terça-feira, 29 de novembro de 2022

O ENSINAMENTO SOBRE TARA

Budismo. www.nossacasa.net/shunya/. Por Lama Tubten Yeshe (1935-   ). 19 a 21 de setembro de 1980. Caldas de Montbuy, Barcelona – Espanha. O ENSINAMENTO SOBRE TARA. O Tantra enfatiza a prática da transformação. Os problemas surgem quando pensamos que beiramos a perfeição e que nosso valor é inestimável. Ou, ao contrário, quando pensamos que somos egoístas e segue-se crítica e depressão. O ego que passa julgamentos é o mesmo que gera confusão e insatisfação, o que rejeita a ideia de que temos méritos, o ego que permeia toda a nossa existência. Se me considero uma pessoa mau humorada e belicosa minhas relações tenderão a ser conflituosas, um preconceito do ego sobre o qual preciso agir para transformar. O Tantra também enfatiza que todos temos a qualidade bhúdica, a qualidade divina. Podemos aludir à qualidade nuclear de Deus, a qualidade bhúdica, existente em nós todos, um conceito fundamental. Vejamos o que acontece em nossos relacionamentos. Quando perdemos o respeito por alguém procuramos o motivo porque a mente negativa pensa que o outro deixou de ser quem era e que, por conseguinte, não temos mais nada em comum. Pelo ponto de vista psicológico, contudo, fui eu quem deixou de ser quem era, o meu ego produziu a mudança, que constatada, fez com que este mesmo ego reagisse perdendo a consideração pelo outro. Segundo o budismo, quando passo por uma transformação, o que me rodeia já não atrai do mesmo modo e, por conseguinte, o outro deixa de me interessar. Assim, (para não nos incompatibilizar com a vida enquanto passamos por todo tipo de transformação) na medida das nossas possibilidades, reconheçamos a qualidade divina de Tara em todos os seres. Este yoga tântrico é a prática de ver todos os seres humanos, e nós mesmos, como Tara. O que é TaraTara é a qualidade divina dos seres supremos. Manifesta-se com o aspecto feminino porque este tipo de energia é apanágio (atributo) do feminino. Tara não é mulher e todos, homens e mulheres, têm o potencial para se manifestar como TaraTara é um estado de consciência, um estado de realização, é a ação divina diligente; em outras palavras, quando desenvolvemos a qualidade de Tara eliminamos a preguiça e ativamos uma poderosa fonte de energia. Quando um homem busca a completa realização ou de alguma forma, para o bem ou para o mal, ser bem sucedido, precisa de uma mulher. Não se trata só de sucesso mundano porque os Yogues e os Mahapanditas nas tradições tibetana e hinduísta adotaram Tara como deidade pessoal na realização do caminho da iluminação. Meditantes, homens e mulheres, desde o início da prática e até alcançarem a iluminação aperfeiçoam a energia de Tara. Por outro lado, do ponto de vista da verdade relativa, as mulheres são sensíveis àquilo que os homens não são. A mulher, pela constituição física, sentimentos, sensibilidade, desenvolve a nível relativo, aspectos que não estão ao alcance do homem. Neste nível, não se pode dizer que esta flor e aquela são iguais. Porém, considerando a verdade absoluta, mas só em termos absolutos, não existe diferença entre o homem e a mulher. Contudo, enquanto perambulamos pelo Samsara com um ego dualista, então sim, são diferentes. Quando rejeitamos a qualidade feminina rejeitamos a própria vida. O Tantra, que não é filosofia nem conhecimento filosófico, nos ensina que não se pode rejeitar ou menosprezar a qualidade feminina. Na busca do estado de felicidade, precisamos da energia feminina. Homens e mulheres têm o potencial de alcançar a divina ação rápida a que chamamos Tara, difícil de alcançar. Temos um corpo físico e um corpo de consciência que coexistem e é possível transformá-los e dar-lhes identidade através da irradiação da luz verde. Este ponto é muito importante e nem sempre de fácil assimilação por um ocidental cuja mente peca pela racionalidade de uma abordagem científica. A realidade da consciência ou da mente é essencialmente humana e independe de crenças. Mesmo para quem não acredita no coração, ele continua batendo (...). Ninguém viu seu próprio coração, mas sabe que faz parte do corpo e não o rejeita. Assim se passa com a consciência; é parte de nossa vida e pode manifestar-se de formas muito diferentes. Agora mesmo, como vejo vocês diante de mim, manifestam-se de certo modo; vejo-os tranquilos, não estão nem mal humorados nem sonolentos. A chave do que observo em vocês vem da mente de cada um. A mente causa vibrações no corpo, de paz, de mal humor ou de outros sentimentos. É fácil observar, é um bom exemplo da ação da mente sobre o corpo. Muito especialmente, a irradiação da luz verde tem um tipo de energia magnética que harmoniza o entorno. Quando digo que nos convertemos em Tara não quer dizer que adotamos as feições de Tara, mas que a consciência que é energia física insubsistente se transforma em corpo de energia irradiante, verde, de Tara. Antes de receber uma iniciação nos purificamos externamente e tratamos de eliminar obstáculos externos, internos ou secretos. Visualizamos nosso mestre, não como um monge tibetano, mas como tendo um corpo de luz, não é preciso acreditar ou deixar de acreditar, simplesmente o visualizamos, de um verde brilhante que afasta todos os obstáculos. O essencial da meditação é unir o cotidiano à prática de Arya Tara. A mãe da sabedoria divina, Tara, é a causa fundamental da felicidade. Consta dos textos que todos os seres supremos, os bodhisattvas e os budas surgiram a partir da sabedoria da Mãe Tara. Ela é genitora dos seres supremos do passado do presente e do futuro, todos nasceram dela e por isso é chamada de Mãe Tara. Nosso conhecimento espiritual é fruto da sabedoria inerente à energia feminina. O motivo porque chamamos Mãe Tara tem uma explicação científica, não é mitológico. Tara é a sabedoria que rompe as aparências, com o poder de manifestar-se de muitas formas e cores distintas, umas pacíficas e outras iradas, para beneficiar todos os seres humanos e não humanos. Se por vezes sentimos que falta algo em nossas vidas e é precisamente o que a sabedoria divina de Tara provê e unifica. A vida não pode ser vivida apenas racionalmente, a vida é esotérica ,é tantra; creio que a vida seja oculta e portanto não podemos vivê-la dizendo: "quero ser feliz, quero atingir um objetivo e farei tudo para alcançá-lo para, então, ser feliz." Não pensem que a felicidade possa surgir a partir do racional; a vida é um ir e vir, um movimento perpétuo ao encontro de novas situações. Temos um bom exemplo nos discípulos de Lama Tsong Khapa (1357-1419) que muito valorizavam a compreensão e a sabedoria do mestre e buscavam igualá-las; portanto, as experiências de uns e de outros nunca se assemelharam às do mestre. No ocidente encontramos tais exemplos. Carl Gustav Jung (1875-1961), discípulo de Sigmund Freud (1856-1939), queria seguir o mestre e descobriu que não era possível. Tinha seu próprio estilo e seu jeito de lidar com os pacientes. Acontece o mesmo com os mestres tibetanos que trazem o Dharma para o ocidente; passaram por certas experiências enquanto que vocês vivem outras. Estas diferenças são reais até certo ponto do caminho, mas quando se realiza a totalidade, não existem mais diferenças. Um dia uma italiana veio visitar-me dizendo que queria encontrar um marido. Gostava de um rapaz, mas encontrava obstáculos. Dei-lhe uma meditação e uma prática de Tara, em que ela visualizava-se com raios de luz vermelha que, saindo de Tara (ela mesma), iam ao coração do homem de seu agrado e o enlaçavam. No ano seguinte ela veio com o marido e toda a família agradecer-me. O êxito não teve nada a ver com meus poderes, mas com os da mãe da sabedoria divina, Tara. Quando estou no ocidente, um turista curioso, costumo visitar igrejas. Vejo gente rezando e fazendo oferecimentos diante da imagem da Virgem, medito por um tempo e sou invadido por uma sensação muito agradável. Observo que a maioria dos fieis está diante da imagem da Virgem Maria o que parece indicar que a energia de Tara e a energia da Virgem Maria Santíssima são a mesma. Todos temos a qualidade de Tara e nas mulheres ela é acentuada. As 21 manifestações de Tara são aspetos distintos desta poderosa energia que vai ao encontro de muitas circunstâncias. Se não for possível transformarem-se por completo em Tara, sugiro que visualizem o interior de seus corpos de cor verde transparente e brilhante, é um método precioso e talvez mais fácil do que a transformação em Tara. Nosso ego e suas crenças nos limitam, mas transformando-nos em corpo de luz verde brilhante rompemos este conceito, criamos espaço e tempo onde possam manifestar-se energias positivas, como a compaixão, a sabedoria, o amor, a compaixão, a inteligência (...). Por isso desde que nos levantamos até hora de deitar, durante qualquer atividade, nos identificamos com este corpo de luz verde brilhante, sempre conscientes dele. Esta prática é muito poderosa e nos fortalece. Para dormir visualizamo-nos como Tara, com um corpo de luz verde brilhante que se absorve lentamente na sílaba TAM no nosso coração; de baixo para cima até desaparecer no vazio. Adormecemos com a mente em Shunyata. Adormecer de forma adequada é, segundo o Tantra, uma prática importante; colocamos de parte a mente obsessiva. Na psicologia budista dia e noite, vigília e sono, são a mesma realidade. Cremos na realidade do que observamos no estado de vigília enquanto que o que observamos durante o sono é onírica, mas são a mesma realidade cármica. Se pensarmos que os sonhos não são reais, o que constatamos em estado de vigília também não é. Segundo o Paramitayana, dormir é prejudicial; mas o Budha disse que dormir com o método adequado se converte no caminho da iluminação. Esta é a essência, a beleza e a característica do Tantra, converter e transformar tudo no caminho da libertação, tornarmo-nos mais conscientes e com mais domínio sobre a mente. Este é o poder do Tantra, o caminho mais rápido. Utilizando a meditação da vacuidade, dormimos cultivando a sabedoria. Há duas maneiras de adormecer e de despertar. Quando abrimos os olhos pela manhã, talvez ouçamos um ruído, o canto dos pássaros, ou alguém batendo à porta. Então, transformamos estes sons no mantra OM TARE TUTTARE TURE SOHA visualizando-o no espaço. Utilizando o método de adormecer em Shunyata, ao despertar convertemo-nos em Tara. Fazemos a higiene matinal recitando o mantra e oferecendo-o a Tara. No café da manhã abençoamos o que vamos comer com o mantra OH AH HUNG três vezes. A comida se transforma em energia gozosa, em ambrósia, uma prática muito proveitosa. Durante a refeição, se possível, visualizem-se sendo invadidos pela energia gozosa que se instala no coração transformando nela qualquer estado de insatisfação. Reconheçamos em todos os seres, em tudo o que nos rodeia, a mente e a qualidade divina de Tara, reflexos da sabedoria e da felicidade transcendentais. Qualquer som é reconhecido como o mantra, assim mantendo continuamente no estado de plena atenção, tudo será transformado numa experiência preciosa. Sempre que praticamos a Sadhana devemos recitar o mantra que é o poder de transformar a palavra. É um fogo que queima todos os pensamentos mundanos e tem um poder nuclear. Recitamos com concentração o mantra tanto tempo quanto possível para aguçar a mente, para torná-la poderosa. Não é possível enumerar os benefícios que recebemos ao recitar o mantra; porque seria injusto limitá-los já que vão muitos além de qualquer limite, como se fossem milagres. Recitando o mantra podemos passar por experiências inusitadas. A récita também outorga poderes telepáticos, é curativa, é uma forma de superar a energia negativa, alivia o sofrimento físico. Segue-se a Sadhana passo a passo. Chegando ao mantra, transformem-se em Tara, e da sílaba semente TAM no coração uma luz verde brilhante se irradia nas dez direções purificando tudo que nos rodeia e todos os seres viventes. Há que purificar tudo, pensamentos, doenças, sofrimentos, tudo (...). Todos os seres se transformam em Tara, amigos e inimigos que a seguir se dissolvem em luz e são absorvidos no nosso coração. Podem também, alternadamente, apenas contemplar com atenção. A Sadhana começa com a tomada de Refúgio. Imaginem as Vinte e Uma Taras no espaço diante de nós, não é preciso vê-las, simplesmente pensar que estão ali. Segundo o tantra, o que vemos, o que projetamos, é a nossa realidade. O que não vemos, não projetamos, não é real para nós. Por isso, quando olhamos para um ser vivente, podemos reconhecer nele a qualidade divina, a da Mãe Tara. Tudo o que ouvimos por exemplo, o ronco de um motor de avião, o canto de um pássaro, reconhecemos como o som do mantra. Em qualquer pensamento positivo ou negativo, reconhecemos a sabedoria não dual da Mãe Tara; em vez de seguir um diálogo dualista transformamos o pensamento. Tendo em mente a qualidade da sabedoria divina não dual de Tara, interpretando o manifesto como o mantra ou como a sua forma, não nos surgirão atitudes mentais negativas. Ao surgir um pensamento de apego ou de ódio, teremos uma relação diferente com a sua essência. O que antes era uma situação neurótica e desanimadora passa a ser a clareza não dual da mente do ódio e do desejo. Tudo dependerá da forma como é observado. O ódio, o ressentimento, o desejo, a raiva parecem concretos, parecem ter existência própria, porque esta é a natureza destes fortes sentimentos. É como o oceano, o oceano da mente: vem o vento, e do próprio oceano, surge a onda com seus efeitos potencialmente desastrosos. O ódio, o desejo, o ressentimento parecem ser mais portentosos ainda que o Everest, mas à luz do Dharma isto é pura fantasia. Precisamos apreciar e recorrer à sabedoria do Dharma que, sem estas situações, não seria necessária. Se não houvesse desejo e ódio não teríamos necessidade de coisa nenhuma, nem de religião, nem de alternativas, nem sequer de iluminação. O ressentimento e o desejo são parte da vida, assim como as ondas são parte do oceano; reconhecendo as características da sua natureza vemos que são também sabedoria não dual, sabedoria onisciente, sabedoria onipresente. Observo meus amigos que levam uma vida "super Samsárica", super louca, super hippie. Matam, roubam, fazem o pior que se possa fazer; são explosivos e dominadores. Outros são tranquilos, não reagem indevidamente, mas quando um destes super loucos encontra o Dharma, passa a ser um excelente praticante; aprende com a força da mente louca e Samsárica, e se transforma. Muitos dos meus discípulos pertenceram ao movimento hippie, eram marginais, viciados em drogas e estavam conscientes disto. Depois, passaram por uma transformação profunda. Muitos hippies são criativos, extremistas, eficientes, possuem uma energia nuclear poderosa; quando têm convicção, também são praticantes convictos. Podemos observar como as pessoas poderosas e cruéis, quando se transformam, continuam poderosas, mas podem também ser bondosas. Outros amigos são mais tranquilos, pacíficos e conservadores, têm uma prática menos intensa, mais branda, é assim mesmo. Quanto mais desejo, ressentimento e ódio temos, mais infla o nosso ego. É preciso observar estes pensamentos e constatar a sua natureza clara e transparente, reconhecer neles a característica da sabedoria não dual cuja essência é o estado de felicidade. Pelo ponto de vista filosófico a natureza da mente é clara, com a transparência de cristal. O desejo é o movimento produzido quando colocamos o pensamento nisto ou naquilo, então surge o apego e daí a raiva. Se nos deixamos levar pelo pensamento, se nos apegamos a conceitos, explicando, "é por isso ou por aquilo, é assim ou assado, porque é tal ou qual", tudo se complica. Temos duas formas de dar um basta aos pensamentos negativos. A primeira é ter consciência do surgimento da mente negativa, como temos da aurora antes do sol raiar. Se estivermos presentes, antes que apareça a raiva notaremos a sua vibração no corpo e tratamos de detê-la ainda ali, antes que nos invada e se manifeste. A segunda forma de deter a raiva é não reagindo quando ela já se manifestou. Temos consciência de que estamos com raiva, invocamos a luz verde, e recorrendo à força da própria raiva, transformamos nosso corpo num vulcão em erupção que cobre todo o mundo de luz verde irradiante. Podemos transformar a forte energia da raiva ou do que quer que se manifeste em luz verde irradiante. Reconhecemos a pureza de tudo o que nos rodeia, o mundo, os sentidos, todos os objetos sob seu aspecto gozoso. Assim, tudo o que surge se transforma em energia gozosa. Devemos reconhecer ainda a natureza não dual desta energia, a ausência de existência intrínseca. Podemos visualizar tudo como se fosse um passe de mágica que nos permite ver o que não é evidente. Tudo o que surge tem a característica da não dualidade, observando assim os fenômenos desenvolvemos sabedoria e adquirimos uma compreensão cada vez maior da vacuidade. Se ao nos deparar com um objeto de prazer perscrutarmos a sua natureza não dual, o prazer não nos prejudicará. O conflito surge quando não podemos perscrutar o prazer e a sua verdadeira natureza simultaneamente. Quando nos envolvemos com o prazer perdemos de certo moto o sentido, já que a ideia do prazer surge da ignorância e é pura fantasia, nunca vemos o prazer na não dualidade, tal como é. Não existe nada de errado em ter prazer, o problema é que a mente se converte em mente equivocada, egoísta e então surge o engano e não nos é possível reconhecer a verdadeira natureza do prazer. Assim, quando sentimos prazer deixamos de ser conscientes e perdemos a sabedoria. No budismo não existe diferença entre buscar a verdadeira realidade nos objetos Samsáricos ou em buscar a verdade no Buhda. Não pensem que o Budha detém a verdade e eu não. A verdade do Budha e a minha é a mesma; isto é muito importante. Todos nossos problemas são causados pela mente dualista que separa as coisas, enquanto que o Samsara e a libertação coexistem no mesmo espaço da não dualidade, no espaço da auto existência, esta é a natureza de todas as coisas, não é um conceito filosófico. O mais importante é reconhecer nas aparências sua natureza não dual, não nascida. Esta natureza, de si mesmo, é o gozo, o estado de felicidade. Temos o hábito de dizer: "gosto disto, aquilo me desagrada; não gosto daquilo, isto é bonito (...)." Desde que nascemos estamos sempre envolvidos nestas considerações e não vemos jamais a verdadeira natureza do que nos rodeia. Há quem nunca tenha pensado que esta flor seja linda. Quem nunca tenha visto a realidade e a beleza desta flor devido à mente obsessiva. A beleza se encontra em todas as partes, mas se não a vemos e se estamos fechados a ela é devido às nossas limitações. Qualquer ambiente tem beleza própria. O tantra nos ensina a reconhecer o caráter gozoso de qualquer aparência e em tudo o que vemos reconhecer a união do gozo e da ausência de existência inerente. Aqui está algo que devemos procurar compreender, uma realidade científica: parte da natureza do outro é a minha natureza. Parte da natureza desta montanha é o oceano, que é também a minha natureza. Temos uma realidade comum e por isto definimos Shunyata como absoluto já que a essência de tudo o que existe é a unidade. Com esta sabedoria não existe possibilidade de que surjam negatividades porque podemos reconhecer a sabedoria gozosa de tudo o que vemos como imantado por ela, de onde surge a energia gozosa que aumenta a sabedoria não dual. Vivemos uma realidade incontornável e, como não podemos evitar a cidade, recorramos à sabedoria em vez de queixarmo-nos da turbulência da cidade. No Samsara, desde um tempo sem começo sempre houve desastres, mortes e problemas que não precisam ser motivo de preocupação indevida já que, o que está acontecendo agora, sempre aconteceu. Para a mente ocidental, o Tantra é muito válido. Com esta compreensão, este gozo energizante, esta sabedoria sem confusão, sem insatisfação, tudo é possível. Certas coisas são impuras na visão Sútrica, mas tornam-se puras pelo ponto de vista tântrico. Tudo depende da atitude da mente. Nada existe apenas negativamente. Tudo o que pensamos ser negativo ou condenável é apenas relativo. Conta-se que certa vez dois monges que regressavam ao mosteiro encontraram uma leprosa que pedia ajuda para atravessar o rio. Um deles pensou: "impossível, como monge, não posso tocar numa mulher, é como por a mão no fogo." O outro pensou: "já é tarde e se não ajudo esta mulher a atravessar, passará aqui o resto da noite." Pensando assim carregou-a para a outra margem. O primeiro monge observou que o amigo rompera os votos e de regresso ao mosteiro procurou o abade relatando-lhe o sucedido. O abade respondeu: "Quem julga como você tem uma mente negativa". O outro monge ao ser questionado respondeu: "sim, carreguei a mulher de uma margem para a outra, mais nada." Ele a teria deixado lá, nada mais. Quando nos relacionamos com o mundo não temos os meios hábeis para constatar a não dualidade. Precisamos do forte propósito de realizar a experiência direta da não dualidade; desenvolver a visão que reconhece que tudo é mera aparência, uma visão ilusória. Ainda que possa agradar, o canto dos pássaros não nos causa uma sensação negativa ou positiva. Em geral a sensação é neutra, mas reconhecendo o som do mantra em todos os sons, o convertemos no caminho para a iluminação. Reconhecendo a qualidade do mantra nestes sons, uma ação neutra se transforma em positiva. Já que passamos metade da vida dormindo, podemos fazer o mesmo com os sonhos. Passamos ainda um quarto da vida comendo e talvez o quarto restante praticando o Dharma o que faz com que o caminho para a iluminação seja lento e longo. Também quando comemos ou bebemos devemos reconhecer a energia gozosa. Com esta mente, comer se torna um ato positivo em vez de negativo. Gostaria que tivessem uma sólida compreensão do que acabamos de tratar e cuja maior parte se refere à forma de atuar fora da meditação formal. Primeira versão. O objeto central de refúgio pode ser Tara visualizando ao redor as demais Taras. À direita nosso pai, à esquerda nossa mãe, à frente os que nos incomodam e atrás parentes e amigos; ao redor, num vasto círculo, todos os demais seres viventes. Todos tomamos refúgio e fazemos surgir muita compaixão e equanimidade para com todos os seres viventes, aspiramos unificá-los na natureza da iluminação. Dos objetos de refúgio surgem luzes de três cores, branco, vermelho e azul que purificam nosso corpo, palavra e todas as concepções errôneas. Reconhecemos os obstáculos e sofrimentos causados pelo ego que afligem todos os seres viventes e que podem cessar com a tomada de refúgio. Atualizar a Bodhicitta quer dizer assumir a responsabilidade de gerar enorme desejo de retribuir a bondade que recebemos de todos os seres, o que de melhor podemos fazer. Assim, dediquemos nossa prática aos demais no tempo que nos resta de vida. Em qualquer tipo de organização fala-se muito, o que denota uma conduta irresponsável. Por exemplo, se a nossa empresa produz papel e em vez de nos dedicarmos à produção de papel, agimos através do ego arquitetando uma ou outra ideia que nada tenha a ver com o objetivo de empresa, estamos sendo irresponsáveis. Acontece o mesmo com os casais que se desentendem. Pensam que são especiais e não são, são apenas irresponsáveis. Por ignorância, destroem a harmonia em vez de fomentá-la, não vêm a totalidade da realidade e não sabem criar harmonia. Quando agimos movidos pela Bodhicitta assumimos a responsabilidade. Ainda que possamos ser alvo das más vibrações das energias negativas, temos algum controle e podemos prosseguir o caminho certo à vontade. Sempre que temos um revés tratamos de criar espaço em nossa mente. Quando nos criticam ou mesmo nos ameaçam de morte, pensamos que pode não ser assim e criamos um espaço em nossas mentes para estas e outras realidades. Quem sabe? O inimigo de hoje pode ser o amigo de amanhã, quem sabe nos trará uma grande alegria. Pode também acontecer que o amigo de hoje seja o inimigo de amanhã. A Bodhicitta é assim, ela cria espaço, não discrimina. Não distingue entre etnias ou religiões, a natureza de todas as coisas é a mesma, e esta é a maravilha do budismo. Segundo o budismo, quando todos os seres estiverem totalmente libertados do sofrimento, de ideias, de filosofias, de doutrinas e fanatismo religioso; uma vez libertados de tudo, passam a ser uma unidade, uma mesma família. Nossa mente é saudável. Não sentimos inveja dos árabes por serem donos de muito petróleo. Observando objetivamente os seres, analisando nossos sentimentos, vemos como são ilusórios e realizamos que somos todos iguais. Aqui na Espanha tem um grupo terrorista, quem sabe nos estão apontando uma realidade positiva? Quem sabe podemos aprender alguma coisa com eles? Mao Tse Tung (1893-1976) também é um bom exemplo. Ele me obrigou a sair do Tibete, sem roupa, sem nada, e estou pessoalmente muito agradecido a ele. Despejou-me do meu ninho Samsárico. No Tibete tinha meus parentes, centenas deles e vocês sabem o que são parentes: bla, bla, bla, bla (...). Desde que fui expulso do Tibete sinto melhor em mim o Dharma. Já praticava então, mas agora a prática é autêntica, deixou de ser uma aquisição intelectual em que apenas repetia palavras, agora, aprendi alguma coisa. A realidade vai além das palavras, é o que é e será através da tensão entre o que é e o que gostaríamos que fosse, que permitimos a abertura de espaços em que, então, aprendemos. Tudo o que nos rodeia no ocidente é muito precipitado, acontece rápido, as delusões (enganos) são muito mais fortes, o desejo, o ódio são fortíssimos e assim o ocidente é ideal para a prática do Dharma. Nos Himalaias nada acontece, as pedras não saem do lugar, a água corre infalivelmente, as mudanças são poucas, a vida é fácil. No ocidente a coisa é outra. O desafio dos meus discípulos ocidentais é enorme. Praticam com muito mais empenho que os monges dos Himalaias. Precisam se relacionar com a vida, com a sociedade, com tudo o que se passa e tudo é muito difícil. A prática de vocês é o que vão vivendo. O Dharma é uma ideia colocada em prática e que se converte numa vivência e torna-se então indestrutível. Se não for assim, não passa de uma filosofia. A Bodhicitta é parte essencial do Dharma e com esta atitude superamos os problemas. Se formos prejudicados temos espaço, se alguém nos crítica ou nos odeia, também temos espaço para isto. Assim, não nos perturbamos e, ainda que sentidos, aceitamos a situação. Fonte: Shunya. Grupo de Estudo e Prática Budista. http://www.nossacasa.net/shunya/. Abraço. Davi.

domingo, 27 de novembro de 2022

APRESENTAÇÃO I

 

Religião Afro-brasileira. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO I. Universidade de São Paulo – USP. Ao longo de todo o litoral atlântico, desde as florestas da Amazônia até a própria fronteira do Uruguai, é possível descobrir, no Brasil, sobrevivências religiosas africanas. Mas a Bahia, com seus candomblés em que, nas noites mornas dos trópicos, as filhas de santo dançam ao martelar surdo dos tambores, permanece a cidade santa por excelência. Os candomblés pertencem a "nações" diversas e perpetuam, portanto, tradições diferentes: Angola, Congo, Gêge (isto é, Ewe), Nagô (têrmo com que os franceses designavam todos os negros de fala yoruba, da Costa dos Escravos), Quê to (ou Ketu), Ijêxa ( ou Ijesha). É possível distinguir estas "nações" umas das outras pela maneira de tocar o tambor (seja com a mão, seja com varetas), pela música, pelo idioma dos cânticos, pelas vestes litúrgicas, algumas vezes pelos nomes das divindades, e enfim por certos traços do ritual. Todavia, a influência dos Yoruba domina sem contestação o conjunto das seitas africanas, impondo seus deuses, a estrutura de suas cerimônias e sua metafísica, a Dahomeanos, a Bantos. Porém é evidente que os candomblés Nagô, Quêto e Ijêxa são os mais puros de todos, e só eles serão estudados aqui. Por outro lado, ''nações" yoruba são encontradas noutras regiões do Brasil: em São Luís do Maranhão, no Recife, no Rio Grande do Sul. O grupo de São Luís, assaz isolado, sofreu a influência da Casa das Minas, dahomeana, que é o grupo dominante da cidade. Deixamo-lo, por essa razão, inteiramente de lado. No entanto, na medida em que as informações do Recife ou do Rio Grande do Sul completam ou confirmam as observações da Bahia, apelaremos algumas vezes para dados tomados aos Xangô do Recife ou às "nações" Nagô e Oyo (esta designada pelo próprio nome da cidade Yoruba) de Porto Alegre. No Rio de Janeiro, as "nações" se fundiram umas nas outras, deixando-se também penetrar profundamente por influências exteriores, ameríndias, católicas, espíritas, dando nascimento a uma religião essencialmente sincrética, a macumba. Porém, há alguns anos atrás, no começo do século XX, existia ali ainda uma religião nagô autônoma, da qual temos algumas descrições, infelizmente assaz sumárias. Tais documentos só apresentam hoje interesse histórico; todavia, não os poremos de lado. Que fique bem claro, no entanto, que este estudo, mesmo levando em consideração por vezes dados recolhidos por nós ou por outros pesquisadores em cidades diferentes, fica centralizado unicamente em torno dos candomblés nagô, quêto ou ijêxa da Bahia. Existiram outrora candomblés em pleno centro da cidade. Próximo à igreja da Barroquinha em Salvador - BA, erguia-se nos fins do século XIX um santuário africano. Na periferia da aglomeração urbana ainda hoje existem, no bairro proletário da Liberdade, em meio às casas de operários, num emaranhamento de ruelas, de muros, de pátios malcheirosos. Mas em geral se agrupam longe do centro, nos valos umbrosos, suspensos aos flancos das colinas ou entre as dunas marinhas, escondidos pelas árvores, pelos renques de bananeiras, abrigando-se sob os coqueiros. Ao longo do Rio Vermelho, em Mata Escura, São Caetano, Cidade da Palha, Língua de Vaca, Pedreiras, Fazenda Grande do Retiro, Fazenda Garcia. Cercam a cidade com uma coroa mística, e a única solução de continuidade é representada pela faixa móvel do oceano. O viajante que à noite erra nesses subúrbios, onde as habitações vão se espaçando, como que se debulhando e cedendo pouco a pouco diante da floresta. Ouve por vezes subir de trás das frondes, do fundo das trevas, o martelar surdo dos tambores sagrados, enquanto foguetes riscam os céus, desenhando neles novas estrelas. Cada foguete que sobe é o sinal de que uma divindade veio da África possuir um de seus filhos na terra do exílio. Cada estrela que repentinamente cintila acima das plantas em germinação indica a quem passa que uma divindade "montou em seu cavalo", fazendo-o reviravoltear em torno do poste central, mergulhando na noite do êxtase. Pois estes deuses só podem viver na medida em que se reencarnam no corpo dos fiéis. Eis porque o ponto central do culto público é a crise de possessão. Constitui seu momento mais dramático e não é de espantar, em tais condições, que a atenção dos pesquisadores se tenha concentrado, antes de mais nada, em torno deste aspecto do candomblé. Tanto mais que a maior parte dos africanistas era constituída de médicos. Veremos que, na realidade, a festa pública não constitui senão pequena parte da vida do candomblé, que a religião africana vai colorir e controlar toda a existência de seus adeptos, que o ritual privado é mais importante do que o cerimonial público e que, na medida em que o negro se sente africano, pertence a um mundo mental diferente. Queremos descrever justamente este mundo das representações coletivas. Não esquecer, porém, que a religião só conseguiu subsistir através das confrarias dos "filhos" e "filhas" de santo (as filhas muitíssimo mais numerosas do que os filhos), e que a função destes filhos e filhas é reencarnar, no desenrolar das grandes festas públicas, os Orixás seus antepassados. Começaremos, pois, nossa apresentação do candomblé pela descrição desta cerimônia central. Cada uma destas festas, dedicada a uma divindade especial, embora todos os Orixás durante ela se manifestem por meio de crises extáticas, apresenta traços particulares. Contudo, podemos deixar por enquanto de lado estes elementos de variação pois não perturbam a unidade das sequências rituais. Enriquecem-nas somente; sobre a mesma talagarça, desenham o bordado dos mitos africanos. Desde a madrugada, quando tem lugar o início da festa, distinguiremos os momentos seguintes: 1. O SACRIFÍCIO. Esta parte do ritual não é propriamente secreta; porém, não se realiza em geral senão diante de um número muito pequeno de pessoas, todas fazendo parte da seita. Teme-se sem dúvida que a vista do sangue revigore entre os não-iniciados os estereótipos correntes sobre a "barbárie" ou o "caráter supersticioso" da religião africana. Uma pessoa especializada no sacrifício, o axôgun ou achôgun, que tem essa função na hierarquia sacerdotal, é quem o realiza ou, na sua falta, o babalorixá, sacerdote supremo. O objeto do sacrifício, que é sempre um animal, muda conforme o deus ao qual é oferecido: trata-se, conforme a terminologia tradicional, ora de um "animal de duas patas", ora de um "animal de quatro patas", isto é, galinha, pombo, bode, carneiro, etc. O sexo do animal sacrificado deve ser o mesmo da divindade que recebe o sangue derramado; e o modo de matar varia igualmente segundo os casos: corta-se a cabeça, esquartejam-se os membros, sangra-se a carótida, dá-se um golpe na nuca. Varia também o instrumento de execução, que algumas vezes deve ser uma "faca virgem". Na realidade, não se trata de um único sacrifício, mas de dois; pois qualquer que seja o deus adorado, Exú deve ser o primeiro servido, por razões que veremos adiante. Há, pois, o primeiro sacrifício de um "animal de duas patas" para Exú, e em segundo lugar, quando o permitem as finanças da casa, de um "animal de quatro patas", para a divindade cuja festa se está celebrando. 2. A OFERENDA. O animal sacrificado passa das mãos do achôgun para as da cozinheira que vai preparar o alimento dos deuses. Moela, fígado, coração, pés, asas, cabeça e, bem entendido, o sangue, pertencem de direito aos deuses; mas o resto do animal não é atirado fora, é cozido e parte dele será posta em travessas ou em pratinhos diante das pedras ou dos pedaços de ferro pertencentes às divindades. Se duas galinhas são mortas, forçosamente uma deve ser cozida e a outra assada. Mas a cozinheira, que se chama iya-bassê ou abassá, e que naturalmente não deve nesse momento estar menstruada, não se limita a preparar o animal sacrificado. Cozinha também tantos pratos quantos forem os deuses chamados no decorrer da cerimônia, o amalá de Xangô, o xinxin de galinha de Oxun, o arroz sem sal de Oxalá. Alimenta então sucessivamente as diferentes pedras sagradas. O resto do alimento será consumido no fim da cerimônia pelos fiéis, e até mesmo pelos simples visitantes. Foram estas descendentes de africanas que mantiveram assim através do tempo a cozinha religiosa africana, a qual, penetrando na cozinha profana, passou em seguida dos santuários para as salas de jantar burguesas, constituindo uma das glórias da Bahia. Arthur Ramos nota que não raro diz a negra ao oferecer tais manjares suculentos, em que o ardume da pimenta se casa tão harmonioso com a doçura do azeite de dendê: "Coma, meu santo”. 3. O PADE DE EXÚ. De manhã, consuma-se o sacrifício; os preparativos culinários e a oferenda às divindades ocupam a tarde; a cerimônia pública propriamente dita começa quando o sol se põe e se prolonga por muito tempo noite adentro. Tem início obrigatoriamente com o padê de Exú, do qual muitas vezes se dá uma interpretação falsa, particularmente nos candomblés bantos: Exú é o diabo; poderá perturbar a cerimônia se não for homenageado antes dos outros deuses, como aliás ele mesmo reclamou. Para que não haja rixas, invasões da polícia (nas épocas em que há perseguições contra os candomblés), é preciso pedir-lhe que se afaste. Daí o termo de despacho, empregado algumas vezes em lugar de padê, despachar significando "mandar alguém embora". Exú é, na verdade, o Mercúrio africano, o intermediário necessário entre o homem e o sobrenatural. O intérprete que conhece ao mesmo tempo a língua dos mortais e a dos Orixá. É, pois ele o encarregado - e o padê não tem outra finalidade - de levar aos deuses da África o chamado de seus filhos do Brasil. O padê é celebrado por duas das filhas de santo mais antigas da seita, a dagã e a sidagã, ao som de cânticos em língua africana, cantados sob a direção da iya têbêxê e sob o controle do babalorixá, diante de um copo d'água e de um prato contendo o alimento de Exú. O copo e o prato serão depois levados para fora da sala em que se desenrolará o conjunto da cerimônia, sendo depositado numa encruzilhada que é dos lugares preferidos de Exú. A festa propriamente dita pode então ter começo. Embora o padê se dirija antes de tudo a Exú, comporta também obrigatoriamente uma oração para os mortos ou para os antepassados do candomblé, alguns dentre eles sendo mesmo designados por seus títulos sacerdotais. 4. O CHAMADO DOS DEUSES. - Não é, todavia, Exú o único intermediário entre os homens e os deuses. Os três tambores do candomblé também o são: o rum, que é o maior; o rumpi, de tamanho médio, e o le, que é o menor. Não são tambores comuns ou, como se diz ali, tambores "pagãos" foram batizados na presença de padrinho e madrinha, foram aspergidos de água benta trazida da igreja, receberam um nome, e o círio aceso diante deles consumiu-se até o fim. E principalmente "comeram" e "comem" todos os anos azeite de dendê, mel, água benta e o sangue de uma galinha (não se lhes oferece nunca "animais de quatro patas"), cuja cabeça foi arrancada pelo babalorixá em cima do corpo do instrumento inclinado. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

OS ANJOS

Espiritismo. Texto de Allan Kardec (1804-1869). Livro O Céu e o Inferno. Capítulo IX. OS ANJOS. Os anjos segundo a Igreja • Refutação • Os anjos segundo o Espiritismo.  Os anjos segundo a igreja. Todas as religiões, sob diversos nomes, tiveram anjos, quer dizer, seres superiores à humanidade, intermediários entre Deus e os homens. O materialismo, negando qualquer existência espiritual fora da vida orgânica, naturalmente colocou os anjos entre as ficções e as alegorias. A crença nos anjos faz parte essencial dos dogmas da Igreja; é assim que ela os defi ne. Nós cremos firmemente, diz um concílio geral e ecumênico, que só há um verdadeiro Deus, eterno e infinito, que no começo dos tempos, tirou conjuntamente do nada uma e outra criatura, a espiritual e a corporal, a angélica e a mundana, e em seguida formou, como intermediária entre as duas, a natureza humana composta de corpo e espírito. Tal é, segundo a fé, o plano divino na obra da criação: plano majestoso e completo, como convinha à sabedoria eterna. Assim concebido, ele oferece aos nossos pensamentos o ser em todos os graus e em todas as condições. Na esfera mais elevada aparecem a existência e a vida puramente espirituais; na última classe, a existência e a vida puramente materiais; e no meio que as separa, uma maravilhosa união de duas substâncias, uma vida comum ao mesmo tempo ao espírito inteligente e ao corpo organizado. Nossa alma é de uma natureza simples e indivisível, porém é limitada em suas faculdades. A ideia que temos da perfeição nos faz compreender que pode haver outros seres simples iguais a ela, e superiores por suas qualidades e seus privilégios. A alma é grande e nobre, mas está associada à matéria, servida por órgãos frágeis, limitada na sua ação e no seu poder. Por que não haveria outras naturezas mais nobres ainda, libertas dessa escravidão e desses entraves, dotadas de uma força maior e de uma atividade incomparável? Antes que Deus houvesse colocado o homem na Terra para conhecê-lo, amá-lo e servi-lo, não deveria já ter chamado outras criaturas para compor sua corte celeste e para adorá-lo na morada da sua glória? Deus, enfim, recebe das mãos do homem o tributo de honra e a homenagem deste universo; é de admirar que ele receba das mãos do anjo o incenso e a prece do homem? Portanto, se os anjos não existissem, a grande obra do Criador não teria o remate e a perfeição da qual ela era suscetível; este mundo, que atesta sua onipotência, não seria mais a obra-prima da sua sabedoria; nossa própria razão, ainda que fraca e débil, poderia facilmente concebê-lo mais completo e mais aperfeiçoado. A cada página dos livros sagrados do Antigo e do Novo Testamento, faz-se menção dessas sublimes inteligências, nas invocações piedosas e nos episódios históricos. Sua intervenção aparece manifestamente na vida dos patriarcas e dos profetas. Deus serve-se de seu ministério, ora para declarar suas vontades, ora para anunciar os acontecimentos futuros; Deus quase sempre faz dos anjos os intermediários da sua justiça ou da sua misericórdia. Sua presença está unida às diversas circunstâncias do nascimento, da vida e da paixão do Salvador; sua lembrança é inseparável da dos grandes homens e dos fatos mais importantes da antiguidade religiosa, encontra-se mesmo no meio do politeísmo e nas fábulas da mitologia, porque a crença de que falamos é tão antiga e tão universal quanto o mundo; o culto que os pagãos rendiam aos bons e aos maus gênios era apenas uma falsa aplicação da verdade, um resto degenerado do dogma primitivo. As palavras do santo concílio de Latrão, ano 1123, continham uma distinção fundamental entre os anjos e os homens. Elas nos ensinam que os primeiros são espíritos puros, enquanto que os segundos são compostos de um corpo e de uma alma; isto é, que a natureza angélica se sustém por si mesma, não somente sem mistura, mas ainda sem associação real possível com a matéria, por mais leve e sutil que a imaginemos; enquanto que nossa alma, igualmente espiritual, está associada ao corpo de maneira a não formar com ele senão uma só e mesma pessoa, e que este é essencialmente seu destino. Enquanto durar essa união tão íntima da alma com o corpo, estas duas substâncias têm uma vida comum e exercem influência recíproca uma sobre a outra; a alma não pode se livrar inteiramente da condição imperfeita que esse fato lhe acarreta: suas ideias lhe chegam pelos sentidos, pela comparação dos objetos exteriores, e sempre sob imagens mais ou menos aparentes. Daí porque ela não pode contemplar a si mesma, e não pode representar Deus e os anjos sem lhes admitir alguma forma visível e palpável. Eis por que os anjos, para se fazerem visíveis aos santos e aos profetas, devem ter recorrido a formas corporais; mas essas formas não eram mais que corpos imateriais que eles faziam mover sem se identificarem com eles, ou atributos simbólicos em relação com a missão da qual estavam encarregados. Seu ser e seus movimentos não estão localizados e circunscritos em um ponto fixo e delimitado do Espaço. Não estando ligados a nenhum corpo, não podem ser retidos e limitados por outros corpos, como nós o somos; eles não ocupam nenhum lugar e não preenchem nenhum espaço vazio; porém, assim como nossa alma está toda inteira em nosso corpo e em cada uma das suas partes, eles também estão inteiramente, e quase que simultaneamente, sobre todos os pontos e em todas as partes do mundo; mais rápidos que o pensamento, eles podem estar por toda a parte no abrir e fechar de olhos e ali atuarem por si mesmos, sem outros obstáculos às suas intenções senão a vontade de Deus e a resistência da liberdade humana. Enquanto temos que nos conformar em ver apenas pouco a pouco, e em uma certa medida, as coisas que estão fora de nós, e as verdades de ordem sobrenatural nos aparecem como em enigma e em um espelho, segundo as palavras do Apóstolo São Paulo, eles vêm sem esforço o que lhes interessa saber, e estão em relação imediata com o objetivo do seu pensamento. Seus conhecimentos não são o resultado da indução e do raciocínio, mas dessa intuição clara e profunda que abrange simultaneamente o gênero e as espécies que deles derivam, os princípios e as consequências que deles decorrem. A distância das épocas, a diferença dos lugares, a multiplicidade dos objetos não podem produzir nenhuma confusão em seus espíritos. A essência divina, sendo infinita, é incompreensível; ela tem mistérios e profundezas que eles não podem penetrar. Os desígnios particulares da Providência não lhes são mostrados; ela, porém, os revela quando, em certas circunstâncias, os encarrega de anunciá-los aos homens. As comunicações de Deus aos anjos, e dos anjos entre si, não se fazem, como entre nós, por meio de sons articulados e de outros sinais sensíveis. As puras inteligências não têm necessidade nem de olhos para ver, nem de ouvidos para ouvir; elas não têm mais o órgão da voz para manifestar seus pensamentos, esse intermediário habitual de nossas conversas não lhes é necessário; elas, porém, comunicam seus sentimentos de uma maneira que lhes é própria e que é toda espiritual. Para serem compreendidas é sufi ciente que o desejem. Somente Deus conhece o número de anjos. Este número, certamente, não poderia ser infinito, e não o é; mas, de acordo com os autores sacros e os santos doutores, ele é bastante considerável e verdadeiramente prodigioso. Se é natural proporcionar o número de habitantes de uma cidade à sua grandeza e à sua extensão, sendo a Terra apenas um átomo em comparação com o firmamento e as imensas regiões do Espaço, temos que chegar à conclusão de que o número de habitantes do céu e do ar é muito maior que o dos homens. Visto que a majestade dos reis deve seu brilho ao número de seus súditos, seus oficiais e seus servidores, o que existe de mais próprio para nos dar uma ideia da majestade do Rei dos reis do que essa multidão inumerável de anjos que povoam o céu, a Terra, o mar e os abismos, e a dignidade daqueles que se mantêm, incessantemente, prosternados ou de pé diante do seu trono? Os padres, a Igreja e os teólogos geralmente ensinam que os anjos estão distribuídos em três grandes hierarquias, ou principados, e cada hierarquia em três companhias ou coros. Os da primeira e da mais alta hierarquia são designados em consequência das funções que desempenham no céu. Uns são chamados Serafins, porque estão como abrasados diante de Deus pelos ardores da caridade; outros, Querubins, porque são um reflexo luminoso da sua sabedoria; e outros, de Tronos, porque proclamam sua grandeza e fazem resplandecer seu brilho. Os da segunda hierarquia recebem seus nomes das operações que lhes são atribuídas no governo geral do Universo, e são: as Dominações, que determinam aos anjos de ordens inferiores suas missões e seus encargos; as Virtudes, que realizam os prodígios reclamados pelos grandes interesses da Igreja e do gênero humano, e as Potências, que protegem, pela sua força e sua vigilância, as leis que regem o mundo físico e moral. Os da terceira hierarquia têm em partilha a direção das sociedades e das pessoas, e são: os Principados, prepostos aos reinos, às províncias e às dioceses; os Arcanjos, que transmitem as mensagens de alta importância; os Anjos Guardiães, aqueles que acompanham cada um de nós para velarem pela nossa segurança e a nossa santifi cação.” REFUTAÇÃO. O princípio geral que resulta dessa doutrina é que os anjos são seres puramente espirituais, anteriores e superiores à humanidade, criaturas privilegiadas consagradas à felicidade suprema e eterna desde a sua formação; dotadas, pela sua própria natureza, de todas as virtudes e de todos os conhecimentos, sem haverem feito nada para adquiri-los. Eles estão em primeiro lugar na obra da criação; em último, a vida puramente material, e, entre os dois, a humanidade formada de almas, seres espirituais inferiores aos anjos, unidos a corpos materiais. Muitas dificuldades capitais resultam desse sistema. Inicialmente, qual é essa vida puramente material? Trata-se da matéria bruta? Mas a matéria bruta é inanimada e não tem vida por si mesma. Quer se falar das plantas e dos animais? Isso, então, seria uma quarta ordem na criação, porque não se pode negar que haja no animal inteligente algo mais que em uma planta e nesta, mais que em uma pedra. Quanto à alma humana, que é a transição, ela está unida diretamente a um corpo que é apenas matéria bruta, visto que, sem alma, ele não tem mais vida do que um torrão de terra. A esta divisão, evidentemente, falta clareza, e ela não está de acordo com a observação; assemelha-se à teoria dos quatro elementos anulada diante dos progressos da Ciência. Admitamos, portanto, esses três termos: a criatura espiritual, a criatura humana e a criatura corporal; tal é, dizem, o plano divino, plano majestoso e completo como convém à sabedoria eterna. Notemos primeiro que entre esses três termos não há nenhuma ligação necessária, são três criações distintas, formadas sucessivamente; de uma à outra existe solução de continuidade, enquanto que, na natureza, tudo se encadeia, tudo nos mostra uma admirável lei de unidade, da qual todos os elementos, que são apenas transformações uns dos outros, têm seu traço de união. Essa teoria é verdadeira quanto a esses três termos que, evidentemente, existem; apenas é incompleta: faltam-lhe os pontos de contato, como é fácil demonstrar. 4. Esses três pontos culminantes da criação são, diz a Igreja, necessários à harmonia do conjunto; que haja apenas um de menos e a obra está incompleta, não está mais segundo a sabedoria eterna. Entretanto, um dos dogmas fundamentais da religião diz que a Terra, os animais, as plantas, o Sol, as estrelas, a própria luz foram criados e tirados do nada, há seis mil anos. Antes dessa época, portanto, não havia nem criatura humana, nem criatura corporal; durante a eternidade decorrida, a obra divina ficara, então, imperfeita. A criação do Universo remontando a seis mil anos é um artigo de fé de tal forma capital que ainda há poucos anos a Ciência era anatematizada porque vinha destruir a cronologia bíblica ao provar a antiguidade maior da Terra e de seus habitantes. Entretanto o concílio de Latrão, concílio ecumênico que faz lei em matéria de ortodoxia, diz: “Nós cremos firmemente que há apenas um único e verdadeiro Deus, eterno e infinito, o qual, no começo dos tempos, tirou conjuntamente do nada uma e outra criatura, a espiritual e a corporal.” O começo dos tempos pode-se entender apenas como a eternidade decorrida, porque o tempo é infinito, como o Espaço: não há nem começo nem fim. Esta expressão: o começo dos tempos é uma figura que implica a ideia de uma anterioridade ilimitada. O concílio de Latrão, portanto, crê firmemente que as criaturas espirituais e as criaturas corporais foram formadas simultaneamente, e tiradas conjuntamente do nada em uma época indeterminada no passado. O que vem a ser, pois, o texto bíblico, que fixa essa criação em seis mil anos dos nossos dias? Admitindo-se que esteja aí o começo do Universo visível, esse não é, seguramente, o do tempo. Em que acreditar, no concílio ou na Bíblia? 5. O mesmo concílio formula, além disso, uma estranha proposição: “Nossa alma, diz ele, igualmente espiritual, está associada ao corpo de maneira a formar com ele uma só e mesma pessoa, e tal é, essencialmente, sua destinação.” Se o destino essencial da alma é estar unida ao corpo, esta união constitui seu estado normal, seu objetivo, seu fim, pois que essa é sua destinação. Entretanto, a alma é imortal e o corpo é mortal; sua união com o corpo tem lugar apenas uma vez, segundo a Igreja, e mesmo que essa união dure um século, o que é esse tempo comparado a eternidade? Porém, para um grande número, essa união é de apenas algumas horas; que utilidade pode ter para a alma essa união de tão pouca duração? Quando, junto à eternidade, a mais longa duração dessa união é um tempo imperceptível, é exato dizer que o seu destino é estar essencialmente ligada ao corpo? Essa união na realidade é apenas um incidente, um momento na vida da alma, e não o seu estado essencial. Se o destino essencial da alma é estar unida a um corpo material; se, por sua natureza, e segundo o objetivo providencial da sua criação, essa união é necessária para as manifestações de suas faculdades, somos obrigados a concluir que, sem o corpo, a alma humana é um ser incompleto; ora, para que, por sua destinação, a alma continue o que é, faz-se necessário que após ter deixado um corpo ela tome um outro, o que nos conduz à pluralidade forçada das existências ou, dito de outro modo, à reencarnação para sempre. É verdadeiramente estranho que um concílio, considerado como uma das luzes da Igreja, haja identificado a esse ponto o ser espiritual e o ser material, que eles não possam de qualquer forma existir um sem o outro, visto que a condição essencial da sua criação é estarem unidos. 6. O Espiritismo professa, com relação à união da alma e do corpo, uma doutrina infinitamente mais espiritualista, para não dizer menos materialista, e que tem ainda a seu favor estar mais conforme com a observação e o destino da alma. Segundo o que ele nos ensina, a alma é independente do corpo, sendo este apenas um envoltório temporário; sua essência é a espiritualidade, sua vida normal é a vida espiritual. O corpo não é mais que um instrumento para o exercício das suas faculdades nas suas relações com o mundo material, porém, separada desse corpo, ela desfruta das suas faculdades com mais liberdade e amplidão. 7. A união da alma com o corpo, necessária aos seus primeiros progressos, acontece somente no período que se pode chamar de sua infância e sua adolescência; quando a alma atinge um certo grau de perfeição e de desmaterialização, essa união não é mais necessária, e ela progride apenas pela vida do espírito. Além disso, por mais numerosas que sejam as existências corporais, elas estão necessariamente limitadas pela vida do corpo, e sua soma total não abrange, em todos os casos, mais que uma imperceptível parte da vida espiritual, que é ilimitada. 8. O quadro hierárquico dos anjos nos demonstra que várias ordens têm, em suas atribuições, o governo do mundo físico e da humanidade, que eles foram criados para esse fi m. Porém, segundo o Gênesis, o mundo físico e a humanidade só existem há seis mil anos, portanto, o que faziam esses anjos antes desse período, durante a eternidade, já que não existiam os objetos das suas ocupações. Os anjos foram criados de toda a eternidade? Assim deve ser, visto que servem para a glorificação do Altíssimo. Se Deus os houvesse criado em uma época determinada qualquer teria ficado, até essa época, isto é, durante uma eternidade, sem adoradores. 9. Mais adiante, diz o concílio: “Enquanto dure essa união tão íntima da alma com o corpo”. Então, chega um momento em que essa união não existe mais? Esta proposição contradiz a que faz dessa união a destinação essencial da alma. Ele disse ainda: “As ideias lhes chegam pelos sentidos, pela comparação dos objetos exteriores.” Essa é uma doutrina fi losófica em parte verdadeira, porém não no sentido absoluto. Segundo eminente teólogo, é uma condição inerente à natureza da alma receber as ideias somente pelos sentidos; ele esquece as ideias inatas, as faculdades, às vezes tão transcendentes, a intuição das coisas que a criança traz ao nascer e que ela não deve a nenhum ensinamento. Por qual sentido jovens pastores, calculadores naturais que causaram admiração aos sábios, adquiriram as ideias necessárias para a solução quase instantânea dos mais complicados problemas? Pode-se dizer o mesmo de certos músicos, pintores e linguistas precoces. “Os conhecimentos que os anjos possuem não resultam da indução e do raciocínio”, eles os têm porque são anjos, sem precisarem aprender. Deus os criou tais como são; a alma, ao contrário, deve aprender. Se a alma recebe as ideias apenas pelos órgãos corporais, quais são as ideias que a alma de uma criança, morta após alguns dias de vida, pode ter, admitindo-se, como o faz a Igreja, que a alma não renasce? 10. Aqui apresenta-se uma questão vital: a alma adquire ideias e conhecimentos após a morte do corpo? Se, uma vez desligada do corpo, ela não pode adquirir nenhum conhecimento, a alma da criança, do selvagem, do cretino, do idiota ou do ignorante permanecerá sempre como era no momento da morte; ela está condenada à nulidade, por todo o sempre. Se a alma adquire novos conhecimentos após a vida atual, é porque ela pode progredir. Sem o progresso ulterior da alma, chega-se a consequências absurdas; com o progresso, chega-se à negação de todos os dogmas fundamentados sobre seu estado estacionário: o destino irrevogável, as penas eternas, etc. Se a alma progride, onde o progresso se detém? Não existe nenhuma razão para que ela não atinja o grau dos anjos ou puros espíritos. Se a alma pode chegar a esse ponto, não havia nenhuma necessidade de serem criados seres especiais e privilegiados, livres de todo trabalho e desfrutando da felicidade eterna sem haverem feito nada para conquistá-la, enquanto que outros seres, menos favorecidos, não obtêm a suprema felicidade senão à custa de longos e cruéis sofrimentos e das mais rudes provas. Deus poderia tê-lo feito, sem dúvida alguma, mas se admitimos o infinito das suas perfeições, sem as quais não seria Deus, também é preciso admitir que ele não faz nada de inútil, nada que desminta a soberana justiça e a soberana bondade. 11. “Visto que a majestade dos reis deve seu brilho ao número de seus súditos, seus ofi ciais e seus servidores, o que existe de mais próprio para nos dar uma ideia da majestade do Rei dos reis do que essa multidão inumerável de anjos que povoam o céu, a Terra, o mar e os abismos, e a dignidade daqueles que se mantêm, continuamente prosternados ou de pé diante do seu trono?” Não é rebaixar a Divindade, assemelhar sua glória ao fausto dos soberanos da Terra? Essa ideia, incutida no espírito das massas ignorantes, falseia a opinião que se faz da sua verdadeira grandeza; é sempre Deus reduzido às mesquinhas proporções da humanidade; supor que ele tenha necessidade de milhões de adoradores incessantemente prosternados ou de pé diante dele, é atribuir-lhe as fraquezas dos monarcas déspotas e orgulhosos do Oriente. O que faz um soberano verdadeiramente grande? É o número e o brilho dos seus cortesãos? Não; é a sua bondade e a sua justiça, é o título merecido de pai dos seus súditos. Pergunta-se se existe alguma coisa mais própria para nos dar uma ideia da majestade de Deus do que a multidão dos anjos que compõem sua corte. Sim, certamente, existe algo melhor do que isso: é o fato de Deus apresentar-se para todas as suas criaturas soberanamente bom, justo e misericordioso, e não colérico, invejoso, vingativo, inexorável, exterminador, parcial, criando para sua própria glória esses seres privilegiados, favorecidos com todos os dons, nascidos para a eterna felicidade, enquanto que, a outros, faz com que conquistem, penosamente a felicidade, punindo um momento de erro com uma eternidade de suplícios. OS ANJOS SEGUNDO O ESPIRITISMO. 12. Que haja seres dotados de todas as qualidades atribuídas aos anjos, disso não se poderia duvidar. Sobre esse ponto, a revelação espírita confirma a crença de todos os povos, porém, ao mesmo tempo, ela nos faz conhecer a natureza e a origem desses seres. As almas, ou espíritos, são criadas simples e ignorantes, isto é, sem conhecimentos e sem consciência do bem e do mal, mas aptas a adquirir tudo o que lhes falta e que é obtido pelo trabalho. O objetivo, que é o mesmo para todas, é a perfeição. Elas a alcançam mais ou menos rapidamente em virtude do seu livre arbítrio e em razão dos seus esforços; todas têm os mesmos graus para percorrer, o mesmo trabalho para realizar; Deus não concede um quinhão nem maior nem mais fácil a umas que a outras, porque todas são suas filhas e, sendo justo, não tem preferência por nenhuma. Ele lhes diz: “Eis a lei que deve ser a vossa regra de conduta; somente ela pode vos levar ao objetivo; tudo o que está de acordo com esta lei é o bem, tudo o que é contrário a ela é o mal. Sois livres para obedecê-la ou para infringi-la, e sereis, assim, os árbitros do vosso próprio destino.” Deus, portanto, não criou o mal; todas as suas leis são para o bem. Foi o homem, o próprio homem quem criou o mal, desrespeitando as leis de Deus, se ele as observasse escrupulosamente jamais se afastaria do bom caminho. 13. A alma, porém, nas primeiras fases de sua existência, assim como a criança, não tem experiência, razão por que está sujeita a cometer faltas. Deus não lhe dá a experiência, mas dá os meios de adquiri-la. Cada passo em falso no caminho do mal é para a alma um atraso, do qual ela sofre as consequências, aprendendo, à sua custa, o que deve evitar. É assim que, pouco a pouco, ela se desenvolve, se aperfeiçoa e avança na hierarquia espiritual, até que chegue ao estado de puro espírito ou de anjo. Os anjos são, portanto, as almas dos homens que chegaram ao grau de perfeição que a criatura comporta, e desfrutam da plenitude da felicidade prometida. Antes de atingirem o grau supremo, desfrutam de uma felicidade relativa ao seu adiantamento, mas essa felicidade não se encontra na ociosidade, ela está nas funções que Deus lhes confia e que elas ficam felizes em realizar, porque essas ocupações são um meio de progredirem. (Ver o cap. III, “O Céu.”) 14. A humanidade não está limitada à Terra; ela ocupa os inumeráveis mundos que circulam no Espaço; ocupou aqueles que desapareceram, e ocupará aqueles que se formarão. Deus criou por toda a eternidade e cria sem cessar. Portanto, muito tempo antes de a Terra existir, por mais antiga que a imaginemos, havia, em outros mundos, espíritos encarnados que percorreram as mesmas etapas que nós, espíritos de formação mais recente, percorremos neste momento, e que chegaram ao objetivo antes mesmo que tivéssemos saído das mãos do Criador. De toda a eternidade, portanto, existiram anjos ou puros espíritos; mas, com a sua existência humana perdendo-se no infinito do passado, para nós é como se eles sempre tivessem sido anjos. 15. Assim se acha realizada a grande lei da unidade da criação; Deus jamais foi inativo, sempre teve puros espíritos, experimentados e esclarecidos, para a transmissão de suas ordens e para a direção de todas as partes do Universo, desde o governo dos mundos até os mais pequenos detalhes. Não há, pois, necessidade de crer em seres privilegiados, isentos de encargos; todos, antigos e novos, conquistaram suas posições na luta e por seu próprio mérito; todos, enfi m, são os filhos das suas obras. Assim se realiza igualmente a soberana justiça de Deus. Livro O Céu e o Inferno. Abraço. Davi

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

QUERIDA AMAZÔNIA

 

Cristianismo. www.vatican.va. EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL. QUERIDA AMAZÔNIA. Do Santo Padre Francisco. Ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade. Capítulo III. UM SONHO ECOLÓGICO. 41. Numa realidade cultural como a Amazônia, onde existe uma relação tão estreita do ser humano com a natureza, a vida diária é sempre cósmica. Libertar os outros das suas escravidões implica certamente cuidar do seu meio ambiente e defendê-lo[46] e – mais importante ainda – ajudar o coração do homem a abrir-se confiadamente àquele Deus que não só criou tudo o que existe, mas também Se nos deu a Si mesmo em Jesus Cristo. O Senhor, que primeiro cuida de nós, ensina-nos a cuidar dos nossos irmãos e irmãs e do ambiente que Ele nos dá de prenda cada dia. Esta é a primeira ecologia que precisamos. Na Amazónia, compreendem-se melhor as palavras de Bento XVI, quando dizia que, «ao lado da ecologia da natureza, existe uma ecologia que podemos designar “humana”, a qual, por sua vez, requer uma “ecologia social”. E isto requer que a humanidade (…) tome consciência cada vez mais das ligações existentes entre a ecologia natural, ou seja, o respeito pela natureza, e a ecologia humana»[47]. Esta insistência em que «tudo está interligado»[48] vale especialmente para um território como a Amazónia. 42. Se o cuidado das pessoas e o cuidado dos ecossistemas são inseparáveis, isto torna-se particularmente significativo lá onde «a floresta não é um recurso para explorar, é um ser ou vários seres com os quais se relacionar»[49]. A sabedoria dos povos nativos da Amazônia «inspira o cuidado e o respeito pela criação, com clara consciência dos seus limites, proibindo o seu abuso. Abusar da natureza significa abusar dos antepassados, dos irmãos e irmãs, da criação e do Criador, hipotecando o futuro»[50]. Os indígenas, «quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuidam»,[51] desde que não se deixem enredar pelos cantos das sereias e pelas ofertas interesseiras de grupos de poder. Os danos à natureza preocupam-nos, de maneira muito direta e palpável, porque – dizem eles – «somos água, ar, terra e vida do meio ambiente criado por Deus. Por conseguinte, pedimos que cessem os maus-tratos e o extermínio da “Mãe Terra”. A terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram as veias da nossa “Mãe Terra”»[52]. Esse sonho feito de água. 43. Na Amazônia, a água é a rainha; rios e córregos lembram veias, e toda a forma de vida brota dela: «Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem, mortas nos ares parados, as últimas lufadas de leste, o termômetro é substituído pelo higrômetro na definição do clima. As existências derivam numa alternativa dolorosa de vazantes e enchentes dos grandes rios. Estas alteiam-se sempre de um modo assombrador. O Amazonas referto salta fora do leito, levanta em poucos dias o nível das águas. A enchente é uma paragem na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda, então, com estoicismo raro ante a fatalidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de temperaturas altas. A vazante é o verão. É a revivescência da atividade rudimentar dos que ali se agitam, do único modo compatível com uma natureza que se excede em manifestações dispares tornando impossível a continuidade de quaisquer esforços»[53]. 44. A água encanta no grande Amazonas, que abraça e vivifica tudo ao seu redor:

 

«Amazonas,
capital das sílabas d'água,
pai patriarca, és
a eternidade secreta
das fecundações,
chegam-te rios como pássaros»[54].

 

45. Além disso é a coluna vertebral que harmoniza e une: «O rio não nos separa; mas une-nos, ajudando-nos a conviver entre diferentes culturas e línguas»[55]. Embora seja verdade que, neste território, há muitas «Amazônias», o seu eixo principal é o grande rio, filho de muitos rios: «Da altura extrema da cordilheira, onde as neves são eternas, a água se desprende, e traça trémula um risco na pele antiga da pedra: o Amazonas acaba de nascer. A cada instante ele nasce. Desce devagar, para crescer no chão. Varando verdes, faz o seu caminho e se acrescenta. Aguas subterrâneas afloram para abraçar-se com a água que desceu dos Andes. De mais alto ainda, desce a água celeste. Reunidas elas avançam, multiplicadas em infinitos caminhos, banhando a imensa planície (...). É a Grande Amazônia, toda ela no trópico húmido, com a sua floresta compacta e atordoante, onde ainda palpita, intocada pelo homem, a vida que se foi urdindo nas intimidades da água (...). Desde que o homem a habita, ergue-se das funduras das suas águas e dos altos centros de sua floresta um terrível temor: a de que essa vida esteja, devagarinho, tomando o rumo do fim»[56]. 46. Os poetas populares, enamorados da sua imensa beleza, procuraram expressar o que este rio lhes fazia sentir e a vida que ele oferece à sua passagem, com uma dança de delfins, anacondas, árvores e canoas. Mas lamentam também os perigos que a ameaçam. Estes poetas, contemplativos e proféticos, ajudam a libertar-nos do paradigma tecnocrático e consumista que sufoca a natureza e nos deixa sem uma existência verdadeiramente digna: «Sofre o mundo da transformação dos pés em borracha, das pernas em couro, do corpo em pano e da cabeça em aço (...). Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil, do arado em tanque de guerra, da imagem do semeador que semeia na do autômato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões. A esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz»[57]. O grito da Amazónia47. A poesia ajuda a expressar uma dolorosa sensação que muitos compartilhamos hoje. A verdade ineludível é que, nas condições atuais, com este modo de tratar a Amazónia, tanta riqueza de vida e de tão grande beleza estão «tomando o rumo do fim», embora muitos pretendam continuar a crer que tudo vai bem, como se nada acontecesse:

«Aqueles que pensavam que o rio fosse uma corda para jogar, enganavam-se.
O rio é uma veia muito subtil sobre a face da terra. (…)
O rio é uma corda onde se agarram os animais e as árvores.
Se o puxarem demais, o rio poderia rebentar.
Poderia explodir e lavar-nos a cara com a água e com o sangue»[58].

48. O equilíbrio da terra depende também da saúde da Amazônia. Juntamente com os biomas do Congo e do Bornéu, deslumbra pela diversidade das suas florestas, das quais dependem também os ciclos das chuvas, o equilíbrio do clima e uma grande variedade de seres vivos. Funciona como um grande filtro do dióxido de carbono, que ajuda a evitar o aquecimento da terra. Em grande parte, o solo é pobre em húmus, de modo que a floresta «cresce realmente sobre o solo e não do solo»[59]. Quando se elimina a floresta, esta não é substituída, ficando um terreno com poucos nutrientes que se transforma num território desértico ou pobre em vegetação. Isto é grave, porque, nas entranhas da floresta amazônica, subsistem inúmeros recursos que poderiam ser indispensáveis para a cura de doenças. Os seus peixes, frutos e outros dons sobreabundantes enriquecem a alimentação humana. Além disso, num ecossistema como o amazónico, é incontestável a importância de cada parte para a conservação do todo. As próprias terras costeiras e a vegetação marinha precisam de ser fertilizadas por aquilo que o rio Amazonas arrasta. O grito da Amazónia chega a todos, porque a «conquista e exploração de recursos (...) hoje chega a ameaçar a própria capacidade acolhedora do ambiente: o ambiente como “recurso” corre o perigo de ameaçar o ambiente como “casa”»[60]. O interesse de algumas empresas poderosas não deveria ser colocado acima do bem da Amazónia e da humanidade inteira. 49. Não basta prestar atenção à preservação das espécies mais visíveis em risco de extinção. É crucial ter em conta que, «para o bom funcionamento dos ecossistemas, também são necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e a variedade inumerável de micro-organismos. Algumas espécies pouco numerosas, que habitualmente nos passam despercebidas, desempenham uma função censória fundamental para estabelecer o equilíbrio dum lugar»[61]. E isto facilmente se ignora na avaliação do impacto ambiental dos projetos econômicos de indústrias extrativas, energéticas, madeireiras e outras que destroem e poluem. Além disso a água, que abunda na Amazônia, é um bem essencial para a sobrevivência humana, mas as fontes de poluição vão aumentando cada vez mais[62]. 50. Com efeito, além dos interesses econômicos de empresários e políticos locais, existem também «os enormes interesses econômicos internacionais»[63]. Por isso, a solução não está numa «internacionalização» da Amazônia[64], mas a responsabilidade dos governos nacionais torna-se mais grave. Pela mesma razão, «é louvável a tarefa de organismos internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos sistemas de pressão, para que cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou internacionais»[65]. 51. Para cuidar da Amazónia, é bom conjugar a sabedoria ancestral com os conhecimentos técnicos contemporâneos, mas procurando sempre intervir no território de forma sustentável, preservando ao mesmo tempo o estilo de vida e os sistemas de valores dos habitantes[66]. A estes, especialmente aos povos nativos, cabe receber, para além da formação básica, a informação completa e transparente dos projetos, com a sua amplitude, os seus efeitos e riscos, para poderem confrontar esta informação com os seus interesses e com o próprio conhecimento do local e, assim, dar ou negar o seu consentimento ou então propor alternativas[67]. 52. Os mais poderosos nunca ficam satisfeitos com os lucros que obtêm, e os recursos do poder econômico têm aumentado muito com o desenvolvimento científico e tecnológico. Por isso, todos deveríamos insistir na urgência de «criar um sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma tecno-econômico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também com a liberdade e a justiça»[68]. Se a chamada por Deus exige uma escuta atenta do grito dos pobres e ao mesmo tempo da terra[69], para nós «o grito da Amazónia ao Criador é semelhante ao grito do Povo de Deus no Egito (cf. Ex 3, 7). É um grito desde a escravidão e o abandono, que clama por liberdade»[70]. A profecia da contemplação53. Muitas vezes deixamos que a consciência se torne insensível, porque «a constante distração nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito»[71]. Se nos detivermos na superfície, pode parecer «que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições atuais. Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido»[72]. 54. Além de tudo isso, quero lembrar que cada uma das diferentes espécies tem valor em si mesma. Ora, «anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por razões que têm a ver com alguma atividade humana. Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer»[73]. 55. Aprendendo com os povos nativos, podemos contemplar a Amazónia, e não apenas analisá-la, para reconhecer esse precioso mistério que nos supera; podemos amá-la, e não apenas usá-la, para que o amor desperte um interesse profundo e sincero; mais ainda, podemos sentir-nos intimamente unidos a ela, e não só defendê-la: e então a Amazônia tornar-se-á nossa como uma mãe. Porque se «contempla o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os seres»[74]. 56. Despertemos o sentido estético e contemplativo que Deus colocou em nós e que, às vezes, deixamos atrofiar. Lembremo-nos de que, «quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos»[75]. Pelo contrário, se entrarmos em comunhão com a floresta, facilmente a nossa voz se unirá à dela e transformar-se-á em oração: «Deitados à sombra dum velho eucalipto, a nossa oração de luz mergulha no canto da folhagem eterna»[76]. Tal conversão interior é que nos permitirá chorar pela Amazônia e gritar com ela diante do Senhor. 57. Jesus disse: «Não se vendem cinco passarinhos por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus» (Lc 12, 6). Deus Pai, que criou com infinito amor cada ser do universo, chama-nos a ser seus instrumentos para escutar o grito da Amazónia. Se acudirmos a este clamor angustiado, tornar-se-á manifesto que as criaturas da Amazônia não foram esquecidas pelo Pai do céu. Segundo os cristãos, o próprio Jesus nos chama a partir delas, «porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa»[77]. Por todas estas razões, nós, os crentes, encontramos na Amazónia um lugar teológico, um espaço onde o próprio Deus Se manifesta e chama os seus filhos. Educação e hábitos ecológicos58. Assim, podemos dar mais um passo e lembrar que uma ecologia integral não se dá por satisfeita com ajustar questões técnicas ou com decisões políticas, jurídicas e sociais. A grande ecologia sempre inclui um aspeto educativo, que provoca o desenvolvimento de novos hábitos nas pessoas e nos grupos humanos. Infelizmente, muitos habitantes da Amazónia adquiriram costumes próprios das grandes cidades, onde já estão muito enraizados o consumismo e a cultura do descarte. Não haverá uma ecologia sã e sustentável, capaz de transformar seja o que for, se não mudarem as pessoas, se não forem incentivadas a adotar outro estilo de vida, menos voraz, mais sereno, mais respeitador, menos ansioso, mais fraterno. 59. De facto, «quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objetos para comprar, possuir e consumir. Em tal contexto, parece não ser possível, para uma pessoa, aceitar que a realidade lhe assinale limites; (…) não pensemos só na possibilidade de terríveis fenómenos climáticos ou de grandes desastres naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises sociais, porque a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca».[78]. 60. A Igreja, com a sua longa experiência espiritual, a sua consciência renovada sobre o valor da criação, a sua preocupação com a justiça, a sua opção pelos últimos, a sua tradição educativa e a sua história de encarnação em culturas tão diferentes de todo o mundo, deseja, por sua vez, prestar a sua contribuição para o cuidado e o crescimento da Amazônia. Isso dá lugar ao novo sonho, que pretendo partilhar mais diretamente com os pastores e os fiéis católicos. www.vatican.va. Abraço. Davi

 

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

OS DEMÔNIOS

 

Espiritismo. Texto de Allan Kardec (1804-1869). Livro O Céu e o Inferno. Capítulo X. OS DEMÔNIOS. Origem da crença nos demônios • Os demônios segundo a Igreja • Os demônios segundo o Espiritismo. ORIGEM DA CRENÇA NOS DEMÔNIOS. 1. Os demônios têm, em todas as épocas, desempenhado um grande papel nas diversas teogonias; embora consideravelmente decaídos na opinião geral, a importância que ainda se lhes atribui em nossos dias dá a essa questão uma certa gravidade, porque ela toca mesmo no fundo das crenças religiosas; eis por que é útil examiná-la com os desdobramentos que ela comporta. A crença em um poder superior é instintiva nos homens, por isso a encontramos, sob diferentes formas, em todas as épocas no mundo. Se hoje, com o grau de adiantamento intelectual a que os homens chegaram, eles ainda discutem sobre a natureza e os atributos desse poder, quanto mais imperfeitas deviam ser as suas noções a esse respeito no começo da humanidade! 2. O quadro que para nós se apresenta da inocência dos povos primitivos em contemplação diante das belezas da natureza, na qual eles admiram a bondade do Criador, é sem dúvida muito poético, mas nele falta a realidade. Quanto mais o homem se aproxima do estado natural, mais o instinto o domina, como se pode verificar ainda entre os povos selvagens e bárbaros dos nossos dias; o que mais o preocupa, ou melhor, o que exclusivamente o ocupa, é a satisfação das necessidades materiais, porque outras ele não tem. O único sentido que pode torná-lo acessível aos prazeres puramente morais só se desenvolve com o tempo e gradualmente; a alma tem sua infância, sua adolescência e sua virilidade, assim como o corpo humano; mas, para atingir a virilidade que a torna apta a compreender as coisas abstratas, quanto de evolução ela deve realizar. Quanto de existências lhe é necessário cumprir! Sem recuar às primeiras épocas, vemos à volta de nós as pessoas dos nossos campos, e nos perguntamos que sentimentos de admiração nelas despertam o esplendor do Sol nascente, o céu estrelado, o cantar dos pássaros, o murmúrio das ondas claras, os campos cobertos de flores! Para elas, o Sol se ergue porque tem esse hábito e, sob a condição de que ele dê bastante calor para amadurecer as colheitas, e não muito para calciná-las, é tudo o que elas querem. Se olham o céu é para saber se fará bom ou mau tempo no dia seguinte; se os pássaros cantam ou não, isso lhes é indiferente, contanto que não comam o seu grão; em lugar do canto dos rouxinóis preferem o cacarejar das galinhas e o grunhir dos seus porcos; o que pedem aos regatos claros ou lodosos é que não sequem nem inundem as terras; aos campos, que de boa erva, com ou sem flores. É tudo o que desejam, dizemos mais, é tudo o que compreendem da natureza, e, no entanto já estão longe dos homens primitivos. 3. Se nos reportarmos a estes últimos, nós os vemos, mais exclusivamente ainda, preocupados com a satisfação das necessidades materiais; o que serve para abastecê-los e o que pode prejudicá-los resume para eles o bem e o mal nesse mundo. Eles creem em um poder extra-humano; mas, como o que lhes traz um prejuízo material é o que mais lhes importa, eles o atribuem a esse poder, do qual, apesar disso, fazem uma ideia muito vaga. Não podendo ainda conceber nada fora do mundo visível e tangível, eles imaginam que esse poder resida nos seres e nas coisas que lhes são prejudiciais. Os animais nocivos, portanto, são, para eles, os representantes naturais e diretos desse poder. Pela mesma razão, viram nas coisas úteis a personificação do bem: daí o culto dispensado a certos animais, a certas plantas e mesmo a objetos inanimados. Mas o homem geralmente é mais sensível ao mal que ao bem; o bem lhe parece natural, enquanto que o mal o afeta mais; eis por que, em todos os cultos primitivos, as cerimônias em homenagem ao poder maligno são as mais numerosas; o medo prevalece sobre o reconhecimento. Durante muito tempo, o homem concebeu apenas o bem e o mal físicos; o sentimento do bem moral e do mal moral marcou um adiantamento na inteligência humana; somente então o homem entreviu a espiritualidade, e compreendeu que o poder sobre-humano está fora do mundo visível, e não nas coisas materiais. Esse foi o trabalho de algumas inteligências de alta qualidade, mas que não puderam, no entanto, superar certos limites. 4. Como se via uma luta incessante entre o bem e o mal, e, frequentemente, o mal suplantar o bem; como, por outro lado, não se podia racionalmente admitir que o mal fosse a obra de um poder benéfico, chegou-se à conclusão de que existiam dois poderes rivais governando o mundo. Daí nasceu a doutrina dos dois princípios: o do bem e o do mal, doutrina lógica para essa época, porque o homem ainda era incapaz de conceber uma outra, e de penetrar a essência do Ser supremo. Como poderia ele compreender que o mal é apenas um estado momentâneo de onde pode surgir o bem, e que os males que o afligem devem conduzi-lo à felicidade, ajudando-o no seu adiantamento? Os limites do seu horizonte moral nada lhe permitiam ver fora da vida presente, nem para a frente, nem quanto ao passado; ele não podia compreender que havia progredido, nem que ainda progrediria individualmente, e muito menos que as vicissitudes da vida são o resultado da imperfeição do ser espiritual que está nele, que preexiste e sobrevive ao corpo, e se purifica em uma série de existências, até que ele tenha atingido a perfeição. Para compreender o bem que pode surgir do mal, não se pode analisar apenas uma existência; é preciso abranger o conjunto: só então aparecem as verdadeiras causas e seus efeitos. 5. O duplo princípio do bem e do mal foi, durante muitos séculos e sob diferentes nomes, a base de todas as crenças religiosas. Foi personificado sob os nomes de Oromaze e Arimane entre os persas, de Jeová e Satã entre os hebreus. Porém, como todo soberano deve ter ministros, todas as religiões admiram os poderes secundários, os gênios bons ou maus. Os pagãos os personificavam sob uma inumerável multidão de individualidades, tendo cada uma atribuições especiais para o bem e para o mal, para os vícios e para as virtudes, e aos quais deram o nome geral de deuses. Os cristãos e os muçulmanos receberam dos hebreus os anjos e os demônios. 6. A doutrina dos demônios, portanto, tem sua origem na antiga crença nos dois princípios: o do bem e o do mal. Vamos examiná-la aqui apenas no ponto de vista cristão, e ver se ela está de acordo com o conhecimento mais exato que temos atualmente dos atributos da Divindade. Esses atributos são o ponto de partida, a base de todas as doutrinas religiosas; os dogmas, o culto, as cerimônias, os usos, a moral, tudo está em harmonia com a idéia mais ou menos justa, mais ou menos elevada que se faz de Deus, desde o fetichismo até o Cristianismo. Se a essência íntima de Deus ainda é um mistério para a nossa inteligência, nós, entretanto, o compreendemos melhor do que ele jamais foi compreendido, graças aos ensinamentos do Cristo. O Cristianismo, de acordo com a razão, nos ensina que: Deus é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições. Assim como foi dito em outra parte (cap. VII, “Penas Eternas”): “Se se tirasse a mais pequena parcela de um só dos atributos de Deus, não mais haveria Deus, porque poderia existir um ser mais perfeito.” Esses atributos, em sua plenitude mais absoluta, são pois o critério de todas as religiões, a medida da verdade de cada um dos princípios que elas ensinam. Para que um desses princípios seja verdadeiro, é preciso que ele não atente contra nenhuma das perfeições de Deus. Vejamos se assim acontece na doutrina comum dos demônios. OS DEMÔNIOS SEGUNDO A IGREJA. Segundo a Igreja, Satã, o chefe ou o rei dos demônios, não é uma personificação alegórica do mal, mas um ser real, fazendo exclusivamente o mal, enquanto que Deus faz exclusivamente o bem. Aceitemo-lo, pois, tal como nos é dado. Satã existe de toda a eternidade, como Deus, ou é posterior a Deus? Se existe de toda a eternidade, ele é incriado, e por consequência igual a Deus. Neste caso Deus não é mais único, existe o Deus do bem e o Deus do mal. Satã é posterior a Deus? Então ele é uma criatura de Deus. Visto que só faz o mal, que é incapaz de fazer o bem e de se arrepender pelo mal praticado, Deus criou um ser consagrado eternamente ao mal. Se o mal não é a obra de Deus, mas a obra de uma de suas criaturas predestinada a fazê-lo, Deus sempre é o primeiro autor do mal, e então ele não é infinitamente bom. O mesmo acontece com todos os seres maus chamados demônios. 8. Essa foi, durante muito tempo, a crença sobre esse assunto. Atualmente, dizem: “Deus, que é a bondade e a santidade por essência, não os havia criado maus, e nocivos. Sua mão paternal, que se regozija em espalhar sobre todas as obras um reflexo de suas perfeições infinitas, lhes havia concedido em grande quantidade seus mais magníficos dons. Às elevadas qualidades de sua natureza, acrescentara as generosidades de sua benevolência; em tudo os fizera semelhantes aos sublimes espíritos que estão na glória e na felicidade; distribuídos em todas as suas ordens e misturados em todas as suas classes, eles tinham o mesmo objetivo e os mesmos destinos; seu chefe foi o mais belo dos arcanjos. Eles também poderiam ter o mérito de ser, para sempre, confirmados na justiça e acolhidos para desfrutarem, eternamente, da felicidade dos céus. Este último favor teria posto o coroamento em todos os outros favores dos quais eram o objeto; porém, esse favor seria o prêmio por sua docilidade, e eles se tornaram indignos dele, perderam-no por uma revolta audaciosa e insensata. Qual foi o obstáculo à sua perseverança? Que verdade desconheceram? Que ato de fé e de adoração eles recusaram a Deus? A Igreja e os anais da história santa não o dizem de uma maneira positiva, mas parece certo que eles não concordaram nem com a mediação do Filho de Deus por eles mesmos, nem com a exaltação da natureza humana em Jesus Cristo. O Verbo Divino, por quem todas as coisas foram feitas, é também o único mediador e salvador, no céu e na Terra. O fim sobrenatural foi dado aos anjos e aos homens somente na previsão de sua encarnação e de seus méritos; porque não existe nenhuma proporção entre as obras dos mais eminentes espíritos e essa recompensa, que não é outra senão o próprio Deus; nenhuma criatura poderia ali chegar sem essa intervenção maravilhosa e sublime da caridade. Ora, para preencher a distância infinita que separa a essência divina das obras de suas mãos, seria preciso que ele reunisse em sua pessoa os dois extremos, e que associasse à sua divindade a natureza do anjo ou a do homem; e ele escolheu a natureza humana. Esse plano concebido de toda a eternidade, foi manifesto aos anjos muito antes da sua execução; o Homem-Deus lhes foi mostrado no futuro como aquele que devia confirmá-los em graça e introduzi-los na glória, sob a condição de que o adorassem sobre a Terra durante sua missão, e no céu por toda a eternidade. Revelação inesperada, visão deslumbrante para os corações generosos e agradecidos, porém, mistério profundo, opressivo para os espíritos soberbos! Esse fim sobrenatural, essa carga imensa de glória que lhes era proposta não seria, pois, unicamente a recompensa por seus méritos pessoais! Eles não poderiam jamais atribuir a si mesmos os títulos e a posse. Um mediador entre eles e Deus, que injúria feita à sua dignidade! A preferência gratuita concedida à natureza humana, que injustiça! que ofensa dirigida aos seus direitos! Essa humanidade, que lhes é tão inferior, eles a verão, um dia, divinizada pela sua união com o Verbo, e sentada à direita de Deus, sobre um trono resplandecente? Consentirão eles em lhe oferecer eternamente suas homenagens e sua adoração? Lúcifer e a terça parte dos anjos foram vencidos por esses pensamentos de orgulho e de ciúme. São Miguel, e com ele a maioria, exclamaram: ‘Quem é semelhante a Deus? Ele é o mestre dos seus dons e o soberano Senhor de todas as coisas. Glória a Deus e ao Cordeiro que será sacrificado pela salvação do mundo!’ Mas o chefe dos rebeldes, esquecendo que a sua nobreza e as suas prerrogativas eram devidas ao seu Criador, ouviu apenas a sua imprudência, e disse: Sou eu mesmo quem subirá ao céu; estabelecerei minha morada acima dos astros; eu me sentarei sobre a montanha da aliança, nos flancos do Aquilão; dominarei as nuvens mais elevadas, e serei semelhante ao Altíssimo. Aqueles que partilharam seus sentimentos acolheram suas palavras com um murmúrio de aprovação; e eles se encontravam em todas as ordens da hierarquia, mas o seu grande número não os colocou a salvo do castigo.” 9. Essa doutrina provoca várias objeções: 1a ) Se Satã e os demônios eram anjos, eles eram perfeitos; como, sendo perfeitos, puderam fracassar e desconhecer a esse ponto a autoridade de Deus, em presença de quem se encontravam? Ainda poderíamos conceber tal fato se eles tivessem chegado a esse grau eminente de forma gradual e, após haverem passado pela experiência da imperfeição, tivessem sofrido por um retrocesso lamentável; mas o que torna o fato mais incompreensível é que eles nos são apresentados como tendo sido criados perfeitos. A consequência dessa teoria é esta: Deus quis criar neles seres perfeitos, já que os havia cumulado de todos os dons, e ele se enganou; logo, segundo a Igreja, Deus não é infalível. 2ª pois que nem a igreja e nem os sagrados anais explicam a causa da rebelião dos anjos contra Deus, e que apenas dão como problemática quase certa na recusa deles em reconhecer a missão futura do Cristo, que valor pode ter o quadro tão preciso e tão detalhado da cena que teve lugar nessa ocasião? De qual fonte foram tiradas as palavras, tão claramente narradas, como tendo sido pronunciadas naquele momento, e até os simples murmúrios? De duas coisas, uma: ou a cena é verdadeira ou ela não o é. Se é verdadeira, não há nenhuma incerteza, então por que a Igreja não resolve claramente a questão? Se a Igreja e a História se calam, se a causa apenas parece certa, ela não é mais que uma suposição, e a descrição da cena é uma obra da imaginação. 3a ) As palavras atribuídas a Lúcifer demonstram uma ignorância que é de espantar ser encontrada em um arcanjo que por sua própria natureza, e no grau em que está colocado, não deve partilhar, sobre a organização do Universo, os erros e os preconceitos que os homens professaram até que a Ciência viesse esclarecê-los. Como Lúcifer pôde dizer: “Estabelecerei minha morada acima dos astros; dominarei as nuvens mais elevadas”? É sempre a antiga crença na Terra como centro do mundo, no céu de nuvens que se estende até às estrelas, na região limitada de estrelas formando a abóbada, e que a Astronomia nos mostra disseminadas ao infinito, no Espaço infi nito. Como se sabe hoje em dia que as nuvens não se estendem além de duas léguas da superfície da Terra, para dizer que ele dominará as nuvens mais elevadas, e falar das montanhas, era preciso que a cena se passasse na superfície da Terra, e que lá fosse a morada dos anjos; se a morada está nas regiões superiores, seria inútil dizer que se elevaria para além das nuvens. Fazer com que os anjos tenham uma linguagem entremeada de ignorância, é reconhecer que os homens, atualmente, sabem mais do assunto que os anjos. A Igreja sempre tem cometido o erro de não levar em conta os progressos da Ciência. 10. A resposta à primeira objeção se acha na seguinte passagem: “A Escritura e a tradição dão o nome de céu ao lugar onde os anjos haviam sido colocados no momento da sua criação. Mas esse não era o céu dos céus, o céu da visão beatífica, onde Deus se mostra aos seus eleitos face a face, e onde seus eleitos o contemplam sem esforços e sem nuvens; porque, lá, não há nem perigo nem possibilidade de pecar; a tentação e a fraqueza são desconhecidas; a justiça, a alegria e a paz reinam ali em uma imutável segurança; a santidade e a glória não estão sujeitas a se perderem. Era, portanto, uma outra região celeste, uma esfera luminosa e afortunada, onde essas nobres criaturas, amplamente favorecidas por comunicações divinas, deviam recebê-las e a elas aderir pela humildade da fé, antes de serem admitidas a ver claramente a sua realidade na essência do próprio Deus.” Do que precede resulta que os anjos que falharam pertenciam a uma categoria menos elevada, menos perfeita, que não tinham ainda chegado ao lugar supremo onde o erro é impossível. Seja; mas então há aqui uma contradição evidente, porque é dito mais acima que “Deus os havia feito em tudo semelhantes aos sublimes espíritos que, distribuídos em todas as suas ordens e misturados em todas as suas classes, tinham o mesmo objetivo e o mesmo destino; que seu chefe era o mais belo dos arcanjos.” Se eles foram feitos em tudo semelhantes aos outros, não eram, portanto, de uma natureza inferior; se foram misturados em todas as classes, não estavam em um lugar especial. Logo, a objeção vigora inteiramente. 11. Há uma outra objeção que é, sem contestação, a mais grave e a mais séria. Está dito: “Esse projeto (a mediação do Cristo), concebido de toda a eternidade, foi revelado aos anjos muito tempo antes da sua realização.” Deus sabia, portanto, de toda a eternidade, que os anjos, assim como os homens, teriam necessidade dessa mediação. Ele sabia, ou não sabia, que certos anjos fracassariam; que essa queda lhes acarretaria a condenação eterna sem esperança de retorno; que seriam destinados a tentar os homens e que aqueles homens que se deixassem seduzir sofreriam a mesma sorte. Portanto, se Deus sabia disso, ele criou esses anjos, com conhecimento de causa, para sua perda irrevogável e para a perda da maior parte do gênero humano. Digam o que disserem, é impossível, com semelhante previsão, conciliar sua criação com a soberana bondade. Se ele não sabia, não era onipotente. Tanto em uma como em outra hipótese, é a negação de dois atributos sem a plenitude dos quais Deus não seria Deus. 12. Se admitirmos a falibilidade dos anjos, como também a dos homens, a punição é uma consequência natural e justa da falta; porém, se admitirmos ao mesmo tempo a possibilidade do resgate, pelo retorno ao bem, a obtenção do perdão após o arrependimento e a expiação, não há nada que desminta a bondade de Deus. Deus sabia que eles falhariam, que seriam punidos, mas sabia também que esse castigo temporário seria um meio de fazê-los compreender seu erro e se transformaria em seu benefício. Assim se achariam confirmadas estas palavras do profeta Ezequiel: “Deus não quer a morte do pecador, mas a sua salvação.” O que seria a negação dessa bondade é a inutilidade do arrependimento e a impossibilidade do retorno ao bem. Nesta hipótese, é rigorosamente exato dizer que: “Esses anjos, desde sua criação, já que Deus não podia ignorá-lo, foram consagrados ao mal pela eternidade, e predestinados a se tornarem demônios, para induzir os homens ao mal.” 13. Vejamos, agora, qual é o seu destino e o que fazem. “Mal sua revolta se evidenciou na linguagem dos espíritos, quer dizer no entusiasmo dos seus pensamentos, eles foram banidos, irrevogavelmente, da cidade celeste e precipitados no abismo.” “Por essas palavras, entendemos que eles foram relegados a um lugar de suplícios, onde sofressem a pena do fogo, de acordo com este texto do Evangelho, que saiu da própria boca do Salvador: Ide, malditos, para o fogo eterno que foi preparado pelo demônio e pelos seus anjos. São Pedro diz expressamente que Deus os abandonou às cadeias e às torturas do inferno, mas nem todos ficam ali perpetuamente; isto só acontecerá no fim do mundo, quando eles ali serão presos para sempre com os condenados. Presentemente, Deus permite que eles ocupem ainda um lugar nessa criação a qual eles pertencem, na ordem das coisas a que se prende sua existência, nas relações, enfim, que eles deviam ter com o homem e das quais fazem o mais pernicioso abuso. Enquanto que uns estão na sua morada tenebrosa, e ali servem de instrumento à justiça divina, contra as almas infelizes que eles seduziram, uma infinidade de outros, formando legiões invisíveis sob o comando de seus chefes, residem nas camadas inferiores da nossa atmosfera e percorrem todas as partes do globo. Eles estão envolvidos com tudo o que se passa aqui embaixo onde muitas vezes tomam uma parte muito ativa.” Quanto ao que se refere às palavras do Cristo sobre o suplício do fogo eterno, essa questão é tratada no capítulo IV, “O Inferno”. 14. Segundo essa doutrina, só uma parte dos demônios está no inferno; a outra erra em liberdade, envolvendo-se em tudo o que se passa aqui embaixo, dando-se ao prazer de fazer o mal, e isto até o fim do mundo, cuja época, indeterminada, provavelmente não acontecerá tão cedo. Por que essa diferença? Uns são menos culpados que outros? Seguramente, não. A menos que eles dali não saiam alternadamente, o que pareceria resultar desta passagem: “Enquanto que uns estão na sua morada tenebrosa, e ali servem de instrumentos à justiça divina contra as almas infelizes que eles seduziram.” Suas funções, portanto, consistem em atormentar as almas que eles seduziram. Assim, não são encarregados de punir aquelas que são culpadas de faltas livre e voluntariamente cometidas, mas sim daquelas que eles mesmos provocaram. Eles são, ao mesmo tempo, a causa da falta e o instrumento do castigo; e, coisa que a justiça humana, tão imperfeita como é, não admitiria: a vítima que, por fraqueza, não resiste quando a ocasião se apresenta para tentá-la é punida tão severamente quanto o agente provocador que emprega a perfídia e a astúcia, até mais severamente porque ela vai para o inferno ao deixar a Terra, para não sair mais dele, para ali sofrer sem interrupções nem misericórdia durante a eternidade, enquanto que aquele que é o causador do seu erro desfruta da moratória e da liberdade até o fim do mundo! Portanto, a justiça de Deus não é mais perfeita que a dos homens! 15. Isso, porém, não é tudo. “Deus ainda permite que eles ocupem um lugar nessa criação, nas relações que deviam ter com o homem e das quais fazem o mais pernicioso abuso.” Deus podia ignorar o abuso que fariam da liberdade que ele lhes concedeu? Então, por que lhes permitiu tal liberdade? Portanto, é com conhecimento de causa que Deus entrega suas criaturas à mercê de si mesmas, sabendo, por causa de toda a sua presciência, que elas não resistirão e terão a sorte dos demônios. Não possuíam, essas criaturas, a sua própria fraqueza em quantidade sufi ciente, sem permitir que fossem incitadas ao mal por um inimigo tanto mais perigoso porquanto é invisível? Ainda se o castigo fosse apenas temporário e se o culpado pudesse se reabilitar pela reparação! Mas não, ele está condenado por toda a eternidade. Seu arrependimento, seu retorno ao bem, seus lamentos são inúteis. Os demônios são, por conseguinte, os agentes provocadores predestinados a recrutar almas para o inferno, e isso com a permissão de Deus, que sabia, ao criar essas almas, a sorte que lhes estava reservada. Na Terra, o que se diria de um juiz que assim procedesse para povoar as prisões? Estranha ideia nos dão da Divindade, de um Deus cujos atributos são a soberana justiça e a soberana bondade! E é em nome de Jesus Cristo, daquele que só pregou o amor, a caridade e o perdão, que se ensinam semelhantes doutrinas! Houve um tempo em que tais anomalias passavam despercebidas; não eram compreendidas, não eram sentidas; o homem, curvado sob o jugo do despotismo, submetia sua razão sem discernimento, ou antes, renunciava à sua razão; mas atualmente soou a hora da emancipação, o homem compreende a justiça, ele a quer durante sua vida e após sua morte; eis por que ele diz: “Isto não é, isto não se pode, ou Deus não é Deus!” 16. “O castigo segui por toda a parte esses seres decaídos e malditos, por toda a parte levam seu inferno com eles, não têm paz nem repouso; até as próprias doçuras da esperança para eles se transformaram em amargura: a esperança lhes é odiosa. A mão de Deus incidiu sobre eles no próprio ato do seu pecado, e sua vontade se obstinou no mal. Tornados perversos, não querem deixar de ser perversos, e o são para sempre. Após o pecado, eles são o que o homem é após a morte. A reabilitação daqueles que caíram é, pois, impossível; sua perda é daqui em diante sem retorno, eles perseveram em seu orgulho, frente a frente com Deus, em seu ódio contra seu Cristo, em seu ciúme contra a humanidade. Não podendo se apropriar da glória do céu, pelo arrojo da sua ambição, eles se esforçam em estabelecer seu império sobre a Terra e dela excluir o reino de Deus. Não obstante, o Verbo feito carne realizou seus desígnios para a salvação e a glória da humanidade; todos os seus meios de ação são consagrados a tirar do Cristo as almas que ele resgatara; a astúcia e a impertinência, a mentira e a sedução, valem-se de tudo para conduzi-los ao mal e para consumar sua ruína. Com tais inimigos, a vida do homem, desde o seu nascimento até à morte, não pode ser, valha-me Deus!, senão uma luta perpétua, porque eles são poderosos e infatigáveis. Esses inimigos, efetivamente, são aqueles mesmos que, após haverem introduzido o mal no mundo, vieram para cobrir a Terra com as densas trevas do erro e do vício. Aqueles que, durante longos séculos, se fizeram adorar como deuses e reinaram como soberanos sobre os povos da Antiguidade; aqueles, enfim, que ainda exercem seu domínio tirânico sobre as regiões idólatras, e que fomentam a desordem e o escândalo até dentre as sociedades cristãs. Para avaliar todos os meios que eles possuem a serviço da sua maldade, é sufi ciente observar que não têm perdido nada das prodigiosas faculdades que são as propriedades características da natureza angélica. Sem dúvida, o futuro e principalmente a ordem sobrenatural têm mistérios que Deus reservou para si e que eles não podem descobrir, porém a inteligência deles é bem superior à nossa porque eles percebem num relance os efeitos em suas causas, e as causas em seus efeitos. Essa sagacidade lhes permite anunciar com antecedência acontecimentos que estão muito além das nossas suposições. A distância e a diversidade dos lugares desaparecem diante da sua agilidade. Mais súbitos que o relâmpago, mais rápidos que o pensamento, eles se encontram quase ao mesmo tempo sobre diversos pontos do globo, e eles podem descrever de longe as coisas das quais são testemunhas na mesma hora em que elas acontecem. As leis gerais pelas quais Deus rege e governa este Universo não estão sob o domínio deles, não podem anulá-las nem, consequentemente, predizer ou realizar milagres verdadeiros, porém, possuem a arte de imitar e de arremedar, em certos limites, as obras divinas; eles sabem quais fenômenos resultam da combinação dos elementos, e predizem com firmeza aqueles que acontecem naturalmente, assim como os que eles mesmos têm o poder de produzir. Daí, esses numerosos oráculos, esses prestígios extraordinários dos quais os livros sagrados e profanos guardaram a lembrança, e que serviram de base e de alimento a todas as superstições. Sua substância simples e imaterial faz com que não possamos vê-los; estão ao nosso lado sem serem percebidos; eles impressionam nossa alma sem atingir nossos ouvidos; cremos obedecer ao nosso próprio pensamento, quando, na verdade, nos submetemos às suas tentações e à sua funesta influência. Nossas disposições, ao contrário, são do conhecimento deles pelas impressões que elas despertam em nós, e eles nos atacam, geralmente pelo nosso lado mais fraco. Para nos seduzirem com mais segurança, têm o hábito de nos apresentarem adulações astuciosas e sugestões conforme as nossas tendências. Eles modificam sua ação segundo as circunstâncias e de acordo com os traços característicos de cada temperamento. Suas armas favoritas, porém, são a mentira e a hipocrisia.” 17. Dizem que o castigo os segue por toda a parte; não têm mais paz nem repouso. Isso, no entanto, não destrói a observação feita sobre a trégua de que desfrutam aqueles que não estão no inferno, trégua tanto menos justificada porquanto, estando fora do inferno, eles fazem mais mal. Sem dúvida alguma, não são felizes como os bons anjos, mas não se leva em conta a liberdade de que desfrutam? Se não têm a felicidade moral proporcionada pela virtude, indiscutivelmente são menos infelizes que seus cúmplices que estão entre as chamas infernais. E depois, para o mau, existe uma espécie de prazer em fazer o mal em plena liberdade. Perguntem a um criminoso se para ele é a mesma coisa estar na prisão ou correr pelos campos e cometer seus crimes à vontade. A posição é exatamente a mesma. O remorso, dizem, os persegue sem trégua nem misericórdia. Mas esquecem que o remorso é o precursor imediato do arrependimento, se já não é o próprio arrependimento. Dizem: “Tornados perversos, eles não querem deixar de ser perversos, e eles o são para sempre.” Desde que eles não querem deixar de ser perversos, é porque não têm remorsos; se tivessem o menor arrependimento, deixariam de fazer o mal e pediriam perdão. Portanto, para eles o remorso não é um castigo. 18. “Eles são após o pecado o que o homem é após a morte. A reabilitação daqueles que caíram é, pois, impossível.” De onde vem essa impossibilidade? Não se compreende que ela seja a consequência da sua similitude com o homem após a morte, enunciado que, além disso, não é muito claro. Essa impossibilidade vem da sua própria vontade ou da de Deus? Se é o ato da sua vontade, isso denota uma extrema perversidade, uma insensibilidade absoluta no mal; por conseguinte não se compreende que seres tão profundamente maus, pudessem ter sido anjos de virtude, e que, durante o tempo indefi nido que eles passaram entre estes últimos, não tenham deixado que se descobrisse nenhum traço da sua natureza má. Se é a vontade de Deus, compreende-se ainda menos que ele imponha como castigo a impossibilidade do retorno ao bem, após uma primeira falta. O Evangelho não diz nada semelhante. 19. “Sua perda, acrescente-se, daqui em diante é sem retorno, e eles perseveram no seu orgulho diante de Deus.” Para que lhes serviria não perseverarem nele já que todo arrependimento é inútil? Se tivessem a esperança de uma reabilitação, qualquer que fosse o seu preço, o bem teria uma finalidade para eles, entretanto não é assim. Se eles perseveram no mal é porque a porta da esperança lhes foi fechada. E por que Deus lhes fecha essa porta? Para se vingar da ofensa que recebeu com a sua falta de submissão. Assim, para satisfazer o seu ressentimento contra alguns culpados, ele prefere vê-los não somente sofrer, mas antes fazerem o mal que o bem; induzir ao mal e empurrar para a perdição eterna todas as suas criaturas do gênero humano, quando seria sufi ciente um simples ato de clemência para evitar um tão grande desastre, e um desastre previsto de toda a eternidade! Por ato de clemência, tratar-se-ia de uma graça pura e simples que talvez fosse um encorajamento ao mal? Não, mas de um perdão condicional, subordinado a um sincero retorno ao bem. Porém, em lugar de uma palavra de esperança e de misericórdia, fizeram Deus dizer: Que morra toda a raça humana, antes que a minha vingança! E se admiram que haja incrédulos e ateus com semelhante doutrina! É assim que Jesus nos representa seu Pai? Ele que nos deixou uma lei expressa do esquecimento e do perdão das ofensas, que nos diz para dar o bem pelo mal, que coloca o amor aos inimigos no primeiro lugar entre as virtudes que nos fazem merecer o céu, queria pois que os homens fossem melhores, mais justos, mais complacentes que o próprio Deus? OS DEMÔNIOS SEGUNDO O ESPIRITISMO. 20. Segundo o Espiritismo, nem anjos nem demônios são seres à parte; a criação dos seres inteligentes é una. Unidos a corpos materiais, eles constituem a humanidade que povoa a Terra e as outras esferas habitadas; libertos desses corpos eles constituem o mundo espiritual ou dos espíritos que povoam os espaços. Deus os criou suscetíveis de aperfeiçoamento e lhes deu por objetivo a perfeição, e a felicidade que é a sua consequência, mas não lhes deu a perfeição; Deus quis que eles a devessem ao trabalho pessoal de cada um, a fim de que tivessem o mérito da sua conquista. Desde o momento da sua formação, eles progridem seja no estado de encarnação, seja no estado espiritual; chegados ao apogeu, tornam-se puros espíritos, ou anjos, segundo a denominação comum; de modo que, desde o embrião do ser inteligente até o anjo, temos uma cadeia não interrompida na qual cada elo marca um degrau no progresso. Disso resulta existirem espíritos em todos os graus de adiantamento moral e intelectual, conforme estejam no alto, embaixo ou no meio da escala. Por consequência, há espíritos em todos os graus do saber e da ignorância, de bondade e de maldade. Nas classes inferiores, encontram-se os que ainda estão profundamente inclinados para o mal, e que nele se comprazem. Se quisermos pode-se chama-los demônios porque eles são capazes de todas as más ações atribuídas a estes últimos. Se o Espiritismo não os denomina assim é porque tal nome se prende à ideia de seres distintos da humanidade de uma natureza essencialmente perversa, consagrados ao mal por toda a eternidade e incapazes de progredirem no bem. 21. Segundo a doutrina da Igreja, os demônios foram criados bons e tornaram-se maus pela sua desobediência: são os anjos decaídos; eles foram colocados por Deus no alto da escala, e desceram. Segundo o Espiritismo, são espíritos imperfeitos, mas que irão melhorar; ainda estão na parte inferior da escala, e se elevarão. Durante os primeiros períodos da sua existência, os espíritos estão sujeitos à encarnação material que é necessária ao seu desenvolvimento, até que tenham chegado a um certo grau. O número das encarnações é indeterminado e subordinado à rapidez do progresso; o progresso se realiza em razão do trabalho e da boa vontade do espírito que age, em qualquer circunstância, pelo poder do seu livre-arbítrio. Aqueles que, por seu descuido, sua negligência, sua obstinação e sua má vontade permanecem mais tempo nas classes inferiores, disso se ressentem, e o hábito da permanência no mal torna-lhe mais difícil sair dele; mas chega um momento em que se cansam dessa existência penosa e dos sofrimentos que são a sua consequência; é então que, comparando sua situação à dos bons espíritos, eles compreendem que seu interesse está no bem, e procuram melhorar-se, mas o fazem por sua própria vontade e sem serem obrigados a isso. Eles estão submetidos à lei do progresso por sua disposição inata para progredir, porém, não progridem contra sua própria vontade. Deus lhes fornece incessantemente os meios, mas eles são livres para aproveitá-los ou não. Se o progresso fosse obrigatório, nenhum mérito teriam, e Deus quer que tenham o mérito das suas obras. Deus não coloca nenhum no primeiro lugar por privilégio, o primeiro lugar está aberto a todos, mas eles só o alcançam por seus esforços. Os anjos mais elevados conquistaram seu grau percorrendo, como os outros, o mesmo caminho. Todos, desde o cimo até a base, pertenceram ou pertencem ainda à humanidade. Os homens são, assim, espíritos encarnados mais ou menos adiantados, e os espíritos são as almas dos homens que deixaram seu invólucro material. A vida espiritual é a vida normal do espírito; o corpo é apenas uma vestimenta temporária apropriada às funções que eles devem exercer na Terra, assim como o guerreiro veste a armadura e a cota de malha para o momento do combate, e as deixa após a batalha, sob a condição de vesti-las novamente quando vier o momento de uma nova luta. A vida corporal é o combate, a luta que os espíritos devem sofrer para avançar; em vista disso, eles revestem a armadura que é para eles um instrumento de ação mas, ao mesmo tempo, uma tortura. Os espíritos trazem na encarnação suas qualidades de espírito; aqueles que são imperfeitos são os homens imperfeitos; aqueles que são mais adiantados, bons, inteligentes, instruídos, são os homens instintivamente bons, inteligentes e aptos a adquirir com facilidade novos conhecimentos; da mesma forma, os homens ao morrerem fornecem ao mundo espiritual espíritos bons ou maus, adiantados ou atrasados. O mundo corporal e o mundo espiritual se inclinam assim constantemente um sobre o outro. Entre os maus espíritos existem os que têm toda a perversidade dos demônios, e a quem se pode aplicar perfeitamente a imagem que se faz desses últimos. Na sua encarnação, eles produzem esses homens perversos e astuciosos que se comprazem no mal, que parecem nascidos para a desgraça de todos aqueles que eles atraem na sua intimidade, e dos quais pode-se dizer, sem lhes fazer injúria, que são demônios encarnados. 22. Tendo alcançado um certo grau de purificação, os espíritos têm missões relacionadas com o seu adiantamento; eles cumprem todas aquelas que são atribuídas aos anjos de diferentes ordens. Como Deus criou desde sempre, desde sempre se encontraram espíritos para satisfazer a todas as necessidades do governo do Universo. Uma só espécie de seres inteligentes, submetidos à lei do progresso, é, portanto, sufi ciente para tudo. Essa unidade na criação, com a ideia de que todos têm um mesmo ponto de partida, o mesmo caminho para percorrer, e que se elevam por seu próprio mérito, corresponde bem melhor à justiça de Deus do que à criação de espécies diferentes, mais ou menos favorecidas por dons naturais que seriam semelhantes a privilégios. 23. A doutrina comum sobre a natureza dos anjos, dos demônios e das almas humanas, não admitindo a lei do progresso, e vendo, no entanto, seres em diversos graus de evolução, chegou à conclusão de que eles eram o produto de criações igualmente especiais. Ela chegou, assim, a fazer de Deus um pai parcial, dando tudo a alguns de seus filhos, enquanto a outros impunha o mais rude trabalho. Não é de admirar que durante muito tempo os homens nada tenham achado de chocante nessas preferências, porquanto eles agiam da mesma forma relativamente aos seus próprios filhos, pelo direito de primogenitura e os privilégios do nascimento; podiam esses homens acreditar que faziam mais mal do que Deus? Porém, atualmente o círculo das ideias se ampliou; eles vêm mais claro; têm noções mais nítidas da justiça e a querem para si mesmos; se não a encontram hoje sobre a Terra, esperam, pelo menos, encontrá-la mais perfeita no céu; eis por que, toda doutrina em que a justiça divina não lhes apareça em sua maior pureza, contraria a sua razão. Livro O Céu e o Inferno. Abraço. Davi