quarta-feira, 29 de novembro de 2023

AUTO DE FÉ DE BARCELONA

 

Espiritismo. www.uemmg.org.br. Portal Luz Espírita. AUTO DE FÉ DE BARCELONA. A Doutrina Espírita surge em meio a grandes acontecimentos que marcaram o século XIX (1801-1900), sendo um desses episódios o Auto de Fé, que aconteceu no dia 09/10/1861, em Barcelona – Espanha. Neste ano de 2023 comemoramos os 162 anos desse dia que podemos afirmar ser um divisor de águas para a Doutrina Espírita nascente. Cuja luz começava a resplandecer ante o obscurantismo do materialismo. O Auto de Fé de Barcelona foi um importante episódio para a História do Espiritismo, apesar de se tratar de um ato da Inquisição Católica contra a Doutrina Espírita. De Paris - França, Allan Kardec (1804-1869) enviara cerca de 300 obras espíritas, de sua autoria e de outros escritores, para serem comercializadas pela livraria de Maurice Lachâtre (1814-1900) — escritor, editor e intelectual francês exilado em Barcelona. Quando passava pela alfândega espanhola, a remessa foi confiscada pela Igreja local, sob a ordem do bispo Antônio Palau y Termes (1806-1862). A pretexto da autoridade que lhe era concedida pela Inquisição. Argumentando que aquelas obras eram contrárias à fé católica, o bispo de Barcelona então sentenciou que fossem queimadas, sem qualquer tipo de indenização aos seus proprietários. A execução se efetivou na esplanada central daquela cidade, às 10h30. Os principais jornais internacionais noticiaram o Auto de Fé de Barcelona com um tom majoritariamente de reprovação à sentença. Que atiçou ainda mais a opinião pública contra a intolerância ideológica e arbitrariedade das autoridades que se auto imputaram competentes para o Auto. Além disso, o fato acabou propagando ainda mais o Espiritismo e despertando o interesse popular pelas obras espíritas. O Jornal Las Novedades de Madrid notificou: “Eis o repugnante espetáculo, autorizado pelos homens da união liberal, em pleno século dezenove: uma fogueira em La Coruña, outra em Barcelona, e ainda muitas outras, que não faltarão, em outros lugares. É o que deve acontecer, pois é uma consequência imediata do caráter geral que domina o atual estado de coisas e que em tudo se reflete. Reação no interior, relativa aos projetos de lei apresentados. Reação no exterior, apoiando todos os governos reacionários da Itália, antes e depois de sua queda. Combatendo as ideias liberais em todas as ocasiões, buscando por todos os lados o apoio da reação, obtido ao preço das mais desastradas concessões.” Tão logo soube da apreensão dos livros, mas antes da execução da sentença, Kardec consultou seu guia espiritual — O Espírito da Verdade — se seria favorável reclamar a restituição das obras e se deveria publicar os fatos relacionados na Revista Espírita. Eis a resposta: “Por direito, pode reclamá-las e conseguiria que te fossem restituídas, se te dirigisse ao Ministro de Estrangeiros da França. Mas, ao meu parecer, resultará desse auto-de-fé maior bem do que o que viria da leitura de alguns volumes. A perda material não é nada em comparação da repercussão que semelhante fato produzirá em favor da Doutrina. Deve compreender quanto uma perseguição tão ridícula e atrasada poderá fazer bem ao progresso do Espiritismo na Espanha. A queima dos livros determinará uma grande expansão de ideias espíritas e uma procura febricitante das obras dessa doutrina. As ideias se disseminarão lá com maior rapidez e as obras serão procuradas com maior avidez, desde que as tenham queimado. Tudo vai bem.” [Sobre publicar ou não na Revista Espírita] “Espera o auto-de-fé.” Allan Kardec (1804-1869) – Obras Póstumas – “Auto-de-fé em Barcelona” Na Revista Espírita daquele mesmo mês, Kardec publicou duas comunicações espirituais, dentre tantas, recebidas na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. A primeira foi assinada pelo Espírito Dollet, que havia sido um livreiro do século XVI: “O amor da verdade deve sempre fazer-se ouvir: ela rompe o véu e brilha ao mesmo tempo por toda parte. O Espiritismo tornou-se conhecido de todos; logo será julgado e posto em prática. Quanto mais perseguições houver, tanto mais depressa esta sublime doutrina alcançará o apogeu. Seus mais cruéis inimigos, os inimigos do Cristo e do progresso, atuam de maneira que ninguém possa ignorar a permissão de Deus. Dada àqueles que deixaram esta Terra de exílio, de voltarem aos que amaram. “Ficai certos: as fogueiras apagar-se-ão por si mesmas; e se os livros são lançados ao fogo, o pensamento imortal lhes sobrevive.” Allan Kardec (1804-1869) - Revista Espírita, novembro de 1861 - “Sobre o Auto-de-Fé de Barcelona” A outra foi ditada pelo Espírito daquele que havia encarnado como frade de origem espanhola e inquisidor do Santo Ofício: São Domingos de Gusmão (1170-1221): “Era necessário que algo ferisse violentamente certos Espíritos encarnados, a fim de que se decidissem a ocupar-se desta grande doutrina que vai regenerar o mundo. Nada é feito inutilmente em vossa Terra. Nós, que inspiramos o auto-de-fé de Barcelona, sabíamos perfeitamente que assim agindo daríamos um grande passo à frente. Esse fato brutal, inacreditável nos tempos atuais, foi consumado com vistas a chamar a atenção dos jornalistas que se mantinham indiferentes diante da profunda agitação que tomava conta das cidades e dos centros espíritas. Eles deixavam dizer e fazer, mas, obstinados, faziam ouvidos de mercador, respondendo pelo mutismo ao desejo de propaganda dos adeptos do Espiritismo. Queiram ou não, é preciso que hoje falem; uns, constatando o histórico do caso de Barcelona, outros o desmentindo, ensejaram uma polêmica que fará a volta ao mundo e da qual só o Espiritismo aproveitará. Eis por que hoje a retaguarda da Inquisição praticou o seu último auto-de-fé, porque assim o quisemos.” Allan Kardec - Revista Espírita, novembro de 1861 - “Sobre o Auto-de-Fé de Barcelona” Depois de publicar o ocorrido na edição de novembro de 1861, a Revista Espírita continuou cobrindo os seus desdobramentos. Na edição de agosto do ano seguinte, a revista deu nota do falecimento do bispo de Barcelona e da sugestão que a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas recebeu de um correspondente espanhol para evocar o Espírito de Dom Antônio Palau y Termes (1806-1862), que se antecipou, ditando a seguinte mensagem, conforme a transcrição da revista: “Auxiliado por vosso chefe espiritual pude vir ensinar-vos com o meu exemplo e vos dizer: Não repilais nenhuma das ideias anunciadas, porque um dia, um dia que durará e pesará como um século, essas ideias amontoadas clamarão como a voz do Anjo: Caim, que fizestes de teu irmão? Que fizestes de nosso poder, que devia consolar e elevar a Humanidade? O homem que voluntariamente vive cego e surdo de espírito, como outros o são do corpo, sofrerá, expiará e renascerá para recomeçar o labor intelectual, que a sua preguiça e o seu orgulho o levaram a evitar; e essa voz terrível me disse: Queimaste as ideias e as ideias te queimarão! Orai por mim. Orai, porque é agradável a Deus a prece que lhe é dirigida pelo perseguido em benefício do perseguidor. Aquele que foi bispo e que não passa de um penitente.” Allan Kardec - Revista Espírita, agosto de 1862 - “Morte do bispo de Barcelona”. Comentando a mensagem do bispo, Allan Kardec escreve: “Não podemos censurá-lo, pelo triplo motivo de que o verdadeiro espírita a ninguém condena, não guarda rancor, esquece as ofensas e, a exemplo do Cristo, perdoa aos seus inimigos. Em segundo lugar, longe de nos prejudicar, ele nos foi útil; enfim, porque reclama de nós a prece do perseguido para o perseguidor, como a mais agradável a Deus, pensamento todo caridade, digno da humildade cristã, revelada pelas últimas palavras: ‘Aquele que foi bispo e que não passa de um penitente’. Bela imagem das dignidades terrenas deixadas à beira do túmulo, para se apresentar a Deus tal que se é, sem os aparatos impostos aos homens”. Logo mais, faz uma exortação aos confrades espíritas: “Espíritas, perdoemos-lhe o mal que nos quis fazer, como quereríamos que as nossas ofensas nos fossem perdoadas e oremos por ele no aniversário do auto-de-fé de 9 de outubro de 1861.” Em setembro de 1864, o periódico notificava que o novo bispo de Barcelona, Dom Pantaleão Montserrat y Navarro, trilhava pelos mesmos costumes medievais de Dom Antônio Palau, numa cruzada contra o Espiritismo, conforme a transcrição de uma pastoral do eclesiástico, da qual extraímos o seguinte trecho: “A geração atual se vê obrigada a assistir a esse triste espetáculo que hoje nos dão os povos mais adiantados em Ciência e em civilização. Os Estados Norte-Americanos, essa nação chamada modelo, e algumas partes da França, aí compreendida a colônia da Argélia. Esforçam-se, desde algum tempo, ao estudo ridículo e à aplicação do Espiritismo, que, sob esse nome, vem ressuscitar as antigas práticas da necromancia. Pela evocação dos Espíritos invisíveis, que repousam no lugar de seu destino, além do sepulcro. E os consultam para descobrir os segredos ocultos sob o véu que Deus estendeu entre o tempo e a eternidade.” Allan Kardec - Revista Espírita, setembro de 1864 - “O novo bispo de Barcelona” Refutando as acusações dessa pastoral, o codificador espírita finaliza com um recado direto ao bispo: “E vos admirais, monsenhor, dos progressos da incredulidade! Antes vos deveríeis admirar de que, em pleno século XIX (1801-1900), a religião do Cristo seja tão mal compreendida pelos que são encarregados de ensiná-la. Não fiqueis, pois, surpreso se Deus envia seus Espíritos bons para lembrarem o sentido verdadeiro de sua lei. Eles não vêm para destruir o Cristianismo, mas para libertá-lo das falsas interpretações e dos abusos que nele introduziram os homens.” Allan Kardec - Revista Espírita, setembro de 1864 - “O novo bispo de Barcelona” “Graças a esse zelo imprudente, todo o mundo na Espanha vai ouvir falar do Espiritismo e quererá saber o que é ele; é tudo quanto desejamos. Podem queimar-se livros, mas não se queimam ideias. As chamas das fogueiras as superexcitam, em vez de abafar. Aliás, as ideias estão no ar, e não há Pireneus bastante altos para as deter. Quando uma ideia é grande e generosa encontra milhares de pulmões prestes a aspirá-la.” Allan Kardec - Revista Espírita, setembro de 1864 - “O novo bispo de Barcelona” “Mas, ai daquele por quem venha o escândalo. Quer dizer que o mal sendo sempre o mal, aquele que a seu malgrado servir de instrumento à justiça divina. Aqueles cujos maus instintos foram utilizados, nem por isso deixou de praticar o mal e de merecer punição. Assim é, por exemplo, que um filho ingrato é uma punição ou uma prova para o pai que sofre com isso. Porque esse pai talvez tenha sido também um mau filho que fez sofresse seu pai. Passa ele pela pena de talião. “Castigo que consiste em fazer sofrer o delinquente. O que ele fez sofrer a vítima”. Mas, essa circunstância não pode servir de escusa ao filho que, a seu turno, terá de ser castigado em seus próprios filhos, ou de outra maneira.” Allan Kardec – O Evangelho Segundo o Espiritismo. Capítulo VIII item 16 “Bem-aventurado os que tem puro coração”. “Podem queimar os livros, mas não se queimam ideias”. Auto de Fé de Barcelona. Portal Luz Espírita, 2014. www.uemmg.org.br. Abraço. Davi

domingo, 26 de novembro de 2023

COMO ALCANÇAR O EQUILÍBRIO ENTRE O CORPO E A ALMA

 

Judaísmo. www.morasha.com.br. Compilado da palestra por Claudia Altschuller. A convite do Instituto Morasha de Cultura e do beit Chabad Morumbi, esteve novamente no Brasil o rabino Laibl Wolf. Vivendo atualmente na Austrália, além de advogado e psicólogo, é profundo conhecedor da Cabalá e das filosofias orientais. COMO ALCANÇAR O EQUILÍBRIO ENTRE O CORPO E A ALMA. A humanidade está passando por um período de muitos desafios, em que o progresso se dá em velocidade geométrica. No passado, as pessoas costumavam sair de casa, olhar para o horizonte e ver que as coisas permaneciam sempre iguais. Atualmente, em um breve espaço de tempo, pode-se perceber que prédios, ruas e até o céu já não são os mesmos. Antes, vivia-se na mesma casa por cinco gerações enquanto hoje, no decorrer da vida, uma pessoa pode chegar a viver em até cinco lugares diferentes. A informação e a tecnologia se têm multiplicado. A mídia gera imagens que dizem como devemos vestir-nos, comer ou tomar banho. Estas imagens conseguem mudar nossa disposição emocional, fazendo-nos sentir muitas vezes impotentes, como alguém que perdeu a confiança em sua própria capacidade. O que eu gostaria de lhes mostrar é como reconquistar a confiança em sua própria vida. Mostrar como quando cada um de nós adota uma postura de confiança e de fé, sua atitude afeta a todos. Revoluções não se iniciam lá fora, começam dentro de mim e dentro de vocês. Cada um de nós tem a capacidade de mudar o mundo. Atualmente, Cabalá é uma palavra que se tornou muito popular. A "lógica" é simples: "Se Madonna está estudando e praticando a Cabalá, é por que o tema deve ser importante". Ao refletir sobre o interesse da artista ou de outros astros sobre a Cabalá, ficava intrigado ao constatar que os profissionais da indústria cinematográfica e da moda tendem a procurar opções espirituais mais do que os de outras áreas. Provavelmente, quando a vida de alguém depende quase que exclusivamente de sua aparência física, esse alguém percebe, em determinado momento, que há um vazio dentro dele. Sou muito consciente de que há certa exploração do mercado espiritual. Não acredito que colocando um fiozinho vermelho em volta do pulso ou escaneando mentalmente um trecho do Zohar alguém vai-se tornar mais sábio ou mais bem preparado para lidar com a vida. Algo precisa ficar muito claro para todos antes de prosseguirmos: a Cabalá é a Torá, é sua alma. Não é possível separá-las. Para podermos entender melhor este conceito básico é preciso voltar no tempo. Este não é o nosso primeiro encontro. Vocês lembram quando nos encontramos pela primeira vez, há cerca de 3.500 anos? Estávamos todos nós, juntos, no Monte Sinai, e Moisés, após receber de D'us a Torá, levou-a aos Filhos de Israel e passou a transmitir suas lições. Ele nos ensinou a Torá em quatro níveis diferentes. Primeiro, falou a todos sobre a explicação simples e literal de toda a Torá. Este tipo de interpretação ficou conhecido como Peshat. Depois selecionou um grupo menor, a quem revelou um nível mais profundo da Torá, que se tornou conhecido como Remez, que significa alusão. A seguir, foi a um nível ainda mais profundo para um grupo mais restrito. Este terceiro nível de interpretação foi denominado Derush. A este, é associada a literatura do Midrash. Finalmente, selecionou um núcleo bem pequeno a quem transmitiu o quarto nível de interpretação da Torá - o mais profundo e secreto: sua parte mística, que ficou conhecida como Sod, que literalmente significa segredo. Esta profunda vastidão ficou conhecida como Cabalá. Estou enfatizando estes pontos para que não haja dúvida de que a Cabalá é parte integrante da Torá. Se alguém fosse ler o Zohar, a obra básica da Cabalá (algo que não aconselho, depois direi o porquê), seria como ler as parashot - os trechos semanais da leitura da Torá em um nível mais profundo, mais místico. Os mestres chassídicos ensinam que a sabedoria que permeia a Cabalá tem o poder de enriquecer a vida de inúmeras formas. Seus ensinamentos, aplicados ao contexto do comportamento diário, podem tornar a vida mais estável e as pessoas mais equilibradas neste mundo cada vez mais complexo. O importante, ensinam os mestres, é conseguir mudar nossa própria natureza de tal forma que passemos a interpretar a realidade de forma diferente, para assim poder responder aos desafios da vida de forma também diferente. Se amanhã cada um de nós ficar igual ao que é hoje, significa que não cresceu, não aprendeu. Há quem afirme que as pessoas não mudam, pois estão geneticamente pré-programadas. Não acredito nesta visão de mundo e não canso de dizer que cada um de nós pode mudar tudo o que quiser em si mesmo, contanto que siga dois pré-requisitos fundamentais. Em primeiro lugar, precisa seguir um método. Em segundo, talvez o mais importante, tem que acreditar que isso é possível. Sem os dois, a pessoa não mudará; continuará sempre a mesma. Há aqueles que meditam profundamente e conseguem até fazer projeções astrais, concentrando-se durante uma hora, todas as manhãs. Mas continuam agnósticos, difíceis, não mudaram nada. Trata-se de uma incongruência, pois não se pode ser alguém espiritual e continuar sendo o mesmo indivíduo. Há alguns anos fui entrevistado por uma emissora de TV, nos Estados Unidos, e me perguntaram o que era Cabalá. Eu respondi que era "mind yoga". A resposta foi espontânea. Porém, refletindo mais tarde, cheguei à conclusão de que fora uma ótima metáfora. A ioga ensina como, praticando a autodisciplina através de técnicas de respiração e de posturas corporais, podemos conseguir que a força vital flua de forma mais forte dentro de nós. A Torá nós ensinamos como, ao adotar certa postura mental e emocional, podemos conseguir que nossa alma, a neshamá, flua melhor. Não estou aqui para expor a parte esotérica da Cabalá; meu enfoque é muito realista, terreno. Pessoalmente, não creio que algo puramente esotérico ou intelectual tenha uma aplicação real na vida das pessoas. Quero mostrar que dentro da tradição espiritual judaica, especialmente o chassidismo, existe um modelo psicológico sofisticado que, se adotado, ajuda o homem a efetuar uma mudança em seu emocional. Mostrar que é possível treinar a mente e o coração para adotar posturas equilibradas e positivas - para que quando chegar o momento de desafio, ao longo do dia, tenhamos a agilidade mental e emocional para enfrentar positivamente qualquer situação. Para exemplificar, usarei um sentimento comum nas pessoas: a "raiva". Na Torá somos totalmente proibidos de expressar raiva. Geralmente, quando faço esta afirmação, meus interlocutores ficam nervosos e ouço comentários como "É ridículo dizer algo assim; com um mestrado em psicologia, o Rabino não sabe da importância de se extravasar a raiva?" O que a maioria não sabe é que existe uma outra corrente de psicologia que ensina exatamente o oposto e afirma que é melhor não colocar a raiva "para fora"; é melhor conter o sentimento porque vai servir de treinamento para uma próxima ocasião. O judaísmo segue esta segunda linha de pensamento. Quero que aprendam a nunca ficar nervosos. Sabemos hoje que pessoas nervosas, que expressam raiva, têm imunidade mais baixa. Além do mais, esse sentimento prejudica as relações entre os indivíduos, seja em casa ou no trabalho. Não há nada de positivo na raiva. Mesmo assim, quando explica que a Torá diz ser proibido expressar a raiva, as pessoas agem como se lhes estivesse sendo roubado um direito "precioso". A tecnologia médica se desenvolveu a tal ponto que atualmente as várias formas de escanear o cérebro nos permite observar como a mente funciona. Há cerca de três anos, surgiu uma nova tecnologia de scanning chamada Spect Scan, que mostra a mente em movimento, o que permitiu um insight maravilhoso. O pioneiro da técnica é o Dr. Andrew Newberg, da Universidade da Pensilvânia, que realizou uma experiência muito interessante. Usando o Spect Scan, ele estudou um grupo de monges tibetanos e outro de franciscanos, observando-os enquanto meditavam e oravam. O cientista chegou à conclusão de que quando estamos envolvidos em uma atividade de meditação e prece, há um aumento drástico da atividade de uma parte do cérebro - a que é responsável por nossa conexão, integração e empatia. Ao mesmo tempo, há grande diminuição da atividade na parte da mente responsável por nosso desligamento do mundo, o ego. Descobriu, também, que quando alguém está envolvido em atividades como meditação e prece, além de uma menor probabilidade de ter depressões e doenças do coração, essa pessoa tem a imunidade aumentada. Outras pesquisas médicas, realizadas nos últimos anos, revelaram que nossa atitude frente a certas circunstâncias ou acontecimentos afeta também as células do corpo. Ou seja, a maneira como nossos pensamentos interpretam a realidade acaba afetando o próprio corpo. E se nós pudéssemos mudar nossa atitude perante a vida, mudar nossa interpretação dos desafios? E se pudéssemos realmente ter um equilíbrio emocional? Na realidade, não é algo tão difícil e nem é necessário ir até o Himalaia ou passar anos com um guru para conseguir transformar o seu "eu". Você pode fazer esta mudança amanhã de manhã! O Dr. Herbert Benson, Professor-Adjunto de Medicina da Harvard Medical School e pioneiro no estudo médico combinado da mente e do corpo - que incorpora a espiritualidade e a cura na Medicina tradicional - afirma que nossas mentes podem produzir doença, saúde, sede, fome, ou seja, tudo aquilo que acreditamos ser a realidade. Segundo ele, a fé pode mudar-nos, desde que você dê a si mesmo a liberdade de mudar. Mas qual é o inimigo dessa liberdade? É o hábito, as respostas automáticas e habituais. Algo que também aprendemos nos últimos anos é que, à medida que nossos sentimentos se repetem, são criados "sulcos" na mente. Nossa mente cria caminhos mais rápidos, ligações mais diretas para executar certas tarefas. Ilustrando a ideia com um exemplo: uma pessoa que tenta tocar piano pela primeira vez, sabe o que quer fazer, mas seus dedos não conseguem acompanhar sua vontade. Só depois de estudar, treinar os dedos e praticar bastante a pessoa conseguirá tirar uma melodia do teclado. Atualmente, através do escaneamento do cérebro, podemos entender este processo, ver como o ato de repetir uma ação faz com que os neurônios fluam de forma mais simples e rápida. Isto vale também no campo emocional. Se você se habituar a ficar inseguro e ter medo de certos pensamentos ou situações, acabará repetindo esta insegurança todas as vezes em que aquela situação se apresentar. Ou seja, o medo torna-se um hábito. Precisamos desfazer os hábitos para criar a liberdade. Até o momento, falo em termos de bom-senso e psicologia. Daqui por diante, traduzirei o que disse em termos espirituais. Quero olhar para a tradição judaica da Cabalá e da Chassidut. Como já foi mencionado, não vale a pena tentar ler o Zohar, obra fundamental da Cabalá. Primeiro porque está escrito em aramaico e não em hebraico. Segundo, porque sua linguagem é hermética, enigmática, propositalmente codificada. Isto torna muito difícil o acesso à sabedoria que encerra. Com o surgimento, no século XVIII, do chassidismo, a sabedoria contida na Cabalá passou a ser transmitida e explicada de maneira a ser colocada em prática por qualquer um, no dia-a-dia. Por isso, aconselho o estudo do Chassidut como uma forma de começar a compreender a parte acessível da Cabalá. Sua parte mais profunda está fora do alcance da maioria, pois, para verdadeiramente compreendê-la, é necessário dedicar a vida toda ao estudo e às preces. Ouve-se com frequência a pergunta: Mas não dizem que só pode estudar a Cabalá um homem acima dos 40 anos, casado, que conheça a fundo o Talmud, a Torá e a Halachá?". No passado, estes eram os pré-requisitos, mas o próprio Zohar alertara sobre a mudança ao afirmar que haveria uma época em que as "fontes da sabedoria" irromperiam, "vindas de cima ou de baixo", mudando para sempre o mundo. A partir desse momento, os homens teriam que acessar a sabedoria interior para manter seu equilíbrio. O mesmo Zohar dá uma data exata de quando essa transformação iria acontecer, como de fato aconteceu. Verifiquem a data e a comparem com a história secular. Verão que nessas datas ocorreram os seguintes fenômenos históricos, que têm íntima relação com a explosão do conhecimento: a Revolução Industrial, a adoção de métodos científicos para as pesquisas, o início dos movimentos nacionalistas que resultaram na Revolução Francesa. E foi nesse mesmo período que surgiu o chassidismo. Este movimento foi iniciado no leste da Europa pelo Rabi Baal Shem Tov, na primeira metade do século XVIII, e disseminado pelos mestres chassídicos. Basicamente, a Chassidut é uma síntese dos ensinamentos da Cabalá e de seus efeitos práticos em nosso cotidiano. Se aprendidos e usados adequadamente, estes ensinamentos oferecem ao homem uma fonte inesgotável de sabedoria, ajudando-o a lidar com as realidades da vida. Por isso, grandes rabinos e cabalistas, como o Baal Shem Tov, e, mais recentemente, o Rebe de Lubavitch, estimularam e ajudaram a difundir o pensamento cabalístico através de ensinamentos acessíveis a todos. Acreditavam que, mesmo sem entrar nas profundezas esotéricas de seus ensinamentos, a sabedoria que a Cabalá incorpora tem o poder de enriquecer a vida, como dissemos acima. A necessidade de acessar esse conhecimento mais profundo se tornou ainda mais premente hoje, quando temos que diariamente enfrentar um mundo cada vez mais complexo. O Rebe de Lubavitch (1902-1994) afirmava que "as mulheres, mais do que os homens, sabem disto". Porque, costumava dizer, hoje em dia, elas têm uma agenda dupla: criam a próxima geração - como sempre o fizeram - e estão totalmente integradas na parte social e econômica da sociedade. À medida que vou percorrendo o mundo, sinto que as pessoas querem algo mais significativo em suas vidas. Quando ocorrem coisas significativas em nossas vidas e no mundo, acordamos para nossa dimensão mais profunda. O último Rebe de Lubavitch dizia que cada um de nós pode projetar seu pensamento para alguém do outro lado do mundo e isto pode afetá-lo material e espiritualmente. Uma pesquisa feita em laboratórios em várias partes do mundo pode ajudar-nos a comprender esta idéia. Durante a experiência, duas pessoas colocadas em dois quartos separados, sem se comunicarem, são submetidas a um eletroencefalograma. Pede-se então, para uma das pessoas tentar transmitir um sentimento de compaixão para a do outro quarto. O eletroencefalograma registra a mensagem de compaixão. Durante outra pesquisa, pedia-se para que uma pessoa observasse um tubo de ensaio com enzimas, que estivesse a um metro e meio de distância, e tentasse interferir no funcionamento das enzimas. Chegou-se à conclusão de que o pensamento pode alterar até mesmo um tubo de ensaio. Estabelecido que o homem tem o poder de afetar até o funcionamento de uma enzima, a grande pergunta é como mudar a nós mesmos? Como atingir um equilíbrio em nossa vida? D'us criou o ser humano com um desafio embutido nele. Para explicar, falarei mais sobre a fisiologia e sobre as descobertas da última década. Sabemos que o ser humano tem três cérebros: a mente animal, responsável por nosso instinto, pela sobrevivência; a mente responsável pelas nossas emoções; e o córtex, responsável pela parte superior da mente. A novidade é a descoberta de que o fluxo de transmissão dos neurônios entre a mente e o corpo e entre o coração e o corpo trabalham em velocidades diferentes. Na verdade, o neurônio trabalha três vezes mais rápido na parte das emoções do que no córtex, ou seja, a pessoa "sente" três ou quatro vezes mais rápido do que "pensa". E é por isso que estamos sempre buscando desculpas. Por exemplo, você passa por uma loja e vê uma roupa que lhe agrada e tem vontade de comprá-la. O que você faz? Pensa em 101 motivos para comprá-la, mesmo que já tenha três iguais em seu guarda-roupa. Como se chama isso? Racionalização do sentimento. É que o coração captura e aprisiona a mente. É o sentimento aprisionado ao raciocínio. O Alter Rebe (1745-1813), o primeiro Rebe de Lubavitch escreveu a obra Tanya com a finalidade, de tornar a Cabalá acessível. A obra ensina algo de extrema importância: "Moach Shalit Al-Halev", isto é, a mente domina o coração. A mente deve dar a forma ao coração. O que é mente? É a direção, uma bússola. O que é emoção? Emoção é a energia. Não podemos usar só a mente e ser uma pessoa inteligente, porém fria e calculista. Por outro lado, não faz sentido ser uma pessoa totalmente emocional. Às vezes os sentimentos não são adequados ou são direcionados ao lado errado. Você pode ser uma pessoa extremamente boa, ter muita compaixão. Mas, se permitir que seus sentimentos fluam de forma errada, pode ferir outra pessoa. Veja o exemplo de pais amorosos que não conseguem controlar seus sentimentos pelo filho. A criança talvez possa ter problemas e os pais tentam compensar dando sempre tudo que ela pede. O resultado é uma criança malcriada. Há amor e compaixão, mas não usados de forma sábia. O Alter Rebe também ensinava: "É preciso que a mente esteja sob o domínio do coração em equilíbrio". E qual é o equilíbrio? Primeiro vem a direção - a mente, moach - e depois os sentimentos. Não confundam! Não estou falando em reprimir sentimentos. Estou falando em reaprender a permitir que nosso coração flua de forma sábia. A emoção é a forma como a alma flui através do coração. Já a mente é a forma como essa mesma alma flui pela fisiologia cerebral. Será que o indivíduo consegue treinar novamente a forma como a alma flui através da mente? Será que consegue fazer o mesmo com a maneira pela qual a alma flui pelo coração? Em outras palavras, será possível reaprender a interpretar a realidade de forma diferente? Sim, é possível! Vamos entender como funciona nosso esquema espiritual: quem somos e onde vivemos espiritualmente. A Cabalá ensina que existem quatro mundos espirituais paralelos. Todos emanaram do Ein Sof, a Fonte Infinita, D'us. O mundo mais distante desta Fonte, o mais baixo, chamado Assiyá, é o único no qual os seres humanos vivem. Neste mundo há tempo, espaço e consciência. No mundo um nível acima do nosso, chamado de Yetsirá, não há tempo nem espaço. O nível acima deste se chama Beryiá. O mais elevado de todos é o Atsilut. Vamos complicar um pouco mais. Nossa alma, a neshamá, é como um cordão umbilical espiritual que transcende os quatro mundos ou planos espirituais. Uma de suas extremidades é conectada à Fonte Divina; a outra ao interior de seu ser espiritual e físico. Segundo a Cabalá, o homem é composto das mesmas "forças fundamentais", da mesma "matéria prima" através das quais D's deu forma e conteúdo a toda a Sua Criação: as 10 Sefirot. Estas se originam no Infinito do Ein Sof e emanam através dos mundos, criando uma "corrente espiritual" que liga todas as coisas. É através das Sefirot que a Energia Divina flui, permeia e se torna parte de cada ser vivente. No homem, a neshamá, a alma, é o condutor para o fluxo das 10 Sefirot. Estas se individualizam em cada ser como dez qualidades da personalidade - os fluxos de nossa mente e emoção. Estes dez fluxos podem ser divididos em dois grupos. As três primeiras Sefirot - Chochmá, Biná e Da'at- representam os processos internos mentais. O segundo grupo, composto das outras sete Sefirot, formam o coração e as emoções humanas. Estes fluxos de energias emocionais são Chessed, Guevurá, Tiferet, Netzach, Hod, Yessod e Malchut. É atributo da mente o direcionamento, enquanto o sentimento não tem direção. A maneira como cada um de nós canaliza os fluxos de energia da mente e da emoção depende de nosso nível de sabedoria. Analisemos alguns destes fluxos para ter uma idéia de como funciona nosso esquema espiritual. Chochmá, por exemplo, a primeira Sefirá da mente, representa o fluxo espiritual responsável pela inspiração e criatividade. Pensem neste fluxo de energia como a forma como o ser humano vai pescar nos lagos do seu subconsciente. Cada um de nós tem seu próprio anzol, sua própria isca e sua própria vara de pescar. A maneira como buscamos alegria e alivio para a dor é representada pela área do lago onde preferimos pescar. Todos procuramos pescar na parte do lago em que nos sentimos seguros. O resultado é que todos pescamos da mesma maneira, na mesma área e pegamos o mesmo peixe. Por isso pensamos sempre da mesma maneira e respondemos da mesma forma aos mesmos estímulos. Um escritor contemporâneo me disse que, todo dia, temos pelo menos 100 mil pensamentos. O triste é que 95 mil são iguais, todos os dias. E, se persistirmos em interpretar a realidade da mesma forma negativa – carregada de dor e medo – então nosso cérebro persistirá em destilar sua carga excessiva de estresse. Cientistas constataram que a memória que o corpo tem do medo é a emoção mais profundamente gravada nos bancos da memória cerebral. O que faz Biná, a segunda Sefirá da mente? É através desta que podemos mudar o padrão de pensamento, porque é o fluxo de energia que gera o entendimento e a compreensão, o raciocínio dedutivo. Este fluxo busca o insight de Chochmá, trazendo do inconsciente para o consciente; alimenta a centelha do pensamento consciente; torna-o tangível e lhe dá direção. A função da Sefirá de Biná é pegar a centelha criativa da reinterpretação (Chochmá) e redirecioná-la segundo a nova maneira de pensar. Aí vem Da'at, que literalmente significa cognição, saber. É a lógica aplicada, a cristalização da consciência em termos de conclusão. Da'at assegura a continuidade do pensamento, pois cria uma ponte entre as atividades cerebrais Chochmá e Biná. Os processos mentais só tomam forma quando são externalizados pelas Sefirot da emoção. E Da'at é responsável pela conexão entre a mente e as emoções. As Sefirot das emoções humanas são divididas em dois grupos. No primeiro, temos Chessed, Guevurá e Tiferet. Vejamos as duas primeiras. Chessed é o fluxo de energia do amor. É esta Sefirá que nos abre para o mundo, para compartilhar, contribuir. É a generosidade, a extroversão, o altruísmo, o dar incondicional. Quando estendemos nossa mão para o outro é o fluxo de Chessed que se manifesta. O fluxo oposto é a Sefirá de Guevurá, que representa poder, força. É a autocontenção, o recuo das forças para dentro de si. É no fluxo de energia da Guevurá que o ser humano encontra a força e a habilidade de superar sua natureza, suas contradições e conflitos. Nenhum destes dois sentimentos internos são positivos ou negativos; são simplesmente emoções humanas e atitudes que para terem efeitos positivos devem ser guiadas pelas Sefirot da mente. O ideal é que estejam em equilíbrio. Mas como atingir o equilíbrio entre Chessed e Guevurá? Vejam um exercício que costumo usar para treinar esta busca do equilíbrio. Peço aos alunos dos meus cursos que não digam nada a ninguém, nos dez dias seguintes, antes de deixar passar três segundos. É muito difícil conseguir isso. No segundo dia, peço que reduzam de três para dois segundos. No terceiro dia, para um segundo. No quarto, para meio segundo. No quinto, que façam apenas uma pequena pausa, sem passar nem um segundo. Os participantes costumam dizer que este simples exercício opera uma das maiores transformações de sua vida. As palavras são mecanismos de relacionamento, que sempre mudam. Antes de abrir a boca e falar, durante os três segundos, o indivíduo consegue atingir um equilíbrio entre mente e emoção. O resultado final é que se termina falando de uma forma diferente do que de outro modo. É importante lembrar o que foi dito anteriormente: todo ser humano é composto pelas dez Sefirot. Quando em equilíbrio, estes dez canais de energia unem-se como um canal único. Cada pessoa tem a sua Neshamá, seu fluxo individual da alma. Duas pessoas no mundo não têm igual fluxo, nem mesmo dois animais o têm. D'us criou um mundo de individualidade e diferenças. Cada ser humano é diferente do outro e é maravilhoso ser diferente. E o motivo pelo qual cada um de nós é diferente, único, é que cada um de nós é uma dádiva para o mundo. Cada um de nós tem algo que mais ninguém pode oferecer. Esta é a base da auto estima e é isto que devemos ensinar a nossos filhos. Devemos ajudar cada criança a descobrir o que ela tem de especial, seus dons. E quando ela os descobre, o resultado em termos de autoestima consegue transformar sua vida, de todas as formas. Quando a criança não aprecia o que tem de especial, não tem motivação para ter sucesso. E mesmo que o tenha, não tem o equilíbrio. Atingimos a maturidade por volta dos 12 – 13 anos, na época do bar ou bat mitsvá, isto é, quando os processos espirituais causam mudanças no corpo e na mente. O jovem passa a ser menos egoísta, a sentir compaixão e sensibilidade. O porquê é simples: é nossa alma Divina que começa a ser projetada para fora. Há quem não perceba isto de forma consciente e acaba ficando imaturo, egoísta. Por exemplo, na psicologia afirmamos que a imaturidade numa criança se revela quando ela toma os brinquedos do amiguinho. Crianças fazem isso, adultos não deveriam fazer. Mas, acontece que algumas crianças nunca crescem se tornam adultos que continuam a pegar os "brinquedos" do outro. Às vezes, o dinheiro dos outros; em outras, a esposa do outro. Essas pessoas não cresceram, suas almas divinas não conseguiram projetar-se para fora. Falemos, agora, sobre o segredo da felicidade e da satisfação. Olhem para si mesmos. Será que não há algo estranho sobre nós? Por que tudo vem em dobro? Temos dois olhos, duas mãos, duas narinas, dois hemisférios cerebrais. Também olhamos para a realidade de forma dualista: superior versus inferior, direita versus esquerda, positivo versus negativo. Nossa consciência é dualística. Indo mais além com este raciocínio, qual a forma mais poderosa de fazer com que dois se tornem um? É o amor entre um homem e uma mulher. Quando criamos uma ponte entre as diferenças, conseguimos nos unir e dois tornam-se um. Ou seja, vivenciamos a experiência da unidade por algum tempo para depois nos separarmos de novo, porque neste mundo de tempo e espaço não conseguimos manter esta unidade o tempo todo. Aprendemos sobre a transformação de dois em um na primeira parte da Torá. A primeira letra da Torá é o beit, de Bereshit. Cada letra hebraica tem um valor numérico. Alef vale um; beit, dois; guimel, três. E a Torá começa com a letra beit, que tem o valor numérico dois. Por que dois? Para nos ensinar que nossa concepção da realidade é dualística. O propósito da vida é transformar o beit em um alef, ou seja, criar unidade. Esta dualidade está presente também no nível espiritual. Quando a alma flui de lá de cima, de sua Fonte Espiritual, atravessa os vários mundos e chega ao nível de Assiyá. Em nosso mundo físico, divide-se e forma duas almas, dois tipos de consciência, fonte do desafio e do conflito interior: Nefesh Behamit (alma animal) e Nefesh Elokit (alma Divina). O que significa isso? Nefesh Behamit, o lado "animal" da alma, é responsável pelo instinto de autopreservação; é o meu ego, no sentido comum, o egocentrismo. No Nefesh Elokit, o lado "Divino" nos conecta a aspirações mais elevadas; é o nível de consciência que está projetado para o outro. A primeira busca pela sobrevivência física, sustento e auto importância. A segunda é a compreensão de que há outras coisas na vida. Todos os nossos pensamentos são egocêntricos ou altruístas e os interesses competitivos destas duas tendências afloram face a um desafio ou a uma adversidade. O autocontrole judaico nos ensina a treinar o fluxo que vai da mente ao coração, de tal maneira que este se orienta em direção à alma Divina e não à alma animal. O homem possui o livre-arbítrio, a opção, a escolha do caminho que quer traçar. É este dom de escolha que dá sentido à vida. Como seria o ser humano se não tivesse opção? Ele seria reduzido a um robô, autômato. O indivíduo apenas responderia, de forma instintiva, ao destino. O livre-arbítrio nos dá sentido na vida. É assim que saímos da alma animal e adentramos a positividade, a alma Divina. Sob desta perspectiva, gostaria de dar-lhes alguns conselhos: exercitem o livre-arbítrio de forma sábia; equilibrem a mente; aprendam a treinar de outra maneira a forma como a mente reinterpreta a realidade; todos têm a capacidade de desfazer aquilo que foi criado pela força do hábito. Sigam algum método e acreditem que é possível. Para concluir a palestra, gostaria de ressaltar que a raiva é sempre uma resposta egocêntrica; raiva é desequilíbrio; raiva é uma tentativa de dominar o outro de forma a aliviar seu próprio medo e sua insegurança; raiva é uma tentativa de tornar o outro mais submisso, pois assim o "eu" sente-se mais seguro. Nada justifica a raiva. E isto não significa que não se possa ter emoções fortes. Se você percebe que alguém está ferindo um terceiro, você precisa soltar sua emoção para que a pessoa cresça e você possa ajudá-la. Mas isso não é raiva. Quem já estudou artes marciais, aprende logo nas primeiras lições: "Não fique com raiva, senão você perde". www.morasha.com.br. Abraço. Davi.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

NO MUNDO, MAS NÃO DO MUNDO

 

Teosofia. Texto de Mary Anderson e tradução de Izar G. Tauceda. Muitas vezes ouvimos a expressão: “NO MUNDO, MAS NÃO DO MUNDO” (no evangelho de João 17,15-16 é dito: ”Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo, como eu do mundo não sou”), e perguntamos: Qual é a diferença? A diferença está somente em duas pequenas palavras, duas preposições: “no” e “do” que fazem muita diferença! Vejamos essas preposições. “Em” quer dizer em algum lugar. Alguma coisa ou alguém pode estar temporária ou permanentemente em algum lugar. Em certo sentido é um termo neutro, sem cor, sem paixão. Mas “do” indica posse, pertencer a algo. Não é neutro, e pode até ter uma conotação de paixão. Até mesmo uma criança fala de “meus brinquedos”, “meu ursinho”, “minha boneca” e os defende como sua posse. Quando dizemos “no mundo”. Quando dizemos “no mundo” e “do mundo”, como consideramos “o mundo”? A preposição “no” ou “do” muda o significado de “mundo”. No “mundo” significa estar localizado no mundo físico, o mundo material. Isso não é aviltante (desonroso). Não esqueçamos que a matéria é tão divina como o espírito e não deve ser diminuída, como é ou era por várias tradições ascéticas que dizem que “o mundo da carne e do demônio” deve ser evitado e condenado. Por outro lado, “do mundo” significa a identificação com certos valores chamados de “mundanos”, que não são materiais, mas materialistas. Da mesma maneira, ao falarmos de “sabedoria mundana” que não é sabedoria no sentido mais profundo, mas uma habilidade para descobrir a melhor maneira, muitas vezes uma maneira impiedosa, de obter o que se quer ou conseguir seus próprios fins, sejam eles materiais ou imaginados “espirituais”. Quem aspira à espiritualidade pode pensar que o primeiro passo é afastar-se do mundo e de suas tentações, retirar-se, tornar-se um ermitão (asceta) e viver fora do mundo. Ainda assim essa pessoa ainda pode ser “do mundo”, assaltada por tentações na solidão, mais ainda do que quando estava no mundo, porque ser “do mundo” é um estado mental e não apenas um lugar. Às vezes é sábio abandonar coisas e circunstâncias externas, como quando alguém está controlando o alcoolismo e deve evitar frequentar bares. Mas, no fim, não podemos fugir de nós mesmos. Certamente houve e ainda existem eremitas que foram ou são santos genuínos. Contudo, não creio que evitar certos ambientes e buscar a solidão possa ser condenado. Podemos estar em solidão, ainda que intimamente junto a outros, solidários e não sozinhos. É um assunto de temperamento, de nosso dharma pessoal, pelo menos nesta vida, se ficamos no mundo ou escolhemos a solidão. Monges, monjas e ermitãos podem meditar em solidão, podem rogar pelos outros e podem gerar impulsos de cura e de auxílio, formas pensamento, que contribuem para mudar o mundo. Lembro-me de um poema de uma teósofa americana, no qual ela descreve uma jovem que entra no mundo e pratica ativamente o bem. Ela tem uma amiga que é monja e também faz o bem a sua maneira: “Seus pensamentos, atravessando as montanhas, voavam para sua amiga, ela tremia sob o hábito áspero enquanto meditava perto da fonte do convento. Somente eu sabia por que, protegida por Deus, ela fazia isso. Seu amante cuspira nela e sua família e amigos disseram: Tem medo da vida! É insensata como um morcego. Seria melhor se estivesse morta! Ela sabia o que devia fazer nos difíceis dias vindouros. Num mundo dedicado às ações, escravizado pelas máquinas, os supremos dirigentes da coisa, somente uns poucos conhecem a terrível necessidade de suprimento espiritual. Ela fará insistentes petições ao Trono enquanto durar sua vida. Irei acima e abaixo no mundo, e onde eu for lançarei meu amor com os ventos. Não saberemos onde cai a semente nem em quais sulcos vamos semear. Nossa única esperança é acender lanternas semelhantes onde e, quando podermos, e confiar que talvez, uma se torne uma estrela que brilhe na selva para iluminar o homem que luta para voltar ao lugar de onde veio e procura o mapa do Paraíso que perdeu em sua jornada. Uns poucos devem orar e planejar para as enormes multidões de abandonados. Uns poucos, como lâmpadas, devem ser úteis na escura clareira da floresta”. Evitar o mundo não deve ser uma forma de fuga. Pois de qualquer maneira, não podemos fugir de nós mesmos. No outro lado da balança, do ermitão que sai do mundo para não ser do mundo, ou que genuinamente não é do mundo, temos o Avatar o Bodhisattva ou o Messias que não é mais do mundo, que internamente é livre, mas que está no mundo, que limita sua liberdade apenas exteriormente para ajudar e servir os outros e ser um farol para eles. Até mesmo grandes instrutores espirituais, sem necessariamente serem Avatares, Bodhisattvas ou Messias podem muitas vezes dar conselhos em assuntos práticos de todos os dias. Ramakrishna, Ramana Mahasrshi e Krishnamurti muitas vezes o fizeram. Conscientes ou inconscientemente, não ficaram cegos por considerações pessoais como muitos de nós. Vem claramente, e seus corpos são cheios de luz. Não devemos ter medo de permanecer no mundo. A verdadeira sabedoria capacita-nos a agir sabiamente, de praticar karma-yoga como habilidade em ação. E, vice-versa, levar uma boa vida abre caminho para a sabedoria. Já foi dito: “Viva a vida e atinja a sabedoria”. Aldous Huxley (1894-1963) coloca desta maneira: “A natureza da Realidade Uma é tal que não pode ser direta e imediatamente apreendida, exceto por aqueles que escolheram preencher certas condições, tornando-se amorosos, com coração e espírito puros”. Fisicamente não agimos sozinhos. Todas as nossas ações físicas são acompanhadas de pensamentos, sentimentos e motivos, que também são ações. O verdadeiro artista trabalha na matéria física criando grande beleza, edifícios, estátuas, pinturas, movimentos de dança, poemas, sinfonias entre outros. Trabalha no mundo da matéria, vive no mundo, contudo seu maior trabalho é conseguido no esquecimento do eu. E assim esse artista não é “do” mundo. Qualquer trabalho físico pode ser arte, até uma arte que não seja deste mundo. O trabalho considerado penoso pode ser criativo. O Trabalhador que cava buracos na estrada, somente para enchê-los novamente, o trabalhador industrial na linha de montagem, a esposa ou a empregada que limpam, tiram o pó, levam a casa – todos eles, nesse sentido, podem ser artistas. Muito depende de nossa atitude. O poeta George Herbert (1593-1633) escreveu: “A empregada, em sua condição, torna o penoso divino? Quem varre a sala, seguindo tuas leis, faz isto e a ação boas. Esta é a famosa pedra que tudo transforma em outro”. É por isso que os monges zen usufruem do trabalho físico. Diz o ditado de algumas ordens de monges cristãos; “Laborare est orare (trabalhar é orar)”. Em Aos Pés do Mestre temos; “Pense como faria um trabalho se soubesse que o Mestre viesse vê-lo”. Podemos fazer coisas por amor a Deus ou por amor a alguém que amamos ou simplesmente por amor. O que importa é esquecermo-nos de nós. Podemos, então, saber realmente o que estamos fazendo. Ai não somos “do mundo”, mas certamente estamos “no mundo”. Somos o mundo. Quem pratica o bem ativamente no mundo pode ser considerado um guerreiro ou um paladino como foi Annie Besant (1847-1933). O cavaleiro europeu na Idade Média tinha um código de honra ou de cavalaria, provavelmente semelhante ao dos Kshatriyas: praticar o bem, lutar contra os opressores, os injustos e maus, defender os fracos, especialmente as mulheres que eram então, e, muitas vezes, são agora, vítimas de injustiça e crueldade. Um sentido mais profundo pode ser acrescido, como no caso de Arjuna no Bhagavad Gita. Os inimigos, os opressores cruéis, derrotados pelo cavaleiro, podem-se referir não apenas a inimigos extremos, mas aos inimigos internos, isto é, à própria fraqueza, aos traços negativos de caráter como ódio, covardia, injustiça egoísmo. O espiritual não é o mundano. Não podemos prosseguir nos reinos do espírito de acordo com meios mundanos. Como disse Jiddu Krishnamurti (1895-1986): “Se quiser atingir a outra margem, não deve sair desta margem, mas começar da outra margem”. Como pode ser isso, se tudo que conhecemos é esta margem? Talvez esquecendo esta margem, esquecendo o eu, não esperar nada, estar aberto a tudo que chegar. Se vamos atravessar a corrente, não ser mais do mundo, não devemos deixar para trás, bem no fundo do coração, tudo o que sabemos, tudo o que possuímos. Como disse Cristo a um homem rico que buscava o Reino dos Céus e que já havia preenchido as qualificações de uma vida correta, dizendo que sempre havia respeitado os mandamentos. Entretanto isso não foi suficiente, disseram-lhe que vendesse tudo o que tinha e desse aos pobres, mas ele não podia fazer isso “por que era muito rico” Mateus 19,20-22. Talvez rico não apenas em bens materiais, mas talvez em conhecimento, popularidade e autoestima. Mencionados como exemplos de quem verdadeiramente está no mundo, mas não do mundo, citamos o Avatar, o Bodhisattva, o Messias. São seres que evoluíram além do estágio humano, mas que por compaixão por aqueles que ainda estão no estágio humano ou sub-humano ficam em contato com o mundo e até retomam a encarnação no mundo. A tradição hinduísta fala de Avatares, e cito Annie Besant: “(...) a mais sagrada das sagradas, essas manifestações de Deus no mundo nas quais ele é divino, vêm para auxiliar o mundo que criou, brilhando em sua natureza essencial, a forma e um fino filme que apenas esconde a divindade de nossos olhos”. Contam que houve nove Avatares, os primeiros quatro com a aparência de animais. Os mais conhecidos Avatares humanos foram o rei Rama e Sri Krishna, embora o Budha também seja considerado um Avatar, o nono. No Bhagavad Gita, Sri Krishna mostra qual é a função de um Avatar: “Sempre que houve um declínio da retidão (...) e houver exaltação da corrupção, ai eu apareço, de era a era, para proteger o bem, para destruir os malfeitores e para estabelecer firmemente a retidão. Rama foi um rei perfeito, exemplo do governante ideal, sendo puro, justo e forte. O Senhor Krishna foi e é reverenciado como a adorável e travessa criança de uma mãe adotiva, o matador dos demônios que aterrorizavam as pessoas, o amante irresistível das almas das Gopis, o encantador tocador de flauta, o guia, o filósofo e amigo do guerreiro Arjuna a quem ele revela ser a encarnação do Senhor do Universo. Como indicam as palavras do Sri Krishna, os Avatares encarnam quando há necessidade de reforma. Dizem que Sri Krishna deu uma lição para os Kshaltriyas, assim como o Senhor Budha deu uma lição aos Brahmanes, que davam mais importância à forma, à letra da Lei do que a seu espírito, esquecendo a necessidade de compaixão a todos os seres. É dito que tanto Budha como Cristo não vieram para trazer uma nova religião, mas reformar as que existiam, e que novas religiões surgiram em ambas com o correr do tempo. No budismo do norte, o Bodhisattva é reverenciado como um tipo de Avatar, alguém que chegou ao portal do Nirvana, mas recusou ter essa felicidade até que todas as criaturas vivas também estivessem prontas para entrar ai. Os Bodhissatvas permanecem no mundo embora não sejam do mundo. O voto de Kwan yin diz: “Nunca procurarei ou receberei salvação individual, nunca entrarei sozinho na paz final, mas sempre e em toda parte viverei e lutarei pela redenção de todas as criaturas em todo mundo”. Estar no mundo não significa, no caso de um Bodhisattva, que ele seja nosso vizinho de porta ou que possamos encontra-lo na rua. Na verdade, um Bodhisattva pode estar entre nós e pode nos ajudar, mas não será reconhecido a não ser por aqueles que tem “olhos para ver”. Entretanto seu auxílio sempre está presente. Cito Madame Helena P. Blavatsky (1831-1891) em A Voz do Silêncio. “Condenado por ti mesmo a viver por futuros kalpas sem o agradecimento e percepção dos homens; entalado com uma pedra entre outras inúmeras pedras que formam a Muralha guardiã, este é o teu futuro, se passares o sétimo portal (...) essa muralha guardiã construída pelas mãos de muitos Mestres de Compaixão, erguida por seus tormentos, cimentada com o seu sangue, ela defende a humanidade desde que o homem é homem, protegendo-a de ulteriores e muito maiores misérias e aflições”. No judaísmo e no cristianismo temos o conceito do Messias. Muitos judeus ortodoxos aguardam a vinda do Messias. Muitos cristãos acreditam que Jesus Cristo foi o Messias em sua encarnação na Palestina, no começo da era cristã, e algumas seitas cristãs aguardam todos os dias seu retorno. Conheci uma moça que pertencia a essa seita, e, aparentemente do apartamento de sua família, a qualquer hora, ouvia-se uma voz entoando “Jesus está chegando”. Em anos recentes, foram expostas descobertas interessantes a respeito do cristianismo, revelando que a visão tradicional é certo tipo de “cobertura”. Na tradição judia, às vezes são mencionados dois Messias: um Messias nobre, descendente do rei Davi, e um Messias sacerdotal, descendente de Arão, o Primeiro Sacerdote. Algumas vezes sugerem que os dois papeis sejam exercidos pela mesma pessoa. Eles são vistos como dois pilares unidos por um arco, significando Shalom, paz, talvez, a paz de Deus além do entendimento. Esses dois pilares refletiram-se e foram deformados na última situação na Europa, onde o imperador reinava sobre o chamado “Sagrado Império Romano”, representando o poder secular, e o Papa representava o poder espiritual. E idealmente esse conceito corresponde ao ideal hinduísta e budista do Chakravartin e do Budha. Cito de Filosofia da Índia, de Heirich Zimmer (1890-1943): Existe um antigo ideal mítico – um sonho idílico compensatório, nascido do desejo de estabilidade e paz que representava um império totalmente universal de duradoura tranquilidade com um monarca justo e virtuoso, o Chakraavartin (...) que conseguiu pôr fim à perpetua luta de estados contendores”. De acordo com a concepção budista, o monarca universal é a contraparte secular do Budha, o Iluminado, que dizem, “colocou em movimento a roda da doutrina sagrada (...) sua roda, o dharma budista, não é apenas para as castas privilegiadas, (...) mas para todo o Universo, a doutrina da libertação, com o propósito de trazer paz a todos os seres vivos sem exceção”. O monarca do mundo hinduísta, pacificando a humanidade sob sua única autoridade todos os reinos próximos sob – “o grande rei (...) rei dos reis, que foi proclamado em gradação igual aos Budhas redentores do mundo, que, através de suas doutrinas, colocaram em movimento a roda”. O Sol, a luz e a vida do mundo brilham sobre todos da mesma maneira sem distinção, e assim também brilha o verdadeiro Chakravartin. Por quanto tempo teremos que esperar por este monarca, por este Budha? Talvez até a próxima Idade do Ouro, que, certamente, não está logo ali na esquina. E, enquanto isso, estaremos “no mundo”, mas não seremos “do mundo”. Assim o mundo estará pronto no devido tempo. “Libertar-se do sentimento de posse, quer a respeito das coisas, de pessoas, de pais, de raça, de religião e até de nossas virtudes imaginárias, exige uma compreensão madura. Essa libertação torna a vida simples, sem superficialidades e é eficiente na maneira de manifestar a real beleza e natureza do Espírito em nós”. N. Sri Ram (1889-1973). Loja Teosófica Jehoshua – Porto Alegre – RS – Brasil. Abraço. Davi



terça-feira, 21 de novembro de 2023

EXISTE A VERDADE. PARTE III

Filosofia. Texto escrito por Ubaldo Nicola. Livro Antologia Ilustrada de Filosofia – Das Origens a Idade Moderna. EXISTE A VERDADE. PARTE III. Demócrito (460 AC 360). Conhecemos apenas duzentos curtos fragmentos dos escritos de Demócrito, mas isso basta para provar que foi um dos pensadores mais versáteis da história, a partir dos títulos de suas obras (cerca de setenta) nota-se o seu interesse por música, matemática, astronomia, geometria, geografia, meteorologia, linguística e arte da guerra, além da filosofia, naturalmente. Com efeito, é mais fácil citar as duas únicas disciplinas que negligenciou: política e religião. A amplitude desse programa de investigação levou o filósofo a realizar numerosas viagens ao Egito e a Pérsia, talvez até mesmo a Etiópia e a Índia. Com certeza também esteve em Atenas, mas é igualmente certo que a sua presença passou despercebida. Aristóteles (384 AC 322) e o médico Hipócrates (460 AC 370) citaram-no várias vezes, mas Platão (428 AC 347), seu contemporâneo, jamais falou a seu respeito. Demócrito conseguiu combinar o interesse enciclopédico a um excelente nível de informação, demonstrando estar sempre atualizado no campo científico e ser sensível as instâncias culturais da sua época. A própria concepção atomística, o fruto mais conhecido do seu pensamento, deve ser vista no quadro do desafio teórico lançado por Parmênides e Zenão. De fato, justamente para resolver os paradoxos derivados da hipótese de uma divisibilidade infinita do espaço, Demócrito chegou a elaboração da noção de átomo: a partícula mínima, o material indivisível e invisível do qual é formada a realidade. Estabelecida a existência do átomo, era preciso, em seguida, explicar o mundo a luz da nova hipótese. Se os átomos podem movimentar-se, premissa que deve ser levada em consideração quando desejamos explicar a morte (separação de átomos), a compacidade (característica do que é compacto) dos corpos (agregação de átomos), o seu Devir (recombinação de átomos) e uma quantidade heterogênea de outros fenômenos (a percepção visual, as leis da mecânica), devemos admitir a existência de um espaço livre, vazio de matéria; o pleno e total ser do átomo contrapõe-se ao Não Ser do vazio. A Alma também é feita de átomos. É possível subdividir uma porção de espaço físico ou um objeto material qualquer ao infinito, em partes cada vez menores? Ou existe um limite último? Demócrito chegou a elaboração da hipótese atômica tentando escolher os paradoxos postos por Parmênides. Encontrou a solução ao negar que, para a matéria do mundo físico, valesse a mesma divisibilidade infinita de que gozam os elementos matemáticos. Pode-se subdividir um número ao infinito, mas partindo-se de uma partícula de matéria progressivamente chegas-se a um mínimo indivisível (e invisível); o átomo, expressão grega que significa, literalmente, sem divisão. O átomo identificado dessa forma, torna-se, com Demócrito o elemento básico para uma série de complexas especulações; a sua existência pressupõe, antes de tudo o vazio (no qual os átomos possam movimentar-se), implica também na homogeneidade estrutural do universo, formado por combinações diversas dos mesmos átomos, e sugere a existência de infinitos átomos. Não há senão átomo e vazio. Princípio de todas as coisas são os átomos e o vazio. Todo o resto é opinião subjetiva. Existem infinitos mundos, os quais são gerados e corruptíveis; nada vem do Não Ser, nada pode perecer e se dissolver no Não Ser. Um Vórtice cósmico seleciona os átomos segundo a grandeza, originando os quatro elementos. Os átomos são infinitos sob o aspecto da grandeza e do número. Eles se movimentam no universo girando em vórtice e, desse modo, geram todos os compostos: fogo, água, ar, terra e o éter. Todas as coisas são combinações de átomos. Por também os compostos (fogo, água, ar, terra) são conjuntos de certos átomos em particular, os quais, no entanto, não são decompostos nem alterados, exatamente pela sua solidez. Também a alma e os corpos celestes são combinações de átomos. O Sol e a Lua também são compostos por tais átomos, ou seja, por aqueles lisos e redondos; e igualmente a alma, que foram uma unidade com o intelecto. A diferente combinação de átomos explica todos os fenômenos. Tudo se produz conforme a necessidade, porque a causa da formação de todas as coisas é esse movimento em vórtice (redemoinho) que ele denomina exatamente necessidade. Determinismo. Consiste na convicção de que todos os fenômenos, tanto os naturais quanto os psíquicos, estão ligados entre si por conexões necessárias e dependentes da lei de causa e efeito, excluindo qualquer explicação que introduza as noções de acaso. Segundo os Deterministas, conhecendo com precisão qualquer processo em curso, é sempre possível prever, com igual precisão, os seus resultados. Após ter sido enunciada pela primeira vez por Demócrito, a posição determinista ressurgiu com grande força no século XVII, durante a denominada Revolução Científica, e no século XIX, com o pensamento positivista. Não há senão átomo e vazio. Se cada coisa é constituída por uma agregação de átomos, como se explica a diversidade das próprias coisas? Para responder a essa objeção é suficiente, segundo Demócrito, pensar como as poucas letras que compõem um alfabeto podem, combinando-se em si formar um infinito número de palavras. Entre os átomos existem apenas diferenças quantitativas (grandeza, forma geométrica) e, portanto, a diversidade qualitativa das coisas (aparentes) explica-se pelo grande número de combinações possíveis. As qualidades sensíveis são aparentes. Opinião é a cor, opinião é o doce, opinião é o amargo, verdade são os átomos e o vazio, diz Demócrito, considerando que todas as qualidades sensíveis, que ele supõe relativas a nós, das quais temos as sensações, decorrem da variada combinação dos átomos, mas que, por natureza, não existem absolutamente branco, preto, amarelo, vermelho, doce, amargo (...). Não há senão átomo e vazio, portanto, as percepções também são combinações de átomos. Os homens acreditam que o branco e o preto, o doce e o amargo, e todas as outras qualidades do gênero, são algo de real, quando na verdade só o que existe é o ente e o nada. Demócrito também usava esses outros termos, chamando os átomos de entes e vazio de nada. O átomo não tem qualidades sensíveis, perceptíveis somente nos compostos. Todos os átomos, sendo corpos minúsculos, não possuem qualidades sensíveis, e o vazio é um espaço em que tais corpúsculos se movimentam para cima e para baixo eternamente ou se entrelaçando de diversas maneiras ou se chocando e ricocheteando, de modo a irem se desagregando e se agregando em tais compostos, e, desta forma, produzem todas as outras maiores agregações e os nossos corpos e as suas afeições e sensações. O átomo jamais sofre qualquer tipo de modificação. Supõem, também, que os corpos primeiros são inalteráveis (alguns dentre os atomistas, mais precisamente os seguidores de Epicuro (341 AC 270), porque acreditam que sejam infringíveis pela sua dureza; outros, os seguidores de Leucipo (480 AC 420), porque indivisíveis pela sua pequenez, ou melhor, que tampouco sofrem (por meio de alguma forma externa) as modificações as quais todos os homens (que extraem a sua ciência das sensações) acreditam que eles estão sujeitos. O átomo não sente os efeitos do ambiente em que se encontra. Nenhum átomo pode aquecer-se ou resfriar-se, ressecar-se ou umedecer-se, tornar-se branco ou preto ou receber outras qualidades por qualquer modificação que se queira. Livro Antologia Ilustrada de Filosofia. Das origens à Idade Moderna. Abraço. Davi.


domingo, 19 de novembro de 2023

O QUE ESTÁ ALÉM DO EGO - O ANTICRISTO

 

Gnosticismo. www.gnosisonline.com.br. Texto de Samuel Aun Weor (1917-1977). O QUE ESTÁ ALÉM DO EGO - O ANTICRISTO. É conveniente aprofundarmos um pouco mais no que se relaciona com nossa psique. Conversamos muito sobre o Ego, o Eu, o Mim Mesmo, o Si Mesmos, mas agora penetraremos em outros aspectos ainda mais profundo (…). Vimos, em passadas aulas, que na antiga Pérsia se rendia culto a Ahrimã (o princípio do mal, do caos, das trevas e da morte na tradição zoroastriana). Indubitavelmente, tal culto não era próprio dos Ários, senão de certa quantidade de pessoas, sobreviventes da submersa Atlântida (uma lendária ilha ou continente cuja primeira menção conhecida remonta a Platão (427 AC 347) em suas obras - Timeu ou a Natureza e Crístias ou Atlântida). Quero me referir, de forma enfática, aos turânios. Inquestionavelmente, para eles Ahrimã era o centro vital de seu culto. Rudolf Steiner (1861-1925) fala das “Forças Ahrimânicas” e muitos outros autores estudam tais forças. Dizíamos, em passadas cátedras, que Lúcifer é o Arcanjo Fazedor de Luz, que não é essa criatura antropomórfica (descrito ou concebido sob uma forma humana - com atributos humanos) que nos é mostrada pelos clérigos dogmáticos. Certamente, cada um de nós tem seu próprio Lúcifer. Ele, em si mesmo, é o Reflexo do Logos ou de nosso Logoi Interior, no fundo de nossa psique, a Sombra digamos, de nosso Logoi, nas profundidades de nossa própria psique. É claro que quando não estávamos caídos, quando ainda vivíamos no Éden, esse Lúcifer Interior resplandecia em nossas profundidades, gloriosamente. A Bíblia Sagrada diz em Ezequiel 28,13-15 em relação a Lúcifer antes da queda: "Estivestes no Éden, Jardim de Deus; de toda pedra preciosa era a tua cobertura: sardónia, topázio, diamante, turquesa, ônix, jaspe, safira, carbúnculo, esmeralda e ouro; em ti se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que fostes criados foram preparados. Tu eras o querubim, ungido para cobrir, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que fostes criado, até que se achou iniquidade em ti". Mas quando cometemos o erro de “comer daquele fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal" do qual se disse “Não Comereis”, Então nosso Lúcifer Íntimo caiu, converteu-se no Diabo do qual as teogonias (narração do nascimento dos deuses e apresentação de sua genealogia) falam. E que agora necessitamos “branquear o diabo”, é verdade, e morrendo em si mesmos aqui e agora. Quando logramos a dissolução do Eu de forma radical, esse diabo das mitologias se branqueia, volta a resplandecer, converte-se em Lúcifer, no Fazedor da Luz. Quando ele se mescla com nossa Alma e nosso Espírito, ele nos transforma, por tal motivo, em Arcanjos gloriosos. Ahrimã é algo muito diferente, meus estimados irmãos: ele é o anverso (face de uma moeda que mostra o elemento principal por oposição ao reverso) da medalha de Lúcifer, é o aspecto negativo dEle. Esse Fogo Ahrimânico expressa-se na forma dos antigos turânios da Pérsia. É a fatalidade, os poderes tenebrosos deste mundo. Propriamente, Ahrimã está ainda mais além do próprio Ego (…). Dizíamos em passadas reuniões o que é o Ego. Porém, agora avançando didaticamente, diremos agora o que é a Base do Ego, o seu Fundamento, que está mais além do Mim Mesmo. Ele é o “Iníquo” (dito em II Tessalonicenses 2,7-8 "Por que já o mistério da injustiça opera; somente há um que agora o retém, até que do meio seja tirado. E então será revelado o iníquo, a quem o Senhor desfará pelo assopro da sua boca, e destruirá pelo esplendor de sua vinda" de que nos fala Paulo de Tarso nas Sagradas Escrituras, o Homem do Pecado, a antítese digamos, ou o anverso da medalha com relação, precisamente, ao Filho do Homem: ou O Anticristo (…). No Apocalipse de São João, fala-se da Besta de sete Cabeças e dez Cornos. Apocalipse 13,1 diz: "E eu pus-me sobre a areia do mar, e vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia". Essas sete cabeças são os sete pecados capitais  (ira, cobiça, luxúria, inveja, orgulho, preguiça, gula, com todas as suas derivações). Já os dez cornos representam a Roda do Samsara (pode ser descrito como o fluxo constante de nascimento, doença, envelhecimento, morte e renascimento pelo qual todo ser está sujeito). Isso significa que gira incessantemente. Por isso se diz em Apocalipse 17,8 “sobe do abismo e vai à perdição”; corresponde à Roda do Samsara. Devemos refletir nisso profundamente (…). Fala-se de outra “Besta”, Apocalipse 13,11 a que tem “dois cornos” e se diz que “a primeira recebeu uma ferida em uma de suas sete cabeças (ferida de espada), porém, que sarou”, e que “as multidões todas se maravilharam do poder da Besta, que foi ferida e voltou” (…). Deve-se saber compreender que se pode acabar com os “elementos” que constituem o Ego, mas, sem embargo, “ressuscitam na Besta”, no Anticristo, no monstro das sete cabeças. Quando se aniquilaram, absolutamente, os demônios da ira, é como se tivesse ferido uma das cabeças da Besta, porém, logo se fortifica tal defeito em dita cabeça e a Besta vive. É como se acaba com a cobiça em todas as quarenta e nove Regiões do Subconsciente, quando se aniquilam os elementos inumanos da cobiça, e a mesma revive com mais força em outra das cabeças da Besta, e assim, sucessivamente (…). Quando um homem consegue morrer totalmente em si mesmo, ainda fica a Besta. Por isso se diz, meus queridos irmãos, que “antes do Cristo vir, vem o Anticristo”. Antes que o Cristo ressuscite em um Homem, manifesta-se o Anticristo, a Besta que deve ser morta (…). Bem, diz o Mestre Jesus no evangelho em Mateus 26,52 que “o que pela espada fere, pela espada há de morrer”; “quem a outros conduz ao cativeiro é também conduzido ao cativeiro”; e que é dito em Apocalipse 14,12 “eis aí a paciência dos Santos”. Com isso se quer dizer que à base de infinita paciência, o Anticristo em nós pode ser morto, por isso se requer Paciência e Trabalho (…). Inquestionavelmente, o Anticristo faz “milagres” e “prodígios” enganosos: inventa bombas atômicas (assim é como faz “chover fogo do céu”). É cético por natureza e por instinto, terrivelmente materialista. Quando se ouviu dizer que Ahrimã seja místico? Nunca! Por isso, os turânios (Nota do Gnosis Online: povos bárbaros e involutivos atlantes que se estabeleceram em certas regiões do atual Irã e renderam culto a um mago negro cabeça de legião de nome Ahrimã), querendo dominar o mundo estabeleceram o culto de Ahrimã, ou seja, o culto do Anticristo. Há duas ciências, de toda a eternidade: uma é a Ciência Pura, que só a conhecem os Perfeitos, e a outra é a da Besta, a do Anticristo, terrivelmente cética e materialista, que se baseia no raciocínio subjetivo, que não aceita nada que se pareça com Deus ou que o adore (…) espantosamente grosseira. Se vocês derem uma olhadela no mundo atual, verão a Ciência do Anticristo por todos os lugares. E estava dito pelos melhores profetas da Antiguidade que “chegaria o dia da Grande Apostasia, em que não se aceitaria nada semelhante a Deus, ou que se o adorasse (…)”. Esse dia chegou e estamos nele. Depois da Grande Apostasia em que estamos (que cresceu e crescerá ainda mais), virá o Cataclismo - catástrofe mundial - Final. Assim está escrito por todos os grandes profetas do passado. O que necessitamos é Compreensão suficiente para não seguirmos a Besta. Desgraçadamente, cada um de nós a leva no fundo de sua psique. Se somente fosse uma Besta externa, como alguns supõem, o problema não seria grave, porém, o grave, irmãos, é que cada um a carrega  e tem uma força terrível. Observem vocês mesmos e a descobrirão (…). Se vocês são sinceros consigo mesmos e meditarem, se concentrarem em seu interior, tratando de se auto explorar, poderão evidenciar dois aspectos perfeitamente definidos: um, sincero, o da Mística verdadeira, o daquele que anela, o que quer de verdade se auto realizar, conhecer a si mesmo; mas há outro aspecto de vocês mesmos que o sentiram, que sabem que existe: o da Besta, que rechaça estas coisas, que se opõe a estes anelos e que, ainda que um homem seja muito devoto e sincero, tem momentos em que sendo assim, tão sincero, se maravilha de que haja nele algo em seu interior que se opõe definitivamente aos anelos espirituais. Ainda mais, que chega a rir de tais anelos. De formas que há uma luta, digamos entre duas porções da psique: a que anela de verdade e que é a Essência pura, e a da Besta, que ri destas coisas, que é grosseiramente materialista, que não as aceita. Se forem sinceros consigo mesmos e se auto explorarem, poderão evidenciar a realidade do que estou lhes dizendo. E é que a Besta, Ahrimã, o Anticristo, não está interessado em assuntos espirituais. Certamente, a ele o único que interessa é a matéria física, densa, grosseira (…). Precisamente, o ateísmo marxista-leninista, o materialismo soviético, tem seu fundamento em Ahrimã (…). (Hoje o materialismo, racionalista, técnico cientificista está enraizado também no mundo capitalismo, tentando subtrair a essência daquilo que é divino em nós). Porém, digo a vocês: necessita-se ser sincero consigo mesmo. Em vocês há uma parte que é a Fé e sentem em sua psique o anelo, mas há outra parte que a vocês mesmos não lhes agrada, porém que existe, e que é o ceticismo (…). “Isso existe e não existe”, é a antítese do que vocês querem, e o mais grave é que vocês também são essa antítese. Obviamente, tal antítese é a do Anticristo, a de Ahrimã (…). Vocês sabem que a morbosidade, por exemplo, a luxúria, é asquerosa, abominável, porém há algo na psique de vocês que ri de seus anelos de Castidade, que consegue às vezes ganhar uma partida, que se burla de vocês: é o Ahrimã, a Besta (…). Vocês sabem que a ira, por exemplo, é asquerosa, porque mediante a ira se perde a clarividência, que se arruína. Vocês se propõem a não ter ira, porém, em qualquer momento vocês estão “trovejando” e “relampagueando”. Obviamente, não duvidam de que se trata dos Eus e até conseguem controlá-los, porém, algo surge no fundo, atrás desses Eus, que se mofa de suas boas intenções. Um homem poderia acabar com a ira, mas sem embargo, em qualquer momento poderia senti-la, mesmo tendo acabado com ela, porque qualquer cabeça da Besta, ferida pelo fio da espada, volta outra vez a s curar (…) eis aí o Poder da Besta. Por isso é que todos se inclinam ante a Besta e a adoram (…) É o Anticristo! Os que supõem que o Anticristo já nasceu na Ásia, por ali, e que vem rumo ao Ocidente e que aparecerá em tal ano, fazendo maravilhosas e prodígios, está completamente equivocado: Cada qual o leva em seu interior!  É a Besta, é Ahrimã, é digamos o anverso da medalha do Homem Causal. Está formado por todas essas causas ancestrais, delituosas, que desde os antigos tempos temos criado, de vida em vida; é o aspecto negativo do Homem Causal. Assim, então, se formos sinceros, se formos honrados com nós mesmos, se tivermos o valor de auto explorarmos judiciosamente, viremos a descobrir que realmente “o Iníquo” de que nos fala Paulo de Tarso nas Sagradas Escrituras, e que é cada um de nós. Tudo que “cheira a Deus”, que se adore, é motivo de burla para o Iníquo. Observem vocês a si mesmos: Têm seus momentos de mística, de oração, de devoção (são momentos deliciosos), porém, de todo modo, numa hora menos pensada surge o Iníquo, que ri de todas essas coisas. Quando vocês o notarem, já será tarde, ele já riu. É que cada um leva em seu interior e é muito forte, muito poderoso, faz “milagres” e "prodígios” enganosos, inventou toda esta Falsa Ciência. E todos os sabichões de laboratório de física, mecânica, biologia, que não veem mais além de seus narizes, dizem: “Isso? Isso não existe, não está demonstrado!” “Aquilo? são lendas das pessoas ignorantes de outros tempos, de antes!”, com uma soberba e um cinismo desconcertantes. Esta é a Ciência do Iníquo, do Anticristo! Há outra Besta, diante do Iníquo, que tem dois cornos: é o Eu, o Ego, o mim mesmo, que lhe é dado fazer todas as “maravilhas e sinais” diante da humanidade e que defende o Iníquo, dotada de grande poder. Essas são as duas Bestas do Apocalipse de São João. Muitos conseguem destruir a primeira Besta, submetem-se às ordálias da Iniciação e o conseguem, porém, mui raros são os que conseguem aniquilar o Iníquo, o Anticristo. “Não há como a Besta!”, diz a humanidade, e todo joelho se dobra ante a Besta. Ela faz aviões ultrassônicos, foguetes que cruzam o espaço a velocidades gigantescas, ela cria soros, medicamentos, elabora armas atômicas de todo tipo, a chispante intelectualidade, os líderes políticos etc. Destruir o Iníquo, quem conseguirá? Quem será suficientemente forte como para destroçá-lo em si mesmo? Alguns o conseguiram, sim, mas depois delinquiram (...) a Besta tem a força que pode ser morta e ressuscitar. Obviamente, o Filho do Homem, quando vem a este mundo, é sempre submetido à ignomínia, exposto a toda classe de vexações. Porém, quem é seu vexador? Quem o submete à ignomínia? A Besta! Quando Ele vem a este mundo, tem de entrar na Besta, e a Besta se mofa dele e lhe submete à ignomínia; é seu cárcere, é sua prisão. Se Ele é valoroso, a Besta é covarde, e então é submetido à ignomínia. Se é casto, a Besta não o é, e Ele sofre o indizível. Mas quando a Besta é morta, quando é lançada no “lago ardente de fogo e enxofre”, que é a Morte Segunda, o Filho do Homem ressuscita dentre os mortos e vive. Vocês terão bem visto como se representa o Divino Rosto: a cabeça coroada de espinhos do Filho do Homem. Abundam em distintos lugares do mundo tais cabeças, vêm da Idade do Bronze (5.000 mil anos atrás), e é que o rosto do Filho do Homem é banhado em sangue pelas vexações que sofre. Medito, dentro da Besta, há de sofrer até que a Besta seja morta. Escrito está, pois, que “ antes de vir o Cristo, virá o Anticristo” em cada um de nós. E falando de forma coletiva, direi: que antes de vir a Idade de Ouro (a era dourada é conhecida como uma era de paz, harmonia, estabilidade e prosperidade), o Anticristo se terá feito onipotente sobre a face da terra. “A Ciência se multiplicará”, diz Daniel 12,4 (a ciência materialista do Anticristo), “entra nele e todo joelho se fincará ante a Besta.” Assim está escrito em Apocalipse 13. O “Falso Profeta que faz os sinais diante da Besta” é o Ego, o Eu, o Mim Mesmo, o Si Mesmo; e a Besta monta sobre a Grande Rameira, qual seja: o Abominável Órgão Kundartiguador, a Serpente Tentadora do Éden. Assim, então, irmãos, é necessário compreender o que é a Besta. Tem poderes terríveis, gigantescos. Quando se compreende isto, preocupa-se então por fazer dentro de si mesmo uma Criação Nova. Como disse Paulo de Tarso (e isso é verdade) em I Coríntios 7,19: “A circuncisão nada vale, a incircuncisão nada vale, o importante é fazer uma Nova Criação”. E qual é essa “nova criação”? É a fabricação dos Corpos Existenciais Superiores do Ser. E qual é a “marca do Cristo”? Os Estigmas, diríamos, os Sinais de Mercúrio com os quais se está trabalhando (falando em rigorosa Alquimia). Mas se alguém não faz uma Nova Criação, nada fez. Nos antigos Mistérios do Egito, quando o Iniciado ia receber sua primeira Iniciação, entrava num sepulcro, cheio de muitos Verbos, e ali permanecia adormecido três dias com suas noites, como que morto. Então, fora do corpo físico, encontrava-se cara a cara com sua Mãe Divina (Ísis), a qual trazia em sua destra um livro (o Livro da Sabedoria, mediante o qual é possível se orientar para realizar a Grande Obra). E qual é o Livro da Sabedoria? O Apocalipse! E quem o entende? O que estiver fazendo a Grande Obra. Quem não estiver fazendo a Grande Obra não o entenderá porque esse é o “Livro de toda a Criação”. Passados os três dias, o Iniciado ressuscitava dentre os mortos, porque voltava à vida. É claro, não era a Ressurreição Maior, não; era a Pequena Ressurreição, porque em cada Iniciação algo morre em nós e algo ressuscita em nós. Então, por este Caminho vamos morrendo e ressuscitando pouco a pouco. Esses três dias são as três Purificações pelas quais se tem de passar: três Purificações pelo Ferro e pelo Fogo. A Ressurreição Maior somente é possível depois da Morte Maior. Quando se ressuscita a fundo, quando se passa pela Grande Ressurreição, Ahrimã morre, já não fica nada do Anticristo, nem da Besta, nem do Falso Profeta; para eles, Apocalipse 20,10 o “lago ardente com fogo e enxofre”, que é a Morte Segunda. Então, levanta-se o Filho do Homem, Ele ressuscita no Pai e o Pai ressuscita no Filho, porque o Filho e o Pai são um. Assim, então, tudo está dentro de nós, é dentro de nós mesmos que nos cabe trabalhar. Assim, como estamos, somos um fracasso! Necessitamos que o Ego morra, e tendo conseguido isso, se faz necessário que morra a Besta, o Ahrimã, o “monstro de sete cabeças e dez chifres”, o anverso do Homem Causal. Só assim, meus queridos irmãos, é possível ressuscitar um pouco mais tarde. Antes desse instante, teremos de nos contentar com pequenas mortes e ressurreições. Porém, não é possível a Ressurreição Final antes da morte da Besta (…). Todas as Escolas nos falam de que o Iniciado permanece três dias num Sepulcro e que depois disso sai transformado. Algumas escolas tomam isso literalmente, cruamente, e creem que de verdade são três dias, ali, recostado, metido num caixão de morto, e que logo se levanta feito um Deus. Não entendem a realidade das coisas, não querem compreender que esses três dias são as três Purificações pelo Ferro e pelo Fogo. Para se conseguir isso, necessita-se de toda uma vida de sacrifícios. Zoroastro (profeta e poeta nascido na Pérsia, provavelmente em meados do século VII AC), Zaratustra, começou muito jovem e já ancião, o conseguiu. Há os que começam já numa idade madura, ou velhos. Obviamente, não alcançam em uma só existência o fazer, mas podem avançar muito, e em sua futura existência, terminar a Obra. Porém, repito: Não é possível chegar a ressurreição suprema sem a morte do anticristo! Todos os seres, incluindo Ele (JESUS), tiveram de branquear (o diabo), se Ele não havia logrado branqueá-lo de todo, depois teve de branqueá-lo através da Iniciação. Em todo caso, o Drama Cósmica da Iniciação é altamente simbólico, os Evangelhos estão escritos em Chave, foram feitos POR Iniciados e PARA Iniciados. Necessita-se passar toda uma vida de Estudos Herméticos e depois de haver chegado à ancianidade é quando se vem a compreendê-lo. Necessita-se haver branqueado seus cabelos (em Sabedoria), pra se poder chegar a entender o que são os Evangelhos. www.gnosisonline.com.br. Abraço. Davi

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

O DIAMANTE QUE CORTA AS ILUSÕES

 

Budismo. Por Thic Nhat Hanh (1926-2022). O DIAMANTE QUE CORTA AS ILUSÕES. O diamante pode cortar qualquer coisa, mas nada pode cortar o diamante. Precisamos desenvolver um insight que se assemelhe ao diamante para cortar nossas aflições. Se você estuda o Sutra Conhecendo a Melhor Maneira de Pegar uma Serpente e, a seguir, o Sutra do Diamante, verá a conexão entre essas duas escrituras. O Sutra do Diamante registra uma conversa entre Buda e seu discípulo Subhuti. É um dos primeiros sutras Prajnaparamita. Estão presentes dois mil e duzentos bhikshus e muitos bodhisattvas 25.000 ou 50.000. A questão colocada por Subhuti é: "Honrado Senhor, se filhos e filhas de boas famílias querem dar início ao mais elevado, mais completo despertar da mente, em que deveriam eles confiar e o que deveriam fazer para dominar seus pensamentos?" Subhuti estava ciente de que o princípio do caminho de um bodhisattva é a bodhichitta a aspiração de trazer a nós e a todos os outros seres vivos até a "outra margem" da felicidade e liberdade. Esta é a resposta de Buda: "Haja tantas espécies de seres viventes quantas houver, sejam eles nascidos de ovos, de ventres, da umidade, ou espontaneamente; tenham ou não formas; tenham ou não percepção; ou, que não se possa afirmar deles que têm ou não têm percepção, devemos levar todos esses seres ao Nirvana para que possam ser liberados". Devemos fazer votos de praticar para todos, não somente para nós. Praticamos para árvores, animais, rochas e água. Praticamos para seres com forma e seres sem forma, para seres com percepção e seres sem percepção; fazemos votos de trazer todos esses seres à praia da liberação. E, contudo, quando tivermos trazido todos esses seres até a outra margem da liberação, nos damos conta de que ser nenhum foi trazido à outra margem da liberação. Este é o espírito do budismo Mahayana. Existem quarenta versos resumindo os ensinamentos do Sutra do Diamante Prajnaparamita. Todo budista que pratica discernimento, vipasyana, tem Prajnaparamita, o perfeito entendimento, como seu pai ou sua mãe. Seres viventes jamais nasceram, e são puros desde a origem. Esta é a prática da mais elevada perfeição. O bodhisativa, enquanto leva seres viventes à outra margem, não vê qualquer ser. Isto não é difícil de entender. Apenas relaxe e deixe a chuva do darma cair. Tenho certeza de que você entenderá. Segundo o Senhor Buda, existem quatro noções que devemos examinar cuidadosamente self, pessoa, ser vivente e extensão de vida. "Quando estes inumeráveis, imensuráveis, infinito número de seres forem liberados, nós, verdadeiramente, não acharemos que um ser sequer tenha sido liberado. Por que é assim? Subhuti, se um bodhisattva mantém a idéia de que existe um self, uma pessoa, um ser vivente, ou uma extensão de vida, esse alguém não é um bodhisattva autêntico. Sabemos que uma flor é feita somente de elementos não flor, isto é luz solar, terra, água, tempo e espaço. Tudo no cosmo vem junto para realizar a presença de uma flor, e a essa condição sem limites chamamos de elementos não flor. O lixo ajuda a fazer a flor, e a flor cria mais lixo. Se meditarmos, poderemos ver agora, aqui mesmo, o lixo na flor. Se você é um jardineiro orgânico, já sabe disso. Isso não são apenas palavras. É nossa experiência, o fruto da nossa prática de observar profundamente. Podemos ver a natureza interior da existência, olhando qualquer coisa. Um eu, não é possível sem elementos não eu. Olhando profundamente qualquer coisa, vemos o cosmo todo. O um é feito de muitos. Cuidando de nós mesmos, cuidamos dos outros ao nosso redor. A felicidade e estabilidade deles são a nossa felicidade e estabilidade. Se estivermos libertos das noções de eu e não eu, não teremos medo das palavras eu e não eu. Mas se virmos o eu como nosso inimigo e pensarmos que o não eu, é nosso salvador, estaremos presos. Estaremos tentando empurrar uma coisa e abraçar outra. Quando nos damos conta de que cuidar do eu é cuidar do não eu, estamos libertos, e não temos que empurrar fora nem um nem outro. Buda disse: "Refugie-se na ilha do eu". Ele não temia usar a palavra "eu", porque estava liberto de conceitos. Mas nós, estudantes de Buda, não nos atrevemos a usar essa palavra. Muitos anos atrás, quando propus um gatha para acompanhar o som dos sinos ,"Ouça, ouça. Este som maravilhoso me traz de volta ao meu eu", vários budistas se negaram a recitá-lo porque incluía a palavra "eu". Então eles mudaram para: "Ouça, ouça. Este som maravilhoso traz-me de volta à minha verdadeira natureza". Para se considerarem estudantes sérios de Buda, eles tentaram fugir do "eu" mas, em lugar disso, apenas se tornaram prisioneiros de conceitos. Se um bodhisattva se apega à idéia de que existe um eu, uma pessoa, um ser vivo, ou uma extensão de vida, essa pessoa não é um autêntico bodhisattva. Se estivermos conscientes de que o eu é sempre feito de elementos não eu, nunca seremos escravizados ou atemorizados pela noção de eu ou não eu. Se dissermos que a noção de eu é prejudicial ou perigosa, devemos dizer que a noção de não eu pode ser até mais perigosa. Prender-se à noção de eu não é bom, mas prender-se à noção de não eu, é pior. O entendimento de que o eu, é feito tão somente de elementos não eu é seguro. Buda não disse: "Você não existe". Ele apenas disse: "Você não tem um eu". Sua natureza é não eu. Nós sofremos porque pensamos que ele disse que não existimos. De um extremo caímos em outro extremo, mas ambos os extremos são apenas conceitos. Nunca experimentamos a realidade. Apenas temos conceitos sobre ela, e sofremos por isso. Temos noção de que "pessoa" é distinto de "não pessoa", como as árvores, um veado, um esquilo, uma coruja, ar ou água. Mas "pessoa" também é uma noção a ser transcendida. Ela é feita somente de elementos não pessoa. Se você crê que Deus fez primeiro o homem e depois criou as árvores, frutos, água, céu, você está em desacordo com o Sutra do Diamante. Sutra do Díamante ensina que um homem é feito de elementos não homem. Sem árvores o homem não pode ser. Esta é a prática de enxergar profundamente, de tocar a realidade, e de viver totalmente consciente. Você enxerga e toca todas as coisas como uma experiência e não como uma noção. A noção de que o homem é mais importante que as outras espécies é uma noção errada. Buda nos ensinou a sermos cuidadosos com o nosso meio ambiente. Ele sabia que, cuidando das árvores, estamos cuidando dos homens. Precisamos viver nosso dia a dia com esse tipo de consciência. Isto não é filosofia. Precisamos desesperadamente de total consciência para que nossos filhos e netos estejam a salvo. A ideia de que o homem pode fazer qualquer coisa que queira às custas dos elementos não homem é uma noção ignorante e perigosa. Respire com profunda consciência de que você é um ser humano. Então expire e toque a Terra, um elemento não homem, como se ela fosse a sua mãe. Visualize as correntes de água sob a superfície da Terra. Veja os minerais. Veja nossa Mãe Terra, a mãe de todos nós. Então levante seus braços e inspire novamente, tocando as árvores, flores, frutas, pássaros, esquilos, ar e céu, os elementos, não homem. Quando sua cabeça está tocando o ar, o sol, a lua, as galáxias, o cosmo, elementos não homem que vêm juntos para tornar possível o homem, você vê que todos os elementos estão vindo para você a fim de tornar possível seu ser. Vamos considerar juntos a noção de "ser vivente". Seres viventes são seres que têm sensações. Seres não viventes são seres que não têm sensações. Atualmente os cientistas estão achando difícil estabelecer fronteiras. Alguns não têm certeza se os cogumelos são plantas ou animais. O poeta francês Alphonse de Lamartine (1790-1869) perguntou se os objetos inanimados têm alma. Eu diria que sim. O compositor vietnamita Trinh Cong Son (1939-2001) disse: "Amanhã mesmo rocha e pedregulho necessitarão um do outro". Como sabemos que as pedras não sofrem? Depois da bomba atômica ter sido jogada em Hiroshima, as rochas e os parques de lá ficaram mortos, e os japoneses levaram tudo embora e trouxeram rochas vivas. Nos templos do budismo Mahayana fazemos votos para que todos os seres, animados ou inanimados, realizem a iluminação perfeita. Embora usemos as palavras "animados" e "inanimados", estamos conscientes de que todos são seres, e que a distinção entre seres viventes e seres não viventes é falsa. Um verdadeiro bodhisattva vê que seres viventes são feitos de elementos não-viventes. A noção de "seres viventes" é dissolvida, e o bodhisattva é emancipado. O bodhisattva devota sua vida a ajudar a levar os seres viventes "para a outra margem", sem se ater à noção de "seres viventes". Devido à nossa tendência em usar noções e conceitos é que não conseguimos tocar a realidade como ela é. Construímos uma imagem da realidade que não coincide com o que ela de fato é. Por isso são importantes esses exercícios para ajudar a nos libertar. Eles não são filosóficos. Se tentarmos fazer doutrina dos ensinamentos de Buda, estaremos perdendo o ponto essencial. Estaremos apanhando a serpente pelo rabo. Durante nossa vida diária praticamos viver totalmente conscientes a fim de tomarmos contato com a realidade, observarmos as coisas para enxergar a verdadeira natureza do não eu. Muitas pessoas entendem mal os ensinamentos de Buda. Elas pensam que ele está negando a existência de seres viventes. Não é uma negação. Buda está nos oferecendo um instrumento para nos ajudar a alcançar um profundo entendimento e a emancipação. O instrumento é para ser usado e não para ser idolatrado. O barco não é a praia. As três primeiras noções: eu, pessoa e ser vivente são apresentadas em termos de espaço. A quarta noção extensão de vida é apresentada em termos de tempo. Antes de nascer, você já existia? Existia um eu?. Quando você começou a ter um eu? No momento da concepção? A espada do discernimento corta a realidade em dois pedaços o período da sua não existência e o período em que você começou a existir. Como continuará você? Quando morrer, transformar-se-á em nada outra vez?. Esta é uma questão assustadora que todos os seres humanos ponderam. O que acontecerá depois que eu morrer? Quando ouvimos: "Não existe eu", nos tornamos ainda mais temerosos. É confortável dizer: "Eu existo", e então perguntamos: "O que acontece depois que eu morrer?". Tentamos nos agarrar a noção de eu que nos faz sentir mais confortáveis. "Este é o mundo. Este sou eu. Eu continuarei". Buda fez uma simples declaração a respeito da existência das coisas: "Isto é, porque aquilo é. Isto não é, porque aquilo não é". Tudo conta com tudo o mais a fim de existir. Precisamos entender o que Buda quis dizer por "ser". Nosso conceito de ser pode ser diferente do dele. Não podemos dizer que Buda confirmou "ser" e negou "não ser". Isto é como pegar uma serpente pelo rabo. Quando ele disse: "Isto é, porque aquilo é", Buda não estava tentando estabelecer uma teoria de ser que negasse o não ser. Isto é oposto ao que ele quis dizer. Na filosofia ocidental, o termo "ser em si mesmo" está bem próximo do termo budista "tal qual é", a realidade como ela é, livre de concepções ou apegos. Você não pode agarrá-la, porque querer agarrar a realidade com conceitos e noções é como querer agarrar o espaço com uma rede. A técnica, portanto, é parar de usar conceitos e noções e entrar na realidade em um instante não conceitual. Buda nos muniu de um instrumento para remover noções e conceitos e tocar diretamente a realidade. Se você continua a se agarrar a noções e conceitos budistas, está perdendo a oportunidade. Você estará carregando o barco sobre os ombros. Não seja prisioneiro de nenhuma doutrina ou ideologia, mesmo as budistas. O modo de ser expresso por Buda está no âmago da realidade. Não na noção que usualmente construímos para nós. Nossa noção de ser é dualista, o oposto da noção de não ser. A realidade de ser que Buda tenta nos transmitir não é o oposto do não ser. Ele está usando a linguagem de um modo diferente. Quando diz "eu" não significa que seja o oposto de alguma coisa. Buda é muito consciente de que o eu é feito de elementos não eu. Esse é nosso verdadeiro eu. É possível abandonar nossas noções de ser e não ser a fim de que possamos tocar a realidade? Claro! De outra forma, qual a utilidade de praticar? No budismo Mahayana, usamos "anti noções" para ajudar a nos livrar das noções. Se você é pego pela noção de ser, a noção de vacuidade está ali para resgatá-lo. Mas se você se esquece de que a verdadeira vacuidade é plena de tudo, você será pego pelo seu conceito de vacuidade, sendo picado pela serpente. O Sutra Ratnakuta diz que é melhor estar preso pela noção de ser do que pela noção de vacuidade. Todas as outras noções podem ser curadas pela noção de vacuidade, mas quando ficamos presos pela noção de vacuidade, a doença é incurável. A crença de que o eu existe antes de eu ter nascido e que, depois de eu ter morrido, continuará, é uma crença na permanência. A crença oposta, de que depois de morrer você penetra na absoluta vacuidade, é uma crença na extinção. Esses tipos de pontos de vista são debatidos no Sutra Conhecendo a Melhor Maneira de Pegar uma Serpente. Os praticantes budistas precisam tomar cuidado para não cair em nenhuma das armadilhas, a crença num eu permanente (pequeno ou grande) ou a crença na extinção (tornar-se nada). Essas duas noções devem ser transcendidas. Muitos budistas não são capazes disso, e ficam presos numa noção ou na outra, sendo picados pela serpente uma vez após outra. Um dia eu estava observando uma vareta de incenso queimando. A fumaça que vinha de sua ponta criava lindas formas no ar. Ela parecia viva, realmente ali. Percebi uma existência, um ser, uma vida, e sentei-me calmamente apreciando a mim mesmo e o "eu" da vareta de incenso. Fiquei apreciando a fumaça flutuar para cima criando formas variadas. Usei minha mão esquerda para "pegar" a fumaça. Foi especialmente belo o último momento em que o incenso queimou. Instantes antes dele se consumir havia mais oxigênio de ambos os lados, desse modo, por um momento, ele ardeu mais intensamente, emitindo uma brilhante cor vermelha. Olhei-o com toda a minha concentração. Era um parinirvana, uma grande extinção. Para onde tinha ido a chama? Quando uma pessoa está para morrer, geralmente se torna muito alerta nesse último momento de vida, e então se apaga exatamente como a vareta de incenso. Para onde foi a alma? Eu tinha várias outras varetas de incenso e sabia que, se no último momento eu pegasse uma outra e a acendesse na primeira, a chama teria continuado na nova vareta, e a vida do incenso continuaria. Era apenas uma questão de combustível, ou de condições. O ensinamento de Buda é muito claro: quando certas condições estão presentes, nossos sentidos percebem algo e o qualificam como "ser". Quando essas condições não são mais suficientes, nossos sentidos percebem a ausência daquele algo, e o qualificam como "não ser". Essa é uma percepção equivocada. A caixa de incenso tem muitas varetas. Se eu abasteço uma vareta após outra, no combustível, a vida do incenso é eterna? O Buda está vivo ou morto? É uma questão de combustível. Talvez você seja o combustível, e dê continuidade à vida de Buda. Não podemos dizer que Buda esteja vivo ou morto. A realidade transcende nascimento, morte, produção e destruição. "Qual era sua face antes de seus pais terem nascido?". Este é um convite para que encontre seu verdadeiro eu, que não está sujeito a nascimento e morte. Cultivando a mente no amor. Por Thic Nhat Hanh. Abraço. Davi.