quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

MISHKAN - O TABERNÁCULO

 

Judaísmo. www.morasha.com.br. MISHKAN – O TABERNÁCULO. “E Me farão um santuário, e Eu morarei entre eles” (Êxodo 25:8). Uma pergunta intrigante com a qual se debatem teólogos e filósofos é por que D’us teria se dado ao trabalho de criar o Universo. Como um Ser Perfeito é, por definição, completo, sem nada lhe faltar, o que O teria levado à decisão de criar os mundos, físico e espiritual, e todos os seres que os habitam? O Midrash Tanchuma responde, enigmaticamente, que D’us criou o mundo porque Ele desejava ter uma morada nos mundos inferiores. O Rabi Shneur Zalman de Liadi, fundador da dinastia Chabad-Lubavitch e autor de obras cabalistas seminais, explica em seu Likutei Amarim (Sefer HaTanya) que: “É disso que se trata o homem (…). É este o propósito de sua criação e da criação de todos os mundos, o superior e o inferior: para que fosse feito para D’us uma morada nos mundos inferiores”. A primeira dessas moradas a ser erguida – que serve como protótipo para o empenho de construir uma morada para D’us no mundo físico – foi o Mishkan, o Tabernáculo – santuário portátil construído pelos Filhos de Israel no Deserto de Sinai, após o Recebimento da Torá no Monte Sinai. Quinze substâncias físicas – entre as quais ouro, prata, cobre, madeira, lã, linho, peles de animais, óleo, especiarias e pedras preciosas – representando uma amostra representativa dos recursos minerais, vegetais e animais do universo físico, bem como dos recursos humanos investidos em sua manufatura, foram usados para erguer o Mishkan. Esse edifício, construído por seres humanos e dedicado ao serviço de D’us, foi o local físico onde D’us escolheu para se comungar com o homem. Sua descrição na Torá é longa e minuciosa. Uma boa parte do Livro de Êxodo – nada menos que 13 capítulos – são repletos de detalhes sobre a construção do Tabernáculo, desde as dimensões de cada pilar às cores que compõem cada tapeçaria. É intrigante que a descrição do Miskhan na Torá seja tão longa e elaborada, pois quem estuda o Talmud sabe que os Cinco Livros de Moisés são extraordinariamente sucintos. Cada uma de suas letras, tendo sido escritas por D’us e transmitidas a Moshé, tem significado. Como demonstrado no Talmud, a Torá transmite muitas leis complexas por meio de um único versículo ou mesmo uma única palavra ou letra. Por que, então, dedica 13 de seus capítulos a detalhes sobre o Tabernáculo, se apenas dedica um único capítulo a seu relato da criação do Universo, e apenas três à Revelação Divina no Sinai? A resposta é que o próprio propósito da criação do Universo foi incorporado pelo Mishkan. Assim sendo, cada detalhe é importante. Por exemplo, é necessário definir – como faz o Talmud – as 39 formas de trabalho criativo – desde arar até tecer ou escrever – envolvidas na construção do Mishkan. Pois aqui se situa o protótipo para o trabalho de nossa vida de tornar nosso mundo e nossa existência uma morada para D’us. Microcosmo do Universo: Os Três Domínios. Midrash e a Cabalá descrevem o Mishkan como um microcosmo do ser humano, do universo físico e da Criação como um todo. Os utensílios do Mishkan, por exemplo, representavam os vários órgãos e sentidos do homem. A Arca da Aliança, que continha as Tábuas do Testemunho, correspondia à mente e ao dom da fala.  A Menorá – candelabro de sete braços, que era aceso diariamente – representava o sentido da visão. O Shulchan – a Mesa que continha o “pão sagrado” – simbolizava o sentido do paladar. O Altar Interior, sobre o qual era queimado o incenso, Ketoret, correspondia ao sentido do olfato, ao passo que o Altar Exterior, para o qual as oferendas de sacrifícios de animais e de alimentos eram levadas, representava o aparelho digestivo. Em um dos seus cadernos manuscritos (Reshimot) descobertos após seu falecimento, o Lubavitcher Rebe, Rabi Menachem Mendel Schneerson (1902-1994), resume comentários de Rabenu Bechayei, Rabi Moshe Isserlis (o Ramá), Rabi Yeshayahu Horowitz (o Shelá HaKadosh), e de outros Sábios acerca de como os domínios básicos do Mishkan são comparáveis às divisões na criação do Universo, no Tempo e na alma comunitária do Povo Judeu. Maimônides (1135-1204) – o maior filósofo judeu e um dos maiores legisladores em Torá – descreve o Universo como consistindo de três estratos: matéria não refinada – a Terra e todos os seus seres terrestres; matéria refinada – as estrelas e os corpos celestes; e os seres puramente espirituais – entidades que não possuem matéria, como os anjos.  O Tempo também pode ser dividido em três domínios: os seis dias de trabalho (que correspondem à matéria não refinada); o Shabat – Dia Sagrado (matéria refinada), e o Yom Kipur – Shabat dos Shabatot – a data mais sagrada do calendário judaico: um dia no qual os judeus, que se abstêm dos prazeres físicos e se dedicam integralmente ao serviço de D’us, são comparados aos anjos (entidades sem matéria). Entre as almas do Povo Judeu, também encontramos três domínios primários. Onze das Doze Tribos de Israel eram Israelim, cuja vida era dedicada, em geral, aos assuntos da vida material – líderes, empresários, mercadores, fazendeiros e soldados. Houve também a Tribo de Levi, constituída pelos Cohanim e Levi’im, cujo serviço no Miskhan, e, mais tarde, no Templo Sagrado de Jerusalém, envolvia o refinamento e a elevação do mundo material. Finalmente, entre os Cohanim havia o Cohen Gadol, o Sumo Sacerdote, cujo propósito era personificar as maiores alturas espirituais que o ser humano pode alcançar. No Mishkan – a Morada de D’us na Terra – esses três domínios eram representados pelo Pátio, o Lugar Santo (a câmara externa) e o Santo dos Santos (a câmara interna e mais santificada de todas). No Pátio do Tabernáculo eram realizados os elementos mais terrenos e materiais do Serviço Divino. Era nesse domínio que os Cohanim lavavam suas mãos e seus pés para se purificarem de seu contato com o mundo material, antes de iniciar seu serviço. Era no Pátio que os sacrifícios de animais, Korbanot, eram realizados. Era também lá que a gordura dos sacrifícios, simbolizando o excesso de materialidade na vida do ser humano, era queimada sobre o Altar Exterior, e onde as cinzas da Menorá e do Altar Interior – que simbolizavam o desperdício – eram depositadas. O segundo domínio do Mishkan era o Lugar Santo (a câmara externa). Somente os Cohanim tinham permissão de lá entrar. O Lugar Santo abrigava os elementos mais refinados do Serviço do Templo: a Menorá, o Altar Interior (no qual o incenso diário era queimado) e o Shulchan – a Mesa que continha o “pão sagrado”, comido pelos Cohanim no Shabat. O terceiro domínio e o mais sagrado de todos era o “Santo dos Santos”, que abrigava a Arca da Aliança.  O Talmud ensina que a entrada no Santo dos Santos era proibida a todos – mesmo os anjos e demais criaturas celestiais. A única exceção era o Cohen Gadol, que lá podia entrar – mas apenas em Yom Kipur – o dia mais sagrado do calendário judaico. O Santo dos Santos representava a total transcendência de materialidade no serviço do homem a D’us. A Arca e o Altar: o Cabalista e o Legislador. É evidente que o Santo dos Santos era mais sagrado que o Lugar Santo, e que este era mais sagrado do que o Pátio. Mas, qual dos domínios do Mishkan representava sua principal função? De acordo com Nachmânides, Cabalista e um dos maiores comentaristas da Torá e do Talmud, a essência do Mishkan, Morada Divina na Terra, era seu núcleo espiritual: o Santo dos Santos, onde repousava a Arca da Aliança. Como escreveu Nachmânides: “A principal finalidade do Santuário é servir como lugar de repouso para a Presença Divina. Isso ocorre na Arca da Aliança, pois D’us disse a Moshé: ‘Comungarei contigo lá, falando contigo por cima do Kaporet (a cobertura dourada da Arca da Aliança)’. Por essa razão, a Torá inicia sua descrição do Mishkan com a Arca da Aliança e o Kaporet” (Nachmânides, comentário sobre Êxodo 25:1). Segundo Maimônides, no entanto, o ponto focal do Mishkan era o Altar Exterior, onde as oferendas de farinha e de vinho e os sacrifícios de animais eram ofertadas diariamente. Maimônides define o Santuário como “uma casa para D’us destinada à oferenda de sacrifícios...” (Mishnê Torá, Leis do Templo Sagrado 1:1). Contrariamente a Nachmânides, Maimônides defende que o eixo do Tabernáculo, em torno do qual tudo revolvia, era o Pátio, não o Santo dos Santos. A discussão sobre o ponto central do Mishkan não é meramente filosófica e acadêmica. Tem profundas ramificações que podem afetar nossa compreensão do propósito da Criação e dos mandamentos da Torá. Levanta a questão de como definir o conceito de um local e estrutura físicos, que serve de Morada para D’us no mundo físico. Por um lado, a Morada de D’us na Terra pode ser um domínio no qual e através do qual D’us optou por Se revelar ao homem. Por outro, pode também ser um lugar no qual e através do qual o homem sirva a D’us. O Mishkan serviu a ambos os propósitos. Foi o lugar de onde D’us se comunicou com Moshé. Era, pois, um domínio de onde D’us chegava aos seres humanos: onde o homem finito podia testemunhar e vivenciar a Presença do Infinito. Mas o Mishkan foi, também, um local físico onde o homem oferecia suas posses físicas e seu serviço a D’us. Qual dessas duas funções é a principal? Qual das duas serve e facilita a outra? Seria a Morada de D’us na Terra um meio para o Altíssimo se achegar ao homem ou seria um portal de onde o homem poderia aproximar-se de D’us? O Rebe de Lubavitch explica que as diferentes perspectivas expressas por Nachmânides e Maimônides refletem as duas vertentes da Torá que esses dois grandes Sábios representam. Para Nachmânides, místico e Cabalista, o ponto focal do Mishkan está em seu núcleo espiritual: o Santo dos Santos, onde apenas a mais transcendente das almas – o Cohen Gadol – podia entrar, e apenas no dia mais sagrado do ano – Yom Kipur. O Santo dos Santos continha a Arca da Aliança, que abrigava as Tábuas do Testemunho, nas quais estavam inscritos os Asseret HaDibrot (os Dez Mandamentos). O Kaporet, a cobertura da Arca, era uma representação das formas sublimes da Carruagem Celestial. A Voz Divina que se propagava do meio dos Querubins, as figuras angelicais que ficavam no topo da Arca, expressavam a essência de uma Morada Divina: um portal para o mundo material através do qual brilha um raio da Luz Infinita de D’us. Se Nachmânides estiver correto – se o Santo dos Santos é o eixo central do Mishkan –, tudo o mais serve apenas para “preparar o terreno” para essa Revelação  – para elevar o homem e o mundo a um estado de receptividade a essa Luz. Para Maimônides – o mestre da Halachá, possivelmente o maior  de todos os legisladores judeus  – a essência do Mishkan residia no Altar, onde eram oferecidos os sacrifícios, que representavam o empenho humano de oferecer, dia-a-dia, elementos materiais de sua vida a D’us. Todo o restante – a luz da Menorá, a fragrância do Ketoret (incenso), e o pão sagrado no Shulchan (a Mesa) – e mesmo as Revelações Divinas que emanavam do Santo dos Santos – são secundárias: são o meio, e não o fim, e se prestam a permitir e ajudar no serviço do homem a seu Criador. Resumindo, Nachmânides defende que a função da Morada de D’us na Terra é servir como um portal onde o Altíssimo faça brilhar sua Luz sobre nós, seres humanos. Segundo Maimônides, no entanto, essa função é permitir que o homem finito cumpra a Vontade Divina, desta forma, ligando-se a Ele. Onde D’us mora, atualmente. Na ausência do Mishkan e do Templo Sagrado de Jerusalém, onde reside D’us Infinito? Onde é Sua Morada na Terra?  Ensina o Talmud: “Desde o dia  em que o Templo foi destruído, o Santo, Bendito Seu Nome, nada tem neste mundo, exceto os quatro cúbitos da Halachá (a Lei Judaica)” (Talmud BavliBerachot 8a).  Isso significa que D’us reside onde quer que o homem estude a Sua Torá e cumpra os Seus mandamentos. D’us decretou muitos mandamentos, que são caminhos para Sua Essência Impenetrável. Alguns desses mandamentos são físicos, outros são espirituais. Doar aos pobres, colocar Tefilin, comer alimentos casher, habitar numa Sucá em Sucot e comer Matzá durante o Seder de Pessach são exemplos de mandamentos Divinos executáveis por meio de ações e objetos físicos. Mas a Torá também contém mandamentos mais espirituais do que físicos, tais como amar e temer a D’us e orar a Ele; estudar e ensinar a Sua Torá; sentir angústia em Tishá b’Av e alegria em Purim. Esses são mandamentos que cumprimos com nossa alma e não com recursos físicos: com nosso coração e nossa mente – com pensamentos, sentimentos e palavras. Qual o nosso propósito neste mundo? Na ausência do Mishkan e do Templo Sagrado de Jerusalém, como o judeu se torna uma Morada para D’us na Terra? Servindo a Ele com nosso corpo e nossas posses materiais ou com nossa alma, mente e coração? Em outras palavras, o que é mais meritório perante o Altíssimo: doar ao pobre ou estudar a Torá? Comer casher ou orar profusa e sinceramente? Uma pergunta similar: Quem está mais próximo de D’us: o empresário filantropo ou o grande sábio? Em outras palavras, qual a parte mais sagrada em nós: nossos atos físicos, do cotidiano, ou nossas aspirações transcendentais? Poder-se-ia dizer que se D’us fosse um Ser físico, os mandamentos físicos seriam a forma preferencial de servi-Lo. Mas D’us é completamente isento de qualquer fisicalidade. Muitos presumem, erroneamente, que D’us é o Ser espiritual supremo. Acreditam, portanto, que a pessoa religiosa é espiritual: ou seja, que é mais importante colocar as palavras do Shemá Israel em nosso coração do que colocar Tefilin, que fisicamente as contém. No entanto, D’us está tão distante da espiritualidade como está da fisicalidade. D’us nem é espiritual nem físico. Ele apenas É. Portanto, nem os mandamentos físicos nem os espirituais da Torá gozam de qualquer forma de superioridade uns sobre os outros. Tenda do  Encontro com D’us. “Estas e estas são as palavras do D’us Vivo”, afirma o Talmud sobre as disputas entre os Sábios sobre interpretações da Torá. Isso significa que todos os pontos de vista deles são válidos, mesmo se a Lei Judaica dá precedência a um sobre os demais. A visão mística, cabalista, expressa por Nachmânides e a perspectiva legal da Halachá apresentada por Maimônides são, ambas, componentes integrais da “Morada de D’us” construída no Deserto do Sinai, e a “Morada de D’us” que todo judeu tem o dever de construir em sua vida. Essa é a razão pela qual a Torá chama o Mishkan de Ohel Moed: “Tenda do Encontro”. Era nela que D’us – ao projetar Sua Luz Infinita sobre a Terra – e o humano e material, querendo chegar aos  Céus – se encontravam.  Isso nos ensina que cada vez que um judeu cumpre a Vontade de D’us, ele se torna receptivo à Luz Divina Infinita: ele próprio se torna uma Morada Divina nos mundos inferiores, realizando, assim, todo o propósito da Criação. Ao mesmo tempo, cada Revelação Divina que emana das Alturas capacita o homem a revelar a Divindade presente, implicitamente, dentro da finitude e materialidade da existência. O Mishkan incluía três domínios  – o Pátio, o Lugar Santo e o Santo dos Santos – porque a missão de “fazer para D’us uma morada nos mundos inferiores” abarca todas as áreas da nossa vida. Os judeus servem a D’us em seus momentos mais exaltados, tais como Yom Kipur (o Santo dos Santos). Eles também O servem em seus esforços para elevar e santificar o mundo, como no Shabat – um dia basicamente dedicado à espiritualidade (o Lugar Sagrado). Mas também devem empenhar-se em fazer uma Morada Divina em suas mais simples atividades do cotidiano, durante os seis dias da semana (o Pátio). O Povo Judeu construiu o primeiro protótipo da Morada de D’us na Terra seguindo instruções muito detalhadas que o Altíssimo transmitiu a Moshé no Sinai. Quando a construção do Mishkan foi completada – quando o último pilar, tapeçaria e divisória foram colocados em seu lugar – D’us fez com que Sua Infinita Presença habitasse o Tabernáculo. Isso capacitou todas as futuras gerações de judeus, e cada judeu em particular, a replicar seus domínios nos recônditos de sua vida. www.morasha.com.br. Abraço.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A PALAVRA SECRETA

 

A Palavra Secreta

Ryotan Tokuda (1938 - )

Budismo. www.sotozencuritiba.org.br. A PALAVRA SECRETA. Mestre Daisetz Suzuki (1870-1966) foi quem apresentou o Zen ao Ocidente, no livro Mística Cristã e Budismo. Nesse livro, mestre Suzuki fala muito em mestre Eckart (1260-1328). Assim, quando se fala em mestre Eckart, todos lembram do Zen-Budismo. Quando orientais tomaram contato com a obra do mestre Eckart sentiram-se como que lendo textos budistas. Sua linguagem, apesar de falar em Deus, expressa o Budismo, especialmente o Zen. (Monge Tokuda - 25 de outubro de 1989). Hoje vou falar sobre a "palavra secreta". Esta expressão "palavra secreta" é o título de um capítulo do livro de mestre Dogen, o Shobogenzo. Mestre Eckart diz: Eu vou em primeiro lugar falar das palavras da sabedoria eterna. Quem quer que me ouça não fique envergonhado. Quem quiser ouvir a sabedoria eterna do Pai deve estar dentro e em casa; deve ter se tornado uno. Então ele pode ouvir a sabedoria eterna do Pai. Existem três coisas que nos impedem de ouvir a palavra eterna: a primeira é a corporalidade, a segunda é a multiplicidade e a terceira é a temporariedade. Se o homem conseguisse transcender estas três coisas, ele moraria na eternidade. Ele moraria no mundo do espírito, ele moraria na unidade e no deserto, e ali ele ouviria a palavra eterna. Agora, Nosso Senhor diz "não há quem ouça a minha palavra ou o meu ensinamento a menos que tenha abandonado a si mesmo, pois para ouvir palavra de Deus é preciso um absoluto perder do ego". Portanto, Nosso Senhor diz "Quem quiser ser meu discípulo, que abandone seu próprio ego. Não existe quem possa ouvir as minhas palavras ou o meu ensinamento a menos que tenha abandonado o ego. Todas as coisas nada são em si mesmas, por isso, abandonem este nada e assumam o perfeito ser no qual a vontade é justa. Aquele que abandonou toda a sua vontade, saboreia o ensinamento e ouve as minhas palavras. "Vivendo neste mundo, isso não é tão fácil. Os budistas usam a expressão "mundo saha", e "saha" significa terra de paciência, ainda que não totalmente infeliz. Um pouco infeliz, mas também onde se vivencia alguma felicidade. Não há só sofrimento, mas também felicidade - um pouco de cada. Eu sempre brinco, em primeiro lugar é importante ter paciência, em segundo lugar paciência e em terceiro também paciência; em quarto lugar, ah, em quarto nada, e em quinto, sim, novamente paciência (risos...). Neste mundo a gente precisa de muita paciência. Muitas pessoas sofrendo suas dores vão visitar as igrejas e rezam para Deus. Você, rezando, pedindo, alguma vez escutou a voz de Deus? Talvez sim, ou, tendo ouvido algumas respostas, pense que sim. Muitas pessoas perguntam o que é realmente a palavra de Deus. Alguns respondem: é silêncio. Mas mestre Eckart diz que não, este é um método ainda, não é exatamente a palavra de Deus. Muitos amam a Deus como se ama uma vaca, esperando leite e queijo. Então rezam a Deus esperando uma coisa em troca. Este não é, entretanto, o verdadeiro amor a Deus. As pessoas têm medo de Deus, agradecem a Deus ou recebem muita coisa de Deus, mas as vezes têm dúvidas. Deus é isto? Deus existe? Onde está? A finalidade tanto cristã como budista é encontrar Deus, encontrá-lo intimamente. Isto é muito importante. Por isso, praticar através de livros sagrados é muito importante, mas é necessário praticar também através da contemplação, mas contemplar realmente. Rezar interiormente; isto já é meditação, concentração, e então nós podemos encontrar com Deus. Nesse momento podemos escutar a voz de Deus, a palavra de Deus. Na teologia cristã, a palavra de Cristo é a palavra de Deus, ele veio a este mundo para revelar o que é Deus. Aqui temos também a palavra de mestre Dogen e de mestre Eckart. Mestre Eckart diz: Há uma afirmação comum a todos sábios: "quando tudo estava em meio ao silêncio, desceu a mim uma palavra secreta, desde o trono real do alto." A alma onde isto acontece deve ser mantida completamente pura e viver de maneira nobre completamente em posse de si mesma e voltada inteiramente para dentro. Em primeiro lugar vamos tomar as palavras "em meio ao silêncio foi falada uma palavra secreta". Mas, meu caro Senhor, onde está o silêncio e onde está o lugar onde a palavra é falada ? Corno acabei de dizer, está no lugar mais puro onde a alma é capaz de chegar, na parte mais nobre, no chão de fato, na essência mesma da alma, que é justamente a parte mais secreta da alma. Ali é que está o silencioso meio, pois nenhuma criatura, nenhuma imagem jamais entrou ali. Nem a própria alma teve desse lugar qualquer compreensão, portanto, ela não está consciente ali de nenhuma imagem, quer seja de si mesma ou de qualquer outra criatura. Mestre Eckart fala que para escutar a voz ou a palavra de Deus existem três tipos de obstáculos, primeiro a corporalidade, depois a multiplicidade e a temporariedade. É necessário transcender esses três obstáculos. A grande dificuldade é que neste mundo é exatamente com esses três aspectos que existimos. Com a corporalidade nascemos, recebemos este corpo até morrer. Com isto você existe, com isto eu estou aqui, você está aí. Já o tempo instala-se quando nascemos, e depois nos conduz à morte. Assim, para viver eternamente você não pode nascer. Quando nasce há morte. Por isso o Zen usa a expressão "não-nascido". Antes de nascer, qual era sua face original? Antes de seus pais nascerem, qual era sua face original? Como é sua face original? A busca do Zen é isto: o chão, a origem de onde você veio. Corporalidade, temporariedade e multiplicidade, ou seja, dualidade. Eu sofri tanto com isso! Estou aqui e você está aí. Então há o conflito. Todas as coisas apresentam isso. Bem e mal, rico e pobre, velho e moço, etc (...). Neste mundo tudo, tudo apresenta-se assim. Como podemos transcender isso? Mestre Eckart diz: "quando tudo estava em meio ao silêncio, então desceu a mim a palavra secreta." Este silêncio é nirvana. A gente encontra o silêncio em todas as linhas de religião e filosofia. Fase silêncio é uma preparação para se ter esta experiência que é original, a experiência religiosa, mística. Existem dois tipos de religiões, as religiões místicas - de busca e contato direto - e as outras, as religiões de profetas, com muitas regras, etc, que todos devem seguir. O Zen é talvez mais ligado à experiência mesmo de união com Deus. Neste caso é necessário o silêncio; meditação é silêncio, e com isto ocorre a experiência mística. Quando há internamente aquele silêncio, aquela tranquilidade, aquela calma, nesse momento você vai ouvir a voz de Deus. Este estado, nirvana, mestre Eckart compara com o deserto, com o deserto cheio de areias. Hoje em dia vemos os documentários da televisão sobre o deserto e vemos que é cheio de vida, de insetos e plantas pequeninas. Mas deserto, deserto mesmo, não tem nenhuma vida, é morto. Esta é a experiência de morte religiosa. Não falando fisicamente, mas espiritualmente morte religiosa é uma experiência muito forte, muito importante, só assim é possível o verdadeiro renascimento. Nesta vida é necessário aprender a esquecer, desligar, perder até; isso é doloroso, mas depois ganha-se a verdadeira vida. É como na corrida de maratona: quando chega-se em certo ponto, surge a crise, parece impossível prosseguir, há dificuldade de respiração, dores, cansaço, o cor arece não poder ir além, isto é chamado de "dead point", ponto-da-morte seria o significado. Quando, no entanto, ultrapassa-se esse ponto, tudo fica leve e fácil e pode-se correr até o final. Mesmo os jogadores de tênis, nadadores ou jogadores de futebol passam por treinamento, dificuldades e superações. O zazen também apresenta dores, dificuldades. Os joelhos doem com as pernas cruzadas, as costas doem, mas é preciso viver esta experiência. Mestre Dogen nasceu exatamente no ano de 1200 e morreu com 53-54 anos, relativamente moço. Já mestre Eckart nasceu em 1263. Um morreu, o outro nasceu. Apesar de viverem em países diferentes, ambos falam da mesma experiência. Mestre Dogen começou a escrever livros em língua japonesa numa época em que os monges escreviam sempre em chinês. Hoje em dia os pesquisadores de literatura japonesa clássica estudam o Shobogenzo como literatura, não apenas como o livro sagrado do Zen. Com mestre Eckart ocorreu algo semelhante. Hoje os estudiosos da língua germânica debruçam-se sobre a obra de mestre Eckart porque ele dava seus sermões e aulas na língua da época e não no latim que era a língua oficial. Ele tem estudos feitos em latim também, mas costumava usar a língua germânica para seus sermões e obras e seus contatos com discípulos, freiras e leigos. O que ele diz é o seguinte: "É difícil falar alguma coisa sobre Deus; tudo o que pode ser dito sobre Deus são enganos. Quando não se fala sobre Ele, é verdade." Mas, de outro lado, mestre Eckart também diz, "eu gosto de falar de Deus". Não se pode falar, mas ele quer e gosta de falar. Aí há um conflito de energias - é por viver certo tipo de experiência que ele não pode ficar calado. Mesmo que não exista ninguém aqui, eu quero falar com esta mesa. Quero falar. Há este impulso, mas o que se pode falar sobre Deus? O que não se pode falar? Isto o Zen-Budismo, de certo modo, desenvolveu: a clareza do aspecto limitado da linguagem e das palavras. Esse capítulo do Shobogenzo sobre a palavra secreta fala sobre isto. Em outro capítulo, de título curioso, "0 sermão dos seres insensíveis", também mestre Dogen (1200-1253) fala sobre isto. Buda ganhou a iluminação - Budakaia. Surgiu-lhe então aquela dúvida: "Eu consegui isto, este Darma, mas quem poderia compreendê-lo? Este Darma é muito diferente das coisas do mundo. Totalmente diferente, muito difícil de entender." Ele então procurou dois de seus primeiros professores, mas estes já haviam morrido. Aí lembrou-se de seus cinco últimos companheiros. Quando Buda tornou-se monge, o rei, seu pai, mandou cinco companheiros treinar com ele. Depois de seis anos de treinamento como asceta, Gotama abandonou o treinamento porque compreendeu que esse não era o verdadeiro caminho. Abandonou o ascetismo, e, por conta própria, começou a prática de zazen sob a árvore Bodhi, atingindo assim a iluminação e libertação completas. Hoje em dia, abrindo o mapa, de Budagaia a Sarnath - onde houve o primeiro sermão para os cinco monges - há muita distância mesmo para quem for de carro, muito mais se considerarmos que Buda foi a pé. Quando estava chegando em Sarnath, um dos seus ex-discípulos disse: "Lá vem Gotama. Ele abandonou a prática ascética, mas se quiser voltar para nós não há problema, a gente deixa, mas já não precisamos respeitá-lo como antigamente pois ele abandonou a prática." Mas enquanto Buda aproximava-se mais e mais, mesmo nada tendo feito, os cinco monges levantaram-se, um preparou água para lavar seus pés, o outro preparou um lugar para ele sentar, o outro logo trouxe alguma comida ou chá, e assim todos os cinco, mesmo sem notar, estavam preparando e dando as boas-vindas ao Buda. Por que isso? É algo fora do comum. Isso é reconhecido como o sermão da luz radiante. Antes que ele começasse a falar, já havia a luz radiante. Esse foi o primeiro sermão. Com isso as pessoas já estavam preparadas inconscientemente, levantando-se e dando as boas-vindas. Assim, percebendo inconscientemente a luz radiante, eles estavam já preparados para o que Buda iria dizer. Esse sermão da luz radiante mostra que o sermão não é apenas o que sai pela boca. E eles começaram falando, "você, Gotama", e Sakiamuni disse: "Não, de agora em diante vocês não devem mais chamar-me de bo (você), mas de Buda ou Tatagata". "Tatagata" significa "aquele que vem e que vai". Como é o nome de Deus? Deus é Deus, não tem nome. Da mesma forma Buda, não sendo uma pessoa, responde, "eu sou Tatagata". E a seguir o Tatagata começou a falar as quatro nobres verdades. Imediatamente um dos discípulos entendeu; no segundo dia dois ou três compreenderam e finalmente todos os cinco entenderam, ganharam a iluminação, tornaram-se Arhats. Então Buda prosseguiu sua vida de sermões e ensinamentos. É preciso lembrar, no entanto, que antes do sermão com as palavras, já ocorrera o sermão da luz radiante. Para nós, monges Zen, o importante não é a boca que fala. As pessoas falam, falam, falam e não fazem o que falaram. O importante é observar o "sermão do corpo físico", o "sermão da atitude", o "sermão da atividade do corpo físico". Com atitude não se pode mentir, já a palavra, às vezes para impressionar, mistura mentiras. Às vezes eu falo o que não faço com a própria experiência. Isso é mentira. A boca pode mentir, mas com as "costas" não se pode mentir. O que as costas falam não contém mentiras. As crianças têm problemas, o pai e a mãe chegam e dizem, "meus filhos têm problemas". Mas os filhos fazem exatamente o que pai e mãe fazem! Não adianta dizer, "você não pode fazer isto, meu filho", o pai e a mãe estão praticando aquilo também, e os filhos apenas imitam exatamente o que vêm. O pai fala, mas nas suas costas, inconscientemente, a mensagem é diferente e o filho está vendo isso. Chegando ao mosteiro, o noviço pensa que vai ouvir grandes sermões, grandes aulas, mas nada disso acontece. O mosteiro mantém silêncio e até os mestres mantêm a prática de agricultura, com enxada e foice. Vendo aquela maneira de limpar o jardim, sente-se que é diferente; mesmo na limpeza com vassoura nota-se a diferença. O mesmo se dá com qualquer tipo de atividade e é a característica das artes marciais. Quando se vê alguém praticando o katá, há quantos anos a pessoa repete o mesmo katá, o mesmo golpe? No primeiro ano está praticando o katá, depois, no segundo ano, no terceiro; no quinto ano já há algo diferente. Com a prática de zazen se dá o mesmo. Eu gosto de usar esta imagem: no início, quando uma pessoa começa o hábito de tomar cachaça, a pessoa e a cachaça são duas coisas separadas. Depois há um segundo estado, a cachaça toma cachaça. Você toma cachaça, fica um pouco bêbado e o coração fica grande. No início você diz, "quero apenas um pouquinho, bem pouquinho, é só, obrigado", depois você diz, "é gostoso, traga outra garrafa"(...). Aí a cachaça, ela mesmo já está chamando mais cachaça. No início ele bebia a cachaça, agora, neste momento, a cachaça passa a bebê-lo... (risos). Assim, é o processo de treinamento. No início é necessário esforço, fazendo zazen, acordando cedo, aguentando dores, etc. Você está fazendo zazen, fica contente, mostra orgulho, etc (...) - a dualidade ainda está presente. Depois, com a continuidade da prática de zazen, da mesma forma que a cachaça chama a cachaça, o zazen chama o zazen. Não sei bem por que, mas fica o costume de sentar constantemente em zazen. Ás vezes eu não tenho vontade, estou cansado, com preguiça, mas onde eu vou - é meu karma - existem grupos de zazen esperando para a prática de zazen. Então digo, "vamos sentar". Não posso dizer, "ah, estou cansado, a viagem foi muito cansativa, preciso dormir mais, etc (...)", devo estar de acordo, sentar junto. Algumas vezes durante o zazen chego a dormir (risos), mas acompanho o zazen. Neste caso eu sou fraco, e o Darma é forte. Olhando de outro lado, isto é bom. Quanto mais fraco você for, melhor. Sendo forte, há o ego, você diz, "eu sou forte, pratico o zazen" (...) o ego está presente. Bem, mas estava falando sobre a palavra secreta (...). No Shobogenzo se conta, "(...) uma vez o mestre Ungan Donjo recebeu um ministro". Naquela época acontecia isto, ministros, escritores, artistas praticavam zazen. Como aconteceu também nos Estados Unidos, com muitos hippies, poetas e cantores que praticavam meditação, na época do movimento contra a guerra do Vietnam (1955-1975). Então, na história, um ministro chegou ao mosteiro e perguntou ao mestre: "Falam que Buda Gotama transmitiu a palavra secreta a Makakasho, que a compreendeu e não a escondeu; o que significa isto, a palavra secreta de Buda?" Então o mestre Ungan Donjo dirigiu-se ao ministro dizendo, "ministro!" E este respondeu, "sim!" O mestre completou: "É só isto, entendeu? Se você entendeu, entendeu, e então Makakasho não escondeu. Se você não entendeu, pode então compreender por que esta é chamada de a palavra secreta de Buda." Vocês entenderam? (risos ...) Isto é um koan. Este é um típico koan Zen - fica-se tonto. É preciso voltar atrás e lembrar um pouco a história toda dessa transmissão contínua do Darma. O importante, o essencial na vida do Zen é a transmissão do Darma, este ensinamento que vem de Buda diretamente, e após, de mestre a discípulo através dos budas e patriarcas. O primeiro foi o Buda Gotama, que transmitiu para seu discípulo Makakasho. Desde o momento em que Buda ganhou a iluminação, com 35 anos, até finalizar sua vida, com 80 anos de idade, não se fixou em nenhum lugar, sempre andando, andando, pregando o ensinamento durante 45 anos em mais de 360 lugares diferentes. Na última parte de sua vida, ficando velho, uma vez uma pessoa ofereceu- lhe uma flor e pediu, "por favor, dê um sermão com esta flor". Essa flor chamada "udombara" abre uma vez a cada cem anos ou uma vez a cada mil anos, ou seja, é algo muito raro. "Por favor, dê-nos um sermão sobre esta flor", pediu a pessoa. Buda aceitou a flor e todos ficaram esperando o que haveria ele de dizer. Nesse momento Buda não falou nada, apenas mostrou a flor diante da congregação dos monges. Mas aconteceu que entre os monges estava Makakasho, um dos primeiros de seus discípulos e posteriormente seu sucessor, que então, em meio à assembleia, abriu um grande sorriso. Geralmente Makakasho fazia um treinamento muito duro. Ele tinha nascido em uma família da elevada casta dos brâmanes, e mantinha o treinamento de simplicidade de vida, tanto em roupa como em comida e moradia. Não buscava luxo, nem comida de monges, apenas aceitava o que ganhava. Assim era o seu esforço: treinamento duro, cara fechada. No entanto, ele abriu o sorriso! Vendo isso, vendo o sorriso de Makakasho, Buda disse: "Eu tenho o Shobogenzo, o tesouro que é o Olho do Darma Correto, e transmiti tudo a Makakasho". Assim foi transmitido a Makakasho o ensinamento essencial de Buda; todos viram, mas nada entenderam do que havia efetivamente se passado. Então Buda passou, como símbolo de transmissão, o kesa, ou seja, o seu manto dourado, e uma tigela que ele usava sempre. Além de Makakasho ter recebido a tigela e o manto, recebeu uma coisa especial, a palavra secreta! Já Mestre Eckart diz: "0 que eu ouvi do Pai, não escondi de vocês." É isto. Mestre Eckart viveu aquela experiência original, escutou a palavra de Deus e por isso dispôs-se a falar sobre essa palavra. Mas para falar essa palavra ele tem que tê-la ouvido e tem que ter a força para que a pessoa possa também ouvi-la. Os que quiserem ouvir devem estar preparados. Precisam de silêncio, precisam estar afastados da prática do ego, só nesse momento você pode escutar. O koan do mestre Ungan Donjo ao ministro se dá no contexto desta experiência de transmissão. Assim, além da transmissão via tigela e manto, houve algo muito especial transmitido, como entre pai e filho, somente como entre pai e filho. Outra pessoa, mesmo vendo, não compreende. Mas Mestre Eckart diz, "do que ouvi nada escondi para vocês". E assim, na verdade, para escutar essa palavra você tem que se retirar. Nesse momento, então, o que acontece? Unidade! Unidade é intimidade. Buda torna-se "um" com o discípulo. O pai treina o filho, é isto, e assim o filho torna-se o pai também. Trindade é o Pai, o Filho e o Espírito Santo, mas mestre Eckart diz "Gotheit", origem de Deus. Antes de termos as três coisas se aradas temos uma unidade onde retornamos. Então o Pai tornou-se Filho. Há uma outra história que mestre Eckart conta. Havia um casal, marido e mulher, e por acidente ou doença ela perdeu a visão. Ficou muito triste, mas o marido a tratava com muito carinho, e a consolava. A esposa falou, "estou triste não porque perdi a visão, mas porque por isso vou perder o seu amor". Mas o marido disse, "você não precisa preocupar-se, eu gosto de você, eu a amo", e, tomando uma agulha, furou seus olhos e disse "bem, agora estou cego igual a você". Da mesma forma, Deus está lá, absoluto, eterno, paz infinita, mas escolhe fazer-se carne e vir ao mundo, e, perdendo a visão, fica igual a nós. Jesus Cristo é Pai, Filho e Espírito Santo. Jesus Cristo é Pai também. É assim que mestre Eckart expressa como nasceu o único Filho de Deus. O Cristianismo tem certas dificuldades quanto a este aspecto; pode gente tornar-se Deus? Não. Já no Budismo não há isto. Buda significa "desperto". Todos temos a natureza de Buda e então temos a possibilidade de tornarmo-nos Buda também. Pode o Cristianismo dizer que as criaturas venham a tornar-se Deus? Parece difícil. Mas para Eckart, sim! Quando escutar a palavra de Deus, a palavra secreta, oculta, eterna, interna, você se torna o único Filho de Deus. Tornar-se Filho significa adquirir a capacidade de ser Pai. Neste mundo, todos querem viver eternamente, mesmo sabendo que devem morrer. Então como fazem? Casando (...), virão os filhos. Como os filhos até certo ponto têm a mesma qualidade dos pais, ao crescer vão casar e por sua vez terão filhos. Dessa forma algo transmite eternamente. O desejo sexual não é só prazer não, é a necessidade imensa de viver eternamente. Com a religião é diferente, é entrar naquela dimensão absoluta onde não há mais nascimento e morte, é o estado eterno, absoluto. Isto é nirvana, e vivendo-se este estado de nirvana não há mais vida e morte. Religião é isso, e dessa maneira vive-se eternamente. O Pai tornou-se Filho, mas isso não significa que é algo ocorrido entre criaturas. Quando falamos "criatura", há imediatamente duas individualidades "criador" e "criatura", e há ainda o tempo. Quando falamos no tempo, surgem todos os defeitos deste mundo. O que nasce, já está condenado a morrer. Somos mortais. Viver eternamente significa transcender. Quando mestre Eckart usa esta palavra "nascimento", para ele isto significa que Deus nasceu neste mundo sem perder a qualidade de ser Deus que foi capaz de viver a simultaneidade original, transcendental, e a simultaneidade histórica. Jesus Cristo viveu neste mundo por trinta e três anos. Nasceu em Nazaré e morreu. Mas nasceu, viveu e morreu durante esse tempo em uma simultaneidade, ou seja, naquele lugar fundo no chão onde há o absoluto e eterno. Mostrou para nós o corpo físico, sofreu igualmente na cruz, mas alguma coisa mostrou-se transcendente. Dizer que o único filho de Deus nasce dentro da alma limitada significa a possibilidade de nos tornarmos o único filho de Deus. Tornar-se Deus, ou seja, viver neste mundo desde a eternidade. Isto chama-se "satori" ou "iluminação" no Budismo. Isto tem que ocorrer nesta vida. Muitos perguntam, "existe a reencarnação ou não?", ou, "você acredita na reencarnação?". A resposta é "sim e não". De uma certa maneira sim, mas quando há a experiência de nirvana, de silêncio, a experiência do deserto, instala-se a dimensão do eterno e absoluto, então não há mais reencarnação. Jesus Cristo ou esse marido que furou os olhos escolheram este mundo, voltaram para cá, descendo. Em lugar de dizer, "venham até aqui em cima", o que seria difícil para as pessoas, Deus disse, "eu vou", é muito fácil. Deus faz isto quando você está preparado para tal. O que é necessário para a preparação? Apenas que você entre no silêncio, que abandone a si próprio. É necessário abandonar o ego. Abandonar corpo e mente é a experiência fundamental de mestre Dogen. Mestre Eckart também fala, "é preciso abandonar". Abandonar é difícil por quê? Porque há compreensão errada, distorcida. E com isto se sofre. Mestre Eckart diz que abandonar a si próprio não ê sofrimento, é o caminho mais rápido para encontrar com Deus, e então a palavra secreta revela-se. Na verdade, a realidade última deste mundo não está nada escondida. Por isso se diz aqui que Makakasho não escondeu nada. Essa verdade está presente dentro de nós. O paraíso não se dá após a morte, está aqui. Vocês não vêm porque sua visão está contaminada com a ideia de ego, vocês praticam a consciência kármica. É preciso sair disto, arrancando este "olho-de-ego" e colocando o "olho-de-Buda". Os budistas falam que existem cinco tipos de olhos: olho físico, olho de Darma, olho de sabedoria, olho de Buda e olho de ser. Temos apenas um olho, o físico, e este está contaminado. O que está vendo, será que está vendo verdadeiramente? Está vendo apenas a projeção de sua mente, de sua consciência e de seu inconsciente também. Você vê o que quer. Você não vê o que existe e vê o que não existe, e assim, segue projetando suas consciências. Isso é o que chamamos de karma. Você não consegue ver de nenhuma outra maneira, isto é, o karma. Praticando o silêncio, pratica-se a purificação. O silêncio é escuridão, noite. Como o místico espanhol São João da Cruz, na subida do monte Carmelo, fala na noite da consciência, na noite das ideias, na noite da vontade, na noite das lembranças, na noite do espírito, noite da alma, etc., e com isto, subindo montanhas em processo de meditação, passa pelo processo de purificação e chega ao topo da montanha. Na verdade, o topo da montanha está aí, embaixo dos seus pés. Nunca esteve escondido. Nosso problema não é que Deus tenha escondido algo, você é que tem a culpa por sua consciência contaminada que dá nascimento e suporte ao ego. Quando se vivencia a consciência de ego, sente-se, "eu estou aqui e você está ai. Surge imediatamente a dualidade a multiplicidade e a corporalidade. E a questão do físico. Estou tomando este espaço com este corpo, este espaço você não pode tomar, de jeito nenhum. Isso é bom, mas ao mesmo tempo é um limite. Então chega o momento de transcender a corporalidade, a temporariedade e a multiplicidade. Nesse momento ocorrem o deserto, a morte, a unidade - o uno. O rei Salomão encontrou aquela lendária flor, o lírio. Ele tinha enormes riquezas, mas foi justamente dentro de uma flor que encontrou mais riquezas do que todas as suas riquezas reunidas. Por quê? Deus estava ali presente. Deus é um, além dele nada há. Se você entende isto, mesmo dentro de um mosquito você encontrará Deus, e este mosquito, o pernilongo, se tornará, então, mais sublime do que quaisquer dos anjos mais elevados. Nada está escondido, apenas não vemos. Conta-se que um monge estava passando pela frente de um açougue e escutou o diálogo do freguês com o açougueiro. O freguês perguntou, nesta carne é fresca? O açougueiro respondeu, "na minha loja nada há que não seja fresco, de boa qualidade". Quando o monge escutou, "na minha loja é tudo bom, toda a carne é boa", nesse instante atingiu a iluminação. Neste mundo é tudo bom. Nada tem defeito. Por que então tantas dificuldades, tantos problemas entre nós? Porque a mente cria problemas, oculta a verdade. Cria o bem, o bom, o mau. Na verdade, não existe o bem e o mal, isto é apenas uma dualidade, uma discriminação. É preciso penetrar a não-discriminação. Tudo está em seu lugar no mundo do Darma, do absoluto. Nada falta. Nós, no entanto, fazemos a discriminação, "isso é bom, isso é ruim" Cada um constrói seu próprio sofrimento ao fazer essa discriminação. Você mesmo sofre com isso. Neste mundo está tudo perfeito, o problema é você mesmo. Aqui e agora você pode encontrar o absoluto, o eterno. Está tudo perfeito, nada há para se queixar. O fato de muitos japoneses terem os olhos puxados conduz muitos a terem complexos. Uma pessoa diz, "eu sou brasileiro, nasci aqui", outro fala, "eu nasci no Japão, sou japonês, tenho olhos puxados", surge então o complexo, "tenho cabelo preto, liso e por isso quero tingir de outra cor, mas isso me deixa mais feio". Quando você aceita os olhos puxados, com isto pode manifestar a glória de Deus! As coisas todas são diferentes umas das outras, as plantas são diferentes entre si, essas diferenças revelam a glória de Deus. Uns são baixinhos, outros feios, uns ricos, outros pobres, ou aleijados, mancos; isso não importa, cada um revela a glória de Deus. Em um determinado momento, repentinamente tudo muda. Tudo se revela, nada permanece escondido. Então o mestre chamou, "ministro!", e este imediatamente respondeu, "sim, mestre!" O que está acontecendo aqui? Nós temos tudo. Há um outro episódio em que um ministro visitou um outro mestre. O mestre estava assando batata-doce nas brasas e assoprava continuamente para avivar o fogo. O ministro chamou, "mestre, mestre!" O mestre, ocupado com o fogo e a batata-doce, e com o nariz que pingava sem parar, não atendeu imediatamente. O ministro zangou-se e, virando-se começou a sair. O mestre então chamou, "ministro!". Este imediatamente parou e voltou-se. Então o mestre concluiu, "porque você respeita os ouvidos e não respeita os olhos?". O ministro ouviu e, sentindo a força da lição, inclinou-se ao mestre. "O que é o caminho?", perguntou então. O mestre respondeu, "está vendo? Nuvens estão no céu e algo está dentro da garrafa". O segredo não tem nenhum segredo. Um monge Zen procura seu mestre e pede-lhe, "por favor, ensine-me o segredo do Budismo". O mestre responde, "sim, se você quiser; quando todos houverem saído, ninguém mais estiver aqui, procure-me aqui e eu lhe ensinarei". O monge responde, "ah, sim", e mais tarde volta e sussurra, "mestre, agora não há mais ninguém aqui, por favor, ensine-me o segredo!" O mestre então leva o discípulo ao jardim e diz, "está vendo? Esta árvore é muito alta e essa outra é muito baixa, entendeu?". "Árvores altas e árvores baixas", com isso ele mostra tudo! Num canteiro, plantando sementes de ameixeiras, cerejeiras, crisântemos ou o que seja, ele lida com estas variedades de plantas. Plantando bambu, é bambu que crescerá, ninguém tem o poder de trocar isso. É isso aí - nós é que complicamos a nós mesmos querendo classificar as coisas e mudar tudo. Eu estava falando sobre os vários tipos de sermões: o sermão da luz radiante, o sermão da atividade com o corpo e ações (...), mas há outro sermão, o sermão de "um tom" ou "uma voz". Quando Buda falava, todos entendiam de acordo com seu estado de consciência e compreensão. Estas histórias podemos também encontrar dentro da Bíblia. Quando Jesus Cristo apareceu e recebeu o Espírito Santo, havia muitas pessoas provenientes de países de línguas diferentes, mas, ainda assim, quando falou com o Espírito Santo, todos entenderam. Lembram dessa passagem? Como pode ocorrer isso? Um tom, um som, uma voz. Até pedras entendem, até paredes e portas escutam, porque é o Darma. Isto é a "palavra secreta". Quando você vai purificando sua mente e torna-se residente do deserto, alguém passa a falar-lhe internamente. Quem é este alguém? É você mesmo! O primeiro capítulo do Evangelho de São João diz: "no princípio era o Verbo". "No princípio" significa o quê? Princípio do tempo? Não! "No princípio significa "origem", o período antes de Deus haver criado este mundo. Jesus Cristo estava à direita de Deus Pai, ele estava vendo o Pai criar o mundo. Ele mesmo estava lá. Daisetz Suzuki (1870-1966) certa vez dirigiu-se a vários pensadores cristãos, dizendo: "Tenho uma pergunta para vocês, cristãos: quando Deus estava criando o mundo, quem estava vendo isso?" Ninguém respondeu e então ele mesmo ofereceu a resposta: "eu". Sempre é importante esta atitude, "eu, agora, aqui". Deus criou este mundo - criou é passado, mas está ainda criando agora, neste exato momento. Estamos constantemente criando o mundo a cada instante. E esta mesa, existe ou não? Não existe? E o que estamos vendo? Se voltarmos aqui amanhã e a encontrarmos? E se morrermos nesse espaço de tempo? Alguém vai vê-la. Mas, ainda assim, esta mesa está sendo criada por nós, agora, a cada momento, a cada instante. Fitando o espelho, vemos nosso envelhecimento. Alguns ficam tristes por ficarem velhos. Não precisam ficar tristes, não. Mestre Eckart diz, "dez anos antes nosso rosto era liso e bonito; agora, dez anos se passaram e apareceram muitas rugas, e surge então a tristeza". Não é preciso olhar assim, essa não é a realidade! Hoje estamos encontrando um novo rosto e fitando-o como da primeira vez, é uma e experiência totalmente nova. Amanhã será também um novo rosto e assim por diante! A cada vez fitamos uma forma totalmente original, a cada vez nos defrontamos com o absoluto! Criamos constantemente o mundo, neste exato momento fazemos isso. Tudo vai mudando sempre, isto é criar. "Um tom", Sermão de "um tom". O que é este "um tom"? Mestre Eckart diz, "escutei a palavra do Pai e vou falar para vocês", EIe mesmo tem que se tornar a palavra e a palavra mesma tem que falar! Não é a boca que fala a palavra, a palavra se fala. A palavra secreta, a palavra de Deus, ela mesma fala a palavra - aí está a diferença. O sermão geralmente apresenta muitas histórias, ensinamentos - a boca está falando. Às vezes eu minto, apenas falo o que aprendi, mas o importante aqui é tornar-me as palavras. Isto significa que aquilo que estava oculto aparece, mostra-se, revela-se. Esta é a função das palavras. Então em "Gotheit", origem de Deus, o Pai está lá, escondido. Quem vê Deus tem que morrer. O Pai entrou no Filho, veio a este mundo, apareceu com corpo físico, nós pudemos ver. Se o único Filho de Deus nasce dentro de sua alma, você escuta a palavra secreta e torna-se o Filho de Deus. Escutando a palavra, você recebe todas as potencialidades, todas as forças. Você pode falar a palavra, pois não mais será a boca apenas que fala, você mesmo é a palavra e fala. Nesse momento você vive este mundo realmente, isso é a realização de si próprio. Há um capítulo do Shobogenzo que diz assim, "você sabe pintar a primavera? Então pinte!" Como é isso? Pintou. "Deixe-me ver (...). Ah, isto não é primavera, é flor de cerejeira (...)" - no Japão as cerejeiras florescem na primavera. "Isto não é primavera não, isto é flor de primavera, isto é flor de cerejeira, por favor, pinte a primavera!" Como pode a primavera ser pintada? Nova tentativa. "Isto é flor de ameixeira, não é primavera." Como podemos pintá-la? Entendeu? Estamos vivendo este mundo, vivendo condenados à morte, mas muitos vivem como uma fumaça, como uma faísca, como espuma ou como uma sombra, não estão vivendo não. Para viver realmente, tem que ser capaz de pintar a primavera, e não cerejeiras ou ameixeiras. E preciso pintar a primavera mesmo. Como? O mestre toma então o pincel, "ah, já pintei a primavera". "Como? O que é isto? Isto é a primavera? Isto é flor de cerejeira, isto é flor de ameixeira!?" "Sim, quando a primavera está presente, a flor de ameixeira abre, a flor de cerejeira desabrocha, então, dentro da flor de ameixeira e de cerejeira está presente a primavera!" Dentro de você, de seu corpo, sejam altos ou magros, baixos, gordos, inteligentes, ignorantes, aí está a primavera, a presença de Deus, de Buda. Fora daí não existem nem a primavera, nem Deus, nem Buda - nada encontrará. Vazio apenas, vasto nada Quando Madalena visitou o corpo sem vida de Cristo, encontrou dois anjos. "O que está procurando?", perguntaram eles. "Se você está procurando aquele Jesus Cristo que morreu, não vai encontrar." Mestre Eckart interpreta essa passagem assim: "Deus não é encontrado em nenhum lugar; para a parte mais elevada da alma, Deus não está em lugar algum, mas para a parte inferior da alma, Deus está presente em todos os lugares." Então, em sua própria vida, você, encontrando-se consigo mesmo, pode manifestar a glória de Deus, revelar o que é Deus. Com dificuldade, com sofrimento, com defeitos. É com isso mesmo que você pode mostrar. Muitas pessoas estão constantemente vivendo com a mente no futuro ou no passado. Jovens dizem, "ah, sou muito pobre, preciso estudar, é importante que eu me forme como engenheiro, como médico, como advogado, etc., só assim vou ganhar dinheiro e estarei realizado (...)". Isto é ainda o futuro, ainda não chegou. Os velhos dizem, "ah, eu já fiz muito nessa vida, sou muito importante, tenho cargos importantes". Isso tudo é passado. E como estão agora todos, velhos e moços, no exato momento presente, neste exato instante? Como estão todos, fora do referencial do tempo passado e do tempo futuro, fora da temporariedade, como estão frente à eternidade? Nada podem mostrar, não estão realizados, vivem confusões apenas! Plenitude é preencher tudo aqui e agora. Com isso se chega ao estado. Isso depende da mente. A mente é que faz o sofrimento, a alegria, a felicidade. www.sotozencuritiba.org.br. Abraço. Davi

Texto gentilmente cedido pelo Centro de
Estudos Budistas Bodisatva
www.bodisatva.org

 

domingo, 26 de dezembro de 2021

FILME ALEXANDRIA OU ÁGORA.

 

Cinema. FILME ALEXANDRIA OU ÁGORA. O filme Alexandria (2009) é uma belíssima produção cinematográfica. Um cenário reconstituído da cidade de Alexandria no antigo Egito, destacando-se a famosa biblioteca da cidade que foi primeiramente organizada no século I da era cristã. A história passasse no ano 394, sendo que vinte e um anos depois aconteceria a destruição completa da biblioteca e seu museu no ano de 415, a mando do imperador cristão Constantino II. Apesar da controvérsia quanto ao ano do evento e qual o imperador responsável por essa ignóbil ordem o fato real é que os mais 700 mil rolos de papiros e pergaminhos foram queimados e destruídos pelo autoritarismo e dogmatismo desse imperador. Haviam os mais variados conhecimentos como: astronomia, geometria, aritmética, álgebra, trigonometria, história, filosofia, música, poesia, literatura, física, teologia, lógica, metafísica, geografia e outros saberes. A Biblioteca de Alexandria foi durante muitos séculos, mais ou menos de 280 a.C. a 416, uma das maiores e mais importantes bibliotecas do Planeta. Este valoroso centro do conhecimento estava localizado na cidade de Alexandria, ao norte do Egito, a oeste do Rio Nilo, bem nas margens do Mediterrâneo. Afirma-se que ela foi criada em princípios do século III a.C., em plena vigência do reinado de Ptolomeu II Filadelfo (309 AC 346) do Egito, logo depois de seu genitor ter se tornado famoso pela construção do Museum – o Templo das Musas - junto ao qual se localizava a Biblioteca. Sua estruturação, a princípio, é geralmente creditada ao filósofo Demétrio de Falero (350 AC 280), então exilado nesta região; muitos afirmam ser dele a concepção deste espaço cultural, depois de convencer o rei a transformar Alexandria em concorrente da glória cultural de Atenas. Durante sete séculos esta Biblioteca abrigou o maior patrimônio cultural e científico de toda a Antiguidade. Ela não apenas continha um imenso acervo de papiros e pergaminhos, mas também incentivava o espírito investigativo de cientistas e literatos, transmitindo à Humanidade uma herança cultural incalculável. Ao que tudo indica, ela conservou em sua estrutura interna mais de 400.000 rolos de papiro, mas esta cifra pode, em alguns momentos, ter atingido o patamar de um milhão de obras. Sua devastação foi realizada gradualmente, até ela ser definitivamente consumida pelo fogo em um incêndio de origem acidental, atribuído aos árabes durante toda a era medieval. Há várias histórias sobre prováveis incêndios anteriores ao que destruiu completamente a Biblioteca de Alexandria. Uma delas narra que Júlio César (100 AC 44), passando por Alexandria ao perseguir seu rival Cneu Pompeu (106 AC 48), membro do Triunvirato integrado também por César e Licínio Crasso (115 AC 56), não só foi presenteado com a cabeça de seu inimigo, mas também com o amor de Cleópatra (69 AC 30), irmã de Ptolomeu XII. Envolvido pela paixão, ele se apossa do trono por meio da força, entrega-o à Rainha e aniquila todos os tutores do antigo rei, com exceção de um, que foge das garras de César. Determinado a não deixar sobreviventes, ele manda incendiar todos os navios, incluindo os seus, para que ele não pudesse escapar pelo mar. O fogo teria se ampliado e atingido uma fração da Biblioteca. Esta ancestral Biblioteca tinha a missão de conservar e disseminar valores da cultura de Alexandria. Muitas das obras que circulavam em Atenas foram para lá enviadas; em seu âmbito ela abrigava matemáticos como Euclides de Alexandria (330 AC 260), além de famosos intelectuais e filósofos, célebres nomes do passado. Lá também foram elaboradas significativas obras sobre geometria, teologia , filosofia, lógica, música, poesia, trigonometriaastronomia, e igualmente sobre idiomas, literatura e medicina. Nesta mesma instituição eram produzidos e comercializados papiros. Afirma-se que os 72 sábios judeus que verteram as Sagradas Escrituras Hebraicas para o grego, produzindo assim a renomada Septuaginta, reuniram-se justamente na Biblioteca de Alexandria para realizar este intento. A própria Cleópatra (69 AC 30) era apaixonada por este espaço, sempre à procura de novas histórias, sozinha ou acompanhada por César, outro amante da cultura. Este centro irradiador foi, com certeza, o mais importante ponto de referência cultural e científico da Antiguidade. Foi edificada recentemente uma nova Biblioteca, inaugurada em 2003 nos arredores da sua antecessora. Ela também tem a ambição de se tornar um dos maiores e mais importantes polos culturais dos nossos tempos. Sua ala principal, batizada como Bibliotheca Alexandrina, soma-se a outros quatro conjuntos especializados, laboratórios, um planetário, um museu científico e outro caligráfico, além de uma sala para congressos e exposições. A Septuaginta, em latim, abreviada LXX, é uma tradução em língua grega da Bíblia Hebraica, o Antigo Testamento, que a tradição diz ter sido feita no Egito por 70 sábios, cerca de dois séculos antes de Cristo, exatamente em Alexandria (no recinto onde funcionava a biblioteca da cidade), onde existia uma significativa comunidade hebraica. Sobre a origem dessa tradução, existe uma carta escrita por Aristéia a Filocrates onde é narrada de forma legendária, como nasceu essa tradução. Conforme essa carta, o rei egípcio Ptolomeu II (309 AC 246) pediu às autoridades religiosas do templo de Jerusalém que fizessem uma tradução em grego do Pentateuco para a recém criada biblioteca de Alexandria. O sumo sacerdote Eleazário nomeou 72 eruditos judeus, 6 escribas por tribo de Israel (outra tradição diz que eram 70), que foram até o Egito e na Ilha de Faro realizaram a tradução em 72 dias, cada um fazendo a própria tradução dos 5 primeiros livros da Bíblia. No final dos trabalhos se reuniram e, comparando o trabalho feito, viram que todas as traduções eram idênticas. Essa história talvez seja apenas uma legenda. De fato alguns dizem que os tradutores na verdade eram 5 e invés 70 eram os membros do tribunal (Sinédrio) que aprovou a tradução feita. De qualquer forma, mesmo sendo difícil comprovar a verdade histórica dessa narração, é claro que é uma tradução feita no Egito e era tida como uma boa versão também pelas autoridades de Jerusalém. Provavelmente a obra foi feita para que a comunidade judaica do Egito, que falava grego, pudesse ter um texto próprio para usar durante a sua liturgia. Sucessivamente toda a Bíblia Hebraica foi traduzida. Com certeza o Pentateuco e os Salmos foram traduzidos em Alexandria, mas quanto os demais livros não é possível saber com exatidão. Existe hipótese, por exemplo, que o Cântico dos Cântico foi traduzido em Israel. Precisa dizer que não foi feita uma obra completa em grego, como se faz hoje com os nossos livros, mas nasceu aos poucos e para completar-se provavelmente levou 200 anos. Por isso hoje não temos fisicamente um livro manuscrito elaborado antes de Cristo que seja a Setenta. Os manuscritos relativamente completos que reúnem praticamente toda a Bíblia do Antigo Testamento em grego são do quarto e quinto século depois de Cristo, respectivamente o Codex Vaticanus e o Codex Sinaiticus. Existem porém fragmentos de manuscritos que são de antes de Cristo: do II século temos fragmentos de Levíticos e Deuteronômio (Rahlfs nn. 801,819 e 957); do I século antes de Cristo chegaram até nós fragmentos de Gênesis, Levítico, Números, Deuteronômio e dos profetas menores (Rahlfs nn. 802, 803, 805, 848, 942 e 943). A importância para o texto do Antigo Testamento desses manuscritos é evidente, sobretudo do Codex Vaticanus e do Codex Sianiticus. De fato o manuscrito completo do Antigo Testamento em Hebraico, a língua original, mais antigo que temos é apenas do ano 1008, o Codex Lenigadensis. No início da era cristã os judeus deixaram de usar a tradução grega da Bíblia. Para os cristãos, invés, a LXX se tornou a versão principal. Mais tarde, quando São Jerônimo (347-420) traduziu a Bíblia para o latim, a Vulgata, usou sobretudo a LXX. Tinha em mãos também o hebraico, mas servia apenas como um instrumento para confronto. Graças à versão LXX surgiram as diferenças entre as Bíblias Católicas e a Protestante. Isto por que no texto grego do qual estamos falando existem livros que não aparecem na bíblia hebraica. Como já dissemos, a Bíblia dos Setenta foi traduzida antes de Cristo; o cânon, ou seja, a lista oficial dos livros, da Bíblia Hebraica, invés, foi definido somente por volta do ano 90 depois de Cristo. Os livros que estão na Bíblia grega dos LXX e que não entraram naquela hebraica são: Judite, Tobias, Primeiro e Segundo Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc. Além disso, os capítulos 13 e 14 de Daniel. Embora não tenham sido considerados pelos judeus como livros inspirados, a Igreja os reconheceu como tal e foram incluídos por São Jerônimo na sua tradução em latim mencionada acima. A versão dos Setenta, todavia, contém também livros que não entraram nem no cânon da igreja nem naquele dos judeus. São eles: primeiro livro de Esdras, terceiro e quarto livro dos Macabeus, o salmo 151, Odes e Oração de Manassés e Salmos de Salomão. Martinho Lutero (1483-1546), durante o período da reforma, decidiu adotar o cânon hebraico. Desse modo ele excluiu da sua Bíblia os livros acima citados e hoje as bíblias protestantes não têm tais livros.  Após essa introdução entremos propriamente na pelica. O filme do diretor chileno Alejandro Amenábar (1971-    ) foi ousado ao colocar uma mulher como protagonista num contexto social religioso onde a masculinidade é prevalecente e a mulher sinonimo de inferioridade. Vários aspectos foram abordados no enredo, por sinal muito bem documentados histórica e filosoficamente. Assim temos como temas da trama. 1. A filósofa Hipátia e suas pesquisas sobre o movimento da terra. 2. A Ágora (academia) onde se ensinava os saberes filosóficos e científicos daquela época. 3. O relacionamento do escravo Davos e o discípulo Orestes com Hipátia. 4. O Sistema Ptolomaico dos corpos celestes. 5. As ideias de Aristarco de Samos sobre as órbitas celeste. 6. Intolerância religiosa (cristãos, judeus e pagãos) e suas consequências. 7. O sistema geocêntrico e o heliocêntrico de mundo. 8. O primeiro axioma de Euclides. 9. Acusação de ateísmo e bruxaria contra a filósofa Hipátia. 9. Os monges (do deserto de Nítria) parabolanos. 10. A execução da filósofa Hipátia. 1. A filósofa Hipátia centrada em seus estudos e absorta em suas pesquisas, vocacionada para o ensino procurava desperta a mente de seus discípulos para pensarem por si, criando seus próprios modelos de conhecimentos e vivenciando experiências baseadas numa realidade que foge ao senso comum. Ela valorizava a convivência humana procurando despertar novas ideias, questionando os modelos milenares que eram vistos como verdades absolutas. Não se conformava com as postulações de Aristóteles (484 AC 322) e Platão (428 AC 347) que insinuavam que a terra era um corpo celeste imóvel. Onde os seus astros (planetas, luas e cometas) giravam em torno dela. Apesar de não singularizar uma fé (crença) era de nobre personalidade. Um firme senso de justiça, moralidade compatível com seu caráter. Destemida e convicta de suas opiniões, não tendo medo de expressar seus pontos de vistas. O banho em praça pública (aparece nua de costas) era costume entre os gregos não sendo visto como licencioso ou pecaminoso em suas tradições "pagãs".  Tanto que já havia um escravo para cobrir sua nudez. 2. Ágora era um ambiente de livre pensamento e expressão onde todos poderiam expor suas opiniões. Tanto que o escravo Davos fez considerações sobre os movimentos dos corpos celestes em suas órbitas, criando inclusive um aparelho onde se percebia os supostos movimentos dos astros incluindo a terra, que naquela época acreditava-se ser imóvel, parada no espaço. Orestes observou que um corpo lançado numa plataforma em movimentos cairá  para trás fazendo uma curva (parábola). Contrário ao demonstrado por Hipátia na Ágora que quando lançado de uma superfície fixa cai de forma retilínea. 3. Davos (o escravo) acaba se convertendo ao cristianismo e um dos fatos que o motivou foi o "milagre" feito por Tomaz, (pregador cristão) que andando pelas chamas não se queimava. Davos após tornar-se adepto mudou seu comportamos e caráter exercendo atitudes psicóticas. Orestes corteja a filósofa cantando-lhe uma música com uma espécie de gaita escocesa no festival "pagão". Hipátia "devolve" a gentileza na ágora com um lenço manchado com seu ciclo menstrual dando a entender que não assume compromisso relacional definitivo. Tomaz o influente pregador cristão, por seus modos auto sugestivos cativada as audiências que o assistiam. Pois mesmo sendo um monge de pouco instrução teológica, exercia um messianismo entre o povo. Foi responsabilizado por incitar os cristãos contra os pagãos, gritando palavras de ordens contra seus deuses, menosprezando-os e rebaixando-os ao ridículo. Isso provocou um acirrado ódio dos pagãos contra os cristãos, resultando em conflitos armados e mortandade entre os dois grupos. Impressionante que uma pessoa tão alucinada acusada de matar pagãos e judeus a pedradas foi considerada santa (São Tomázio) e beatificada pela liderança eclesiástica da época. 4. O Sistema que Nicolau Ptolomeu (60-168) desenvolveu concebia o universo com os astros celestes girando em torno da terra, que era um corpo imóvel no espaço sideral. Nesse contexto a terra ainda não era considerada redonda e haviam dúvidas quanto a suas bordas e extremidades, pois pensava-se que havia o perigo das pessoa caírem no espaço. Esse era o sistema adotado pela tradição judaico cristã. Orestes foi o prefeito augusto da diocese do Egito. Em 415, durante seu governo, teve divergências com o jovem bispo de AlexandriaCirilo (375-444), que tinha sido apontado para suceder o Patriarcado de Alexandria depois da morte do patriarca Teófilo (385-412), seu tio. Orestes resistiu firmemente as tentativas de Cirilo de intervir em assuntos seculares. Em uma ocasião, Cirelo enviou o grammaticus Hierax para descobrir secretamente o conteúdo de um edito que Orestes estava para promulgar nos shows de mímica que atraíam grandes multidões. Quando os judeus, com quem Cirilo tinha sido desentendido anteriormente, descobriram a presença de Hierax, se revoltaram, queixando-se que a presença de Hierax tinha como objetivo provocá-los. Então Orestes torturou Hierax em público em um teatro. Este ato teve dois objetivos: o primeiro foi o de conter as revoltas e o outro impor a autoridade de Orestes sobre Cirilo. De acordo com fontes cristãs, os judeus de Alexandria tramaram contra os cristãos e assassinaram muitos deles. Cirilo reagiu e expulsou todos os judeus, ou os assassinos (segundo algumas fontes), exercendo um poder que pertenceria, de fato a Orestes. Orestes se mostrava impotente, mas mesmo assim rejeitou o gesto de Cirilo que lhe ofereceu uma Bíblia, o que significaria que a autoridade religiosa de Cirilo exigiria a aquiescência de Orestes. Esta recusa quase custou a vida de Orestes. Monges do deserto da Nítria instigaram, misturados à população de Alexandria, protestos contra Orestes. A violência desses monges já tinha sido utilizada quinze anos antes por Teófilo contra os chamados "Grandes Irmãos"; além disto, diz-se que Cirilo passou cinco anos em formação ascética junto deles. Os monges atacaram Orestes e o acusaram de ser um pagão; o prefeito rejeitou as acusações dizendo que tinha sido batizado pelo arcebispo de Constantinopla. Contudo, os monges não ficaram satisfeitos e um deles, Amônio, atirou uma pedra que feriu Orestes na cabeça, cobrindo-o de sangue. A guarda de Orestes, temendo ser apedrejada, fugiu deixando o prefeito sozinho. O povo de Alexandria, contudo, veio em sua ajuda, capturou Amônio e fez os monges debandarem. Amônio foi torturado em praça pública e executado. O prefeito escreveu ao imperador Teodósio II (401-450), relatando as ocorrências, mas Cirilo fez o mesmo contando a sua versão dos fatos. Além disto, o bispo havia tomado o corpo de Amônio, levando-o a uma igreja e mandando listá-lo entre os santos mártires com o nome de Taumásio, que, em grego clássico, significa "maravilhoso", "admirável". Segundo Sócrates Escolástico (380-430), este ato foi malvisto mesmo entre os cristãos já que Amônio teria morrido não por não renunciar a fé, mas sim por um crime comum. Cirilo, ciente disso, deixou o episódio cair no esquecimento, afirma Sócrates Escolastico. Orestes contava com o apoio político de Hipátia, uma filósofa, professora e cientista de considerável sabedoria, virtuosidade e autoridade moral na cidade de Alexandria. De fato, muitos estudantes de ricas e influentes famílias se dirigiam a Alexandria com o propósito de estudar com Hipátia e muitos dos seus discípulos, mais tarde alcançavam postos de destaque no governo e na Igreja. Muitos cristãos acreditavam que a influência de Hipátia fez Orestes rejeitar as ofertas de reconciliação oferecidas por Cirilo. Historiadores modernos acreditam que Orestes cultivou seu relacionamento com Hipátia para fortalecer seu vínculo com a comunidade pagã de Alexandria, da mesma forma que fez com os judeus, de modo a lidar com maior eficácia com a difícil vida política da capital egípcia. As disputas entre Orestes e Cirilo resultaram em um fim trágico para Hipátia: uma multidão cristã tomou a filósofa de sua carruagem e brutalmente a assassinou, cortando seu corpo em pedaços e queimando os pedaços fora dos muros da cidade. Este assassinato político teria eliminado um importante e influente suporte para o governo do prefeito, fazendo Orestes desistir de sua disputa com Cirilo e levando-o a deixar definitivamente a cidade de Alexandria. Orestes é retratado em Ki Longfellow's Flow Down Like Silver, Hypatia of Alexandria de uma forma altamente imaginativa. No filme de 2009 Alexandria, de Alejandro Amenábar, Orestes é interpretado por Oscar Isaac. Na versão dessa obra, Hipátia é assassinada pelos Parabolanos, espécie de guarda pessoal do bispo e não pelos monges Nitrianos. O sistema geocêntrico foi adotado pela tradição judaico cristã até quando Galileu Galilei (1564-1642) postulou o sistema heliocêntrico, o sol é que era o centro onde a terra, planetas, estrelas, cometas e demais astros giravam em torno dele. Ele criou uma grande confusão com a teologia crista, e por pouco não sofreu um processo formal no Tribunal da Santa Inquisição tendo que se retratar em carta pública. As Sagradas Escrituras tem um argumento em Josué 10:12 que diz: "Então Josué falou ao Senhor, no dia em que o Senhor deu aos amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse na presença dos Israelitas: sol detém-te em Gibeom, e tu, lua, no vale de Aijalom. E o sol se deteve, e a lua parou até que o povo se vingou dos seus inimigos". Assim esse argumento corroborava no sentido de pensar a terra como um astro imóvel (parado) e prevalecente no centro do universo. 5. Aristarco de Samos (310 AC 230) contrariando as ideias dos mestres Platão e Aristóteles postulava que havia a possibilidade de a terra ter movimentos próprios e girar em torno do sol junto com os demais astros, mas esse filósofo foi considerado louco por seus argumentos e abstrações. 6. O filme relata a convivência nada amistosa entre cristãos, judeus e pagão, sendo que cada qual queria ter a primazia dos seus cultos e tradições nos templos em Alexandria. Criando assim um clima de animosidade e lutas que iam ao extremo de mortes e exclusões dos lugares sagrados, que a princípio era divido por todos os grupos religiosos.  7.O Sistema Geocentrico (terra no centro do mundo) e o heliocêntrico (sol no centro do mundo) se opunha em lutas ideológica e políticas. O cristianismo com seu poder do império procurava sub julgar as demais religiões afirmando a terra como o centro do mundo. Mas cientistas e investigadores como a filósofa Hipátia procuravam pela matemática, e abstrações lógicas formular novas bases de entendimento do universo. Paradigma que traria uma visão diferente da tradicionalmente aceita, que mudariam a forma de pensar e conceber o mundo saindo da centralidade humana teológica para a diversidade cósmica de saberes e  filosofias religiosas dissemelnantes. 8. O primeiro axioma de Euclides: Duas coisas iguais a uma terceira, são iguais entre si. Se parcelas iguais forem adicionadas a quantias iguais, os resultados continuarão sendo iguais. Se quantias iguais forem subtraídas das mesmas quantias, os restos serão iguais. O todo é maior que a parte.  Esse argumento euclidiano foi usado por um dos discípulos da filósofa que se tornou autoridade eclesiástica, tentando convertê-la ao cristianismo. 9. Hipátia por sua neutralidade ideológica, suas pesquisas astronômicas tentando provar o sistema heliocêntrico e os movimentos da terra realizados no seu percurso pelo próprio eixo em rotação e translação. Descoberta do movimento elíptico dos planetas foi acusada de bruxaria, ateísmo e prostituição. Sendo executada nua a pedradas por monges (do deserto) parabolanos, antes para mitigar o sofrimento extremo foi asfixiada pelo escravo Davos. Uma cena constrangedora que provoca revolta e tristeza em quem assiste o filme. Uma das mais relevantes falas ao meu ver do filme, foi quando Hipátia responde para Oreste no momento em que ele insiste em fazê-la dobrar-se a fé cristã recebendo o batismo como sinal de ingresso oficial na nova (cristianismo) religião ascendente: você não questiona a sua crença. Achei importante acrescentar os fatos históricos com relação a biblioteca de Alexandria especialmente a Tradução da Septuaginta nesse recinto do conhecimento universal, bem como o contexto político e religioso dos fatos. Beijo. Davi.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

LIBERDADE RELIGIOSA - CAMINHO PARA A PAZ

 

Catolicismo. www.w2.vatican.va. Mensagem de Sua Santidade Bento XVI para a Celebração do Dia Mundial da Paz. 01 de janeiro de 2011. LIBERDADE RELIGIOSA – CAMINHO PARA A PAZ. 1. NO INÍCIO DE UM ANO NOVO, desejo fazer chegar a todos e cada um os meus votos: votos de serenidade e prosperidade, mas sobretudo votos de paz. Infelizmente também o ano que encerra as portas esteve marcado pela perseguição, pela discriminação, por terríveis atos de violência e de intolerância religiosa. Penso, em particular, na amada terra do Iraque, que, no seu caminho para a desejada estabilidade e reconciliação, continua a ser cenário de violências e atentados. Recordo as recentes tribulações da comunidade cristã, e de modo especial o vil ataque contra a catedral siro-católica de «Nossa Senhora do Perpétuo Socorro» em Bagdad, onde, no passado dia 31 de outubro, foram assassinados dois sacerdotes e mais de cinquenta fiéis, quando se encontravam reunidos para a celebração da Santa Missa. A este ataque seguiram-se outros nos dias sucessivos, inclusive contra casas privadas, gerando medo na comunidade cristã e o desejo, por parte de muitos dos seus membros, de emigrar à procura de melhores condições de vida. Manifesto-lhes a minha solidariedade e a da Igreja inteira, sentimento que ainda recentemente teve uma concreta expressão na Assembleia Especial para o Médio Oriente do Sínodo dos Bispos, a qual encorajou as comunidades católicas no Iraque e em todo o Médio Oriente a viverem a comunhão e continuarem a oferecer um decidido testemunho de fé naquelas terras. Agradeço vivamente aos governos que se esforçam por aliviar os sofrimentos destes irmãos em humanidade e convido os católicos a orarem pelos seus irmãos na fé que padecem violências e intolerâncias e a serem solidários com eles. Neste contexto, achei particularmente oportuno partilhar com todos vós algumas reflexões sobre a liberdade religiosa, caminho para a paz. De facto, é doloroso constatar que, em algumas regiões do mundo, não é possível professar e exprimir livremente a própria religião sem pôr em risco a vida e a liberdade pessoal. Noutras regiões, há formas mais silenciosas e sofisticadas de preconceito e oposição contra os crentes e os símbolos religiosos. Os cristãos são, atualmente, o grupo religioso que padece o maior número de perseguições devido à própria fé. Muitos suportam diariamente ofensas e vivem frequentemente em sobressalto por causa da sua procura da verdade, da sua fé em Jesus Cristo e do seu apelo sincero para que seja reconhecida a liberdade religiosa. Não se pode aceitar nada disto, porque constitui uma ofensa a Deus e à dignidade humana; além disso, é uma ameaça à segurança e à paz e impede a realização de um desenvolvimento humano autêntico e integral.[1] De fato, na liberdade religiosa exprime-se a especificidade da pessoa humana, que, por ela, pode orientar a própria vida pessoal e social para Deus, cuja luz se compreendem, plenamente a identidade, o sentido e o fim da pessoa. Negar ou limitar arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana; obscurecer a função pública da religião significa gerar uma sociedade injusta, porque esta seria desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa; isto significa tornar impossível a afirmação de uma paz autêntica e duradoura para toda a família humana. Por isso, exorto os homens e mulheres de boa vontade a renovarem o seu compromisso pela construção de um mundo onde todos sejam livres para professar a sua própria religião ou a sua fé e viver o seu amor a Deus com todo o coração, toda a alma e toda a mente (cf. Mateus 22, 37). Este é o sentimento que inspira e guia a Mensagem para o XLIV Dia Mundial da Paz, dedicada ao tema: Liberdade religiosa, caminho para a pazDireito sagrado à vida e a uma vida espiritual.2. O direito à liberdade religiosa está radicado na própria dignidade da pessoa humana,[2] cuja natureza transcendente não deve ser ignorada ou negligenciada. Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança (cf. Gênesis 1, 27). Por isso, toda a pessoa é titular do direito sagrado a uma vida íntegra, mesmo do ponto de vista espiritual. Sem o reconhecimento do próprio ser espiritual, sem a abertura ao transcendente, a pessoa humana retrai-se sobre si mesma, não consegue encontrar resposta para as perguntas do seu coração sobre o sentido da vida e dotar-se de valores e princípios éticos duradouros, nem consegue sequer experimentar uma liberdade autêntica e desenvolver uma sociedade justa.[3] A Sagrada Escritura, em sintonia com a nossa própria experiência, revela o valor profundo da dignidade humana: «Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, a lua e as estrelas que lá colocastes, que é o homem para que Vos lembreis dele, o filho do homem para dele Vos ocupardes? Fizestes dele quase um ser divino, de honra e glória o coroastes; destes-lhe poder sobre a obra das vossas mãos, tudo submetestes a seus pés» (Salmos 8, 4-7). Perante a sublime realidade da natureza humana, podemos experimentar a mesma admiração expressa pelo salmista. Esta manifesta-se como abertura ao Mistério, como capacidade de interrogar-se profundamente sobre si mesmo e sobre a origem do universo, como íntima ressonância do Amor supremo de Deus, princípio e fim de todas as coisas, de cada pessoa e dos povos.[4] A dignidade transcendente da pessoa é um valor essencial da sabedoria judaico-cristã, mas, graças à razão, pode ser reconhecida por todos. Esta dignidade, entendida como capacidade de transcender a própria materialidade e buscar a verdade, há de ser reconhecida como um bem universal, indispensável na construção duma sociedade orientada para a realização e a plenitude do homem. O respeito de elementos essenciais da dignidade do homem, tais como o direito à vida e o direito à liberdade religiosa, é uma condição da legitimidade moral de toda a norma social e jurídica. Liberdade religiosa e respeito recíproco. 3. A liberdade religiosa está na origem da liberdade moral. Com efeito, a abertura à verdade e ao bem, a abertura a Deus, radicada na natureza humana, confere plena dignidade a cada um dos seres humanos e é garante do respeito pleno e recíproco entre as pessoas. Por conseguinte, a liberdade religiosa deve ser entendida não só como imunidade da coação, mas também, e antes ainda, como capacidade de organizar as próprias opções segundo a verdade. Existe uma ligação indivisível entre liberdade e respeito; de facto, «cada homem e cada grupo social estão moralmente obrigados, no exercício dos próprios direitos, a ter em conta os direitos alheios e os seus próprios deveres para com os outros e o bem comum».[5] Uma liberdade hostil ou indiferente a Deus acaba por se negar a si mesma e não garante o pleno respeito do outro. Uma vontade, que se crê radicalmente incapaz de procurar a verdade e o bem, não tem outras razões objectivas nem outros motivos para agir senão os impostos pelos seus interesses momentâneos e contingentes, não tem uma «identidade» a preservar e construir através de opções verdadeiramente livres e conscientes. Mas assim não pode reclamar o respeito por parte de outras «vontades», também estas desligadas do próprio ser mais profundo e capazes, por conseguinte, de fazer valer outras «razões» ou mesmo nenhuma «razão». A ilusão de encontrar no relativismo moral a chave para uma pacífica convivência é, na realidade, a origem da divisão e da negação da dignidade dos seres humanos. Por isso se compreende a necessidade de reconhecer uma dupla dimensão na unidade da pessoa humana: a religiosa e a social. A este respeito, é inconcebível que os crentes «tenham de suprimir uma parte de si mesmos – a sua fé – para serem cidadãos ativos; nunca deveria ser necessário renegar a Deus, para se poder gozar dos próprios direitos».[6] A família, escola de liberdade e de paz. 4. Se a liberdade religiosa é caminho para a paz, a educação religiosa é estrada privilegiada para habilitar as novas gerações a reconhecerem no outro o seu próprio irmão e a sua própria irmã, com quem caminhar juntos e colaborar para que todos se sintam membros vivos de uma mesma família humana, da qual ninguém deve ser excluído. A família fundada sobre o matrimónio, expressão de união íntima e de complementaridade entre um homem e uma mulher, insere-se neste contexto como a primeira escola de formação e de crescimento social, cultural, moral e espiritual dos filhos, que deveriam encontrar sempre no pai e na mãe as primeiras testemunhas de uma vida orientada para a busca da verdade e para o amor de Deus. Os próprios pais deveriam ser sempre livres para transmitir, sem constrições e responsavelmente, o próprio património de fé, de valores e de cultura aos filhos. A família, primeira célula da sociedade humana, permanece o âmbito primário de formação para relações harmoniosas a todos os níveis de convivência humana, nacional e internacional. Esta é a estrada que se há-de sapientemente percorrer para a construção de um tecido social robusto e solidário, para preparar os jovens à assunção das próprias responsabilidades na vida, numa sociedade livre, num espírito de compreensão e de paz. Um património comum. 5. Poder-se-ia dizer que, entre os direitos e as liberdades fundamentais radicados na dignidade da pessoa, a liberdade religiosa goza de um estatuto especial. Quando se reconhece a liberdade religiosa, a dignidade da pessoa humana é respeitada na sua raiz e reforça-se a índole e as instituições dos povos. Pelo contrário, quando a liberdade religiosa é negada, quando se tenta impedir de professar a própria religião ou a própria fé e de viver de acordo com elas, ofende-se a dignidade humana e, simultaneamente, acabam ameaçadas a justiça e a paz, que se apoiam sobre a reta ordem social construída à luz da Suma Verdade e do Sumo Bem. Neste sentido, a liberdade religiosa é também uma aquisição de civilização política e jurídica. Trata-se de um bem essencial: toda a pessoa deve poder exercer livremente o direito de professar e manifestar, individual ou comunitariamente, a própria religião ou a própria fé, tanto em público como privadamente, no ensino, nos costumes, nas publicações, no culto e na observância dos ritos. Não deveria encontrar obstáculos, se quisesse eventualmente aderir a outra religião ou não professar religião alguma. Neste âmbito, revela-se emblemático e é uma referência essencial para os Estados o ordenamento internacional, enquanto não consente alguma derrogação da liberdade religiosa, salvo a legítima exigência da justa ordem pública.[7] Deste modo, o ordenamento internacional reconhece aos direitos de natureza religiosa o mesmo status do direito à vida e à liberdade pessoal, comprovando a sua pertença ao núcleo essencial dos direitos do homem, àqueles direitos universais e naturais que a lei humana não pode jamais negar. A liberdade religiosa não é património exclusivo dos crentes, mas da família inteira dos povos da terra. É elemento imprescindível de um Estado de direito; não pode ser negada, sem ao mesmo tempo minar todos os direitos e as liberdades fundamentais, pois é a sua síntese e ápice. É «o papel de tornassol para verificar o respeito de todos os outros direitos humanos».[8] Ao mesmo tempo que favorece o exercício das faculdades humanas mais específicas, cria as premissas necessárias para a realização de um desenvolvimento integral, que diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em cada uma das suas dimensões.[9] A dimensão pública da religião.  6. Embora movendo-se a partir da esfera pessoal, a liberdade religiosa – como qualquer outra liberdade – realiza-se na relação com os outros. Uma liberdade sem relação não é liberdade perfeita. Também a liberdade religiosa não se esgota na dimensão individual, mas realiza-se na própria comunidade e na sociedade, coerentemente com o ser relacional da pessoa e com a natureza pública da religião. O relacionamento é uma componente decisiva da liberdade religiosa, que impele as comunidades dos crentes a praticarem a solidariedade em prol do bem comum. Cada pessoa permanece única e irrepetível e, ao mesmo tempo, completa-se e realiza-se plenamente nesta dimensão comunitária. Inegável é a contribuição que as religiões prestam à sociedade. São numerosas as instituições caritativas e culturais que atestam o papel construtivo dos crentes na vida social. Ainda mais importante é a contribuição ética da religião no âmbito político. Tal contribuição não deveria ser marginalizada ou proibida, mas vista como válida ajuda para a promoção do bem comum. Nesta perspectiva, é preciso mencionar a dimensão religiosa da cultura, tecida através dos séculos graças às contribuições sociais e sobretudo éticas da religião. Tal dimensão não constitui de modo algum uma discriminação daqueles que não partilham a sua crença, mas antes reforça a coesão social, a integração e a solidariedade. Liberdade religiosa, força de liberdade e de civilização: os perigos da sua instrumentalização. 7. A instrumentalização da liberdade religiosa para mascarar interesses ocultos, como por exemplo a subversão da ordem constituída, a apropriação de recursos ou a manutenção do poder por parte de um grupo, pode provocar danos enormes às sociedades. O fanatismo, o fundamentalismo, as práticas contrárias à dignidade humana não se podem jamais justificar, e menos ainda o podem ser se realizadas em nome da religião. A profissão de uma religião não pode ser instrumentalizada, nem imposta pela força. Por isso, é necessário que os Estados e as várias comunidades humanas nunca se esqueçam que a liberdade religiosa é condição para a busca da verdade e que a verdade não se impõe pela violência mas pela «força da própria verdade».[10] Neste sentido, a religião é uma força positiva e propulsora na construção da sociedade civil e política. Como se pode negar a contribuição das grandes religiões do mundo para o desenvolvimento da civilização? A busca sincera de Deus levou a um respeito maior da dignidade do homem. As comunidades cristãs, com o seu património de valores e princípios, contribuíram imenso para a tomada de consciência das pessoas e dos povos a respeito da sua própria identidade e dignidade, bem como para a conquista de instituições democráticas e para a afirmação dos direitos do homem e seus correlativos deveres. Também hoje, numa sociedade cada vez mais globalizada, os cristãos são chamados – não só através de um responsável empenhamento civil, económico e político, mas também com o testemunho da própria caridade e fé – a oferecer a sua preciosa contribuição para o árduo e exaltante compromisso em prol da justiça, do desenvolvimento humano integral e do reto ordenamento das realidades humanas. A exclusão da religião da vida pública subtrai a está um espaço vital que abre para a transcendência. Sem esta experiência primária, revela-se uma tarefa árdua orientar as sociedades para princípios éticos universais e torna-se difícil estabelecer ordenamentos nacionais e internacionais nos quais os direitos e as liberdades fundamentais possam ser plenamente reconhecidos e realizados, como se propõem os objetivos – infelizmente ainda menosprezados ou contestados – da Declaração Universal dos direitos do homem de 1948. Uma questão de justiça e de civilização: o fundamentalismo e a hostilidade contra os crentes prejudicam a laicidade positiva dos Estados. 8. A mesma determinação, com que são condenadas todas as formas de fanatismo e de fundamentalismo religioso, deve animar também a oposição a todas as formas de hostilidade contra a religião, que limitam o papel público dos crentes na vida civil e política. Não se pode esquecer que o fundamentalismo religioso e o laicismo são formas reverberadas e extremas de rejeição do legítimo pluralismo e do princípio de laicidade. De facto, ambas absolutizam uma visão redutiva e parcial da pessoa humana, favorecendo formas, no primeiro caso, de integralismo religioso e, no segundo, de racionalismo. A sociedade, que quer impor ou, ao contrário, negar a religião por meio da violência, é injusta para com a pessoa e para com Deus, mas também para consigo mesma. Deus chama a Si a humanidade através de um desígnio de amor, o qual, ao mesmo tempo que implica a pessoa inteira na sua dimensão natural e espiritual, exige que lhe corresponda em termos de liberdade e de responsabilidade, com todo o coração e com todo o próprio ser, individual e comunitário. Sendo assim, também a sociedade, enquanto expressão da pessoa e do conjunto das suas dimensões constitutivas, deve viver e organizar-se de modo a favorecer a sua abertura à transcendência. Por isso mesmo, as leis e as instituições duma sociedade não podem ser configuradas ignorando a dimensão religiosa dos cidadãos ou de modo que prescindam completamente da mesma; mas devem ser comensuradas – através da obra democrática de cidadãos conscientes da sua alta vocação – ao ser da pessoa, para o poderem favorecer na sua dimensão religiosa. Não sendo está uma criação do Estado, não pode ser manipulada, antes deve contar com o seu reconhecimento e respeito. O ordenamento jurídico a todos os níveis, nacional e internacional, quando consente ou tolera o fanatismo religioso ou antirreligioso, falta à sua própria missão, que consiste em tutelar e promover a justiça e o direito de cada um. Tais realidades não podem ser deixadas à mercê do arbítrio do legislador ou da maioria, porque, como já ensinava Cícero, a justiça consiste em algo mais do que um mero ato produtivo da lei e da sua aplicação. A justiça implica reconhecer a cada um a sua dignidade, [11] a qual, sem liberdade religiosa garantida e vivida na sua essência, fica mutilada e ofendida, exposta ao risco de cair sob o predomínio dos ídolos, de bens relativos transformados em absolutos. Tudo isto expõe a sociedade ao risco de totalitarismos políticos e ideológicos, que enfatizam o poder público, ao mesmo tempo que são mortificadas e coarctadas, como se lhe fizessem concorrência, as liberdades de consciência, de pensamento e de religião. Diálogo entre instituições civis e religiosas.  9. O património de princípios e valores expressos por uma religiosidade autêntica é uma riqueza para os povos e respectivas índoles: fala diretamente à consciência e à razão dos homens e mulheres, lembra o imperativo da conversão moral, motiva para aperfeiçoar a prática das virtudes e aproximar-se amistosamente um do outro sob o signo da fraternidade, como membros da grande família humana.[12]. No respeito da laicidade positiva das instituições estatais, a dimensão pública da religião deve ser sempre reconhecida. Para isso, um diálogo sadio entre as instituições civis e as religiosas é fundamental para o desenvolvimento integral da pessoa humana e da harmonia da sociedade. Viver no amor e na verdade. 10. No mundo globalizado, caracterizado por sociedades sempre mais multiétnicas e pluriconfessionais, as grandes religiões podem constituir um fator importante de unidade e paz para a família humana. Com base nas suas próprias convicções religiosas e na busca racional do bem comum, os seus membros são chamados a viver responsavelmente o próprio compromisso num contexto de liberdade religiosa. Nas variadas culturas religiosas, enquanto há que rejeitar tudo aquilo que é contra a dignidade do homem e da mulher, é preciso, ao contrário, valer-se daquilo que resulta positivo para a convivência civil. O espaço público, que a comunidade internacional torna disponível para as religiões e para a sua proposta de «vida boa», favorece o aparecimento de uma medida compartilhável de verdade e de bem e ainda de um consenso moral, que são fundamentais para uma convivência justa e pacífica. Os líderes das grandes religiões, pela sua função, influência e autoridade nas respectivas comunidades, são os primeiros a ser chamados ao respeito recíproco e ao diálogo. Os cristãos, por sua vez, são solicitados pela sua própria fé em Deus, Pai do Senhor Jesus Cristo, a viver como irmãos que se encontram na Igreja e colaboram para a edificação de um mundo, onde as pessoas e os povos «não mais praticarão o mal nem a destruição (...), porque o conhecimento do Senhor encherá a terra, como as águas enchem o leito do mar» (Isaás 11, 9). Diálogo como busca em comum. 11. Para a Igreja, o diálogo entre os membros de diversas religiões constitui um instrumento importante para colaborar com todas as comunidades religiosas para o bem comum. A própria Igreja nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. «Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens».[13] A estrada indicada não é a do relativismo nem do sincretismo religioso. De facto, a Igreja «anuncia, e tem mesmo a obrigação de anunciar incessantemente Cristo, “caminho, verdade e vida” (Jo 14, 6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo mesmo todas as coisas».[14] Todavia isto não exclui o diálogo e a busca comum da verdade em diversos âmbitos vitais, porque, como diz uma expressão usada frequentemente por São Tomás de Aquino, «toda a verdade, independentemente de quem a diga, provém do Espírito Santo».[15] Em 2011, tem lugar o 25º aniversário da Jornada Mundial de Oração pela Paz, que o Venerável Papa João Paulo II convocou em Assis em 1986. Naquela ocasião, os líderes das grandes religiões do mundo deram testemunho da religião como sendo um fator de união e paz, e não de divisão e conflito. A recordação daquela experiência é motivo de esperança para um futuro onde todos os crentes se sintam e se tornem autenticamente obreiros de justiça e de paz. Verdade moral na política e na diplomacia 12. A política e a diplomacia deveriam olhar para o património moral e espiritual oferecido pelas grandes religiões do mundo, para reconhecer e afirmar verdades, princípios e valores universais que não podem ser negados sem, com os mesmos, negar-se a dignidade da pessoa humana. Mas, em termos práticos, que significa promover a verdade moral no mundo da política e da diplomacia? Quer dizer agir de maneira responsável com base no conhecimento objetivo e integral dos factos; quer dizer desmantelar ideologias políticas que acabam por suplantar a verdade e a dignidade humana e pretendem promover pseudo-valores com o pretexto da paz, do desenvolvimento e dos direitos humanos; quer dizer favorecer um empenho constante de fundar a lei positiva sobre os princípios da lei natural.[16] Tudo isto é necessário e coerente com o respeito da dignidade e do valor da pessoa humana, sancionado pelos povos da terra na Carta da Organização das Nações Unidas de 1945, que apresenta valores e princípios morais universais de referência para as normas, as instituições, os sistemas de convivência a nível nacional e internacional. Para além do ódio e do preconceito. 13. Não obstante os ensinamentos da história e o compromisso dos Estados, das organizações internacionais a nível mundial e local, das organizações não governamentais e de todos os homens e mulheres de boa vontade que cada dia se empenham pela tutela dos direitos e das liberdades fundamentais, ainda hoje no mundo se registam perseguições, descriminações, atos de violência e de intolerância baseados na religião. De modo particular na Ásia e na África, as principais vítimas são os membros das minorias religiosas, a quem é impedido de professar livremente a própria religião ou mudar para outra, através da intimidação e da violação dos direitos, das liberdades fundamentais e dos bens essenciais, chegando até à privação da liberdade pessoal ou da própria vida. Temos depois, como já disse, formas mais sofisticadas de hostilidade contra a religião, que nos países ocidentais se exprimem por vezes com a renegação da própria história e dos símbolos religiosos nos quais se refletem a identidade e a cultura da maioria dos cidadãos. Frequentemente tais formas fomentam o ódio e o preconceito e não são coerentes com uma visão serena e equilibrada do pluralismo e da laicidade das instituições, sem contar que as novas gerações correm o risco de não entrar em contato com o precioso património espiritual dos seus países. A defesa da religião passa pela defesa dos direitos e liberdades das comunidades religiosas. Assim, os líderes das grandes religiões do mundo e os responsáveis das nações renovem o compromisso pela promoção e a tutela da liberdade religiosa, em particular pela defesa das minorias religiosas; estas não constituem uma ameaça contra a identidade da maioria, antes, pelo contrário, são uma oportunidade para o diálogo e o mútuo enriquecimento cultural. A sua defesa representa a maneira ideal para consolidar o espírito de benevolência, abertura e reciprocidade com que se há de tutelar os direitos e as liberdades fundamentais em todas as áreas e regiões do mundo. Liberdade religiosa no mundo.  14. Dirijo-me, por fim, às comunidades cristãs que sofrem perseguições, discriminações, atos de violência e intolerância, particularmente na Ásia, na África, no Médio Oriente e de modo especial na Terra Santa, lugar escolhido e abençoado por Deus. Ao mesmo tempo que lhes renovo a expressão do meu afecto paterno e asseguro a minha oração, peço a todos os responsáveis que intervenham prontamente para pôr fim a toda a violência contra os cristãos que habitam naquelas regiões. Que os discípulos de Cristo não desanimem com as presentes adversidades, porque o testemunho do Evangelho é e será sempre sinal de contradição. Meditemos no nosso coração as palavras do Senhor Jesus: «Felizes os que choram, porque hão-se ser consolados. (...) Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. (...) Felizes sereis quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentido, vos acusarem de toda a espécie de mal. Alegrai-vos e exultai, pois é grande nos Céus a vossa recompensa» (Mateus 5, 4-12). Por isso, renovemos «o compromisso por nós assumido no sentido da indulgência e do perdão – que invocamos de Deus para nós, no “Pai-nosso” – por havermos posto, nós próprios, a condição e a medida da desejada misericórdia: “perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”(Mateus 6, 12)».[17] A violência não se vence com a violência. O nosso grito de dor seja sempre acompanhado pela fé, pela esperança e pelo testemunho do amor de Deus. Faço votos também de que cessem no Ocidente, especialmente na Europa, a hostilidade e os preconceitos contra os cristãos pelo facto de estes pretenderem orientar a própria vida de modo coerente com os valores e os princípios expressos no Evangelho. Mais ainda, que a Europa saiba reconciliar-se com as próprias raízes cristãs, que são fundamentais para compreender o papel que teve, tem e pretende ter na história; saberá assim experimentar justiça, concórdia e paz, cultivando um diálogo sincero com todos os povos. Liberdade religiosa, caminho para a paz. 15. O mundo tem necessidade de Deus; tem necessidade de valores éticos e espirituais, universais e compartilhados, e a religião pode oferecer uma contribuição preciosa na sua busca, para a construção de uma ordem social justa e pacífica a nível nacional e internacional. A paz é um dom de Deus e, ao mesmo tempo, um projeto a realizar, nunca totalmente cumprido. Uma sociedade reconciliada com Deus está mais perto da paz, que não é simples ausência de guerra, nem mero fruto do predomínio militar ou económico, e menos ainda de astúcias enganadoras ou de hábeis manipulações. Pelo contrário, a paz é o resultado de um processo de purificação e elevação cultural, moral e espiritual de cada pessoa e povo, no qual a dignidade humana é plenamente respeitada. Convido todos aqueles que desejam tornar-se obreiros de paz e sobretudo os jovens a prestarem ouvidos à própria voz interior, para encontrar em Deus a referência estável para a conquista de uma liberdade autêntica, a força inesgotável para orientar o mundo com um espírito novo, capaz de não repetir os erros do passado. Como ensina o Servo de Deus Papa Paulo VI, a cuja sabedoria e clarividência se deve a instituição do Dia Mundial da Paz, «é preciso, antes de mais nada, proporcionar à Paz outras armas, que não aquelas que se destinam a matar e a exterminar a humanidade. São necessárias sobretudo as armas morais, que dão força e prestígio ao direito internacional; aquela arma, em primeiro lugar, da observância dos pactos».[18] A liberdade religiosa é uma autêntica arma da paz, com uma missão histórica e profética. De facto, ela valoriza e faz frutificar as qualidades e potencialidades mais profundas da pessoa humana, capazes de mudar e tornar melhor o mundo; consente alimentar a esperança num futuro de justiça e de paz, mesmo diante das graves injustiças e das misérias materiais e morais. Que todos os homens e as sociedades aos diversos níveis e nos vários ângulos da terra possam brevemente experimentar a liberdade religiosa, caminho para a pazVaticano, 8 de dezembro de 2010. www.w2.vatican.va. Abraço. Davi