Judaísmo. www.morasha.com.br. O SANHEDRIN: A Suprema
Corte do Povo Judeu. Juízes e guardas designarás para ti, em cada uma de tuas
tribos, em todas as tuas cidades que o Eterno, teu Deus, te der, para que
julguem o povo com reto juízo. (Deuteronômio, 16:18). Quando D'us outorgou a Torá
ao povo judeu, no Sinai, Ele ordenou-lhes constituir um sistema de tribunais
para preservar a justiça e executá-la segundo as leis que Ele transmitira a
Moisés. Essas cortes jurídicas deveriam ter autoridade abrangente, abarcando
todas as facetas da legislação judaica, quer fossem de teor civil, criminal ou
religioso. Era sua missão manter e ensinar o judaísmo e, sempre que necessário,
julgar os atos do homem perante D'us e sobretudo perante seu semelhante. A
dicotomia existente entre a legislação civil e a religiosa na maioria dos
países e sociedades, inexiste na Torá. Toda e qualquer matéria sobre a Lei
Judaica é regida pelos mandamentos Divinos, encontrados em detalhe na Torá
Escrita ou esmiuçados, em todas as suas interpretações, pela Torá Oral. Essas
leis foram ministradas por D'us a Moisés ao pé do Sinai e posteriormente
transmitidas - sem interrupção - pelos sábios, de geração em geração. Até os
dias de hoje, um judeu que se tenha envolvido em uma disputa com um
correligionário, é obrigado, de acordo com a lei da Torá, a levar essa
pendência a um tribunal judaico - um Beit Din, literalmente, "uma casa da
legislação". É vedado a um judeu encaminhar sua reivindicação a um
tribunal secular ou não judeu, a não ser que, tendo primeiramente apresentado
seu caso a um tribunal judeu, a parte oponente a isto se recuse. Maimônides
escreveu que aquele que desafia esse preceito judaico e tramita sua queixa em
uma corte de justiça laica ou secular, é considerado como tendo blasfemado e
atacado a Torá, pois, ao assim agir, deu provas de desdenhar as Leis
promulgadas por Ele. Desnecessário mencionar, mas é proibido um judeu delatar
outro judeu às autoridades para ser julgado por uma corte não-judaica. Um Beit
Din consiste de um grupo de juízes que ouvem os casos e proferem a sua
sentença. Na lei judaica, não há a figura do júri; são os próprios juízes que
interrogam as testemunhas, analisam as evidências e questões relativas ao caso,
para então aplicar o veredicto e proferir a sentença. Quando há desacordo entre
os juízes, prevalece a maioria simples. No entanto, em épocas ancestrais,
quando as cortes judaicas julgavam um caso capital, era necessária uma maioria
de no mínimo dois juízes para sentenciar que o réu era culpado. Composição e estrutura do Sanhedrin. Na lei judaica, há
três instâncias nos tribunais, cada qual com jurisdição sobre determinadas
especialidades. Esses níveis são diferenciados pelo número de juízes que
compõem o tribunal e também pelo grau de conhecimentos dos mesmos sobre os
assuntos da Torá, bem como seus atributos pessoais de sabedoria, dons e
habilidades. O nível mais baixo dos tribunais judaicos - o único que ainda
funciona, em nossos dias - é composto por três juízes. Esta classe de tribunal,
conhecido simplesmente como Beit Din, ocupa-se geralmente de demandas
pecuniárias: empréstimos, furtos, dano à propriedade e ao indivíduo. A
instância intermediária, que deixou de existir há quase dois milênios, era
formada por vinte e três juízes e conhecida como Sanhedrin Ktaná - Sanhedrin
Inferior. Estas cortes examinavam casos capitais. As leis que regiam o
julgamento de um crime grave, sujeito à pena capital, eram extremamente
complexas e se tomavam todas as precauções para evitar uma aplicação indevida
da força da lei. Os processos sempre pesavam a favor do acusado, pois a lei
judaica dificultava muito - de fato, quase impedia - que uma pessoa fosse
sentenciada à morte. No entanto, se alguém fosse condenado à morte pelo
Sanhedrin Ktaná, não havia o recurso de apelação. Uma vez pronunciado um
veredicto de culpa, procedia-se à execução imediata da sentença. A razão para
tal era poupar o condenado da angústia da espera, dia após dia, até o momento
de sua inevitável execução. Em toda a história judaica, raramente
sentenciaram-se pessoas à morte. Nos casos em que isso ocorreu, a intenção era
preservar a integridade da sociedade judaica ou corrigir uma grande maldade
cometida. Ademais, o Talmud e o misticismo judaico ensinam que até mesmo o
castigo capital tinha um objetivo humanitário: a execução do autor de um crime
passível de morte era a forma de expiação para seu pecado; ajudava-o a
purificar sua alma e, portanto, permitia que merecesse participar do Mundo
Vindouro. Na tradição judaica, a vida humana tem valor inestimável e, quando os
sábios que compunham o Sanhedrin deviam condenar alguém à morte, faziam-no com
profunda apreensão e coração pesado. Comenta o Talmud que um tribunal que
pronuncia uma pena capital uma única vez em sete anos - e, segundo os mesmos
sábios, uma única vez em setenta anos - era considerado um "tribunal
destrutivo". Rabi Akiva declarou que se dependesse dele, nenhum ser humano
jamais seria executado. A terceira e mais alta das cortes do sistema jurídico
judaico era um tribunal composto por setenta e um juízes, dentre os maiores
sábios de Israel, e era conhecida como "o Grande Sanhedrin". O
primeiro Grande Sinédrio foi convocado no Deserto de Sinai e era encabeçado por
Moshé. A partir de então, o principal juiz do Sanhedrin assumia o título
oficial de Rosh Ha'Yeshivá - "Presidente da Assembléia". Mais tarde,
passaram a se referir a essa personalidade como o Nassi - o
"Príncipe". Em matéria pertinente à lei e à justiça judaica, o Nassi
era o líder de facto do povo judeu. Era invalidada qualquer sentença
pronunciada pelo Sanhedrin sem a presença do Nassi. O juiz que ocupava o
segundo lugar nessa hierarquia tinha a função de assistente do Nassi e era
conhecido como o Av Beit Din - o "Pai da Corte Rabínica". O Grande
Sanhedrin examinava crimes capitais que estavam além da jurisdição da Corte
Inferior e, se porventura, um caso não pudesse ser julgado adequadamente pelas
demais cortes, era também transferido para a corte suprema. Esta tinha a
responsabilidade de julgar os casos mais chocantes e notórios, como os que
diziam respeito a um falso profeta ou a uma cidade inteira que se tivesse
subvertido à idolatria. Se o Cohen Hagadol - o Sumo Sacerdote de Israel - fosse
culpado de um delito máximo, seria julgado pela instância suprema. Esta Corte
Superior também se pronunciava sobre questões que afetassem todo o povo judeu,
como a indicação de um rei ou do Sumo Sacerdote, a demarcação do calendário
judaico, uma declaração de guerra e a nomeação dos juízes do Sanhedrin
Inferior. Suas sentenças vinculavam todas os tribunais inferiores e somente podiam
ser revogadas por outra decisão judicial do Grande Sanhedrin. Se algum juiz se
recusasse a aceitar a sentença desse tribunal máximo e, de público, continuasse
a aplicar sua opinião contrária, era passível de condenação à morte. Durante
todo o tempo em que existiu o Sanhedrin, era sua a palavra final e autoritária
em todas as questões pertinentes à Lei da Torá. Como um braço legislativo do
poder, o Sinédrio possuía autoridade outorgada por D'us para promulgar leis que
tinham vinculação legal sobre todo Israel. Qualquer legislação promulgada por
esse tribunal é chamada de Lei Rabínica; e, apesar de vez por outra admitir
certa flexibilidade, o Sanhedrin tem poder compulsório e tão vinculatório
quanto um mandamento bíblico. Tamanha autoridade foi-lhe imputada por D'us, Ele
próprio, em Sua Torá, como está escrito: "Conforme o mandado da lei que te
ensinarem... farás" (Deuteronômio, 17:11). Aquele que acreditava na
autoridade da Torá era obrigado a aceitar as determinações e as decisões
judiciais do Grande Sanhedrin. Sua função mais importante era a preservação,
interpretação e transmissão da Torá Oral. Esta consiste de todas as
interpretações e elucidações do corpo de leis escritas, bem como das inúmeras
leis que foram outorgadas a Moisés por D'us e que, por um propósito
determinado, jamais foram escritas. Desde o Sinai, a Torá Oral foi transmitida
oralmente e confiada a uma assembléia de anciãos que a preservaram e ensinaram.
Foi transmitida dos mestres para os discípulos durante quase 1.500 anos, dos
dias de Moshé até depois de os romanos terem destruído Jerusalém. Ao longo de
todo esse período, a Lei e as tradições judaicas foram sagradamente preservadas
pelo Sanhedrin. Somente após ter sido exilada e, por fim, dispersada aquela
santa assembléia de sábios, é que a Torá Oral foi escrita na forma do Talmud e
do Midrash. Após ser construído o Templo Sagrado de Jerusalém, o Grande
Sanhedrin reunia-se e decidia sobre as matérias julgadas em uma de suas
câmaras, conhecida como a Câmara da Pedra Talhada. O Grande Sanhedrin somente
se investia de seus plenos poderes quando despachava desse local. Esse tribunal
supremo podia ser instituído em qualquer parte da Terra de Israel, porém, se
não se reunisse na Câmara da Pedra Talhada, sua autoridade e seus poderes
sofriam drásticas limitações. Os
sábios do Sanhedrin. Para que um judeu fosse qualificado a servir no Sinédrio, tinha que
possuir grande sabedoria, conhecimento e sagacidade. Acima de tudo, tinha que
ter notável domínio das questões da Torá, bem como vasto conhecimento de outras
disciplinas que poderiam ter relevância no julgamento de uma ação. Os juízes
que o compunham deviam, também, ser fluentes em vários idiomas para que
pudessem julgar um réu ou examinar testemunhas que falassem uma língua
estrangeira. Deviam, também, esses magistrados, ter conhecimentos sobre outras
religiões, bem como sobre práticas da idolatria e do ocultismo, de modo a poder
ajuizar e pronunciar veredictos em casos que versassem sobre tais temas. Por
essa razão, mesmo as matérias cujo estudo era vedado ou não recomendado aos
judeus, eram conhecidas a fundo pelos juízes do Sanhedrin, pois que poderiam
ser requisitadas durante um julgado. Todos os juízes, mesmo os que integravam a
instância inferior dos tribunais, possuíam atributos e qualidades pessoais
irrepreensíveis. Seu caráter tinha que ser exemplar e sua integridade,
impecável. Como o disse Maimônides, tinham que ser homens sábios, humildes,
tementes a D'us, incorruptivelmente honestos, amantes da verdade; tinham que
possuir boa disposição no trato com seus semelhantes e a reputação ilibada. E
para que o tribunal do Sanhedrin impusesse o maior respeito possível ao povo,
seus magistrados deviam ainda ser indivíduos maduros e de boa aparência.
Portanto, dava-se preferência a que tivessem quarenta anos, no mínimo, exceção
feita a alguém que tivesse sabedoria e conhecimentos incomparáveis. Para a
autoridade máxima do Sanhedrin dava-se preferência a alguém que tivesse entrado
na casa dos cinquenta. Em hipótese alguma uma pessoa com menos de dezoito anos
era indicada para compor a Corte Suprema do judaísmo. Tampouco tinha assento
nessa assembléia o homem estéril ou sem filhos - pois que conforme explicavam
os Sábios, o homem se torna mais misericordioso depois de ser pai.
Considerava-se inválida, portanto, a composição de um Sanhedrin se um de seus
membros se enquadrasse nesta condição. A pessoa que tivesse sido culpada de
roubo ou de qualquer transgressão que envolvesse ganho pecuniário era
considerada inapta para a nobre função. Obviamente, não podia ter assento em um
julgamento o juiz que tivesse algum parentesco com o indiciado, litigantes ou
uma das testemunhas. Para compor um Sanhedrin, o magistrado tinha que ser
ordenado com uma Semichá. No entanto, esta não deve ser confundida com a
ordenação que é pronunciada, hoje, na formatura de um rabino). Essa Semichá
também era um pré-requisito para os juízes do Sanhedrin Inferior, mesmo que se
tratasse apenas de um tribunal de três membros para julgar algo tão trivial
como uma multa. A instituição da Semichá era uma forma singular de ordenação
que remontava à época de Moisés, que recebera a sua de D'us. Era transmitida de
mestre a discípulo, em uma corrente inquebrantável, até ter caducada a sua
vigência, no final do século IV da era comum. A cerimônia de outorga da Semichá
somente podia ser realizada na Terra de Israel. Quando a perseguição das
autoridades romanas aos judeus fez com que a maioria da população fosse exilada
da Terra, foi interrompida a significativa ordenação da Semichá. No ano de 28
E.C., quando os romanos dominavam a Terra de Israel, o Sanhedrin foi destituído
de grande parte de seu poder. Sua assembléia deixou de se reunir na Câmara da
Pedra Talhada, transferindo-se para outro cômodo do Monte do Templo, em nítida
indicação de que tinha sido forçada a abdicar de sua autoridade de julgar casos
capitais. Posteriormente, deixou por completo o recinto do Templo,
transferindo-se para Jerusalém. Quando a mais sagrada das cidades foi destruída
pelas legiões romanas, em 70 da era comum, o Sanhedrin foi para Yavne. Durante
o século seguinte, sua sede alternou-se entre Yavne e Usha. De lá,
transferiu-se para Shafaram, Beth Shearim, Séforis e Tiberíades. Continuou a
funcionar em Tiberíades até pouco antes de ser completada a compilação do
Talmud. Durante as perseguições de Constantino, entre 337-361 E.C., o Sanhedrin
foi forçado a passar à clandestinidade e acabou por ser dissolvido. A autoridade do Sanhedrin. Ordena a Torá que
todo o povo judeu obedeça o que determinam as decisões judiciais do Sanhedrin e
suas sentenças. É proibido contestar ou mesmo ignorar sua autoridade, pois que
D'us ordenou em sua Torá: "Conforme o mandado da lei que te ensinarem e
conforme o juízo que te disserem, farás; da sentença que te anunciarem não te
desviarás, nem para a direita nem para a esquerda" (Deuteronômio, 17:11).
As determinações do Sanhedrin tinham que ser aceitas ainda que parecessem
ilógicas ou erradas. No entanto, esta corte não tinha o poder de promulgar um
decreto - jamais o tendo feito - que abolisse um mandamento da Torá nem de
proibir algo que a Torá expressamente permitia. Mas, por outro lado,tinha o
poder de promulgar uma legislação consoante com as necessidades da época.
Qualquer lei decretada pelo Sanhedrin é chamada de Mandamento Rabínico. E quem,
porventura, desrespeitasse um mandamento rabínico estaria transgredindo a
própria Torá. Os juízes, apesar de humanos e falíveis, eram guiados pelo
espírito de D'us, que os ajudava a perseguir a verdade e a justiça. Com efeito,
a Torá e o Talmud referem-se, ocasionalmente, aos magistrados do Sanhedrin como
Elo-im, que é um dos Nomes que a Torá utiliza para se referir a D'us, Todo
Poderoso! Por definição, suas sentenças representam a Vontade Divina. Era,
portanto, algo extremamente sério contestar a autoridade do Sanhedrin. Em
determinados casos, quem o fizesse poderia ser condenado à morte, pois está
escrito: "Se um homem, pois, agir com soberba e não der ouvidos ao...
juiz, tal homem morrerá; e assim eliminarás o mal de Israel"
(Deuteronômio, 17:12). Era a autoridade desse tribunal supremo o que garantia a
preservação da Torá e que fazia ser único e unificado o judaísmo, não estando
sujeito aos caprichos e interpretações de quem quer que fosse. Os Sábios que o
compunham eram os líderes - as mentes mais elevadas, os homens mais santos de
Israel. Até em nossos dias, quando não mais existe a grande assembléia do
Sanhedrin, menosprezá-lo é mostrar total desrespeito ao povo judeu, à Torá e
mesmo a D'us. Como vimos acima, tratava-se de uma Corte Suprema humanitária e justa,
que funcionava sob os auspícios do Juiz Celestial. E, assim sendo, fazia tudo a
seu alcance para evitar sentenciar pessoas à morte é uma inverdade histórica. O
libelo de sangue que, infelizmente ainda perdura, de que o Sanhedrin teria
julgado Jesus, um judeu, no ano de 33 de nossa era, sentenciando-o à morte e, a
seguir, entregando-o aos romanos para que o executassem. Como vimos acima, o
Sanhedrin deixou de examinar casos capitais no ano de 28 E.C., quando se
retirou da Câmara de Pedra Talhada. E o que é ainda mais grave em tal acusação
infundada é o absurdo teológico que encerra. É um despropósito e uma ironia
sugerir que os maiores mestres nas questões da Torá teriam violado
grosseiramente a Sua Lei, que proíbe, de forma inarredável, a um judeu entregar
outro judeu para ser julgado por autoridades não judias - muito menos se este
ato redundasse em sua execução. É mister, também, que fique muito claro que o
Sanhedrin, de acordo com a sagrada Torá, não podia julgar casos capitais - como
nunca o fez - na véspera de Shabat, de Pessach nem de qualquer de suas datas
sagradas, pois é contra a lei judaica executar quem quer que seja nos Dias
Santificados. Quando o Sanhedrin era forçado a condenar um judeu à morte, ainda
que pelo mais hediondo dos crimes ou pecados, essa assembléia de homens sábios
empenhava-se ao máximo para preservar a dignidade do indiciado e minimizar sua
dor física. No dia da execução do culpado, todos os juízes jejuavam, em sinal
de luto pelo réu judeu - um de seus irmãos - que eles próprios haviam condenado
à morte. Os magistrados que compunham o Sanhedrin tinham consciência de sua
terrível responsabilidade: a de se tornarem parceiros Divinos ao ser o braço da
justiça no mundo que Ele criou. Ao tentar emular o Juiz de toda a Terra, eles temperavam
a justiça com misericórdia, decretando a pena capital muito raramente, apenas
quando de fato não lhes restava alternativa. A restauração do Sanhedrin. Referindo-se ao
Sanhedrin, a Torá afirma:.. "deverás... subir ao local (...)"
indicando que o lugar escolhido para acolher a Suprema Corte era um dos mais
elevados na Terra de Israel. Ao tentar determinar o lugar escolhido por D'us
para a construção do Templo Sagrado, o Rei David e o Profeta Samuel guiaram-se
por esse versículo. O fato de o local escolhido ter sido determinado por um
verso da Torá que, por sua vez, se refere à localização do Sanhedrin, nos
revela que a razão primária para a existência do Templo Sagrado era a de sediar
a magna instituição. Com efeito, uma das principais funções do Templo era a
educativa - "... para que aprendas a temer o Eterno, teu D'us, todos os
dias de tua vida" ((Deuteronômio, 14:23). A principal fonte de instrução
era o Sanhedrin, cujos magistrados ensinavam a Torá a todo o povo de Israel. E
a Lei de Moisés era preservada pelo Sinédrio, que, desta maneira, evitava sua
interpretação errônea e aplicação indevida, pois isso daria motivo a fricção e
dissidência no seio do povo judeu. Pois que nos ordena a Torá: "Uma mesma
Lei, um mesmo estatuto (Torá) haverá para vós..." (Números, 15:16). Hoje,
quase dois mil anos depois de destruído o Templo, o Sanhedrin continua a
desempenhar um papel dominante na vida do povo judeu. Foi essa corte moldou o
judaísmo. Uma tradição diz que a restauração do Sanhedrin precederá a chegada do
Messias. Pois que este será Rei de Israel e, portanto, precisa ser confirmado
por uma ordenação direta do Sanhedrin. Eis que D'us disse a Seu profeta:
"Restituir-te-ei os teus juízes, como eram antigamente, os teus
conselheiros, como no princípio; depois te chamarão Cidade da Justiça, Cidade
da Fé. Sion será redimida pelo direito; e os que se arrependem, pela
justiça" (Isaías, 1:26-27). Por outro lado, um ensinamento nos diz que o
Sanhedrin será restaurado após uma parcial reunião dos exilados judeus, antes
que seja reconstruída e restaurada Jerusalém; e que o Profeta Eliahu se
apresentará perante esta Corte Suprema dos judeus, ao anunciar a chegada do
Messias. Por isso, na Amidá, a oração recitada três vezes ao dia, rogamos a
D'us que "restitua nossos juízes, como no passado, e nossos conselheiros,
como outrora". Por trás desse rogo sente-se a nostalgia judaica que clama
pela reconstrução do Templo Sagrado de Jerusalém, para que todos os judeus
voltem a se reunir na Terra de Israel e D´us contemple a humanidade com uma era
de prosperidade e paz absoluta. www.morasha.com.br.
Abraço.Davi
sábado, 30 de novembro de 2019
sexta-feira, 29 de novembro de 2019
A PRECIOSIDADE DA NOSSA VIDA HUMANA
Budismo.
www.budismomoderno.org.br. Livro Budismo Moderno. Autor Geshe Kelsang Gyatso (1931 - ). O CAMINHO DE UMA PESSOA DE ESCOPO INICIAL. Neste contexto, uma
“pessoa de escopo inicial” refere-se a alguém que tem uma capacidade inicial
para desenvolver compreensão e realizações espirituais. A PRECIOSIDADE DA NOSSA
VIDA HUMANA. O propósito de compreender a preciosidade da nossa vida humana é
encorajarmo-nos a extrair o sentido da nossa vida humana e não desperdiça em
atividades sem significado. Nossa vida humana é muito preciosa e significativa,
mas somente se a usarmos para obter libertação permanente e a felicidade
suprema da iluminação. Devemos nos encorajar a realizar o verdadeiro
significado da nossa vida humana por meio de compreender e contemplar a
seguinte explicação. Muitas pessoas acreditam que o desenvolvimento material é
o verdadeiro sentido da vida humana, mas podemos ver que não importa quanto
desenvolvimento material exista no mundo, ele nunca reduz os sofrimentos e os
problemas humanos. Em vez disso, ele frequentemente faz com que os sofrimentos
e os problemas aumentem; portanto, ele não é o verdadeiro sentido da vida
humana. Devemos saber que, vindos das nossas vidas anteriores, alcançamos agora
o mundo humano por apenas um breve instante e que temos a oportunidade de obter
a felicidade suprema da iluminação praticando o Dharma. Essa é a nossa extraordinária
boa fortuna. Quando alcançarmos a iluminação, teremos satisfeito todos os
nossos desejos e poderemos satisfazer os desejos de todos os demais seres
vivos; teremos libertado a nós próprios permanentemente dos sofrimentos desta
vida e de incontáveis vidas futuras, e poderemos beneficiar diretamente todos e
cada um dos seres vivos, todos os dias. A conquista da iluminação é, portanto,
o verdadeiro sentido da vida humana. A iluminação é a luz interior de sabedoria
que é permanentemente livre de toda aparência equivocada e que atua concedendo
paz mental para todos e cada um dos seres vivos, todos os dias – essa é a
função da iluminação. Agora mesmo obtivemos um renascimento humano e temos a
oportunidade de alcançar a iluminação pela prática do Dharma; assim sendo, se
desperdiçarmos esta preciosa oportunidade em atividades sem significado, não
haverá maior perda nem maior insensatez do que essa. O motivo é que tal
oportunidade preciosa será extremamente difícil de ser encontrada no futuro. Em
um Sutra, Buda torna isso claro por meio da seguinte analogia. Ele pergunta aos
seus discípulos: “Imaginem que exista um vasto e profundo oceano do tamanho
deste mundo; que, em sua superfície, haja uma canga dourada flutuando; e que,
no fundo do oceano, viva uma tartaruga cega que vem à superfície apenas uma vez
a cada cem mil anos. Quantas vezes a tartaruga colocaria sua cabeça no meio da
canga?” Ananda, seu discípulo, respondeu que, certamente, isso seria
extremamente raro. Nesse contexto, o vasto e profundo oceano refere-se ao
samsara – o ciclo de vida impura que temos experienciado desde tempos sem
início, continuamente, vida após vida, sem-fim; a canga dourada refere-se ao
Budadharma, e a tartaruga cega refere-se a nós. Embora não sejamos fisicamente
como uma tartaruga, mentalmente não somos muito diferentes; e embora os nossos
olhos físicos possam não ser cegos, os nossos olhos de sabedoria o são. Na
maioria das nossas incontáveis vidas anteriores, permanecemos no fundo do
oceano do samsara, nos três reinos inferiores – no reino animal, no reino dos
fantasmas famintos e no reino do inferno – emergindo como ser humano apenas a
cada cem mil anos, mais ou menos. Mesmo quando alcançamos brevemente o reino
superior do oceano do samsara como um ser humano, é extremamente raro encontrar
a canga dourada do Budadharma: o oceano do samsara é extremamente vasto, a
canga dourada do Budadharma não permanece num único lugar, mas move-se de um
lugar a outro, e os nossos olhos de sabedoria estão sempre cegos. Por essas
razões, Buda diz que, no futuro, mesmo se obtivermos um renascimento humano,
será extremamente raro encontrar o Budadharma novamente; encontrar o Dharma
Kadam é ainda mais raro que isso. Podemos ver que a grande maioria dos seres
humanos no mundo, embora tenham brevemente alcançado o reino superior do
samsara como seres humanos, não encontraram o Budadharma. O motivo é que os
seus olhos de sabedoria não se abriram. O que significa “encontrar o
Budadharma”? Significa ingressar no Budismo buscando sinceramente refúgio em
Buda, Dharma e Sangha e, assim, ter a oportunidade de ingressar e fazer
progressos no caminho à iluminação. Se não encontrarmos o Budadharma, não
teremos oportunidade para fazer isso e, assim, não teremos oportunidade de
obter a felicidade pura e duradoura da iluminação, o verdadeiro sentido da vida
humana. Concluindo, devemos pensar: Agora eu alcancei, por um breve momento, o
mundo humano, e tenho a oportunidade de obter a libertação permanente do
sofrimento e a felicidade suprema da iluminação por meio de colocar o Dharma em
prática. Se eu desperdiçar esta preciosa oportunidade em atividades sem
significado, não haverá maior perda nem maior insensatez. Com esse pensamento,
tomamos a firme determinação de praticar agora o Dharma dos ensinamentos de
Buda sobre renúncia, compaixão universal e visão profunda da vacuidade,
enquanto temos esta oportunidade. Então, meditamos repetidamente nessa
determinação. Devemos praticar essa contemplação e meditação todos os dias em
muitas sessões e, desse modo, nos encorajarmos a extrair o verdadeiro sentido
da nossa vida humana. Devemos nos perguntar o que consideramos mais importante
– o que desejamos, pelo que nos dedicamos ou com o que sonhamos? Para algumas
pessoas são as posses materiais, como uma casa grande com os últimos requintes
de conforto, um carro veloz ou um emprego bem remunerado. Para outros é
reputação, boa aparência, poder, excitação ou aventura. Muitos tentam encontrar
o sentido de suas vidas em relacionamentos familiares e círculo de amigos.
Todas essas coisas podem nos fazer superficialmente felizes por pouco tempo,
mas elas também causam muita preocupação e sofrimento. Elas nunca irão nos dar
a verdadeira felicidade que todos nós, em nossos corações, buscamos. Já que não
podemos levá-las conosco quando morrermos, com certeza irão nos decepcionar se
tivermos feito delas o principal sentido da nossa vida. As aquisições mundanas,
tomadas como um fim em si mesmas, são ocas: elas não são o verdadeiro sentido
da vida humana. Com a nossa vida humana podemos, ao colocar o Dharma em
prática, obter a suprema paz mental permanente, conhecida como “nirvana”, e a
iluminação. Uma vez que essas aquisições são não enganosas e são estados
últimos de felicidade, elas são o verdadeiro sentido da vida humana. No
entanto, porque o nosso desejo por prazer mundano é tão forte, temos pouco ou
nenhum interesse pela prática de Dharma. Do ponto de vista espiritual, essa
ausência de interesse pela prática de Dharma é um tipo de preguiça denominado
“preguiça do apego”. A porta da libertação permanecerá fechada para nós
enquanto tivermos essa preguiça e, consequentemente, continuaremos a vivenciar
infortúnio e sofrimento nesta vida e em incontáveis vidas futuras. A maneira de
superar essa preguiça, o principal obstáculo para a nossa prática de Dharma, é
meditar sobre a morte. Precisamos contemplar a nossa morte e meditar sobre ela
repetidamente, até obtermos uma profunda realização sobre a morte. Embora, num
nível intelectual, todos nós saibamos que definitivamente iremos morrer, nossa
percepção sobre a morte permanece superficial. Na medida em que a nossa
compreensão intelectual da morte não toca o nosso coração, continuamos a pensar
todos os dias “eu não vou morrer hoje, eu não vou morrer hoje”. Mesmo no dia da
nossa morte, ainda estaremos pensando sobre o que faremos no dia ou na semana
seguintes. Essa mente que pensa todo dia “eu não vou morrer hoje” é enganosa –
ela nos conduz na direção errada e faz com que a nossa vida humana se torne
vazia. Por outro lado, meditando sobre a morte, substituiremos gradativamente o
pensamento enganoso “eu não vou morrer hoje” pelo pensamento não enganoso “pode
ser que eu morra hoje”. A mente que espontaneamente pensa todos os dias “pode
ser que eu morra hoje” é a realização sobre a morte. É essa realização que
elimina diretamente a nossa preguiça do apego e abre a porta para o caminho
espiritual. Em geral, podemos ou não morrer hoje – não sabemos. No entanto, se
pensarmos todos os dias “talvez eu não morra hoje”, esse pensamento irá nos
enganar porque vem da nossa ignorância; porém, se em vez disso pensarmos todos
os dias “pode ser que eu morra hoje”, esse pensamento não irá nos enganar
porque vem da nossa sabedoria. Esse pensamento benéfico impedirá a nossa
preguiça do apego e irá nos encorajar a preparar o bem-estar das nossas
incontáveis vidas futuras ou a aplicar grande esforço para ingressarmos no
caminho da libertação e da iluminação. Desse modo, tornaremos significativa
nossa vida humana atual. Até agora desperdiçamos, sem sentido algum, nossas incontáveis
vidas anteriores: não trouxemos nada conosco das nossas vidas passadas, exceto
delusões e sofrimento. www.budismomoderno.org.br.
Abraço. Davi
quinta-feira, 28 de novembro de 2019
DEUS
Espiritismo.
www.fetnet.org.br. Texto de Allan
Kardec. Tradução Evandro Noleto Bezerra. Livro A Gênese – Os Milagres e as
Predições Segundo o Espiritismo. Capítulo II. DEUS. Existência de Deus. A Natureza
Divina. A Providência. A Visão de Deus. 1. Sendo Deus a causa primeira de todas
as coisas, a origem de tudo que existe, a base sobre a qual repousa o edifício
da Criação, é o ponto que importa considerar-se antes de tudo. 2. Constitui
princípio elementar que pelos efeitos é que se julga uma causa, mesmo quando
ela se conserve oculta. Se, pois, rasgando os ares, um pássaro é atingido por
mortífero grão de chumbo, deduz-se que um hábil atirador o alvejou, ainda que
este último não seja visto. Assim, nem sempre é preciso que se veja uma coisa
para ficar-se sabendo da sua existência. Em tudo, é observando os efeitos que
se chega ao conhecimento das causas que os produzem. 3. Outro princípio
igualmente elementar e que, de tão verdadeiro, passou a axioma é o de que todo
efeito inteligente tem que resultar de uma causa inteligente. Se, por exemplo,
alguém perguntar qual o construtor de certo mecanismo engenhoso, que
pensaríamos de quem respondesse que ele se fez a si mesmo? Quando se contempla
uma obra-prima da arte ou da indústria, diz-se que só um homem de gênio seria
capaz de produzi-la, visto que só uma alta inteligência poderia concebê-la.
Reconhece-se, no entanto, que ela é obra do homem, porque não está acima da
capacidade humana; a ninguém, porém, acorrerá a ideia de dizer que saiu do
cérebro de um deficiente mental ou de um ignorante, nem, ainda menos, que seja
trabalho de um animal, ou simples produto do acaso. 4. Em toda parte se
reconhece a presença do homem pelas suas obras. A existência dos homens
antediluvianos não se provaria unicamente por meio dos fósseis humanos, mas
também, e com muita certeza, pela presença, nos terrenos daquela época, de
objetos trabalhados pelos homens. Um fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma
arma, um tijolo bastarão para lhe atestar a presença. Pela grosseria ou
perfeição do trabalho, reconhecer- -se-á o grau de inteligência ou de
adiantamento dos que o executaram. Se, pois, achando-vos numa região habitada
exclusivamente por selvagens, descobrirdes uma estátua digna de Fídias,25 não
hesitareis em dizer que ela é obra de uma inteligência superior à dos
selvagens, visto que estes seriam incapazes de fazê-la. 5. Pois bem! Lançando o
olhar em torno de si, sobre as obras da natureza, observando a previdência, a
sabedoria, a harmonia que preside a todas as coisas, reconhece-se não haver
nenhuma que não ultrapasse os limites da mais talentosa inteligência humana.
Ora, desde que o homem não as pode produzir, é que elas são produto de uma
inteligência superior à humanidade, salvo se sustentarmos que há efeitos sem
causa. 6. A isto algumas pessoas opõem o seguinte raciocínio: as obras ditas da
natureza são produzidas por forças materiais que atuam mecanicamente, em
virtude das leis de atração e repulsão; as moléculas dos corpos inertes se
agregam e desagregam sob o império dessas leis. As plantas nascem, brotam,
crescem e se multiplicam sempre da mesma maneira, cada uma na sua espécie, por
efeito daquelas mesmas leis; cada indivíduo se assemelha ao de que ele proveio;
o crescimento, a floração, a frutificação, a coloração se acham subordinados a
causas materiais, tais como o calor, a eletricidade, a luz, a umidade etc. O
mesmo se dá com os animais. Os astros se formam pela atração molecular e se
movem perpetuamente em suas órbitas por efeito da gravitação. Essa regularidade
mecânica no emprego das forças naturais não acusa de modo algum a ação de uma
inteligência livre. O homem movimenta o braço quando quer e como quer; aquele,
porém, que o movimentasse no mesmo sentido, desde o nascimento até a morte,
seria um autômato. Ora, as forças orgânicas da natureza são puramente
automáticas. Tudo isso é verdade, mas essas forças são efeitos que devem ter
uma causa e ninguém pretende que constituam a Divindade. Elas são materiais e
mecânicas; não são por si mesmas inteligentes, o que também é verdade; mas são
postas em ação, distribuídas, apropriadas às necessidades de cada coisa por uma
inteligência que não é a dos homens. A aplicação útil dessas forças é um efeito
inteligente que denota uma causa inteligente. Um pêndulo se move com automática
regularidade e é nessa regularidade que está o seu mérito. A força que o faz
mover-se é toda material e nada tem de inteligente. Mas que seria esse pêndulo
se uma inteligência não houvesse combinado, calculado, distribuído o emprego
daquela força para fazê-lo andar com precisão? Pelo fato de não estar a
inteligência no mecanismo do pêndulo e também pela circunstância de que ninguém
a vê, seria racional concluir-se que ela não existe? Podemos julgá-la pelos
seus efeitos. A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro; a
engenhosidade do mecanismo atesta a inteligência e o saber de seu fabricante.
Quando um relógio vos dá, no momento preciso, a indicação de que necessitais,
acaso já vos terá vindo à mente dizer: aí está um relógio bastante inteligente?
Dá-se a mesma coisa com o mecanismo do universo: Deus não se mostra, mas se
revela pelas suas obras. 7. A existência de Deus é, pois, um fato comprovado
não só pela revelação, como pela evidência material dos fatos. Os povos
selvagens não tiveram nenhuma revelação; entretanto, creem instintivamente na
existência de um poder sobre-humano. Eles veem coisas que estão acima das
possibilidades do homem e deduzem que essas coisas provêm de um ser superior à
humanidade. Não demonstram raciocinar com mais lógica do que os que pretendem
que tais coisas se fizeram a si mesmas? A natureza divina 8. Não é dado ao
homem sondar a natureza íntima de Deus. Para compreendê-lo, ainda nos falta um
sentido próprio que só se adquire por meio da completa depuração do Espírito.
Mas se não pode penetrar na essência de Deus, o homem, desde que aceite a sua
existência como premissa, pode, pelo raciocínio, chegar ao conhecimento de seus
atributos essenciais, porquanto, vendo o que Ele absolutamente não pode ser,
sem deixar de ser Deus, deduz daí o que Ele deve ser. Sem o conhecimento dos
atributos de Deus, seria impossível compreender-se a obra da Criação. Esse é o
ponto de partida de todas as crenças religiosas e é por não se terem reportado
a isso, como o farol capaz de as orientar, que a maioria das religiões errou em
seus dogmas. As que não atribuíram a Deus a onipotência imaginaram muitos
deuses; as que não lhe atribuíram a soberana bondade fizeram dele um Deus
ciumento, colérico, parcial e vingativo. 9. Deus é a suprema e soberana
inteligência. A inteligência do homem é limitada, visto que não pode fazer nem
compreender tudo o que existe. A de Deus, abrangendo o infinito, tem que ser
infinita. Se a supuséssemos limitada num ponto qualquer, poderíamos conceber
outro ser mais inteligente, capaz de compreender e fazer o que o primeiro não
faria, e assim por diante, até o infinito. 10. Deus é eterno, isto é, não teve
começo e não terá fim. Se tivesse tido começo, é porque teria saído do nada.
Ora, como o nada não existe, não pode gerar coisa alguma. Ou, então, teria sido
criado por outro ser anterior e, nesse caso, este ser é que seria Deus. Se lhe
supuséssemos um começo e um fim, poderíamos conceber uma entidade existente antes
dele e capaz de lhe sobreviver, e assim por diante, até o infinito. 11. Deus é
imutável. Se estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o universo não
teriam nenhuma estabilidade. 12. Deus é imaterial, isto é, a sua natureza
difere de tudo o que chamamos matéria. De outro modo, não seria imutável, pois
estaria sujeito às transformações da matéria. Deus não tem forma apreciável
pelos nossos sentidos, sem o que seria matéria. Dizemos: a mão de Deus, o olho
de Deus, a boca de Deus, porque o homem, nada mais conhecendo além de si mesmo,
toma a si próprio por termo de comparação para tudo o que não compreende. São
ridículas essas imagens em que Deus é representado pela figura de um ancião de
longas barbas e envolto num manto; têm o inconveniente de rebaixar o Ser
supremo às mesquinhas proporções da humanidade. Daí a lhe emprestarem as
paixões humanas e dele fazerem um Deus colérico e ciumento não vai mais que um
passo. 13. Deus é onipotente. Se não possuísse o poder supremo, poder-se-ia
conceber um ser mais poderoso e assim por diante, até chegar ao ser cujo poder
não fosse ultrapassado por nenhum outro. Esse então é que seria Deus. 14. Deus
é soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das Leis divinas se
revela nas menores como nas maiores coisas, e essa sabedoria não permite que se
duvide nem da sua justiça, nem da sua bondade. O fato de ser infinita uma
qualidade exclui a possibilidade da existência de uma qualidade contrária, que
a diminuiria ou anularia. Um ser infinitamente bom não poderia conter a mais
insignificante parcela de maldade, nem o ser infinitamente mau conter a mais
insignificante parcela de bondade, do mesmo modo que um objeto não pode ser de
um negro absoluto com a mais ligeira nuança de branco, nem de um branco
absoluto com a mais leve mancha preta. Deus, pois, não poderia ser
simultaneamente bom e mau, porque então, não possuindo quaisquer dessas duas
qualidades no grau supremo, não seria Deus; todas as coisas estariam sujeitas
ao seu capricho e não haveria estabilidade para nenhuma delas. Não poderia Ele,
por conseguinte, deixar de ser ou infinitamente bom ou infinitamente mau. Ora,
como suas obras dão testemunho da sua sabedoria, da sua bondade e da sua
solicitude, concluir-se-á que, não podendo ser ao mesmo tempo bom e mau sem deixar
de ser Deus, Ele necessariamente tem de ser infinitamente bom. A soberana
bondade implica a soberana justiça, porquanto, se Ele procedesse injustamente
ou com parcialidade numa única circunstância que fosse, ou com relação a uma só
de suas criaturas, já não seria soberanamente justo e, por conseguinte, já não
seria soberanamente bom. 15. Deus é infinitamente perfeito. É impossível
conceber-se Deus sem o infinito das perfeições, sem o que não seria Deus, pois
sempre se poderia conceber um ser que possuísse o que lhe faltasse. Para que
nenhum ser possa ultrapassá-lo, é preciso que Ele seja infinito em tudo. Sendo
infinitos, os atributos de Deus não são suscetíveis nem de aumento nem de
diminuição, visto que do contrário não seriam infinitos e Deus não seria
perfeito. Se lhe tirassem a mínima parcela de um só de seus atributos, já não
haveria Deus, pois que poderia existir um ser mais perfeito. 16. Deus é único.
A unicidade de Deus é consequência do fato de serem infinitas as suas
perfeições. Não poderia existir outro Deus, salvo sob a condição de ser
igualmente infinito em todas as coisas, visto que, se houvesse entre eles a
mais leve diferença, um seria inferior ao outro, subordinado ao poder desse
outro e, então, não seria Deus. Se houvesse entre ambos igualdade absoluta,
isso equivaleria a existir, por toda eternidade, um mesmo pensamento, uma mesma
vontade, um mesmo poder. Confundidos quanto à identidade, não haveria, na
realidade, mais que um único Deus. Se cada um tivesse atribuições especiais, um
não faria o que o outro fizesse; mas, então, não existiria igualdade perfeita
entre eles, pois que nenhum possuiria a autoridade soberana. 17. Foi a
ignorância do princípio de que são infinitas as perfeições de Deus que gerou o
politeísmo, culto adotado por todos os povos primitivos. Eles atribuíam à
Divindade todo poder que lhes parecia acima dos poderes inerentes à humanidade.
Mais tarde, a razão os levou a reunir essas diversas potências numa só. Depois,
à medida que os homens foram compreendendo a essência dos atributos divinos,
retiraram dos símbolos, que haviam criado, a crença que implicava a negação
desses atributos. 18. Em resumo, Deus não pode ser Deus, senão sob a condição
de que nenhum outro o ultrapasse, porquanto o ser que o excedesse no que quer
que fosse, ainda que apenas na espessura de um fio de cabelo, é que seria o
verdadeiro Deus. Para que assim não aconteça, é indispensável que Ele seja
infinito em tudo. Comprovada, pois, pelas suas obras a existência de Deus,
chegamos, por simples dedução lógica, a determinar os atributos que o
caracterizam. 19. Deus é, pois, a inteligência suprema e soberana, é único,
eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em
todas as perfeições, e não poderia ser outra coisa. Tal o eixo sobre o qual
repousa o edifício universal, o farol cujos raios se estendem sobre o universo
inteiro, única luz capaz de guiar o homem na procura da verdade. Orientando-se
por essa luz, ele nunca se transviará. Se, portanto, o homem tem errado tantas
vezes, é unicamente por não ter seguido o roteiro que lhe estava indicado. Tal
também o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas e religiosas.
Para apreciá-las, o homem dispõe de uma medida rigorosamente exata nos
atributos de Deus e pode afirmar com certeza que toda teoria, todo princípio,
todo dogma, toda crença, toda prática que estiver em contradição com um só que
seja desses atributos, que tenda não só a anulá-lo, mas simplesmente a
diminuí-lo, não pode estar com a verdade. Em filosofia, psicologia, moral e
religião só há de verdadeiro o que não se afaste nem um milímetro das
qualidades essenciais da Divindade. A religião perfeita será aquela em que
nenhum artigo de fé esteja em oposição com aquelas qualidades; aquela cujos
dogmas suportem a prova desse controle sem nada sofrerem. A Providência 20. A Providência
é a solicitude de Deus para com as suas criaturas. Deus está em toda parte,
tudo vê e a tudo preside, mesmo às coisas mais insignificantes. É nisto que
consiste a ação providencial. “Como pode Deus, tão grande, tão poderoso, tão
superior a tudo, intrometer-se em pormenores sem importância, preocupar-se com
os menores atos da nossa vida e com os mais ínfimos pensamentos de cada
indivíduo?” Tal a interrogação que o incrédulo dirige a si mesmo, concluindo
por dizer que, admitida a existência de Deus, só se pode aceitar, quanto à sua
ação, que ela se exerça sobre as leis gerais do universo; que o universo
funcione de toda a eternidade, em virtude dessas leis, às quais toda criatura
se acha submetida na esfera de suas atividades, sem que seja preciso a
intervenção incessante da Providência. 21. No estado de inferioridade em que
ainda se encontram, só com muita dificuldade os homens podem compreender que
Deus seja infinito, visto que, sendo eles mesmos limitados e circunscritos,
imaginam também que Deus seja circunscrito e limitado, figurando-o à imagem e
semelhança deles. Os quadros em que o vemos com traços humanos não contribuem
pouco para entreter esse erro no espírito das massas, que nele adoram mais a
forma que o pensamento. Para a maioria, Ele é um soberano poderoso, sentado num
trono inacessível e perdido na imensidade dos céus. Como suas faculdades e
percepções são limitadas, não compreendem que Deus possa ou se digne de
intervir diretamente nas pequeninas coisas. 22. Impotente para compreender a
essência mesma da Divindade, o homem não pode fazer dela mais que uma ideia
aproximada, mediante comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que, ao
menos, servem para lhe mostrar a possibilidade daquilo que, à primeira vista,
lhe parece impossível. Suponhamos um fluido bastante sutil para penetrar todos
os corpos. Sendo ininteligente, esse fluido atua mecanicamente, tão só por meio
das forças materiais. Se, porém, o imaginarmos dotado de inteligência, de
faculdades perceptivas e sensitivas, ele já não atuará às cegas, mas com
discernimento, com vontade própria e liberdade: verá, ouvirá e sentirá. 23. As
propriedades do fluido perispiritual dão-nos disso uma ideia. Ele não é
inteligente por si mesmo porque é matéria, mas é o veículo do pensamento, das
sensações e percepções do Espírito. O fluido perispiritual não é o pensamento
do Espírito, mas o agente e o intermediário desse pensamento. Sendo ele que o
transmite, fica, de certo modo, impregnado do pensamento transmitido. Na
impossibilidade em que nos achamos de isolar o pensamento, parece-nos que ele
faz coro com o fluido, dando a entender que são uma coisa só, como sucede com o
som e o ar, de maneira que podemos, a bem dizer, materializá-lo. Assim como
dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos, tomando o efeito pela causa,
dizer que o fluido se torna inteligente. 24. Seja ou não assim no que respeita
ao pensamento de Deus, isto é, quer o pensamento de Deus atue diretamente ou
por intermédio de um fluido, representemo-lo, para facilitar a nossa compreensão,
sob a forma concreta de um fluido inteligente preenchendo o universo infinito,
e penetrando todas as partes da Criação: a natureza inteira está mergulhada no
fluido divino. Ora, em virtude do princípio de que as partes de um todo são da
mesma natureza e têm as mesmas propriedades que ele, cada átomo desse fluido,
se assim nos podemos exprimir, possuindo o pensamento, isto é, os atributos
essenciais da Divindade e estando o mesmo fluido em toda parte, tudo está
submetido à sua ação inteligente, à sua previdência, à sua solicitude. Não
haverá nenhum ser, por mais ínfimo que o suponhamos, que de algum modo não
esteja saturado dele. Achamo-nos, assim, constantemente em presença da
Divindade; não lhe podemos subtrair ao olhar nenhuma de nossas ações; o nosso
pensamento está em contato incessante com o seu pensamento, havendo, pois,
razão para dizer-se que Deus vê os mais profundos refolhos do nosso coração.
Estamos nele, como Ele está em nós, segundo a palavra do Cristo. [I João,
4:13.] Para estender a sua solicitude a todas as criaturas, Deus não precisa
lançar o olhar do alto da imensidade. Para que nossas preces sejam ouvidas, não
precisam transpor o espaço, nem serem ditas com voz retumbante, porque, estando
Deus continuamente ao nosso lado, os nossos pensamentos repercutem nele. Os
nossos pensamentos são como os sons de um sino, que fazem vibrar todas as
moléculas do ar ambiente. 25. Longe de nós o pensamento de materializar a
Divindade. A imagem de um fluido inteligente universal evidentemente não passa
de uma comparação, mas capaz de dar uma ideia mais exata do que os quadros que
o representam sob uma figura humana. Tem por objetivo tornar compreensível a
possibilidade que tem Deus de estar em toda parte e de se ocupar com todas as
coisas. 26. Temos constantemente sob as vistas um exemplo que nos permite fazer
ideia da maneira pela qual talvez se exerça a ação de Deus sobre as partes mais
íntimas de todos os seres e, por conseguinte, do modo por que lhe chegam as
mais sutis impressões de nossa alma. Colhemos esse exemplo de uma instrução
transmitida por um Espírito a tal respeito. 27. “O homem é um pequeno mundo,
que tem como diretor o Espírito e como princípio dirigido o corpo. Nesse
universo, o corpo representará uma criação cujo Espírito seria Deus.
(Compreendei bem que aqui há uma simples questão de analogia e não de
identidade.) Os membros desse corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os
músculos, os nervos, as articulações são outras tantas individualidades
materiais, se assim se pode dizer, localizadas em pontos especiais do corpo.
Embora seja considerável o número de suas partes constitutivas, de natureza tão
variada e diferente, ninguém, contudo, poderá supor que se possam produzir
movimentos, ou uma impressão em qualquer lugar, sem que o Espírito tenha
consciência do que ocorra. Há sensações diversas em muitos lugares
simultaneamente? O Espírito as sente todas, distingue, analisa, atribui a cada
uma a causa determinante e o ponto em que se produziu, tudo por meio do fluido
perispirítico. “Ocorre fenômeno semelhante entre Deus e a Criação. Deus está em
toda parte, na natureza, como o Espírito está em toda parte, no corpo. Todos
os elementos da Criação se acham em relação constante com Ele, como todas as
células do corpo humano se acham em contato imediato com o ser espiritual. Não
há, pois, razão para que fenômenos da mesma ordem não se produzam da mesma
maneira, num e noutro caso. “Um membro se agita: o Espírito o sente; uma
criatura pensa: Deus o sabe. Todos os membros estão em movimento, os diferentes
órgãos estão a vibrar; o Espírito se ressente de todas as manifestações, as
distingue e localiza. As diferentes criações, as diferentes criaturas se
agitam, pensam, agem diversamente: Deus sabe tudo o que se passa e atribui a
cada um o que lhe diz respeito. “Daí se pode igualmente deduzir a solidariedade
da matéria e da inteligência, a solidariedade entre si de todos os seres de um
mundo, a de todos os mundos e, por fim, de todas as criações com o Criador.”
(Quinemant, Sociedade de Paris, 1867.) 28. Compreendemos o efeito, o que já é
muito. Do efeito remontamos à causa e julgamos da sua grandeza pela grandeza do
efeito. Sua essência íntima, contudo, nos escapa, como a da causa de uma
imensidão de fenômenos. Conhecemos os efeitos da eletricidade, do calor, da
luz, da gravitação; calculamo-los e, entretanto, ignoramos a natureza íntima do
princípio que os produz.26 Será então racional negarmos o princípio divino
simplesmente porque não o compreendemos? 29. Nada impede que se admita, para o
princípio da soberana inteligência, um centro de ação, um foco principal a
irradiar incessantemente, inundando o universo com seus eflúvios, como o Sol o
faz com a sua luz. Mas onde está esse foco? É o que ninguém pode dizer.
Provavelmente, não se acha fixado em determinado ponto, como não o está a sua
ação, sendo também provável que percorra constantemente as regiões do espaço
ilimitado. Se simples Espíritos têm o dom da ubiquidade, em Deus há de ser sem
limites essa faculdade. Enchendo Deus o universo, poder-se-ia ainda admitir, a
título de hipótese, que esse foco não precisa transportar-se, por se formar em
todas as partes em que a soberana vontade julga conveniente que ele se produza,
levando-nos a dizer que está em toda parte e em parte alguma. 30. Diante desses
problemas insondáveis, a nossa razão deve humilhar-se. Deus existe: não há como
duvidar disso. Por sua própria essência, Ele é infinitamente justo e bom. A sua
solicitude se estende a tudo: compreendemo-lo. Só o nosso bem, portanto, Ele
pode querer, razão pela qual devemos confiar nele: eis o essencial. Quanto ao
mais, esperemos que nos tenhamos tornado dignos de o compreender. A visão de
Deus 31. Se Deus está em toda parte, por que não o vemos? Vê-lo-emos quando
deixarmos a Terra? Tais as questões que se formulam todos os dias. A primeira é
fácil de responder. Nossos órgãos materiais têm percepções limitadas que os
tornam inaptos à visão de certas coisas, mesmo materiais. Assim é que alguns
fluidos nos fogem totalmente à nossa visão e aos instrumentos de análise;
entretanto, nem por isso duvidamos da existência deles. Vemos os efeitos da
peste, mas não vemos o fluido que a transporta;27 vemos os corpos em movimento
sob a influência da força de gravitação, mas não vemos essa força. 32. Os
nossos órgãos materiais não podem perceber as coisas de essência espiritual. Só
podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial com a visão espiritual.
Apenas a nossa alma, portanto, pode ter a percepção de Deus. Será que ela o vê
logo após a morte? A esse respeito, só as comunicações de além-túmulo nos podem
instruir. Por meio delas ficamos sabendo que a visão de Deus constitui
privilégio das almas mais depuradas e que bem poucas, ao deixarem o envoltório
terrestre, possuem o grau de desmaterialização necessária para tal efeito. Uma
comparação vulgar tornará facilmente compreensível essa condição. 33. Uma
pessoa que se ache no fundo de um vale, envolvido por densa bruma, não vê o
Sol. Entretanto, pela luz difusa, percebe a claridade do Sol. Se resolve subir
a montanha, à medida que for ascendendo, o nevoeiro se irá dissipando cada vez
mais e a luz se torna cada vez mais viva. Contudo, ainda não verá o Sol. Só
depois que se haja elevado acima da camada brumosa e chegado a um ponto em que
o ar esteja perfeitamente límpido, ela contemplará o astro em todo o seu
esplendor. Dá-se a mesma coisa com a alma. O envoltório perispirítico, embora
nos seja invisível e impalpável, é, com relação a ela, verdadeira matéria, ainda
grosseira demais para certas percepções. Esse envoltório se espiritualiza à
medida que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são quais
camadas nevoentas que lhe obscurecem a visão. Cada imperfeição de que ela se
desfaz é uma mácula a menos; todavia, só depois de se haver depurado completamente
é que goza da plenitude das suas faculdades. 34. Sendo Deus a essência divina
por excelência, não pode ser percebido em todo o seu esplendor senão pelos
Espíritos que atingiram o mais alto grau de desmaterialização. Pelo fato de não
verem a Deus, não se segue que os Espíritos imperfeitos estejam mais distantes
dele do que os outros, visto que, como todos os seres da natureza, estão
mergulhados no fluido divino, do mesmo modo que nós o estamos na luz. O que
ocorre é que as imperfeições daqueles Espíritos são quais vapores que os
impedem de vê-lo. Quando o nevoeiro se dissipar, vê-lo-ão resplandecer. Para
isso, não lhes é preciso subir, nem procurar nas profundezas do infinito.
Desimpedida a visão espiritual das manchas morais que a obscureciam, eles o verão
de todo lugar onde se achem, mesmo da Terra, porque Deus está em toda parte.
35. O Espírito só se depura com o tempo, sendo as diversas encarnações o
alambique em cujo fundo deixa, de cada vez, algumas impurezas. Ao abandonar o
seu envoltório corpóreo, os Espíritos não se despojam instantaneamente de suas
imperfeições, razão por que, depois da morte, não veem a Deus mais do que o
viam quando vivos; mas, à medida que se depuram, têm dele uma intuição mais
clara; se não o veem, compreendem- -no melhor, pois a luz é menos difusa.
Quando, pois, alguns Espíritos dizem que Deus lhes proíbe que respondam a uma
pergunta, não é que Deus lhes tenha aparecido ou dirigido a palavra para lhes
ordenar ou proibir isto ou aquilo. Não; é que eles o sentem; recebem os eflúvios
do seu pensamento, como sucede conosco em relação aos Espíritos que nos
envolvem em seus fluidos, embora não os vejamos. 36. Nenhum homem, portanto,
pode ver a Deus com os olhos da carne. Se essa graça fosse concedida a alguns,
só o seria no estado de êxtase, quando a alma se acha tão desprendida dos laços
da matéria que torna possível o fato durante a encarnação. Tal privilégio,
aliás, pertenceria exclusivamente a almas de escol, encarnadas em missão, e não
em expiação. Mas como os Espíritos da mais elevada categoria resplandecem de
ofuscante brilho, pode acontecer que Espíritos menos elevados, encarnados ou desencarnados,
maravilhados com o esplendor de que aqueles se mostram cercados, suponham estar
vendo o próprio Deus. É como quem vê um ministro e o toma por seu soberano. 37.
Sob que aparência Deus se apresenta aos que se tornam dignos de vê-lo? Será sob
uma forma qualquer? Sob uma figura humana ou como um foco resplandecente de
luz? A linguagem humana é impotente para descrevê-lo, porque não existe para
nós nenhum ponto de comparação que nos possa dar uma ideia de tal fato. Somos
quais cegos de nascença a quem procurassem inutilmente fazer que compreendessem
o brilho do Sol. O nosso vocabulário é limitado às nossas necessidades e ao
círculo das nossas ideias; a dos selvagens não poderia descrever as maravilhas
da civilização; a dos povos mais civilizados é extremamente pobre para
descrever os esplendores dos céus; a nossa inteligência muito restrita para os
compreender, e a nossa vista, fraca demais, ficaria deslumbrada. www.fetnet.org.br. Abraço.
quarta-feira, 27 de novembro de 2019
INTRODUÇÃO V
Confucionismo.
www.https//rt.br. OS ANALECTOS. Tradução
do inglês de Caroline Chang. Tradução do chinês. Introdução e notas de D. C.
Lau. INTRODUÇÃO V. Já que a influência de um bom exemplo funciona de um modo
imperceptível, o governante ideal é frequentemente caracterizado não apenas
como alguém que não sabe, mas também como alguém que aos olhos do povo, nada
fez que pudesse ser valorizado. “O governo pela virtude pode ser comparado à
estrela Polar, que comanda a homenagem da multidão de estrelas sem sair do
lugar” (II.1). T’ai Po abdicou do seu direito de governar, “sem dar ao povo
oportunidade de louvá-lo” (VIII.1). Yao foi o rei que se espelhou no Céu, o
único que é grande, mas “ele era tão grandioso que o povo não tinha palavras
para louvar as virtudes” (VIII.19). Essa descrição do governante ideal é
aparentemente muito semelhante à oferecida pelos taoístas, mas na verdade as
duas são bem diferentes. O governante taoísta genuinamente não faz nada porque
o Império funciona melhor quando deixado em paz. O governante confucianista
apenas aparenta nada fazer porque a influência moral que ele exerce funciona de
modo imperceptível. Não podemos encerrar o assunto do governo sem discutir a
atitude de Confúcio para com o povo (min) ou as pessoas. Ele não tentou
disfarçar o fato de que, no seu ponto de vista, o povo era muito limitado
intelectualmente. Ele disse: “O povo pode ser obrigado a seguir um caminho, mas
não pode ser forçado a entendê-lo”. (VIII.9). O povo não consegue entender por
que razão é conduzido ao longo de um caminho em específico, pois nunca se dá o
trabalho de estudar. Ele disse: “Aqueles que nascem com conhecimento são os mais
elevados. A seguir vêm aqueles que atingem o conhecimento por meio do estudo. A
seguir vêm aqueles que voltam para o estudo depois de terem passado por
dificuldades. No nível mais baixo estão as pessoas comuns, por não fazerem
esforço algum para estudar mesmo depois de terem passado por dificuldades”
(XVI. 9). Não é de surpreender que Confúcio tivesse tal opinião. O estudo, tal
qual por ele concebido, é um árduo processo que nunca se completa. As pessoas
comuns são imensamente prejudicadas. Raramente têm a capacidade de estudar e
praticamente nunca têm a oportunidade. Nas raras ocasiões em que têm tanto a
capacidade e a oportunidade, é pouco provável que consigam aguentar o rigor da
tarefa. Confúcio descreveu como o seu discípulo favorito, Yen Hui, conseguiu
seguir os estudos obstinadamente nas seguintes palavras. “Como Hui é admirável!
Morar em um pequeno casebre com uma tigela de arroz e uma concha de água por
dia é uma provação que a maioria dos homens acharia intolerável, mas Hui não
permite que isso atrapalhe sua alegria. Como Hui é admirável” (VI.11). Confúcio
podia não ter uma opinião muito boa quanto às capacidades intelectuais e morais
das pessoas comuns, mas absolutamente não é verdade que ele tenha diminuído a
importância delas no esquema geral das coisas. Talvez seja precisamente porque
o povo é incapaz de garantir seu próprio bem-estar sem receber auxílio que o
dever supremo do governante é trabalhar em benefício do povo, proporcionando a
ele o que lhe é benéfico. As pessoas comuns deveriam ser tratadas com o mesmo
amor e carinho dispensados a nenês, que são indefesos. Isso é anunciado em um
comentário memorável do Livro da História citado por Mêncio: os governantes
antigos agiam “como se estivessem cuidando de um recém-nascido”. [17] Mêncio
(372 AC 289) descreve tais governantes como mãe e pai do povo. É, portanto,
inegável que Confúcio advogava um forte paternalismo no governo, e isso
permaneceu imutável como princípio básico ao longo de toda a história do
confucionismo. A importância das pessoas comuns e seu bem-estar é enfatizada
repetidas vezes em Os analectos. Por exemplo, Tzu-kung disse: “Se houvesse um
homem que desse generosamente ao povo e trouxesse auxílio às multidões, o que
você pensaria dele? Ele poderia ser considerado benevolente? O Mestre disse:
“Nesse caso não se trata mais de benevolência. Se precisa descrever tal homem,
‘sábio’ é, talvez, a palavra adequada. Mesmo Yao e Shun achariam difícil
realizar tanto.” (VI.30) Se lembrarmos que Yao e Shun eram tidos em alta conta
por Confúcio e o quão pouco inclinado ele era a dar o título de “sábio” para
qualquer pessoa, podemos ver o imenso significado do comentário. Finalmente,
Confúcio disse que se ele elogiava alguém, podia-se ter certeza de que esse
alguém havia sido testado. O teste se revelou ser o governo das pessoas comuns,
pois ele continuou ao dizer: “Essas pessoas comuns são a pedra de toque por
meio da qual as Três Dinastias foram mantidas no caminho certo” (XV. 25). O
único teste ao qual é submetido um bom governante é quanto a se ele tem êxito
em promover o bem-estar das pessoas comuns. Até agora examinamos apenas as
qualidades morais indispensáveis ao cavalheiro, mas o ideal do cavalheiro é
mais amplo do que o do homem moral. É necessário, mais atributos para se ter o
perfeito cavalheiro. Para entender isso, é preciso primeiro darmos uma olhada
em dois termos, wen e chih. Chih, dos dois, é o mais fácil de ser compreendido.
É a matéria-prima ou a substância nativa da qual um homem ou uma coisa é feita.
Wen é mais difícil de compreender por causa da sua ampla aplicação. Em primeiro
lugar, wen significa um belo padrão. Por exemplo, o padrão das estrelas é o wen
do céu, e o padrão da pele de um tigre é o seu wen. Aplicado ao homem,
refere-se às belas qualidades que ele adquiriu por meio da educação. Daí o
contraste com chih. Aquilo que um homem adquire por meio da educação cobre uma
ampla gama de realizações. Inclui talentos como arqueiro ou na condução de
carruagens, de escrita e matemática, mas os campos mais importantes são a
literatura e a música, uma conduta condizente à de um cavalheiro. Literatura,
na época de Confúcio, significava, basicamente, as Odes, enquanto que música
para Confúcio era a música tocada em cerimônias da corte e em cerimônias
sacrificiais. Um comportamento condizente a um cavalheiro significava
observância dos ritos, que incluía entre outras coisas o código da conduta
correta. Além de denotar as realizações de um indivíduo, wen também pode ser
usado para designar a cultura de uma sociedade como um todo. Assim, wen é uma
palavra com uma ampla gama de significados, que em inglês [e português] são
cobertos por uma variedade de palavras, como ornamento, adorno, refinamento,
realização, boa educação e cultura. Não é suficiente para um homem nascer com
uma boa substância nativa. Um longo processo de amadurecimento é necessário
para dar a ele a educação indispensável a um cavalheiro. Quando Chi Tzu-ch’eng
disse “O mais importante a respeito de um cavalheiro é o material do qual ele é
feito. Para que ele precisa de refinamento?”, a opinião de Tzu-kung foi a de
que não se podia separar refinamento da matéria, pois “a pele de um tigre ou de
um leopardo, desprovida de pelos, não é diferente da de um cachorro ou de uma
ovelha” (XII.8). O que Tzu-kung está dizendo é que são as qualidades totais de
um cavalheiro – matéria prima assim como refinamento – que o distinguem dos
“homens vulgares”, e é fútil separar a matéria-prima do refinamento, na
equivocada tentativa de aponta-la como o fator básico. Em toda parte,
encontramos Confúcio enfatizando a importância do equilíbrio entre os dois
elementos. Ele disse: “Quando a natureza de alguém prevalece sobre a educação
recebida, o resultado será uma pessoa intratável. Quando a educação prevalece
sobre a natureza, o resultado será uma pessoa pedante. Apenas uma mistura bem
equilibrada das duas resultará em cavalheirismo” (VI.18). Há um comentário de
Confúcio que joga alguma luz sobre o que seria essa substância nativa ou
natureza. Ele disse: “O cavalheiro tem a moralidade como matéria-prima e, ao observar
os ritos, coloca-a em prática, ao ser modesto dálhe expressão e, ao ser fiel às
próprias palavras, a completa. Assim é um cavalheiro, de fato!” (XV.18). Aqui
vemos que a relação entre chih e wen corresponde à relação entre moralidade
(yi) e os ritos (li). Não basta um homem ter a inclinação natural de fazer o
que é certo; é essencial que ele seja versado de modo que possa dar uma
expressão refinada a essa inclinação. Um homem pode ter uma forte necessidade
de mostrar respeito por outro homem em uma dada sociedade, mas, a menos que ele
saiba o código de comportamento pelo qual esse respeito é expresso, ele ou
falhará completamente em expressá-lo ou, no máximo, conseguirá expressá-lo de
modo não totalmente aceito naquela sociedade. Isso traz à tona uma questão
importante quanto aos ritos. Moralidade não consiste apenas na ação que afeta o
bem-estar de outras pessoas. Às vezes também requer comportamentos que
expressem uma atitude em relação às outras pessoas. Isso explica o fato de que
a palavra li, embora tenha também uma conotação moral, é mais apropriadamente
traduzida como “ritos” ou “ritual”. Como vimos, além da observância dos ritos,
a parte mais importante de wen é a poesia e a música. É por isso que, quando um
equivalente teve que ser encontrado para o termo ocidental “literatura”, a
expressão usada foi naturalmente “wen hsüeh”. Esse parece ser um ponto
conveniente a partir do qual avaliar a atitude de Confúcio para com a poesia e
a música, já que a influência que o pensador exerceu nas gerações subsequentes
foi imensa. O primeiro ponto a salientar é que na época de Confúcio a conexão
entre a poesia e a música era muito próxima. Embora houvesse música que não
envolvesse palavras, toda poesia podia, provavelmente, ser cantada. Por essa
razão, Confúcio provavelmente tinha a mesma atitude para com ambas. Comecemos
com a seguinte passagem: O Mestre disse, sobre shao, que era perfeitamente
linda e perfeitamente boa e, sobre wu, que era perfeitamente linda, mas não
perfeitamente boa. (III.25) Podemos ver com essa passagem que Confúcio exigia
da música e, consequentemente, da literatura, não apenas perfeição estética,
mas também que fosse perfeitamente boa. Shao era a música de Shun, que,
escolhido por sua virtude, subiu ao trono por meio da abdicação de Yao,
enquanto wu era a música do rei Wu, que, apesar da própria virtude, conquistou
o Império apenas depois de recorrer à força – daí o nome wu, “força militar”.
Por esta razão, o primeiro era não apenas perfeitamente belo, mas também
perfeitamente bom, enquanto o último, embora perfeitamente belo, deixou a
desejar quanto à sua bondade. Que Confúcio considerasse o wu inferior ao shao
não é surpreendente se lembrarmos sua ojeriza em relação ao uso da força ou à
violência, que se dizia estarem entre as coisas sobre as quais ele nunca falava
(VII.21). Para Confúcio, algo ser perfeitamente bom era mais importante do que
a perfeição estética. Se uma peça de música é ou não aceitável depende de sua
qualidade moral. A perfeição estética é importante porque é o único veículo
apropriado para conduzir a perfeita bondade. Amúsica esteticamente perfeita
pode-se ouvir com alegria, mas apenas quando a perfeição moral é fundida com a
perfeição estética é que pode ser experimentada a alegria que vai além de
qualquer expectativa. O Mestre ouviu o shao em Ch’i e por três meses não sentiu
o gosto das refeições que comia. Ele disse: “Jamais sonhei que as alegrias da
música pudessem chegar a tais alturas”. (VII.14) Não é por acaso que a música
que encantava Confúcio fosse precisamente shao, que ele elogiava por ser
perfeitamente bom assim como por perfeição estética. Quando lhe perguntaram
como um reino deveria ser governado, Confúcio disse: “Quanto à música, adote o
shao e o wu. Bane as melodias de Cheng e mantenha homens de fala persuasiva à
distância. As melodias de Cheng são insolentes, e homens de fala persuasiva são
perigosos” (XV.11). Depois ele disse: “Detesto o púrpura por deslocar o
vermelho. Detesto as melodias de Cheng por corromperem a música clássica.
Detesto homens de fala esperta que derrubam reinos e famílias nobres”
(XVII.18). Não há dúvida de que Confúcio detestava “as melodias de Cheng”, mas
ele as detestava não devido à falta de beleza, mas por causa de sua falta de
disciplina. Deve ser observado que cada uma das coisas que Confúcio detestava
ofereciam uma aparente semelhança à coisa certa, e é por causa dessa semelhança
superficial que os hipócritas podem ser confundidos com os genuínos. A ojeriza
de Confúcio é dirigida contra a falsidade. As “melodias de Cheng” são colocadas
juntas aos “falantes espertos” e “homens de fala persuasiva”, já que, como
“falantes espertos” e “homens de fala persuasiva”, as “melodias de Chang” são
capazes de conquistar nossa preferência caso estejamos desatentos. Não são,
portanto, pouco atraentes como música. No final das contas, não é a falta de
beleza, mas a falta de correção ou moralidade que marca a música chamada de
“melodias de Cheng”. As “melodias de Cheng” certamente não diziam respeito
somente à música. O que é dito sobre as melodias aplica-se também às palavras,
já que a falsidade existe tanto no significado das palavras quanto no charme da
música. Em oposição às melodias de Cheng, encontramos Confúcio aclamando o Kuan
chü, com os quais as Odes abrem: No kuan chü há alegria sem futilidade, e
tristeza sem amargura. (III.20) Isso mostra que não era pela expressão de
prazer em si, mas pela expressão de imoderado prazer que Confúcio condenava as
melodias de Cheng. Em contraposição, o Kuan chü é um exemplo da expressão de
prazer e de tristeza exatamente na mesma medida. Confúcio resumiu suas opiniões
sobre poesia nas seguintes palavras: As Odes são trezentas, em número. Podem
ser resumidas a uma frase: Não se desvie do caminho. (II.2) Edificação,
entretanto, não é o único propósito da poesia. Entre outras coisas, as Odes
podem “estimular a imaginação” (XVII.9). Quando se lê poesia, uma pessoa acorda
para as similaridades subjacentes entre fenômenos que, para os de pouca
imaginação, parecem não ter nenhuma relação. Tzu-hsia perguntou: “Seu
encantador sorriso com covinhas, Seus belos olhos esgazeando, Padrões de cores
em seda lisa.” Qual o significado de tais linhas? O Mestre disse: “As cores são
acrescentadas após o branco”. “E a prática dos ritos, também vem depois?” O
Mestre disse: “É você, Shang, quem iluminou o texto para mim. Apenas com um
homem como você é possível discutir as Odes”. (III.8) O Mestre elogiou Tzu-hsia
pela sua compreensão das Odes porque ele viu que, assim como na pintura as
cores são acrescentadas depois que as linhas gerais são dadas em branco, também
o refinamento de observar os ritos é inculcado em um homem que já nasceu com a
substância certa. [18] As Odes têm um outro uso, que é possibilitar que um
homem fale bem. O filho de Confúcio relatou uma conversa que certa vez teve com
seu pai. “Você estudou as Odes?” “Não.” “Amenos que estude as Odes, não será
capaz de sustentar uma conversa” (XVI.13). As Odes eram uma antologia que todo
homem educado conhecia plenamente, de modo que uma citação correta delas extraída,
podia ser usada para comunicar a opinião de alguém em situação delicada ou que
requeressem extrema polidez. OS ANALECTOS. www.https//rt.br.
Abraço. Davi
terça-feira, 26 de novembro de 2019
APRESENTAÇÃO II
Religião
Afrodescendente. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO II.
Universidade de São Paulo – USP. Em seguida, "a cabeça, os intestinos, as asas
e as patas são cozidas no azeite de dendê, com camarões e cebolas, mas sem
sal", e este prato é depositado, juntamente com outros alimentos, diante
dos tambores, onde ficarão um dia inteiro para que tenham tempo suficiente para
"comer". Compreende-se por que razão os instrumentos apresentam algo
de divino, que impede sejam vendidos ou emprestados sem cerimônias especiais de
dessacralização ou de consagração, interessando-nos saber que somente por meio
da música fazem baixar os deuses na carne dos fiéis. Eis porque, uma vez
terminado o padê de Exú, a cerimônia prossegue com o toque musical dos tambores
que, sozinhos, sem acompanhamento de cânticos nem de danças, falam aos Orixá e
pedem lhes que venham da África para o Brasil. Em geral, os etnógrafos não têm
prestado muita atenção a este diálogo preliminar dos tambores e das divindades.
Creio que seu estudo revelaria a existência, na Bahia, de fenômenos análogos
aos que Fernando Ortiz tão bem analisou para Cuba, onde, como se sabe, a
religião é igual, isto é, yoruba. Mas não são apenas os três tambores que têm o
poder de evocar a vinda dos Orixá; os agidavi também, isto é, as varetas com as
quais são batidos e que, antes de serem utilizados, dormiram "junto dos
deuses", no santuário, para se impregnarem de força sagrada; ou, mais
exatamente sem dúvida, para entrarem em correspondência com os Orixá. O agôgô (corruptela
de akoko, que quer dizer tempo, hora, em língua yoruba), sino simples ou duplo,
algumas vezes mero pedaço de metal batido por outro pedaço de metal, desempenha
também papel importante no candomblé. Quando as possessões estão custando para
se produzir, sacerdote ou sacerdotisas agitam o aja junto ao ouvido das filhas
de santo que dançam e não é raro que, importunada por esse ruído agudo e
alucinante, a divindade se decida a montar em seu cavalo. Infelizmente, não
sabemos se este último instrumento de música sofre uma preparação religiosa
análoga à dos tambores ou dos simples agidavi. As danças preliminares. Em
seguida são chamados os deuses, numa certa ordem que varia de candomblé para
candomblé, mas que, por ocasião das festas públicas, são muitas vezes a mesma
em santuários determinados. Esta ordem é conhecida como xiré: começa obrigatoriamente
por Exu para terminar por Oxalá, que é o Senhor do céu e o mais elevado dos
Orixá. Mas com exceção do primeiro e do último termo do xiré, reina a maior
variedade na ordem dos termos intermediários; quando muito poder-se-ia dizer
que, nas manifestações, muitas vezes se começa pelas divindades mais jovens ou
mais violentas, como Ogun, para ir progressivamente para as mais velhas ou as
mais calmas. Cada divindade recebe um mínimo de três cânticos; e ainda me
lembro do protesto dos fiéis, uma noite em que não sei por que razão um dos
seus deuses só recebeu dois, em lugar dos três cânticos regulamentares. O
número de três não é, porém, senão um mínimo; pode-se cantar quantidade maior
de cânticos. Nos candomblés bantos, as palavras são geralmente portuguesas, mas
nos candomblés yoruba ou dahomeanos, os cânticos são "na língua",
isto é, em africano, o idioma variando naturalmente de acordo com a origem
étnica da "nação" egba, fon, etc. Para empregar um termo wagneriano,
constituem, juntamente com os ritmos sonoros dos tambores que os acompanham outros
tantos, motivos destinados a atrair os Orixá. Os cânticos, todavia, não são
apenas cantados, são também dançados", pois constituem a evocação de
certos episódios da história dos deuses, são fragmentos de mitos, e o mito deve
ser representado ao mesmo tempo que falado para adquirir todo o poder evocador.
Ao gesto juntando-se à palavra, a força da imitação mimética auxiliando o
encantamento da palavra, os Orixá não tardam a montar em seus cavalos à medida
que vão sendo chamados. Pode acontecer, porém, que a cerimônia prossiga durante
muito tempo sem que haja possessões. Neste caso, os tambores fazem soar o toque
adarrum, que não é acompanhado de cânticos, pois trata-se de chamar desta vez,
não apenas uma, mas todas as divindades ao mesmo tempo. Seu ritmo cada vez mais
rápido, cada vez mais implorante, acaba por abrir os músculos, as vísceras, as
cabeças à penetração do deus que se esperou durante tanto tempo. Produzida a “crise”
de possessão, as ekedy encarregadas de velar os filhos e filhas de santo,
retiram-lhe o casaco se se trata de um homem, ou, em se tratando de mulher, o
xale que a poderia estrangular no caso de convulsões, e antes de mais nada, os
sapatos. O gesto é altamente simbólico: trata-se de despojar o indivíduo de sua
personalidade brasileira para que retome à condição de africano. Os sapatos
tiveram importância capital na vida do negro americano. Foram o sinal da sua
libertação; quando um escravo era alforriado, seu primeiro cuidado era comprar
um par de sapatos para se igualar ao branco, embora muitas vezes não os
calçasse, pois, seus pés habituados a andar nus não os suportavam. Trazia-os,
porém, suspensos ao pescoço pelo amarrilho, ou levava-os na mão; em casa,
colocava-os bem à vista sobre um móvel, em lugar de honra. Quando o Orixá
baixa, o negro é recolocado na condição de africano, de participante da vida
tribal de seus pais; então pisará com seus pés nus a terra, que é também uma
deusa. A violência da “crise” varia segundo as circunstâncias, o temperamento
do indivíduo, a natureza do deus que o possui. No caso de certas faltas, pode
mesmo tomar a forma de castigo. Se é muito violenta, o sacerdote ou sacerdotisa
que dirige o culto, babalorixá ou ialorixá, coloca a mão na nuca do cavalo para
acalmá-lo, ou assopra-lhe no ouvido. As ekedy então auxiliam o indivíduo, que
titubeia sob o abraço divino, a sair do salão de dança para ir ou para o pegi,
onde estão as pedras dos Orixa, ou para um quarto vizinho; se caiu ao chão,
carregam-no como um corpo morto, ainda agitado por movimentos convulsivos. O
êxtase tomará ali forma mais calma, não desaparecendo, terminando somente com
os últimos cânticos. O fiel é revestido com as roupas litúrgicas de sua
divindade, colocam-lhe nas mãos os objetos simbólicos da nova posição, espada
de Ogum, arco de Oxossi, xaxara (membro viril) de Omolú, abébé (leque) de Oxun,
paxoro (vara de ferro) de Oxalá. Cada integrante da confraria só pode receber o
deus ao qual está ligado pelos ritos de iniciação. Certo número de casos
excepcionais, podem, todavia, suceder, e deles diremos algumas palavras. Há
alguns Orixá que não "baixam", como por exemplo Xangô Dada em Porto
Alegre, ou Orunmila, na Bahia; nesse caso, a pessoa que lhe foi consagrada
recebe uma divindade da mesma família; é esta a ocasião única em que é
permitida a possessão por divindade diferente daquela a que se pertence de
direito. Pode também acontecer que um Orixá turbulento ou ciumento monte cavalo
que não é o seu, embora o caso seja muito raro (nunca assisti a nenhum). O
sacerdote deve então despachá-lo imediatamente, mandá-lo embora. Exú não se
encarna nunca embora por vezes tenha filhos; conhecemos pelo menos uma filha de
Exu e citaram-nos nomes de outros. Mas a possessão de Exú se diferencia da dos
outros Orixá pelo seu frenesi, seu caráter patológico, anormal, sua violência
destruidora.Se quisermos uma comparação, é um pouco a diferença que fazem os
católicos entre o êxtase divino e a possessão demoníaca. Se Exú ataca um membro
do candomblé, é preciso, pois, despachá-lo também, afugentá-lo imediatamente.
Mas, com exceção destes casos aberrantes que, afirmamos outra vez, são
extremamente raros, a função desta parte do ritual que descrevemos tem
realmente por objetivo a possessão dos homens pelos seus deuses. Por outro
lado, nem todos os iniciados são possuídos. Não falamos das mulheres
menstruadas, que não devem nem mesmo assistir à festa pois as divindades têm
horror ao sangue catamenial; se uma delas ousa desobedecer, imediatamente os
tambores o reconhecem, pois, sua simples presença perturba o toque musical.
Porém as que estão grávidas ou de luto, mesmo presentes, nunca são
"montadas" pelo seu Orixá. Numerosos membros de outros terreiros ou
de outras seitas comparecem como visitantes ou como curiosos às cerimônias
tradicionais dos grandes candomblés. Não é de bom-tom e é mesmo muito mal visto
para os de fora caírem então em transe. O êxtase só é permitido no
enquadramento do santuário onde foi feita a iniciação. Acontece, no entanto, às
filhas de santo em visita, sentirem o apelo insistente da divindade desabrochar
no íntimo; bebem então grandes copos de água gelada, que têm o poder de impedir
que se produza a possessão. Um último caso pode finalmente se dar: o de pessoa
não iniciada, que veio assistir às danças somente pelo prazer do espetáculo, e
que bruscamente se vê presa também da crise de possessão. Diz-se neste caso que
a pessoa foi atacada por um santo bruto, o que significa simplesmente que a
crise não foi controlada, orientada pela coletividade. É então conduzida para o
interior do santuário, a fim de ser iniciada e de se tornar uma filha de santo.
Com efeito, a iniciação não tem outro objetivo senão socializar a crise para que
daí por diante se processe segundo os padrões africanos. A dança dos deuses. Depois
de um intervalo, durante o qual às vezes é servido um lanche aos convidados
importantes, filhas e filhos de santo retornam ao salão de dança. Mas não são
mais, nesse momento, apenas filhos e filhas de santo, são os próprios deuses
encarnados que vêm se misturar um momento aos adeptos brasileiros. O ritmo da
cerimônia não se modifica; têm lugar as mesmas evocações dos Orixá em ordem determinada,
sempre com o mesmo mínimo de três cânticos regulamentares, com os mesmos
leit-motiv (estado de espírito) wagnerianos, diante de um público cheio de
fervor e respeito. Os gestos, porém, adquirem maior beleza, os passos de dança
alcançam estranha poesia. Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras
que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolú recoberto de
palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Yemanjá penteando seus cabelos de
algas. Os rostos se metamorfosearam em máscaras, perderam as rugas do trabalho
cotidiano, desaparecidos os estigmas dessa vida de todos os dias, feita de
preocupações e de miséria; Ogun guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxun é roda
feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil;
aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão. Eis presentes aqui os
Orixá, saudando os tambores, fazendo ika ou dobale diante dos sacerdotes
supremos, dançando, muitas vezes revelando o futuro ou dando conselhos. Não
existem mais fronteiras entre natural e sobrenatural; o êxtase realizou a
comunhão desejada. 7. Ritos de saída e de comunhão. O êxtase só chega ao fim
quando forem cantados os cânticos de unló, cujo objetivo é justamente mandar
embora os Orixá. Estes são entoados na ordem inversa das invocações, começando
pelas divindades chamadas em último lugar para terminar por aquelas que vieram
primeiro; à medida que a litania de nomes vai se desenrolando, as pálpebras
fechadas vão se abrindo, o rosto perde a máscara da divindade, a personalidade
normal reaparece. O último cântico tem lugar no pegí, como se o desejo fosse de
que a força mística, que tinha rompido as amarras, regresse às pedras banhadas
de sangue, aos pedaços de ferro que estão "comendo" a oferenda
alimentar. E este último cântico, ao contrário dos precedentes, segue a ordem
do xiré: atáu ecúô é di bom jeú Exú vai unló é di bom jeô atáu ecúô é di bom
jeô Ogum vai un Oxum Emanjá Xangô Orixalá. Todavia, antes que todos se separem,
um repasto de comunhão permitirá unir divindades, membros da confraria e aqueles
dos espectadores que ainda permaneceram no recinto. As filhas de santo trazem,
em pratos da cor de seus Orixá, um pouco do alimento, parte do qual fora
colocado no pegí: branco para Oxalá, azul para Yemanjá, violeta para Nanan (...).
Sentam-se em torno de uma toalha posta no próprio chão, sobre a qual
depositaram o alimento sagrado. Cada qual toma um bocado do prato de seu deus,
com as duas mãos em forma de concha, e engole-o com um movimento da boca que
vai do punho à ponta dos dedos. Depois, oferece um bocado do prato aos filhos
dos outros Orixá, de modo a cimentar a solidariedade do grupo por meio da
partilha de alimentos. O resto, sobre folhas de bananeira, é oferecido aos
espectadores que estão de pé em torno das filhas de santo sentadas no chão, os diferentes
alimentos dos múltiplos Orixá fraternalmente misturados nesta espécie de
bandeja vegetal; é obrigat6rio comer com a mão. Não se deve confundir este
repasto, que é uma comunhão, com a colação algumas vezes servida aos convidados
importantes entre a dança de chamada e a dança dos deuses. Trata-se aqui de
algo muito diferente, de uma tríplice solidariedade a realizar, antes do
regresso ao mundo profano: primeiro, entre o divino e o humano; depois, entre
os membros da confraria que pertencem a divindades diferentes; e às vezes
rivais; finalmente, também, entre a confraria e os não-iniciados, para que um
pouco da África, que se perdeu e tornou a encontrar, nestes penetre igualmente.
O grupo dos fiéis ultrapassa a confraria dos filhos e filhas de santo. A
entrada num candomblé se faz progressivamente e há graus de incorporação, o
mais baixo dos quais é o simbolizado pela lavagem do colar. A. Cada membro da
seita tem um colar que lhe é pr6prio, cujas contas são da cor da divindade à
que pertence: brancas para Oxalá, alternadamente brancas e vermelhas para
Xangô, verdes para Oxossi, amarelas para Oxun (...). Mas o colar não tem valor
por si mesmo, deve sofrer previamente determinada preparação, deve ser "lavado".
O indivíduo que deseje, pois, participar da vida de um candomblé, deve começar
por consultar o babalaô ou adivinho, que interrogará por ele o colar de Ifa ou
os búzios, a fim de descobrir o nome do Orixá que é o "dono de sua
cabeça". Basta, em seguida, fabricar o colar correspondente ao seu Orixá,
ou mesmo comprá-lo simplesmente no mercado municipal, levando-o ao babaloríxá
ou à ialorixá do terreiro ao qual quer pertencer, e que o lavarão. Manuel
Raimundo Querino (1851-1923) fornece descrição da cerimônia: imersão do colar
em bacia cheia d'água, trituração de folhas ligadas à divindade em questão (como
veremos, cada deus tem, com efeito, suas folhas especiais), lavagem das contas
com "sabão da Costa", isto é, da costa africana (sabão negro e mole),
transmissão do colar à pessoa que deve usá-lo, com as respectivas recomendações
sobre as futuras obrigações, e finalmente festa íntima com cânticos e refeição.
A descrição, porém, é incompleta e deixa mesmo escapar o essencial. Para que o
colar tenha valor, é preciso: 1) que tenha ficado uma noite inteira sobre a
peara do deus a que pertence e que o sangue de uma ave morta em sacrifício,
juntamente com as ervas apropriadas, tenha lavado ao mesmo tempo pedra e colar.
Mas não basta ainda: é preciso mais que 2) a esta primeira participação se
junte uma segunda, entre pedra, colar e cabeça do indivíduo que celebra o ritual.
Digo "cabeça" e não "indivíduo" porque a cabeça é considerada
a moradia do Orixá. Lavar-se-á então a cabeça, e muitas vezes também o corpo
inteiro, com a água e as ervas que serviram para a lavagem de colar e pedra.
Assim entram em contato os membros do trinômio, deus, homem e colar, permitindo
a passagem da corrente mística entre o primeiro e o último, por intermédio do
segundo. Eis por que o colar só tem valor para o proprietário. Se este o perde
e outro pessoa o usa, não terá nenhum poder para esta, pois não foi posto em
participação, nem direta, nem indireta, com a cabeça dela. Continuar Página 35
segundo parágrafo. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi
segunda-feira, 25 de novembro de 2019
APRESENTAÇÃO I
Religião
Afrodescendente. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO I.
Universidade de São Paulo – USP. Ao longo de todo o litoral atlântico, desde as
florestas da Amazônia até a própria fronteira do Uruguai, é possível descobrir,
no Brasil, sobrevivências religiosas africanas. Mas a Bahia, com seus
candomblés em que, nas noites mornas dos trópicos, as filhas de santo dançam ao
martelar surdo dos tambores, permanece a cidade santa por excelência. Os
candomblés pertencem a "nações" diversas e perpetuam, portanto,
tradições diferentes: Angola, Congo, Gêge (isto é, Ewe), Nagô (têrmo com que os
franceses designavam todos os negros de fala yoruba, da Costa dos Escravos),
Quê to (ou Ketu), Ijêxa ( ou Ijesha). É possível distinguir estas "nações"
umas das outras pela maneira de tocar o tambor (seja com a mão, seja com
varetas), pela música, pelo idioma dos cânticos, pelas vestes litúrgicas,
algumas vezes pelos nomes das divindades, e enfim por certos traços do ritual.
Todavia, a influência dos Yoruba domina sem contestação o conjunto das seitas
africanas, impondo seus deuses, a estrutura de suas cerimônias e sua
metafísica, a Dahomeanos, a Bantos. Porém é evidente que os candomblés Nagô,
Quêto e Ijêxa são os mais puros de todos, e só eles serão estudados aqui. Por
outro lado, ''nações" yoruba são encontradas noutras regiões do Brasil: em
São Luís do Maranhão, no Recife, no Rio Grande do Sul. O grupo de São Luís,
assaz isolado, sofreu a influência da Casa das Minas, dahomeana, que é o grupo
dominante da cidade. Deixamo-lo, por essa razão, inteiramente de lado. No
entanto, na medida em que as informações do Recife ou do Rio Grande do Sul
completam ou confirmam as observações da Bahia, apelaremos algumas vezes para
dados tomados aos Xangô do Recife ou às "nações" Nagô e Oyo (esta
designada pelo próprio nome da cidade Yoruba) de Porto Alegre. No Rio de
Janeiro, as "nações" se fundiram umas nas outras, deixando-se também
penetrar profundamente por influências exteriores, ameríndias, católicas,
espíritas, dando nascimento a uma religião essencialmente sincrética, a
macumba. Porém, há alguns anos atrás, no começo do século XX, existia ali ainda
uma religião nagô autônoma, da qual temos algumas descrições, infelizmente
assaz sumárias. Tais documentos só apresentam hoje interesse histórico;
todavia, não os poremos de lado. Que fique bem claro, no entanto, que este
estudo, mesmo levando em consideração por vezes dados recolhidos por nós ou por
outros pesquisadores em cidades diferentes, fica centralizado unicamente em
torno dos candomblés nagô, quêto ou ijêxa da Bahia. Existiram outrora
candomblés em pleno centro da cidade. Próximo à igreja da Barroquinha em
Salvador - BA, erguia-se nos fins do século XIX um santuário africano. Na
periferia da aglomeração urbana ainda hoje existem, no bairro proletário da
Liberdade, em meio às casas de operários, num emaranhamento de ruelas, de
muros, de pátios malcheirosos. Mas em geral se agrupam longe do centro, nos
valos umbrosos, suspensos aos flancos das colinas ou entre as dunas marinhas,
escondidos pelas árvores, pelos renques de bananeiras, abrigando-se sob os
coqueiros. Ao longo do Rio Vermelho, em Mata Escura, São Caetano, Cidade da
Palha, Língua de Vaca, Pedreiras, Fazenda Grande do Retiro, Fazenda Garcia.
Cercam a cidade com uma coroa mística, e a única solução de continuidade é
representada pela faixa móvel do oceano. O viajante que à noite erra nesses
subúrbios, onde as habitações vão se espaçando, como que se debulhando e
cedendo pouco a pouco diante da floresta. Ouve por vezes subir de trás das
frondes, do fundo das trevas, o martelar surdo dos tambores sagrados, enquanto
foguetes riscam os céus, desenhando neles novas estrelas. Cada foguete que sobe
é o sinal de que uma divindade veio da África possuir um de seus filhos na
terra do exílio. Cada estrela que repentinamente cintila acima das plantas em
germinação indica a quem passa que uma divindade "montou em seu
cavalo", fazendo-o reviravoltear em torno do poste central, mergulhando na
noite do êxtase. Pois estes deuses só podem viver na medida em que se
reencarnam no corpo dos fiéis. Eis porque o ponto central do culto público é a
crise de possessão. Constitui seu momento mais dramático e não é de espantar,
em tais condições, que a atenção dos pesquisadores se tenha concentrado, antes
de mais nada, em torno deste aspecto do candomblé. Tanto mais que a maior parte
dos africanistas era constituída de médicos. Veremos que, na realidade, a festa
pública não constitui senão pequena parte da vida do candomblé, que a religião
africana vai colorir e controlar toda a existência de seus adeptos, que o
ritual privado é mais importante do que o cerimonial público e que, na medida
em que o negro se sente africano, pertence a um mundo mental diferente.
Queremos descrever justamente este mundo das representações coletivas. Não
esquecer, porém, que a religião só conseguiu subsistir através das confrarias
dos "filhos" e "filhas" de santo (as filhas muitíssimo mais
numerosas do que os filhos), e que a função destes filhos e filhas é
reencarnar, no desenrolar das grandes festas públicas, os Orixás seus
antepassados. Começaremos, pois, nossa apresentação do candomblé pela descrição
desta cerimônia central. Cada uma destas festas, dedicada a uma divindade
especial, embora todos os Orixás durante ela se manifestem por meio de crises
extáticas, apresenta traços particulares. Contudo, podemos deixar por enquanto
de lado estes elementos de variação pois não perturbam a unidade das sequências
rituais. Enriquecem-nas somente; sobre a mesma talagarça, desenham o bordado
dos mitos africanos. Desde a madrugada, quando tem lugar o início da festa,
distinguiremos os momentos seguintes: 1. O SACRIFÍCIO. Esta parte do ritual não
é propriamente secreta; porém, não se realiza em geral senão diante de um
número muito pequeno de pessoas, todas fazendo parte da seita. Teme-se sem
dúvida que a vista do sangue revigore entre os não-iniciados os estereótipos
correntes sobre a "barbárie" ou o "caráter supersticioso"
da religião africana. Uma pessoa especializada no sacrifício, o axôgun ou
achôgun, que tem essa função na hierarquia sacerdotal, é quem o realiza ou, na
sua falta, o babalorixá, sacerdote supremo. O objeto do sacrifício, que é
sempre um animal, muda conforme o deus ao qual é oferecido: trata-se, conforme
a terminologia tradicional, ora de um "animal de duas patas", ora de
um "animal de quatro patas", isto é, galinha, pombo, bode, carneiro,
etc. O sexo do animal sacrificado deve ser o mesmo da divindade que recebe o
sangue derramado; e o modo de matar varia igualmente segundo os casos: corta-se
a cabeça, esquartejam-se os membros, sangra-se a carótida, dá-se um golpe na
nuca. Varia também o instrumento de execução, que algumas vezes deve ser uma
"faca virgem". Na realidade, não se trata de um único sacrifício, mas
de dois; pois qualquer que seja o deus adorado, Exú deve ser o primeiro
servido, por razões que veremos adiante. Há, pois, o primeiro sacrifício de um
"animal de duas patas" para Exú, e em segundo lugar, quando o
permitem as finanças da casa, de um "animal de quatro patas", para a
divindade cuja festa se está celebrando. 2. A OFERENDA. O animal sacrificado
passa das mãos do achôgun para as da cozinheira que vai preparar o alimento dos
deuses. Moela, fígado, coração, pés, asas, cabeça e, bem entendido, o sangue,
pertencem de direito aos deuses; mas o resto do animal não é atirado fora, é
cozido e parte dele será posta em travessas ou em pratinhos diante das pedras
ou dos pedaços de ferro pertencentes às divindades. Se duas galinhas são
mortas, forçosamente uma deve ser cozida e a outra assada. Mas a cozinheira,
que se chama iya-bassê ou abassá, e que naturalmente não deve nesse momento
estar menstruada, não se limita a preparar o animal sacrificado. Cozinha também
tantos pratos quantos forem os deuses chamados no decorrer da cerimônia, o
amalá de Xangô, o xinxin de galinha de Oxun, o arroz sem sal de Oxalá. Alimenta
então sucessivamente as diferentes pedras sagradas. O resto do alimento será
consumido no fim da cerimônia pelos fiéis, e até mesmo pelos simples
visitantes. Foram estas descendentes de africanas que mantiveram assim através
do tempo a cozinha religiosa africana, a qual, penetrando na cozinha profana,
passou em seguida dos santuários para as salas de jantar burguesas,
constituindo uma das glórias da Bahia. Arthur Ramos nota que não raro diz a
negra ao oferecer tais manjares suculentos, em que o ardume da pimenta se casa
tão harmonioso com a doçura do azeite de dendê: "Coma, meu santo”. 3. O
PADE DE EXÚ. De manhã, consuma-se o sacrifício; os preparativos culinários e a
oferenda às divindades ocupam a tarde; a cerimônia pública propriamente dita
começa quando o sol se põe e se prolonga por muito tempo noite adentro. Tem
início obrigatoriamente com o padê de Exú, do qual muitas vezes se dá uma
interpretação falsa, particularmente nos candomblés bantos: Exú é o diabo;
poderá perturbar a cerimônia se não for homenageado antes dos outros deuses,
como aliás ele mesmo reclamou. Para que não haja rixas, invasões da polícia
(nas épocas em que há perseguições contra os candomblés), é preciso pedir-lhe
que se afaste. Daí o termo de despacho, empregado algumas vezes em lugar de
padê, despachar significando "mandar alguém embora". Exú é, na
verdade, o Mercúrio africano, o intermediário necessário entre o homem e o
sobrenatural. O intérprete que conhece ao mesmo tempo a língua dos mortais e a
dos Orixá. É, pois ele o encarregado - e o padê não tem outra finalidade - de
levar aos deuses da África o chamado de seus filhos do Brasil. O padê é
celebrado por duas das filhas de santo mais antigas da seita, a dagã e a
sidagã, ao som de cânticos em língua africana, cantados sob a direção da iya
têbêxê e sob o controle do babalorixá, diante de um copo d'água e de um prato
contendo o alimento de Exú. O copo e o prato serão depois levados para fora da
sala em que se desenrolará o conjunto da cerimônia, sendo depositado numa
encruzilhada que é dos lugares preferidos de Exú. A festa propriamente dita
pode então ter começo. Embora o padê se dirija antes de tudo a Exú, comporta
também obrigatoriamente uma oração para os mortos ou para os antepassados do
candomblé, alguns dentre eles sendo mesmo designados por seus títulos
sacerdotais. 4. O CHAMADO DOS DEUSES. - Não é, todavia, Exú o único
intermediário entre os homens e os deuses. Os três tambores do candomblé também
o são: o rum, que é o maior; o rumpi, de tamanho médio, e o le, que é o menor.
Não são tambores comuns ou, como se diz ali, tambores "pagãos" foram
batizados na presença de padrinho e madrinha, foram aspergidos de água benta
trazida da igreja, receberam um nome, e o círio aceso diante deles consumiu-se
até o fim. E principalmente "comeram" e "comem" todos os
anos azeite de dendê, mel, água benta e o sangue de uma galinha (não se lhes
oferece nunca "animais de quatro patas"), cuja cabeça foi arrancada
pelo babalorixá em cima do corpo do instrumento inclinado. Livro O Candomblé da
Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi
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