Cristianismo. www.vatican.va. EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL. QUERIDA AMAZÔNIA. Do Santo Padre
Francisco (1936 - ). Ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade.
Capítulo II. UM SONHO CULTURAL. 28. O objetivo é promover a
Amazónia; isto, porém, não implica colonizá-la culturalmente, mas fazer de modo
que ela própria tire fora o melhor de si mesma. Tal é o sentido da melhor obra
educativa: cultivar sem desenraizar, fazer crescer sem enfraquecer a
identidade, promover sem invadir. Assim como há potencialidades na natureza que
se poderiam perder para sempre, o mesmo pode acontecer com culturas portadoras
duma mensagem ainda não escutada e que estão ameaçadas hoje mais do que nunca. O poliedro amazônico. 29. Na Amazónia, vivem muitos povos e nacionalidades, sendo mais de
cento e dez os povos indígenas em isolamento voluntário (PIAV)[31].
A sua situação é fragilíssima; e muitos sentem que são os últimos depositários
dum tesouro destinado a desaparecer, como se lhes fosse permitido sobreviver
apenas sem perturbar, enquanto avança a colonização pós-moderna. Temos que
evitar de os considerar como «selvagens não-civilizados»; simplesmente criaram
culturas diferentes e outras formas de civilização, que antigamente registaram
um nível notável de desenvolvimento[32]. 30. Antes da colonização, os centros habitados concentravam-se nas
margens dos rios e lagos, mas o avanço da colonização expulsou os antigos
habitantes para o interior da floresta. Hoje, a crescente desertificação obriga
a novas deslocações muitos, que acabam por ocupar as periferias ou as calçadas
das cidades por vezes numa situação de miséria extrema, mas também de
dilaceração interior devido à perda dos valores que os sustentavam. Neste
contexto, habitualmente perdem os pontos de referência e as raízes culturais
que lhes conferiam uma identidade e um sentido de dignidade e vão alongar a
fila dos descartados. Assim interrompe-se a transmissão cultural duma sabedoria
que, durante séculos, foi passando de geração em geração. As cidades, que
deveriam ser lugares de encontro, enriquecimento mútuo e fecundação entre
diferentes culturas, tornam-se palco dum doloroso descarte. 31.
Cada povo, que conseguiu sobreviver na Amazônia, possui a sua própria
identidade cultural e uma riqueza única num universo multicultural, em virtude
da estreita relação que os habitantes estabelecem com o meio circundante, numa
simbiose – de tipo não determinista – difícil de entender com esquemas mentais
alheios:
«Havia outrora uma paisagem que
despontava com seu rio,
seus animais, suas nuvens e suas árvores.
Às vezes, porém, quando não se via em lado nenhum
a paisagem com seu rio e suas árvores,
competia a tais coisas assomar à mente dum
garotinho»[33].
seus animais, suas nuvens e suas árvores.
Às vezes, porém, quando não se via em lado nenhum
a paisagem com seu rio e suas árvores,
competia a tais coisas assomar à mente dum
garotinho»[33].
«Do rio, fazes o teu
sangue (…).
Depois planta-te,
germina e cresce
que tua raiz
se agarre à terra
mais e mais para sempre
e, por último,
sê canoa,
barco, jangada,
solo, jarra,
estábulo e homem»[34].
Depois planta-te,
germina e cresce
que tua raiz
se agarre à terra
mais e mais para sempre
e, por último,
sê canoa,
barco, jangada,
solo, jarra,
estábulo e homem»[34].
32. Os grupos humanos, seus estilos de
vida e cosmovisões são tão variados como o território, pois tiveram que se
adaptar à geografia e aos seus recursos. Não são iguais as aldeias de
pescadores às de caçadores, nem as aldeias de agricultores do interior às dos
cultivadores de terras sujeitas a inundações. Além disso, na Amazônia,
encontram-se milhares de comunidades de indígenas, afrodescendentes,
ribeirinhos e habitantes das cidades que, por sua vez, são muito diferentes
entre si e abrigam uma grande diversidade humana. Deus manifesta-Se, reflete
algo da sua beleza inesgotável através dum território e das suas
caraterísticas, pelo que os diferentes grupos, numa síntese vital com o
ambiente circundante, desenvolvem uma forma peculiar de sabedoria. Quantos de nós
observamos de fora deveríamos evitar generalizações injustas, discursos
simplistas ou conclusões elaboradas apenas a partir das nossas próprias
estruturas mentais e experiências. Cuidar das
raízes. 33. Quero lembrar agora que «a visão
consumista do ser humano, incentivada pelos mecanismos da economia globalizada
atual, tende a homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade
cultural, que é um tesouro da humanidade»[35].
Isto afeta muito os jovens, quando se tende a «dissolver as diferenças próprias
do seu lugar de origem, transformá-los em sujeitos manipuláveis feitos em
série»[36].
Para evitar esta dinâmica de empobrecimento humano, é preciso amar as raízes e
cuidar delas, porque são «um ponto de enraizamento que nos permite crescer e
responder aos novos desafios»[37].
Convido os jovens da Amazônia, especialmente os indígenas, a «assumir as
raízes, pois das raízes provém a força que [os] fará crescer, florescer e
frutificar»[38].
Para quantos deles são batizados, incluem-se nestas raízes a história do povo
de Israel e da Igreja até ao dia de hoje. Conhecê-las é uma fonte de alegria e
sobretudo de esperança que inspira ações válidas e corajosas. 34.
Durante séculos, os povos amazónicos transmitiram a sua sabedoria cultural,
oralmente, através de mitos, lendas, narrações, como sucedia com «aqueles
primitivos jograis que percorriam as florestas contando histórias de aldeia em
aldeia, mantendo assim viva uma comunidade que, sem o cordão umbilical destas
histórias, a distância e a falta de comunicação teriam fragmentado e
dissolvido»[39].
Por isso, é importante «deixar que os idosos contem longas histórias»[40] e
que os jovens se detenham a beber desta fonte. 35. Enquanto o
risco de perder esta riqueza cultural é cada vez maior, nos últimos anos –
graças a Deus – alguns povos começaram a escrever para contar as suas histórias
e descrever o significado dos seus costumes. Assim, eles próprios podem
reconhecer explicitamente que há algo mais do que uma identidade étnica e que
são depositários de preciosas memórias pessoais, familiares e coletivas.
Alegra-me ver aqueles que perderam o contato com as suas raízes tentarem
recuperar a memória danificada. Por outro lado, nos próprios setores
profissionais, começou a desenvolver-se uma maior percepção da identidade
amazônica, tornando-se a Amazônia – mesmo para eles, muitas vezes descendentes
de imigrantes – fonte de inspiração artística, literária, musical, cultural. As
várias expressões artísticas, particularmente a poesia, deixaram-se inspirar
pela água, a floresta, a vida que se agita, bem como pela diversidade cultural
e os desafios ecológicos e sociais. Encontro
intercultural. 36. As culturas da Amazónia
profunda, como aliás toda a realidade cultural, têm as suas limitações; as
culturas urbanas do Ocidente também as têm. Fatores, como o consumismo, o
individualismo, a discriminação, a desigualdade e muitos outros, constituem
aspetos frágeis das culturas aparentemente mais evoluídas. As etnias que
desenvolveram um tesouro cultural em conexão com a natureza, com forte sentido
comunitário, apercebem-se facilmente das nossas sombras, que não reconhecemos
no meio do suposto progresso. Assim, far-nos-á bem recolher a sua experiência
da vida. 37. É a partir das nossas raízes que nos sentamos à
mesa comum, lugar de diálogo e de esperanças compartilhadas. Deste modo a
diferença, que pode ser uma bandeira ou uma fronteira, transforma-se numa
ponte. A identidade e o diálogo não são inimigos. A própria identidade cultural
aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o modo
autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece. Por isso, não é
minha intenção propor um indigenismo completamente fechado, a-histórico,
estático, que se negue a toda e qualquer forma de mestiçagem. Uma
cultura pode tornar-se estéril, quando «se fecha em si própria e procura
perpetuar formas antiquadas de vida, recusando qualquer mudança e confronto com
a verdade do homem»[41].
Isto poderia parecer pouco realista, já que não é fácil proteger-se da invasão
cultural. Por isso, cuidar dos valores culturais dos grupos indígenas deveria
ser interesse de todos, porque a sua riqueza é também a nossa. Se não
progredirmos nesta direção de corresponsabilidade pela diversidade que embeleza
a nossa humanidade, não se pode pretender que os grupos do interior da floresta
se abram ingenuamente à «civilização». 38. Na Amazônia, mesmo
entre os distintos povos nativos, é possível desenvolver «relações
interculturais onde a diversidade não significa ameaça, não justifica
hierarquias de um poder sobre os outros, mas sim diálogo a partir de visões
culturais diferentes, de celebração, de inter-relacionamento e de reavivamento
da esperança»[42].
Culturas ameaçadas, povos em risco. 39. A economia globalizada danifica
despudoradamente a riqueza humana, social e cultural. A desintegração das
famílias, que resulta das migrações forçadas, afeta a transmissão dos valores,
porque «a família é, e sempre foi, a instituição social que mais contribuiu
para manter vivas as nossas culturas»[43].
Além disso, «diante duma invasão colonizadora maciça dos meios de comunicação»,
é necessário promover para os povos nativos «comunicações alternativas, a
partir das suas próprias línguas e culturas», e que «os próprios indígenas se
façam protagonistas presentes nos meios de comunicação já existentes»[44]. 40. Em qualquer projeto para a Amazônia, «é preciso assumir a
perspectiva dos direitos dos povos e das culturas, dando assim provas de
compreender que o desenvolvimento dum grupo social (...) requer constantemente
o protagonismo dos atores sociais locais a partir da sua própria cultura. Nem
mesmo a noção da qualidade de vida se pode impor, mas deve ser entendida dentro
do mundo de símbolos e hábitos próprios de cada grupo humano»[45].
E se as culturas ancestrais dos povos nativos nasceram e se desenvolveram em
estreito contato com o ambiente natural circundante, dificilmente podem ficar
ilesas quando se deteriora este ambiente. Isto abre passagem ao sonho sucessivo
(...). www.vatican.va. Abraço. Davi