água gelada, que têm o poder de impedir que se produza a possessão. Um último caso pode finalmente se dar: o de pessoa não iniciada, que veio assistir às danças somente pelo prazer do espetáculo, e que bruscamente se vê presa também da crise de possessão. Diz-se neste caso que a pessoa foi atacada por um santo bruto, o que significa simplesmente que a crise não foi controlada, orientada pela coletividade. É então conduzida para o interior do santuário, a fim de ser iniciada e de se tornar uma filha de santo. Com efeito, a iniciação não tem outro objetivo senão socializar a crise para que daí por diante se processe segundo os padrões africanos. A dança dos deuses. Depois de um intervalo, durante o qual às vezes é servido um lanche aos convidados importantes, filhas e filhos de santo retornam ao salão de dança. Mas não são mais, nesse momento, apenas filhos e filhas de santo, são os próprios deuses encarnados que vêm se misturar um momento aos adeptos brasileiros. O ritmo da cerimônia não se modifica; têm lugar as mesmas evocações dos Orixá em ordem determinada, sempre com o mesmo mínimo de três cânticos regulamentares, com os mesmos leit-motiv (estado de espírito) wagnerianos, diante de um público cheio de fervor e respeito. Os gestos, porém, adquirem maior beleza, os passos de dança alcançam estranha poesia. Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolú recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Yemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos se metamorfosearam em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas dessa vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria; Ogun guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxun é roda feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão. Eis presentes aqui os Orixá, saudando os tambores, fazendo ika ou dobale diante dos sacerdotes supremos, dançando, muitas vezes revelando o futuro ou dando conselhos. Não existem mais fronteiras entre natural e sobrenatural; o êxtase realizou a comunhão desejada. 7. Ritos de saída e de comunhão. O êxtase só chega ao fim quando forem cantados os cânticos de unló, cujo objetivo é justamente mandar embora os Orixá. Estes são entoados na ordem inversa das invocações, começando pelas divindades chamadas em último lugar para terminar por aquelas que vieram primeiro; à medida que a litania de nomes vai se desenrolando, as pálpebras fechadas vão se abrindo, o rosto perde a máscara da divindade, a personalidade normal reaparece. O último cântico tem lugar no pegí, como se o desejo fosse de que a força mística, que tinha rompido as amarras, regresse às pedras banhadas de sangue, aos pedaços de ferro que estão "comendo" a oferenda alimentar. E este último cântico, ao contrário dos precedentes, segue a ordem do xiré: atáu ecúô é di bom jeú Exú vai unló é di bom jeô atáu ecúô é di bom jeô Ogum vai un Oxum Emanjá Xangô Orixalá. Todavia, antes que todos se separem, um repasto de comunhão permitirá unir divindades, membros da confraria e aqueles dos espectadores que ainda permaneceram no recinto. As filhas de santo trazem, em pratos da cor de seus Orixá, um pouco do alimento, parte do qual fora colocado no pegí: branco para Oxalá, azul para Yemanjá, violeta para Nanan (...). Sentam-se em torno de uma toalha posta no próprio chão, sobre a qual depositaram o alimento sagrado. Cada qual toma um bocado do prato de seu deus, com as duas mãos em forma de concha, e engole-o com um movimento da boca que vai do punho à ponta dos dedos. Depois, oferece um bocado do prato aos filhos dos outros Orixá, de modo a cimentar a solidariedade do grupo por meio da partilha de alimentos. O resto, sobre folhas de bananeira, é oferecido aos espectadores que estão de pé em torno das filhas de santo sentadas no chão, os diferentes alimentos dos múltiplos Orixá fraternalmente misturados nesta espécie de bandeja vegetal; é obrigat6rio comer com a mão. Não se deve confundir este repasto, que é uma comunhão, com a colação algumas vezes servida aos convidados importantes entre a dança de chamada e a dança dos deuses. Trata-se aqui de algo muito diferente, de uma tríplice solidariedade a realizar, antes do regresso ao mundo profano: primeiro, entre o divino e o humano; depois, entre os membros da confraria que pertencem a divindades diferentes; e às vezes rivais; finalmente, também, entre a confraria e os não-iniciados, para que um pouco da África, que se perdeu e tornou a encontrar, nestes penetre igualmente. O grupo dos fiéis ultrapassa a confraria dos filhos e filhas de santo. A entrada num candomblé se faz progressivamente e há graus de incorporação, o mais baixo dos quais é o simbolizado pela lavagem do colar. A. Cada membro da seita tem um colar que lhe é pr6prio, cujas contas são da cor da divindade à que pertence: brancas para Oxalá, alternadamente brancas e vermelhas para Xangô, verdes para Oxossi, amarelas para Oxun (...). Mas o colar não tem valor por si mesmo, deve sofrer previamente determinada preparação, deve ser "lavado". O indivíduo que deseje, pois, participar da vida de um candomblé, deve começar por consultar o babalaô ou adivinho, que interrogará por ele o colar de Ifa ou os búzios, a fim de descobrir o nome do Orixá que é o "dono de sua cabeça". Basta, em seguida, fabricar o colar correspondente ao seu Orixá, ou mesmo comprá-lo simplesmente no mercado municipal, levando-o ao babaloríxá ou à ialorixá do terreiro ao qual quer pertencer, e que o lavarão. Manuel Raimundo Querino (1851-1923) fornece descrição da cerimônia: imersão do colar em bacia cheia d'água, trituração de folhas ligadas à divindade em questão (como veremos, cada deus tem, com efeito, suas folhas especiais), lavagem das contas com "sabão da Costa", isto é, da costa africana (sabão negro e mole), transmissão do colar à pessoa que deve usá-lo, com as respectivas recomendações sobre as futuras obrigações, e finalmente festa íntima com cânticos e refeição. A descrição, porém, é incompleta e deixa mesmo escapar o essencial. Para que o colar tenha valor, é preciso: 1) que tenha ficado uma noite inteira sobre a peara do deus a que pertence e que o sangue de uma ave morta em sacrifício, juntamente com as ervas apropriadas, tenha lavado ao mesmo tempo pedra e colar. Mas não basta ainda: é preciso mais que 2) a esta primeira participação se junte uma segunda, entre pedra, colar e cabeça do indivíduo que celebra o ritual. Digo "cabeça" e não "indivíduo" porque a cabeça é considerada a moradia do Orixá. Lavar-se-á então a cabeça, e muitas vezes também o corpo inteiro, com a água e as ervas que serviram para a lavagem de colar e pedra. Assim entram em contato os membros do trinômio, deus, homem e colar, permitindo a passagem da corrente mística entre o primeiro e o último, por intermédio do segundo. Eis por que o colar só tem valor para o proprietário. Se este o perde e outro pessoa o usa, não terá nenhum poder para esta, pois não foi posto em participação, nem direta, nem indireta, com a cabeça dela. Continuar Página 35 segundo parágrafo. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

APRESENTAÇÃO I


Religião Afrodescendente. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO I. Universidade de São Paulo – USP. Ao longo de todo o litoral atlântico, desde as florestas da Amazônia até a própria fronteira do Uruguai, é possível descobrir, no Brasil, sobrevivências religiosas africanas. Mas a Bahia, com seus candomblés em que, nas noites mornas dos trópicos, as filhas de santo dançam ao martelar surdo dos tambores, permanece a cidade santa por excelência. Os candomblés pertencem a "nações" diversas e perpetuam, portanto, tradições diferentes: Angola, Congo, Gêge (isto é, Ewe), Nagô (têrmo com que os franceses designavam todos os negros de fala yoruba, da Costa dos Escravos), Quê to (ou Ketu), Ijêxa ( ou Ijesha). É possível distinguir estas "nações" umas das outras pela maneira de tocar o tambor (seja com a mão, seja com varetas), pela música, pelo idioma dos cânticos, pelas vestes litúrgicas, algumas vezes pelos nomes das divindades, e enfim por certos traços do ritual. Todavia, a influência dos Yoruba domina sem contestação o conjunto das seitas africanas, impondo seus deuses, a estrutura de suas cerimônias e sua metafísica, a Dahomeanos, a Bantos. Porém é evidente que os candomblés Nagô, Quêto e Ijêxa são os mais puros de todos, e só eles serão estudados aqui. Por outro lado, ''nações" yoruba são encontradas noutras regiões do Brasil: em São Luís do Maranhão, no Recife, no Rio Grande do Sul. O grupo de São Luís, assaz isolado, sofreu a influência da Casa das Minas, dahomeana, que é o grupo dominante da cidade. Deixamo-lo, por essa razão, inteiramente de lado. No entanto, na medida em que as informações do Recife ou do Rio Grande do Sul completam ou confirmam as observações da Bahia, apelaremos algumas vezes para dados tomados aos Xangô do Recife ou às "nações" Nagô e Oyo (esta designada pelo próprio nome da cidade Yoruba) de Porto Alegre. No Rio de Janeiro, as "nações" se fundiram umas nas outras, deixando-se também penetrar profundamente por influências exteriores, ameríndias, católicas, espíritas, dando nascimento a uma religião essencialmente sincrética, a macumba. Porém, há alguns anos atrás, no começo do século XX, existia ali ainda uma religião nagô autônoma, da qual temos algumas descrições, infelizmente assaz sumárias. Tais documentos só apresentam hoje interesse histórico; todavia, não os poremos de lado. Que fique bem claro, no entanto, que este estudo, mesmo levando em consideração por vezes dados recolhidos por nós ou por outros pesquisadores em cidades diferentes, fica centralizado unicamente em torno dos candomblés nagô, quêto ou ijêxa da Bahia. Existiram outrora candomblés em pleno centro da cidade. Próximo à igreja da Barroquinha em Salvador - BA, erguia-se nos fins do século XIX um santuário africano. Na periferia da aglomeração urbana ainda hoje existem, no bairro proletário da Liberdade, em meio às casas de operários, num emaranhamento de ruelas, de muros, de pátios malcheirosos. Mas em geral se agrupam longe do centro, nos valos umbrosos, suspensos aos flancos das colinas ou entre as dunas marinhas, escondidos pelas árvores, pelos renques de bananeiras, abrigando-se sob os coqueiros. Ao longo do Rio Vermelho, em Mata Escura, São Caetano, Cidade da Palha, Língua de Vaca, Pedreiras, Fazenda Grande do Retiro, Fazenda Garcia. Cercam a cidade com uma coroa mística, e a única solução de continuidade é representada pela faixa móvel do oceano. O viajante que à noite erra nesses subúrbios, onde as habitações vão se espaçando, como que se debulhando e cedendo pouco a pouco diante da floresta. Ouve por vezes subir de trás das frondes, do fundo das trevas, o martelar surdo dos tambores sagrados, enquanto foguetes riscam os céus, desenhando neles novas estrelas. Cada foguete que sobe é o sinal de que uma divindade veio da África possuir um de seus filhos na terra do exílio. Cada estrela que repentinamente cintila acima das plantas em germinação indica a quem passa que uma divindade "montou em seu cavalo", fazendo-o reviravoltear em torno do poste central, mergulhando na noite do êxtase. Pois estes deuses só podem viver na medida em que se reencarnam no corpo dos fiéis. Eis porque o ponto central do culto público é a crise de possessão. Constitui seu momento mais dramático e não é de espantar, em tais condições, que a atenção dos pesquisadores se tenha concentrado, antes de mais nada, em torno deste aspecto do candomblé. Tanto mais que a maior parte dos africanistas era constituída de médicos. Veremos que, na realidade, a festa pública não constitui senão pequena parte da vida do candomblé, que a religião africana vai colorir e controlar toda a existência de seus adeptos, que o ritual privado é mais importante do que o cerimonial público e que, na medida em que o negro se sente africano, pertence a um mundo mental diferente. Queremos descrever justamente este mundo das representações coletivas. Não esquecer, porém, que a religião só conseguiu subsistir através das confrarias dos "filhos" e "filhas" de santo (as filhas muitíssimo mais numerosas do que os filhos), e que a função destes filhos e filhas é reencarnar, no desenrolar das grandes festas públicas, os Orixás seus antepassados. Começaremos, pois, nossa apresentação do candomblé pela descrição desta cerimônia central. Cada uma destas festas, dedicada a uma divindade especial, embora todos os Orixás durante ela se manifestem por meio de crises extáticas, apresenta traços particulares. Contudo, podemos deixar por enquanto de lado estes elementos de variação pois não perturbam a unidade das sequências rituais. Enriquecem-nas somente; sobre a mesma talagarça, desenham o bordado dos mitos africanos. Desde a madrugada, quando tem lugar o início da festa, distinguiremos os momentos seguintes: 1. O SACRIFÍCIO. Esta parte do ritual não é propriamente secreta; porém, não se realiza em geral senão diante de um número muito pequeno de pessoas, todas fazendo parte da seita. Teme-se sem dúvida que a vista do sangue revigore entre os não-iniciados os estereótipos correntes sobre a "barbárie" ou o "caráter supersticioso" da religião africana. Uma pessoa especializada no sacrifício, o axôgun ou achôgun, que tem essa função na hierarquia sacerdotal, é quem o realiza ou, na sua falta, o babalorixá, sacerdote supremo. O objeto do sacrifício, que é sempre um animal, muda conforme o deus ao qual é oferecido: trata-se, conforme a terminologia tradicional, ora de um "animal de duas patas", ora de um "animal de quatro patas", isto é, galinha, pombo, bode, carneiro, etc. O sexo do animal sacrificado deve ser o mesmo da divindade que recebe o sangue derramado; e o modo de matar varia igualmente segundo os casos: corta-se a cabeça, esquartejam-se os membros, sangra-se a carótida, dá-se um golpe na nuca. Varia também o instrumento de execução, que algumas vezes deve ser uma "faca virgem". Na realidade, não se trata de um único sacrifício, mas de dois; pois qualquer que seja o deus adorado, Exú deve ser o primeiro servido, por razões que veremos adiante. Há, pois, o primeiro sacrifício de um "animal de duas patas" para Exú, e em segundo lugar, quando o permitem as finanças da casa, de um "animal de quatro patas", para a divindade cuja festa se está celebrando. 2. A OFERENDA. O animal sacrificado passa das mãos do achôgun para as da cozinheira que vai preparar o alimento dos deuses. Moela, fígado, coração, pés, asas, cabeça e, bem entendido, o sangue, pertencem de direito aos deuses; mas o resto do animal não é atirado fora, é cozido e parte dele será posta em travessas ou em pratinhos diante das pedras ou dos pedaços de ferro pertencentes às divindades. Se duas galinhas são mortas, forçosamente uma deve ser cozida e a outra assada. Mas a cozinheira, que se chama iya-bassê ou abassá, e que naturalmente não deve nesse momento estar menstruada, não se limita a preparar o animal sacrificado. Cozinha também tantos pratos quantos forem os deuses chamados no decorrer da cerimônia, o amalá de Xangô, o xinxin de galinha de Oxun, o arroz sem sal de Oxalá. Alimenta então sucessivamente as diferentes pedras sagradas. O resto do alimento será consumido no fim da cerimônia pelos fiéis, e até mesmo pelos simples visitantes. Foram estas descendentes de africanas que mantiveram assim através do tempo a cozinha religiosa africana, a qual, penetrando na cozinha profana, passou em seguida dos santuários para as salas de jantar burguesas, constituindo uma das glórias da Bahia. Arthur Ramos nota que não raro diz a negra ao oferecer tais manjares suculentos, em que o ardume da pimenta se casa tão harmonioso com a doçura do azeite de dendê: "Coma, meu santo”. 3. O PADE DE EXÚ. De manhã, consuma-se o sacrifício; os preparativos culinários e a oferenda às divindades ocupam a tarde; a cerimônia pública propriamente dita começa quando o sol se põe e se prolonga por muito tempo noite adentro. Tem início obrigatoriamente com o padê de Exú, do qual muitas vezes se dá uma interpretação falsa, particularmente nos candomblés bantos: Exú é o diabo; poderá perturbar a cerimônia se não for homenageado antes dos outros deuses, como aliás ele mesmo reclamou. Para que não haja rixas, invasões da polícia (nas épocas em que há perseguições contra os candomblés), é preciso pedir-lhe que se afaste. Daí o termo de despacho, empregado algumas vezes em lugar de padê, despachar significando "mandar alguém embora". Exú é, na verdade, o Mercúrio africano, o intermediário necessário entre o homem e o sobrenatural. O intérprete que conhece ao mesmo tempo a língua dos mortais e a dos Orixá. É, pois ele o encarregado - e o padê não tem outra finalidade - de levar aos deuses da África o chamado de seus filhos do Brasil. O padê é celebrado por duas das filhas de santo mais antigas da seita, a dagã e a sidagã, ao som de cânticos em língua africana, cantados sob a direção da iya têbêxê e sob o controle do babalorixá, diante de um copo d'água e de um prato contendo o alimento de Exú. O copo e o prato serão depois levados para fora da sala em que se desenrolará o conjunto da cerimônia, sendo depositado numa encruzilhada que é dos lugares preferidos de Exú. A festa propriamente dita pode então ter começo. Embora o padê se dirija antes de tudo a Exú, comporta também obrigatoriamente uma oração para os mortos ou para os antepassados do candomblé, alguns dentre eles sendo mesmo designados por seus títulos sacerdotais. 4. O CHAMADO DOS DEUSES. - Não é, todavia, Exú o único intermediário entre os homens e os deuses. Os três tambores do candomblé também o são: o rum, que é o maior; o rumpi, de tamanho médio, e o le, que é o menor. Não são tambores comuns ou, como se diz ali, tambores "pagãos" foram batizados na presença de padrinho e madrinha, foram aspergidos de água benta trazida da igreja, receberam um nome, e o círio aceso diante deles consumiu-se até o fim. E principalmente "comeram" e "comem" todos os anos azeite de dendê, mel, água benta e o sangue de uma galinha (não se lhes oferece nunca "animais de quatro patas"), cuja cabeça foi arrancada pelo babalorixá em cima do corpo do instrumento inclinado. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi