Relato
de Experiência de Pippo Delbono. Pietra Ligure, Savona – Itália. Nasci faz
quarenta anos em Varazze, um pequeno povoado da Ligúria. Segundo dizem um
pequeno e encantador ângulo do mundo, mesmo não concordando muito. Tampouco
concordava com minha mãe, que afirmava que ficando ali poderia realizar uma
grande parte de minhas experiências de vida. Após uma dezena de anos
transcorrida bancando o palhaço, o escoteiro e ir à escola por obrigação,
comecei a fugir cada vez que podia. Eram os anos do colégio e me dedicava a
todo tipo de manifestações de protesto e a fazer magníficas viagens de moto à
Inglaterra, Marrocos, Turquia (...). Durante
dez anos vivi esta dimensão de liberdade e descobrimento, compartilhando-a com
um amigo, que rapidamente se converte em um grande amor. Foi uma história
forte, passional, um pouco como aquela entre Verlaine e Rimbaud e todos aqueles
“poetas malditos”, os que terminaram mal por causa de tanto viver. Também a
mim, também a nós, nos tocou viver assim. Ele morre num acidente de moto e foi
o primeiro momento de desespero em minha vida. Ou morro, ou devo realizar algo
grande, diferente para poder viver, dizia-me. Pouco
a pouco, fui conhecendo um ator sul-americano, Pepe Robledo. Nessa época,
frequentava em Savona uma escola de teatro, começando assim a cultivar meu
sonho de outrora. Decidi fugir novamente, esta vez seguindo-o com seu grupo,
com destino à Dinamarca. Assim abandonei a carreira de Economia, quase no
final. Durante três anos lutei duramente com um árduo
trabalho de aprendizagem teatral, para poder continuar vivendo e fugindo
daquela grande dor. Quase o tinha conseguido quando outra dor aparece: lesões
num olho, de improviso, irreversíveis. Estava em Wuppertal, Alemanha. Desde
então vejo as coisas de um modo diferente. Mas cada nova dor incluía um novo
horizonte e desta vez encontrei aquela que seria minha mestra: a grande Pina
Bausch (1940-2009), a coreógrafa de dança moderna. Trabalhar com ela foi uma
experiência maravilhosa. Mudando de assunto: durante uma turnê
pela América do Sul fui picado por um mosquito. Malária. Tendo que voltar a
Genova para curar-me. Uma vez fora do hospital, me chamam: O Sr. é HIV
positivo. Caí num turbilhão de angústia e desespero total. Meu sistema
imunológico já estava bastante destruído. Carluccio,
um amigo, já tinha me falado do Budismo, mas não tinha me convencido. Toda essa
história de benefícios me parecia completamente improvável. Isso de obter
transformações orando. Jamais poderia praticar uma religião assim. Mas o medo e
o desespero começaram a fazer seu próprio trabalho. Experimenta pelo menos 15
dias, repetia minha amiga Anna. Estávamos em Módena, em dezembro de 1989. Foram 15 dias cheios de “coisas estranhas”, como
por exemplo, chegar no Correio, quando já estava fechado e conseguir que
abrissem. Um estado vital diferente, que me faz renovar por 15 dias, o pacto
que tinha com Anna e o Budismo. E senti pela primeira vez recitando Daimoku,
surgir dentro de mim uma pequena luz, uma força que me abria algo dentro. Depois, tudo tornava a fechar-se e recaía no
desespero daquele que sente que pode morrer hoje ou amanhã. Mas continuava a
recitar Daimoku. Passaram os primeiros anos em Módena, com prática
intensa, atividades, orientações que me deram coragem para ter fé. Em 92, em Milano, encontro com o presidente Ikeda.
Estava na primeira fila. Suas palavras tão cheias de sabedoria e simplicidade,
seus olhos cheios de humanidade, penetraram na minha vida. Pratiquei com o
pensamento constante de curar-me e de viver. Praticando surgiram também os
outros sofrimentos da minha vida: um trabalho de teatro, ainda que de
qualidade, mas não reconhecido na sociedade; um grande sofrimento de amor, que
certamente era a verdadeira causa de minha doença. Era o ano 1993 e na Ligúria dava seminários de
teatro para jovens de toda a Itália, muitos dos quais começaram a praticar mais
tarde o Budismo. Mas a saúde não melhorava. As defesas imunológicas eram sempre
muito baixas e o temor às infecções era constante. Porém nunca parei de
praticar. Tenho seguido todas as terapias possíveis gastando todo o dinheiro
que tinha, mas o único ponto que permanecia constante era a prática. Muito
Daimoku, atividade e Chakubuku. Não obstante, a angústia progredia e sem
perceber, me encontrei completamente à sua mercê. Angústia, constante medo
de morrer. Nessa época morre Marilena, querida amiga que
trabalhava na minha companhia. Também ela tinha o mesmo problema que eu. Morreu
de uma infecção, em poucos dias. Nesse momento estava fazendo um espetáculo,
Henrique V, de Shakespeare (1564-1616). É a história de um homem que leva
adiante um combate impossível. Em um momento diz: É verdade, estamos em perigo.
Mas justamente por isso, maior ainda deve ser nossa coragem. Existe sempre algo
de bem ainda nas piores coisas; pertence aos homens saber extraí-lo. Era minha história, minha luta, não era só
Shakespeare. Em 1994 cheguei a emagrecer muitíssimo, era
constantemente invadido pela febre, calores fortíssimos em todo o corpo, nas
costas (...). Estava aterrorizado. Recitava
horas de Daimoku por dia. Em meio de tanta dor física certas vezes aparecia uma
alegria inacreditável. Esse ano montei a peça A raiva, dedicada a Pier Paolo
Pasolini (1922-1975), um espetáculo desesperado, mas cheio de amor pela vida.
Em um determinado momento, Pepe me dizia uma frase de Charles Chaplin
(1889-1977): “Pensa na força que faz crescer as árvores, que faz tremer a
terra, que faz girar o universo: essa mesma força está dentro de você”. E eu
ria, forte, com toda minha vida. Ainda
hoje, que tenho criado tantos outros espetáculos, quando fazemos A raiva, o
público experimenta uma grande alegria. Quando
estava em Roma fazendo esse espetáculo, a cidade de Pasolini, comecei a sentir
um estranho formigamento nas mãos e nas pernas. Rapidamente transformou-se em
ardores. À procura do novo mal, rejeitei todo tipo de terapia. Cada um tinha a
sua, todos falavam coisas diferentes. Lembro-me uma vez em Milano, um certo
doutor Lee. Me faz deitar sobre uma prancha, me dá um golpe seco nas costas e
me apresenta uma conta de duzentas mil liras. Tempo da intervenção: 10
segundos. Ardores, Daimoku, peregrinação pelos hospitais, até
que me fazem uma tomografia na França, que sem nenhuma dúvida colocava em
evidência uma Mielites da medula espinal, uma infecção causada pela existência
do HIV. Terrível, mas ao menos concreto. Me recuperaram em Gênova numa sala de
neurologia. Decidi fazer entre sete e dez horas de Daimoku por dia, durante
alguns meses. Foi o período mais inacreditável, louco e feliz da minha vida. Em
certos momentos experimentava uma alegria tão grande que me faltava o
incentivo, as palavras, os pensamentos. Mas depois voltava o medo da morte.
Sentia indistintamente as pernas que ardiam, o corpo e a medula invadida com
esse vírus, que me destruía fazia 10 anos. Foi como entrar no túnel mais
profundo e escuro. Às vezes tinha uma grandíssima consciência de mim, da
natureza profunda da vida, da morte, do universo. Jamais deixei de atuar, ainda
que as dores nas pernas eram fortíssimas, mesmo assim continuava trabalhando.
Dava ao público minha luta, minha dor, minha busca da alegria. Dava o que era. Após alguns meses de tanto Daimoku, passei por
outra tomografia de controle. Sempre tive medo de entrar nesse cilindro que faz
sentir claustrofobia. Curiosamente essa vez fui com alegria. Permaneci sereno,
inclusive feliz. Sentia alegria e felicidade lá dentro. Foi para mim uma grande
experiência de fé. Quando saí, os médicos me olhavam alucinados. Nos exames,
via-se que na medula, lá onde antes avançava o vírus, só existia uma cicatriz.
Tudo tinha retrocedido. Quase não podiam acreditar que tivesse existido uma
Mielites. Estava tão sereno, tão pouco preocupado, que
compreendi que também eu tinha vivido, na primeira pessoa, uma dessas histórias
que às vezes se leem no Novo Renascimento. Aquelas que jamais podemos pensar
que seremos capazes de viver. Poucos dias depois, enquanto contava numa reunião
esta experiência, comecei a ter lapsos mentais e não lembrava nada. Eram os
primeiros sintomas do que apareceria depois. Depressão total. Ruptura física e
mental. Sentava-me num sofá, sem ter forças para fazer nada. Quando tocava o
telefone sentia uma angústia enorme. Não podia sequer preparar um chá. Minha
relação afetiva, o teatro, os amigos, a prática, tudo tinha se destruído, tudo
tinha se derrubado. Durante a noite não podia dormir. Estava aterrorizado. No verão de 1996, em Porretta Terme, uma comuna
italiana, falei com Mitsuhiro Kaneda (1974-
), na época Diretor Geral da SGI - Itália. Me disse: Você se esforçou
muito e durante muito tempo. Agora está destruído. Descanse durante um tempo.
Diminua um pouco o Daimoku, e quando puder faça o Gongyo. E acima de tudo,
durma, durma muitíssimo. E nesse Daimoku que fazia estava toda minha vida.
Comecei inclusive uma terapia antidepressiva, com uma psiquiatra. Tinha medo de
ter enlouquecido, de ter perdido o controle de minha mente. Aí cheguei ao fundo
mais negro da tormenta. Lembro-me uma vez em Gênova, ao tentar
descer umas escadas não consegui fazê-lo. Sentei e esperei, tinha a barba
crescida, estava magérrimo. Nesse momento passou um rapaz, me viu e disse: Você
me deu tanta coragem, quando contou sua experiência. Nesse momento pensei na
boa sorte que tinha de possuir um grande grupo de amigos e a pessoa que tinha
escolhido como mestre, graças aos quais tudo isso era possível. A partir daí algo acontece, não posso dizer o quê.
Acontece tudo. Nos primeiros meses de 1997 devia dar um seminário para atores
no manicômio da cidade de Aversa. Não queria ir, mas me acompanharam. Não só
trabalhava no manicômio, como também dormia com os loucos. Lembro-me que tinham
me dito: Ainda você pode não saber como, mas de alguma maneira o Gohonzon te
protegerá, te ajudará a sair adiante. Um homenzinho microcéfalo, de sessenta
anos, surdo-mudo, encerrado ali fazia 45 anos, vinha espionar quando dava os
cursos. Perguntei-lhe se queria fazer algo conosco. Movimentava-se com uma
graça belíssima. Não sei como acontece, mas comecei a esforçar-me para fazer
algo por aquele fantástico homenzinho. E assim, pouco a pouco, comecei a pôr
pra fora minha energia para poder fazê-lo sair de lá, do manicômio,
imaginando-me que poderia vir a trabalhar comigo. Ele, cada manhã, esperava
ansiosamente na frente da porta do manicômio, que o fossemos buscar para
levá-lo a Nápoles para ver o novo trabalho que estava nascendo nesses dias. Uma
nova criação na qual trabalhávamos juntos, atores e loucos. Não me interessava fazer um espetáculo bonito,
tampouco me importava nada a crítica, o consenso. Somente me importava voltar a
viver. Junto com meus companheiros, antigos e recentes fizemos uma viagem
fantástica e é disso que quero lhes falar. O dinheiro para a produção era pouquíssimo,
cada um devia dar um jeito como podia. Quanto Daimoku recitamos juntos. Assim
nasce o espetáculo chamado Barboni (Mendigos). Dessa maneira, Bobo, o
homenzinho, sai do manicômio.vQuando
passei o portão, caminhando junto com ele, vi como observava encantado todas as
coisas que nunca tinha visto, os cartazes publicitários, as pessoas (...).
Tinha começado a viver aos sessenta anos, e eu com ele. A partir desse momento
comecei a abrir-me cada vez mais às pessoas, às suas vidas e suas feridas.
Esquecendo minha dor e meus problemas, pouco a pouco tenho começado a curar-me,
a reencontrar o equilíbrio, a força. Meu corpo acreditou em mim e seguiu-me. O vírus tornou-se negativo, Bobo vive faz três anos
na minha casa e se instalou na sala do Gohonzon. Muitas críticas têm dito que Barboni tem aberto uma
nova maneira de fazer teatro. O espetáculo recebeu muitos agradecimentos de
parte da crítica por uma busca conduzida entre arte e vida. Em todo caso,
estamos dando a volta ao mundo. Assim, meu velho sonho de criança, de fugir do
povoado em busca de espaço e liberdade tornou-se realidade. Depois de Barboni
temos criado a peça Guerra, um espetáculo onde encontram-se alguns trechos do
Rissho Ankoku Ron, se traduz do japonês como: o estabelecimento do ensino
correto para a paz da nação. E depois Êxodo que atravessa o mundo das
diferenças culturais. Na minha companhia há hoje tantas pessoas
diferentes: Bobo, Armando, Puma, Gianluca, uma criança com síndrome de down,
Nelson, um mendigo, Fadel, um fugitivo do Saara, e os companheiros de tudo e de
sempre, Pepe, Gustavo, Simone, Elena, Lucia e Tomaso. No meu Butsudan, oratório, há uma foto do
presidente Ikeda. Está dançando com um leque. Nestes anos de grande dor, olhava
seus olhos, lia e relia suas palavras: Dentro de nós estamos construindo uma
felicidade que não é influenciada pelas mutações externas. Rompendo os abismos
da angústia, no centro de nosso ser existirá sempre esse tesouro indestrutível.
Então podemos participar plenamente das alegrias e dos sofrimentos do mundo sem
sermos dirigidos, com a força de superar a adversidade, sem ser esmagados e de
gozar da prosperidade sem ser corruptos. Em
suas palavras encontram-se energia e fé para continuar lutando, para não
deixar-se morrer. E hoje posso dizer que agradeço aquele sofrimento. Me fez
crescer, me permitiu abrir-me à vida. http://www.maisbelashistoriasbudistas.com.br.
Abraço. Davi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário