Lucas
10:25-37 “E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o, e dizendo:
Mestre, que farei para herdar a vida eterna? E ele lhe disse: Que está escrito
na lei? Como lês? E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo
o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu
entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo. E disse-lhe: Respondeste bem;
faz isso, e viverás. Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a
Jesus: E quem é o meu próximo? E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem de
Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram,
e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E, ocasionalmente descia
pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual
modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. Mas
um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de
íntima compaixão. E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e
vinho, e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma estalagem, e cuidou
dele. E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e
disse-lhe: Cuida dele, e tudo o que de mais gastares eu pagarei quando voltar.
Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos
dos salteadores? E ele disse: O que usou de misericórdia para com ele. Disse,
pois, Jesus: Vai, e faze da mesma maneira”. Um dos pais da igreja chamado
Orígenes de Alexandria (185-254) dizia que existem três níveis de
interpretações das escrituras, comparando-as com as partes constituintes do ser
humano. A primeira era o corpo, relacionada a interpretação superficial e
literal do texto, que era passada ao povo em geral, os mais humilde e sem
condições de assimilação inteligível. Esses dependiam em grande medida da
crença e dogma para fixarem o conhecimento recebido. A segunda era a alma, que
aprofundava os conceitos, descolando-os do sentido estrito das palavras,
abrangendo a narrativa com formas alegóricas. Nessa perspectiva as histórias,
eram carregadas de pedagogia voltadas à virtuosidade e fraternidade para
aprimoramento do caráter, tendo no bom senso e sabedoria os substitutos dos
dogmas e superstições. Aqui já não havia lugar para o senso comum, pois esse
tipo de instrução era dado aqueles compromissados com a causa espiritual,
portanto, um número mais reservado. A terceira e mais profunda das
interpretações segundo Orígenes foi denominada de espírito. Nesse contexto uns
poucos, considerados iniciados nos mistérios do reino de Deus acessavam essa
sabedoria divina, adquirida não só pelo conhecimento universal mais
principalmente por uma vida pura, santa e casta perante Deus. Na época de
Orígenes, o cristianismo primitivo se movimentava de maneira compreensiva e
tolerante em relação as demais tradições espirituais do oriente, lembrando que
a comunidade do século II e III vivia na metrópole egípcia de Alexandria, onde
havia a maior biblioteca do mundo de então. Também um grande museu, era o
centro de estudos e pesquisas dos doutores do saber. Um fato marcante nesse
período foi que, sendo Alexandria um entreposto comercial famoso, afluíam para lá povos de várias culturas e religiosidades que formaram muitas comunidades, destacando-se os cristãos,
judeus e pagãos. Esses viviam ordeiramente em harmonia e respeito mútuo, cada
qual considerando os deuses de cada um. Até que o Império Romano nomeando o
bispo Sinésio de Cirene (370-414) para a província Egípcia, acabou com essa
paz, pois se tentou pela força impor os dogmas do catolicismo. Como resultado
houve guerra; os judeus foram expulsos e os pagãos tiveram seus deuses
destruídos sendo confinados em guetos, tendo seu direito de expressão social e religiosa restringido. Nesse período a comunidade dos cristãos
primitivos, já não era vista com bons olhos pelo catolicismo, pois suas práticas
fugiam das regras e ensinamento superficiais da teologia tradicional. A
intenção aqui, conforme os tópicos que abordarei, é se aproximar da segunda
interpretação sugerida por Orígenes, que me parece mais propícia à
espiritualização do humano e não a humanização do espiritual. Já que a terceira
são estudos avançados de misticismo e ensinos esotéricos, necessitando de
requisitos para isso, coisas que não temos até agora. Comecemos A Parábola do Bom
Samaritano. Há meu ver existem três questões cruciais nessa narrativa. A
primeira é referente a vida eterna e a segunda diz respeito a amar ao próximo
ao extremo da piedade e compaixão. Repare que a ênfase é colocada na compaixão,
que lendo atentamente o texto, parece absorver ou diluir o sentido de vida
eterna. Nesse âmbito a vida eterna são atitudes e práticas virtuosas e
benevolentes realizadas no agora e momento presente. O mestre Jesus enfatizou
isso em sua alegoria, propondo que a vida eterna não é um estado futuro, como
tendemos a imaginar, mas ao contrário, é o nosso cotidiano. Nesse panorama
entendo que todas os seres humanos, nesse caso, têm a vida eterna, já nascendo
como ela. As inúmeras mortes que enfrentaremos em nossa existência, são fases
de nossas reencarnações até alcançarmos a completa iluminação búdhica. Já na
presente existência, temos a responsabilidade de desenvolvê-la, a vida eterna,
praticando atos de justiça e altruísmo. A pergunta do perito da lei, que farei
para herdar a vida eterna? foi apenas para testar a sabedoria do Mestre. Também
expôs seu pedantismo e egoísmo, pois sentia-se seguro de si, imaginando que seu
conhecimento era mais importante que a prática da piedade. Quanto a parábola
especificamente, percebemos que a intenção do Mestre não foi responder a
pergunta feita pelo perito da lei, relativo a quem era o seu próximo. Mas
fazê-lo perceber que sua situação de espectador da condição humana, seu coração
endurecido e sua passividade em não reagir ao sofrimento do outro demonstravam
a má formação de seu caráter. Sua conduta negligente comprometia sua fé e
ofuscava seu pretenso conhecimento, que não era legitimado com as obras, como é
dito em Tiago 2 “a fé sem obras é morta”. Em minha opinião o perito da lei
encaixou-se perfeitamente nos personagem alegóricos do sacerdote e levita, que
olhando apenas a situação daquele que foi espancado pelos salteadores, passaram
de largo totalmente indiferentes. Essa também é nossa posição em muitas
ocorrência, onde não reagimos a condição do necessitado e oprimido, para
tristeza e vergonha de nossa divindade interior. O estado de vulgarização da
violência nos contaminou ao ponto de nos entorpecer para o sofrimento do outro;
nos noticiários impressos e televisivos essas ocorrências são banalizadas ao
extremo por apresentadores e repórteres, como se o ser humano fosse uma mercadoria, objeto ou algo de somenos
importância. Devemos urgentemente mudar essa terrível condição de apatia e insensibilidade, tomando uma
postura pelo amor, misericórdia e compaixão para com o próximo. Um bom começo é
valorizar cada ser sensciente que passa por nossos sentidos e percepção, não
infringindo a nenhum deles, qualquer dano. Mas trazendo conforto e acolhimento
a ele, assim, expandiremos essa atitude aos humanos e demais seres
viventes. Evidentemente o bom samaritano
é o mestre Jesus. Toda a assistência dada aquele homem que foi assaltado e
espancado por ladrões, tratando suas feridas com vinho e óleo, colocando-o em
seu animal e levando à hospedaria mostra um coração de compaixão e acolhimento
só visto no Nazareno. Altruísmo e abnegação por um desconhecido, que talvez
sofresse por seus próprios atos incorretos praticados ou mesmo uma vicissitude
da vida. Até pagou dois dias adiantados de tratamento pra ele na hospedagem;
quem de nós faria isso? Algo importante nesse contexto é a atitude terapeuta do
Mestre; um conceito que havia na igreja, cristianismo primitivo, onde os
cristãos conscientes da condição humana, envolviam com amor e carinho as
pessoas quando eram acometidas de algum infortúnio, sem diferenciar o
comportamento bom ou ruim praticado por elas. O mestre também quis ensinar-nos
que o sofrimento, que é o terceiro aspecto mais importante desta metáfora, é
inerente a todos os seres humanos e não humanos. Por isso não está claro o
motivo pelo qual o homem fora espancado violentamente ficando semimorto. Ele
disse em João 16:33 "no mundo tereis aflição, mas tende bom ânimo, eu
venci o mundo". Não devemos amaldiçoar nosso sofrimento nem colocar a
culpa em outros. Precisamos sim admiti-lo, entendendo por que sofremos; pois
esse padecimento evolui nossa espiritualidade atuando muitas vezes como uma
disciplina pedagógica à corrigir-nos dos erros e pecados praticados. Esse
slogan: "para de sofrer", praticado por muitas igrejas
neopentecostais aqui no Brasil, como chamadas para lotar os templos, utilizando
o altar sagrado como palco de espetáculo e encenação teatral com o propósito
dos milagres, segundo a visão de Orígenes que estamos apreciando, não tem
fundamento na ortodoxia cristã. Na esfera da alegoria estudada, o bom
samaritano, tipificando Jesus, levou o agredido, à um hospital, local onde
receberia cuidados médicos apropriados à seu estado físico e emocional. Os
muitos milagres acabam banalizando a fé, e pior, antecipam um ceticismo,
incredulidade, onde apenas a crença assume posição de dogma (verdade) sem
averiguação e certificação. Veja o que ocorreu no deserto com os filhos de
Israel que saíram do Egito. Vivenciaram muitos milagres como jorrar água da
rocha para saciar suas sedes, chuva de codornizes para alimentá-los, as águas
do mar vermelho abriram-se passando a pés enxuto, o maná que caiu do céu, uma
nuvem os protegia durante o dia fazendo sombra no calor escaldante, uma coluna
de fogo os aquecia nas frias noites, a serpente de bronze que em uma haste,
quando visualizada, curava os que foram picados por víboras, as sandálias
usadas no deserto não se desgastavam e outros eventos desse nível. Ocorre que
dos quase dois milhões de pessoas que andaram no deserto do Sinai a época do
profeta Moisés, em círculo, por quarenta anos, com a esperança de entrar na boa
terra de Canaã, apenas dois (Josué e Calebe) conseguiram esse feito, juntamente
com a geração dos que nasceram nas terras áridas. Os milagres não foram
suficiente para fortalece-los, ao contrário, tornaram-nos céticos, descrentes e
desiludidos da vida. O crente nesse estado torna-se refém do motivo (milagre,
cura, bens, riquezas) perdendo a transcendência do objeto divino, Deus. Já que
ele não tem consciência do Deus interior que está acima das necessidades e
farturas humanas. É como trocar o mar por uma gota de água. Ilusoriamente o
divino é apenas um remédio, álibi ou um cabide para pendura as necessidades do
fiel. Se Ele não realiza ou cumprir seus pedidos ele não é o Deus verdadeiro;
uma ignorância sem precedentes. A monja budista Coen Sensei (1947- ) diz: “Se você quer milagres, não procure o
Budismo. O supremo milagre para o Budismo é você lavar seu prato depois de
comer. Se você quer curar seu corpo físico, não procure o Budismo. Ele só cura
os males de sua mente: ignorância, cólera e desejos desenfreados. Se você
quiser arranjar emprego ou melhorar sua situação financeira, não procure o
Budismo. Você se decepcionará, pois ele vai lhe falar sobre desapego em relação
aos bens materiais. Não confunda, porém, desapego com renúncia. Se você quer
poderes sobrenaturais, não procure o Budismo. Pois para ele, o maior poder
sobrenatural é o triunfo sobre o egoísmo”. Eu creio em milagres, mas essa
trivialização que temos presenciado atualmente, no Brasil, onde a fé é vista
como moeda de troca, o milagre como promoção de líderes religiosos, e a cura,
para encher os templos e colocar em evidencias instituições e organizações
espirituosas, reprovo veementemente. Um aspecto a pensar em relação a
fraternidade é a conveniência de separá-la do clientelismo, uma ação realizada
para ampliar de maneira demogógica e favoritista empresas, entidades ou
organizações. Uma pseudo irmandade que vêm crescendo muito na sociedade atual,
fazendo campanhas em TV e nas mídias sociais, usando as celebridades e ancoras
como atrativos para angariar fundos para seus projetos. Em muitas dessas situação,
somos enganados por uma falsa solidariedade. Assim precisamos ficar atentos,
checando esses programas minuciosamente, vendo a destinação dos recursos
financeiros para termos certeza de que não estamos sendo ludibriados. Que
usemos nossa intuição com um coração puro e uma mente tranquila, para com
sabedoria podermos discernir o joio do
trigo que segundo a bíblica é tão difícil diferenciar que o Mestre falou, em
Mateus 13:30 ao colhedor que deixasse os dois crescerem junto, e no tempo da
ceifa, se poderia fazê-lo com precisão, jogando o joio nas chamas e armazenando
o trigo no celeiro. Abraço. Davi.
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