sábado, 30 de janeiro de 2021

A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA

 

Cristianismo. www.vatican.va. CARTA ENCÍCLICA. LAUDATO SI. Do Santo Padre Francisco. SOBRE O CUIDADO DA CASA. Capítulo Três. A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA. 101. Para nada serviria descrever os sintomas, se não reconhecêssemos a raiz humana da crise ecológica. Há um modo desordenado de conceber a vida e a acção do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar. Não poderemos deter-nos a pensar nisto mesmo? Proponho, pois, que nos concentremos no paradigma tecnocrático dominante e no lugar que ocupa nele o ser humano e a sua acção no mundo. 1. A tecnologia: criatividade e poder. 102. A humanidade entrou numa nova era, em que o poder da tecnologia nos põe diante duma encruzilhada. Somos herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças: a máquina a vapor, a ferrovia, o telégrafo, a electricidade, o automóvel, o avião, as indústrias químicas, a medicina moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução digital, a robótica, as biotecnologias e as nanotecnologias. É justo que nos alegremos com estes progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas possibilidades que nos abrem estas novidades incessantes, porque «a ciência e a tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu».[81] A transformação da natureza para fins úteis é uma característica do género humano, desde os seus primórdios; e assim a técnica «exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação de certos condicionamentos materiais».[82] A tecnologia deu remédio a inúmeros males, que afligiam e limitavam o ser humano. Não podemos deixar de apreciar e agradecer os progressos alcançados especialmente na medicina, engenharia e comunicações. Como não havemos de reconhecer todos os esforços de tantos cientistas e técnicos que elaboraram alternativas para um desenvolvimento sustentável? 103. A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, desde os objectos de uso doméstico até aos grandes meios de transporte, pontes, edifícios, espaços públicos. É capaz também de produzir coisas belas e fazer o ser humano, imerso no mundo material, dar o «salto» para o âmbito da beleza. Poder-se-á negar a beleza de um avião ou de alguns arranha-céus? Há obras pictóricas e musicais de valor, obtidas com o recurso aos novos instrumentos técnicos. Assim, no desejo de beleza do artífice e em quem contempla esta beleza dá-se o salto para uma certa plenitude propriamente humana. 104. Não podemos, porém, ignorar que a energia nuclear, a biotecnologia, a informática, o conhecimento do nosso próprio DNA e outras potencialidades que adquirimos, nos dão um poder tremendo. Ou melhor: dão, àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder económico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do género humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer. Basta lembrar as bombas atómicas lançadas em pleno século XX, bem como a grande exibição de tecnologia ostentada pelo nazismo, o comunismo e outros regimes totalitários e que serviu para o extermínio de milhões de pessoas, sem esquecer que hoje a guerra dispõe de instrumentos cada vez mais mortíferos. Nas mãos de quem está e pode chegar a estar tanto poder? É tremendamente arriscado que resida numa pequena parte da humanidade. 105. Tende-se a crer que «toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores»[83], como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. A verdade é que «o homem moderno não foi educado para o recto uso do poder»,[84] porque o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência. Cada época tende a desenvolver uma reduzida autoconsciência dos próprios limites. Por isso, é possível que hoje a humanidade não se dê conta da seriedade dos desafios que se lhe apresentam, e «cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder» quando «não existem normas de liberdade, mas apenas pretensas necessidades de utilidade e segurança».[85] O ser humano não é plenamente autónomo. A sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum lúcido domínio de si. 2. A globalização do paradigma tecnocrático. 106. Mas o problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogéneo e unidimensional. Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objecto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com a sua experimentação, que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a «espremê-lo» até ao limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que «existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos».[86] 107. Assim podemos afirmar que, na origem de muitas dificuldades do mundo actual, está principalmente a tendência, nem sempre consciente, de elaborar a metodologia e os objectivos da tecnociência segundo um paradigma de compreensão que condiciona a vida das pessoas e o funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação deste modelo a toda a realidade, humana e social, constatam-se na degradação do meio ambiente, mas isto é apenas um sinal do reducionismo que afecta a vida humana e a sociedade em todas as suas dimensões. É preciso reconhecer que os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder. Certas opções, que parecem puramente instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de vida social que se pretende desenvolver. 108. Não se consegue pensar que seja possível sustentar outro paradigma cultural e servir-se da técnica como mero instrumento, porque hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão dominante que é muito difícil prescindir dos seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os seus recursos sem ser dominados pela sua lógica. Tornou-se anticultural a escolha dum estilo de vida, cujos objectivos possam ser, pelo menos em parte, independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e massificador. Com efeito, a técnica tem tendência a fazer com que nada fique fora da sua lógica férrea, e «o homem que é o seu protagonista sabe que, em última análise, não se trata de utilidade nem de bem-estar, mas de domínio; domínio no sentido extremo da palavra».[87] Por isso, «procura controlar os elementos da natureza e, conjuntamente, os da existência humana».[88] Reduzem-se assim a capacidade de decisão, a liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade alternativa dos indivíduos. 109. O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano. A finança sufoca a economia real. Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial e, muito lentamente, se aprende a lição do deterioramento ambiental. Nalguns círculos, defende-se que a economia actual e a tecnologia resolverão todos os problemas ambientais, do mesmo modo que se afirma, com linguagens não académicas, que os problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado. Não é uma questão de teorias económicas, que hoje talvez já ninguém se atreva a defender, mas da sua instalação no desenvolvimento concreto da economia. Aqueles que não o afirmam em palavras defendem-no com os factos, quando parece não preocupar-se com o justo nível da produção, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado responsável do meio ambiente ou os direitos das gerações futuras. Com os seus comportamentos, afirmam que é suficiente o objectivo da maximização dos ganhos. Mas o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social.[89] Entretanto temos um «super desenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora»,[90] mas não se criam, de forma suficientemente rápida, instituições económicas e programas sociais que permitam aos mais pobres terem regularmente acesso aos recursos básicos. Não temos suficiente consciência de quais sejam as raízes mais profundas dos desequilíbrios actuais: estes têm a ver com a orientação, os fins, o sentido e o contexto social do crescimento tecnológico e económico. 110. A especialização própria da tecnologia comporta grande dificuldade para se conseguir um olhar de conjunto. A fragmentação do saber realiza a sua função no momento de se obter aplicações concretas, mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade, das relações que existem entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido, que se torna irrelevante. Isto impede de individuar caminhos adequados para resolver os problemas mais complexos do mundo actual, sobretudo os do meio ambiente e dos pobres, que não se podem enfrentar a partir duma única perspectiva nem dum único tipo de interesses. Uma ciência, que pretenda oferecer soluções para os grandes problemas, deveria necessariamente ter em conta tudo o que o conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a filosofia e a ética social. Mas este é actualmente um procedimento difícil de seguir. Por isso também não se consegue reconhecer verdadeiros horizontes éticos de referência. A vida passa a ser uma rendição às circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como o recurso principal para interpretar a existência. Na realidade concreta que nos interpela, aparecem vários sintomas que mostram o erro, tais como a degradação ambiental, a ansiedade, a perda do sentido da vida e da convivência social. Assim se demonstra uma vez mais que «a realidade é superior à ideia».[91] 111. A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial. 112. Todavia é possível voltar a ampliar o olhar, e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral. De facto verifica-se a libertação do paradigma tecnocrático nalgumas ocasiões. Por exemplo, quando comunidades de pequenos produtores optam por sistemas de produção menos poluentes, defendendo um modelo não-consumista de vida, alegria e convivência. Ou quando a técnica tem em vista prioritariamente resolver os problemas concretos dos outros, com o compromisso de os ajudar a viver com mais dignidade e menor sofrimento. E ainda quando a busca criadora do belo e a sua contemplação conseguem superar o poder objectivador numa espécie de salvação que acontece na beleza e na pessoa que a contempla. A humanidade autêntica, que convida a uma nova síntese, parece habitar no meio da civilização tecnológica de forma quase imperceptível, como a neblina que filtra por baixo da porta fechada. Será uma promessa permanente que, apesar de tudo, desabrocha como uma obstinada resistência daquilo que é autêntico? 113. Além disso, as pessoas parecem já não acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente num amanhã melhor a partir das condições actuais do mundo e das capacidades técnicas. Tomam consciência de que o progresso da ciência e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história, e vislumbram que os caminhos fundamentais para um futuro feliz são outros. Apesar disso, também não se imaginam renunciando às possibilidades que oferece a tecnologia. A humanidade mudou profundamente, e o avolumar-se de constantes novidades consagra uma fugacidade que nos arrasta à superfície numa única direcção. Torna-se difícil parar para recuperarmos a profundidade da vida. Se a arquitectura reflecte o espírito duma época, as mega-estruturas e as casas em série expressam o espírito da técnica globalizada, onde a permanente novidade dos produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos resignemos a isto nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins e o sentido de tudo. Caso contrário, apenas legitimaremos o estado de facto e precisaremos de mais sucedâneos para suportar o vazio. 114. O que está a acontecer põe-nos perante a urgência de avançar numa corajosa revolução cultural. A ciência e a tecnologia não são neutrais, mas podem, desde o início até ao fim dum processo, envolver diferentes intenções e possibilidades que se podem configurar de várias maneiras. Ninguém quer o regresso à Idade da Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma, recolher os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os valores e os grandes objectivos arrasados por um desenfreamento megalómano. 3. Crise do antropocentrismo moderno e suas consequências. 115. O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano «já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objectivamente, como espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela».[92] Assim debilita-se o valor intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba por contradizer a sua própria realidade. «Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral de que foi dotado».[93] 116. Nos tempos modernos, verificou-se um notável excesso antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a minar toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa de reforçar os laços sociais. Por isso, chegou a hora de prestar novamente atenção à realidade com os limites que a mesma impõe e que, por sua vez, constituem a possibilidade dum desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo. Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da natureza fosse actividade de fracos. Mas a interpretação correcta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável.[94] 117. A falta de preocupação por medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autónomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque «em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza».[95] 118. Esta situação leva-nos a uma esquizofrenia permanente, que se estende da exaltação tecnocrática, que não reconhece aos outros seres um valor próprio, até à reacção de negar qualquer valor peculiar ao ser humano. Contudo não se pode prescindir da humanidade. Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia. Quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum determinismo físico, «corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade».[96] Um antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser substituído por um «biocentrismo», porque isto implicaria introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas existentes, mas acrescentará outros. Não se pode exigir do ser humano um compromisso para com o mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e responsabilidade. 119. A crítica do antropocentrismo desordenado não deveria deixar em segundo plano também o valor das relações entre as pessoas. Se a crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade, não podemos iludir-nos de sanar a nossa relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as relações humanas fundamentais. Quando o pensamento cristão reivindica, para o ser humano, um valor peculiar acima das outras criaturas, suscita a valorização de cada pessoa humana e, assim, estimula o reconhecimento do outro. A abertura a um «tu» capaz de conhecer, amar e dialogar continua a ser a grande nobreza da pessoa humana. Por isso, para uma relação adequada com o mundo criado, não é necessário diminuir a dimensão social do ser humano nem a sua dimensão transcendente, a sua abertura ao «Tu» divino. Com efeito, não se pode propor uma relação com o ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e com Deus. Seria um individualismo romântico disfarçado de beleza ecológica e um confinamento asfixiante na imanência. 120. Uma vez que tudo está relacionado, também não é compatível a defesa da natureza com a justificação do aborto. Não parece viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que, às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá protecção a um embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de incómodos e dificuldades: «Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social».[97] 121. Espera-se ainda o desenvolvimento duma nova síntese, que ultrapasse as falsas dialécticas dos últimos séculos. O próprio cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e ao tesouro de verdade que recebeu de Jesus Cristo, não cessa de se repensar e reformular em diálogo com as novas situações históricas, deixando desabrochar assim a sua eterna novidade.[98] O relativismo prático. 122. Um antropocentrismo desordenado gera um estilo de vida desordenado. Na exortação apostólica Evangelii gaudium, referi-me ao relativismo prático que caracteriza a nossa época e que é «ainda mais perigoso que o doutrinal».[99] Quando o ser humano se coloca no centro, acaba por dar prioridade absoluta aos seus interesses contingentes, e tudo o mais se torna relativo. Por isso, não deveria surpreender que, juntamente com a omnipresença do paradigma tecnocrático e a adoração do poder humano sem limites, se desenvolva nos indivíduos este relativismo no qual tudo o que não serve os próprios interesses imediatos se torna irrelevante. Nisto, há uma lógica que permite compreender como se alimentam mutuamente diferentes atitudes, que provocam ao mesmo tempo a degradação ambiental e a degradação social. 123. A cultura do relativismo é a mesma patologia que impele uma pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero objecto, obrigando-a a trabalhos forçados, ou reduzindo-a à escravidão por causa duma dívida. É a mesma lógica que leva à exploração sexual das crianças, ou ao abandono dos idosos que não servem os interesses próprios. É também a lógica interna daqueles que dizem: «Deixemos que as forças invisíveis do mercado regulem a economia, porque os seus efeitos sobre a sociedade e a natureza são danos inevitáveis». Se não há verdades objectivas nem princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas, que limites pode haver para o tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados e de peles de animais em vias de extinção? Não é a mesma lógica relativista a que justifica a compra de órgãos dos pobres com a finalidade de os vender ou utilizar para experimentação, ou o descarte de crianças porque não correspondem ao desejo de seus pais? É a mesma lógica do «usa e joga fora» que produz tantos resíduos, só pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente se tem necessidade. Portanto, não podemos pensar que os programas políticos ou a força da lei sejam suficientes para evitar os comportamentos que afectam o meio ambiente, porque, quando é a cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objectiva ou quaisquer princípios universalmente válidos, as leis só se poderão entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar. A necessidade de defender o trabalho. 124. Em qualquer abordagem de ecologia integral que não exclua o ser humano, é indispensável incluir o valor do trabalho, tão sabiamente desenvolvido por São João Paulo II na sua encíclica Laborem excercens. Recordemos que, segundo a narração bíblica da criação, Deus colocou o ser humano no jardim recém-criado (cf. Gn2, 15), não só para cuidar do existente (guardar), mas também para trabalhar nele a fim de que produzisse frutos (cultivar). Assim, os operários e os artesãos «asseguram uma criação perpétua» (Sir 38, 34). Na realidade, a intervenção humana que favorece o desenvolvimento prudente da criação é a forma mais adequada de cuidar dela, porque implica colocar-se como instrumento de Deus para ajudar a fazer desabrochar as potencialidades que Ele mesmo inseriu nas coisas: «O Senhor produziu da terra os medicamentos; e o homem sensato não os desprezará» (Sir 38, 4). 125. Se procurarmos pensar quais possam ser as relações adequadas do ser humano com o mundo que o rodeia, surge a necessidade duma concepção correcta do trabalho, porque, falando da relação do ser humano com as coisas, impõe-se a questão relativa ao sentido e finalidade da acção humana sobre a realidade. Não falamos apenas do trabalho manual ou do trabalho da terra, mas de qualquer actividade que implique alguma transformação do existente, desde a elaboração dum balanço social até ao projecto dum progresso tecnológico. Qualquer forma de trabalho pressupõe uma concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si mesmo. A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das criaturas que encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu também uma rica e sadia compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do Beato Carlos de Foucauld e seus discípulos. 126. Algo se pode recolher também da longa tradição monástica. Nos primórdios, esta favorecia de certo modo a fuga do mundo, procurando afastar-se da decadência urbana. Por isso, os monges buscavam o deserto, convencidos de que fosse o lugar adequado para reconhecer a presença de Deus. Mais tarde, São Bento de Núrsia quis que os seus monges vivessem em comunidade, unindo oração e estudo com o trabalho manual («Ora et labora»). Esta introdução do trabalho manual impregnada de sentido espiritual revelou-se revolucionária. Aprendeu-se a buscar o amadurecimento e a santificação na compenetração entre o recolhimento e o trabalho. Esta maneira de viver o trabalho torna-nos mais capazes de ter cuidado e respeito pelo meio ambiente, impregnando de sadia sobriedade a nossa relação com o mundo. 127. Afirmamos que «o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social».[100] Apesar disso, quando no ser humano se deteriora a capacidade de contemplar e respeitar, criam-se as condições para se desfigurar o sentido do trabalho.[101] Convém recordar sempre que o ser humano é «capaz de, por si próprio, ser o agente responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento espiritual».[102] O trabalho deveria ser o âmbito deste multiforme desenvolvimento pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a criatividade, a projectação do futuro, o desenvolvimento das capacidades, a exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma atitude de adoração. Por isso, a realidade social do munda actual exige que, acima dos limitados interesses das empresas e duma discutível racionalidade económica, «se continue a perseguir como prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos».[103] 128. Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal. Neste sentido, ajudar os pobres com o dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. Mas a orientação da economia favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição dos postos de trabalho, que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo de como a acção do homem se pode voltar contra si mesmo. A diminuição dos postos de trabalho «tem também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão do “capital social”, isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensável em qualquer convivência civil».[104] Em suma, «os custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções económicas acarretam sempre também custos humanos».[105]Renunciar a investir nas pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade. 129. Para se conseguir continuar a dar emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial. Por exemplo, há uma grande variedade de sistemas alimentares rurais de pequena escala que continuam a alimentar a maior parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida de terreno e de água e produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer na caça e recolha de produtos silvestres, quer na pesca artesanal. As economias de larga escala, especialmente no sector agrícola, acabam por forçar os pequenos agricultores a vender as suas terras ou a abandonar as suas culturas tradicionais. As tentativas feitas por alguns deles no sentido de desenvolverem outras formas de produção, mais diversificadas, resultam inúteis por causa da dificuldade de ter acesso aos mercados regionais e globais, ou porque a infraestrutura de venda e transporte está ao serviço das grandes empresas. As autoridades têm o direito e a responsabilidade de adoptar medidas de apoio claro e firme aos pequenos produtores e à diversificação da produção. Às vezes, para que haja uma liberdade económica da qual todos realmente beneficiem, pode ser necessário pôr limites àqueles que detêm maiores recursos e poder financeiro. A simples proclamação da liberdade económica, enquanto as condições reaisimpedem que muitos possam efetivamente ter acesso a ela e, ao mesmo tempo, se reduz o acesso ao trabalho, torna-se um discurso contraditório que desonra a política. A actividade empresarial, que é uma nobre vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos, pode ser uma maneira muito fecunda de promover a região onde instala os seus empreendimentos, sobretudo se pensa que a criação de postos de trabalho é parte imprescindível do seu serviço ao bem comum. A inovação biológica a partir da pesquisa. 130. Na visão filosófica e teológica do ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria, não é um factor externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre os animais só são legítimas «desde que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas».[106] Recorda, com firmeza, que o poder humano tem limites e que «é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas».[107] Todo o uso e experimentação «exige um respeito religioso pela integridade da criação».[108] 131. Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que «manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na acção criadora de Deus», mas ao mesmo tempo recordava que «toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir da consideração das suas consequências noutras áreas».[109] Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição «do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria»,[110] embora dissesse também que isto não deve levar a uma «indiscriminada manipulação genética»[111] que ignore os efeitos negativos destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir a um artista que exprima a sua capacidade criativa, também não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para o progresso científico e tecnológico, cujas capacidades foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de considerar os objetivos, os efeitos, o contexto e os limites éticos de tal atividade humana que é uma forma de poder com grandes riscos. 132. Neste quadro, deveria situar-se toda e qualquer reflexão acerca da intervenção humana sobre o mundo vegetal e animal que implique hoje mutações genéticas geradas pela biotecnologia, a fim de aproveitar as possibilidades presentes na realidade material. O respeito da fé pela razão pede para se prestar atenção àquilo que a própria ciência biológica, desenvolvida independentemente dos interesses económicos, possa ensinar a propósito das estruturas biológicas e das suas possibilidades e mutações. Em todo o caso, é legítima uma intervenção que actue sobre a natureza «para a ajudar a desenvolver-se na sua própria linha, a da criação, querida por Deus».[112] 33. É difícil emitir um juízo geral sobre o desenvolvimento de organismos modificados geneticamente (OMG), vegetais ou animais, para fins medicinais ou agropecuários, porque podem ser muito diferentes entre si e requerer distintas considerações. Além disso, os riscos nem sempre se devem atribuir à própria técnica, mas à sua aplicação inadequada ou excessiva. Na realidade, muitas vezes as mutações genéticas foram e continuam a ser produzidas pela própria natureza. E mesmo as provocadas pelo ser humano não são um fenómeno moderno. A domesticação de animais, o cruzamento de espécies e outras práticas antigas e universalmente seguidas podem incluir-se nestas considerações. É oportuno recordar que o início dos progressos científicos sobre cereais transgénicos foi a observação de bactérias que, de forma natural e espontânea, produziam uma modificação no genoma dum vegetal. Mas, na natureza, estes processos têm um ritmo lento, que não se compara com a velocidade imposta pelos avanços tecnológicos actuais, mesmo quando estes avanços se baseiam num desenvolvimento científico de vários séculos. 134. Embora não disponhamos de provas definitivas acerca do dano que poderiam causar os cereais transgénicos aos seres humanos e apesar de, nalgumas regiões, a sua utilização ter produzido um crescimento económico que contribuiu para resolver determinados problemas, há dificuldades importantes que não devem ser minimizadas. Em muitos lugares, na sequência da introdução destas culturas, constata-se uma concentração de terras produtivas nas mãos de poucos, devido ao «progressivo desaparecimento de pequenos produtores, que, em consequência da perda das terras cultivadas, se viram obrigados a retirar-se da produção directa».[113] Os mais frágeis deles tornam-se trabalhadores precários, e muitos assalariados agrícolas acabam por emigrar para miseráveis aglomerados das cidades. A expansão destas culturas destrói a complexa trama dos ecossistemas, diminui a diversidade na produção e afecta o presente ou o futuro das economias regionais. Em vários países, nota-se uma tendência para o desenvolvimento de oligopólios na produção de sementes e outros produtos necessários para o cultivo, e a dependência agrava-se quando se pensa na produção de sementes estéreis que acabam por obrigar os agricultores a comprá-las às empresas produtoras. 135. Sem dúvida, há necessidade duma atenção constante, que tenha em consideração todos os aspectos éticos implicados. Para isso, é preciso assegurar um debate científico e social que seja responsável e amplo, capaz de considerar toda a informação disponível e chamar as coisas pelo seu nome. Às vezes não se coloca sobre a mesa a informação completa, mas é seleccionada de acordo com os próprios interesses, sejam eles políticos, económicos ou ideológicos. Isto torna difícil elaborar um juízo equilibrado e prudente sobre as várias questões, tendo presente todas as variáveis em jogo. É necessário dispor de espaços de debate, onde todos aqueles que poderiam de algum modo ver-se, direta ou indiretamente, afectados (agricultores, consumidores, autoridades, cientistas, produtores de sementes, populações vizinhas dos campos tratados e outros) tenham possibilidade de expor as suas problemáticas ou ter acesso a uma informação ampla e fidedigna para adoptar decisões tendentes ao bem comum presente e futuro. A questão dos OMG é uma questão de carácter complexo, que requer ser abordada com um olhar abrangente de todos os aspectos; isto exigiria pelo menos um maior esforço para financiar distintas linhas de pesquisa autónoma e interdisciplinar que possam trazer nova luz. 136. Além disso, é preocupante constatar que alguns movimentos ecologistas defendem a integridade do meio ambiente e, com razão, reclamam a imposição de determinados limites à pesquisa científica, mas não aplicam estes mesmos princípios à vida humana. Muitas vezes justifica-se que se ultrapassem todos os limites, quando se faz experiências com embriões humanos vivos. Esquece-se que o valor inalienável do ser humano é independente do seu grau de desenvolvimento. Aliás, quando a técnica ignora os grandes princípios éticos, acaba por considerar legítima qualquer prática. Como vimos neste capítulo, a técnica separada da ética dificilmente será capaz de autolimitar o seu poder. www.vatican.va. Abraço. Davi

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

AS VIDAS PASSADAS DO BUDHA

 

Budismo. www.harmoniaquantica.com.br. AS VIDAS PASSADAS DO BUDHA. De acordo com o Niddesa, um dos livros da seção Khuddaka Nikāya do cânone pali, hindu, o Budha Śākyamuni teve 500 vidas passadas antes de atingir o despertar. O monge peregrino chinês Fa Hsien (337-422), ao visitar o Sri Lanka no início do século V, também encontrou representações artísticas de 500 renascimentos do futuro Budha. Já o Saketa Jātaka afirma que o Budha teve 1.500 vidas passadas. As histórias sobre estas vidas são registradas em contos chamados Jātaka. Para atingir o despertar, o Buddha levou 300.000 mahākalpas, ou grandes eras (mahākappa), mesclados com 20 asaṃkhyeyakalpas, ou períodos de tempo incalculável (asaṅkheyyakappa). Cada grande era é subdividida em quatro eras, dissolução do mundo (saṃvattakappa), continuação do caos (saṃvattatthāyikappa), formação do mundo (vivattakappa) e continuação do mundo formado (vivatatthāyikappa). Para nos situarmos, segundo as escrituras sagradas budista e hindu, 1 mahakalpa corresponde a 311 trilhões e 40 bilhões de anos. Cada uma destas eras é subdividida em 20 ou 64 períodos chamados antokappas. Atualmente, estamos em uma era de continuação do mundo formado. Há mais de 300.000 mahākalpas e 20 asaṃkhyeyakalpas atrás, o futuro Buddha Śākyamuni era um homem pobre que salvou sua mãe viúva de um naufrágio. Sua mãe fez a aspiração de que ele pudesse salvar os outros seres do sofrimento. Ele pensou nisso e se tornou um bodhisattva, ou ser do despertar (bodhisatta), alguém que cultiva as perfeições que conduzem ao estado iluminado de um Budha. I. A era da aspiração mental. Há 300.000 mahākalpas e 20 asaṃkhyeyakalpas atrás, o futuro Buddha Śākyamuni era conhecido como o rei Atideva. Na presença do Budha Brāhmadeva, ele fez mentalmente a aspiração de atingir o despertar, isto é, em pensamento, declarou o seu compromisso (abhinihara karanamulanidhana) de atingir o estado de Buddha. O rei ofereceu jasmins a Brāhmadeva e construiu um monastério para ele e seus monges. Começou então a era da aspiração mental (mano panidhāna kāla), que durou 100.000 mahākalpas mesclados com 7 asaṃkhyeyakalpas. Depois do Buddha Brāhmadeva, em todas as suas vidas, o bodhisattva acumulou méritos e fez mentalmente a aspiração de atingir o despertar, na presença de cada um dos 125.000 Budhas daquele período. Em seguida houve um período de muitos mahakalpas em que nenhum Budha apareceu. O bodhisattva nasceu como um humano, atingiu um profundo nível de absorção meditativa (dhyana), renascendo nos reinos divinos. Depois disso, em todas as vidas seguintes, o bodhisattva proferiu verbalmente a sua aspiração de atingir o despertar, diante de todos os 38.700 Buddhas daquele período. II. A era da aspiração verbal. Há 200.000 mahākalpas e 13 asaṃkhyeyakalpas atrás, o bodhisattva era conhecido como o príncipe Sagāra. Na presença do Buddha Purāṇagautama, ele fez verbalmente a aspiração de atingir o despertar com o nome de Gautama, prestou homenagem a Purāṇagautama e construiu um monastério para ele. Começou então a era da aspiração verbal (vaci-panidhana-kāla), que durou 100.000 mahākalpas mesclados com 9 asaṃkhyeyakalpas. III. A era da aspiração corporal. Há 100.000 mahākalpas e 4 asaṃkhyeyakalpas atrás, o bodhisattva era conhecido como o asceta Sumedha, e na presença do Buddha Dīpaṃkara recebeu a profecia definitiva de seu despertar. Dīpaṃkara ofereceu a Sumedha oito punhados de flores de jasmim, representando o nobre caminho óctuplo (āryāṣṭaṅgamārga). Então ele anunciou a profecia (vyakarana) de que, num futuro distante, Sumedha renasceria no clã dos Śākyas e atingiria o despertar como o Buddha Gautama. O bodhisattva poderia ter abandonado a existência cíclica (saṃsāra) e ter se tornado um ser santo (arhat ou arahant), mas preferiu continuar até completar as perfeições que levam ao estado de Buddha. Como escolheu a sabedoria como caminho para o despertar (kāya panidhāna kāla) durou 4 asaṃkhyeyakalpas e 100.000 mahākalpas. Se tivesse escolhido a fé como caminho, esta era teria durado 8 asaṃkhyeyakalpas. Há cem mil eras, um brâmane rico, ilustre e honrado, chamado Sumedha, vivia na grande cidade de Amaravati. Um dia ele se sentou, refletindo sobre a miséria do renascimento, da velhice e da doença, e exclamou: "Há, deve haver uma salvação! É impossível que não haja! Procurarei e encontrarei o caminho que me libertará da existência cíclica." Assim, ele se retirou para as montanhas do Himalaya e como ermitão viveu numa choupana, onde alcançou grande sabedoria. Enquanto estava ali, mergulhado no êxtase, nasceu um vitorioso, um Buddha chamado Dīpaṃkara. Aconteceu que, prosseguindo seu trajeto, esse Buddha foi perto de onde vivia Sumedha; ali havia homens preparando um caminho para seus pés pisarem. Sumedha juntou-se aos outros nesse trabalho e quando o Buddha Dīpaṃkara se aproximou, ele se deitou na lama dizendo para si mesmo: "Por eu apenas protegê-lo da lama, grande mérito resultará para mim". Enquanto estava deitado ali lhe veio à mente: "Por que não expulso todo o mal que me permanece dentro de mim e não entro no nirvāṇa? Mas que eu não faça isso só em meu benefício; será melhor que algum dia eu também adquira onisciência e em segurança conduza uma multidão de seres no barco da doutrina, sobre o oceano do renascimento, até a praia mais longínqua". Budha Dīpaṃkara, conhecedor de tudo, parou ao seu lado e proclamou-o para a multidão como alguém que mais tarde iria tornar-se um Buddha, especificando o lugar de seus nascimento, sua família, seus discípulos e seus descendentes. As pessoas se rejubilam com isso, ponderando que, ensinadas por esse outro Buddha, teriam novamente uma boa oportunidade de aprender a verdade, pois a doutrina de todos os Buddhas é a mesma. Toda a natureza, então, mostrou sinais e presságios em testemunho da iniciativa e da dedicação de Sumedha; todas as árvores deram frutos, os rios ficaram tranqüilos, uma chuva de flores caiu do céu, as chamas do inferno se apagaram. Não volte para trás, disse Dīpaṃkara. Vamos! Para a frente! Sabemos disso com o máximo de certeza; seguramente serás um Buddha. Sumedha decidiu, então, satisfazer as condições de um Buddha, perfeição nas dádivas, na observação dos preceitos, na renúncia, na sabedoria, na coragem, na paciência, na verdade, na determinação, na boa vontade e na indiferença. Começando, então, a cumprir essas dez condições da busca, Sumedha voltou para a floresta e viveu lá até a morte. Depois disso ele nasceu de incontáveis formas, como homem, como deus, como animal, e em todas essas formas ele não saiu do caminho planejado, e assim se diz que não existe uma partícula do planeta onde Buddha não tenha sacrificado sua vida em benefício das criaturas. Mitos Hindus e Budistas. Amanda K. Coomaraswany (1877-1947).  Na presença dos Buddhas seguintes, o bodhisattva novamente recebeu a profecia definitiva de que atingiria o despertar. Depois de um asaṃkhyeyakalpa, na época do Buddha Kauṇḍinya (Koṇḍañña), ele foi um monarca universal (cakravartin) chamado Vijitavi. Depois de mais um asaṃkhyeyakalpa, na época do Buddha Maṅgala, ele foi o brâmane Suruci; na época do Buddha Sumana, foi o rei Nāga Atula; na época do Buddha Revata, foi o brâmane Atideva; e na época do Buddha Sobhita, foi o brâmane Ajita. No período negro do asaṃkhyeyakalpa em que não houve nenhum Buddha, o bodhisattva cometeu graves erros, matando seu irmão para herdar a riqueza da família. Por causa disso, depois de mais um asaṃkhyeyakalpa, na época do Buddha Anomadassi o bodhisattva foi um líder de semideuses (sânscrito e pāli asura), e na época do Buddha Paduma ele foi um leão. O bodhisattva só voltou a renascer como humano na época do Buddha Nārada, tornando-se um asceta. Depois de mais um asaṃkhyeyakalpa, na época do Buddha Padumuttara, o bodhisattva foi Jatila. Depois de 70.000 mahākalpas, na época do Buddha Sumedha, o bodhisattva foi Uttara. Depois de 12.000 mahākalpas, na época do Buddha Sujata, o bodhisattva foi um monarca universal; na época do Buddha Piyadassi, foi o brâmane Kaśyapa; na época do Buddha Atthadassi, foi o asceta Susima; na época do Buddha Dhammadassi, foi um deus  (deva) chamado Śakra; na época do Buddha Siddhārtha, foi o asceta Maṅgala; na época do Buddha Tissa, foi o rei Sujata que se tornou um asceta; na época do Buddha Phussa, foi o rei Vijitavi que se tornou monge; na época do Buddha Vipaśyin, foi o rei Nāga Atula; na época do Buddha Śikhin, foi o rei Arindama; na época do Buddha Viśvabhu, foi o rei Sudassana que se tornou monge; na época do Buddha Krakuccanda, foi o rei Sema; na época do Buddha Kanakamuni, foi o rei Pabbata; e na época do Buddha Kaśyapa, foi o brâmane Jotipāla. IV. As perfeições. O bodhisattva praticou as perfeições (pāramitā) durante muitas eras, e foi durante a nossa era presente que ele as completou. Desta forma, ele concluiu as três nobres práticas (kariya): a prática pelo benefício de todos os seres; a prática pelo benefício de seus parentes; e a prática de se tornar um ser completamente iluminado, que pode liberar os seres do sofrimentos da existência cíclica. Como o rei Saṅkhapāla, completou a perfeição da moralidade; como o rei Sutasoma, completou a perfeição da renúncia; como o erudito Senaka, completou a perfeição da sabedoria; como o rei Mahājanaka, completou a perfeição do esforço; como o asceta Khantivādia, completou a perfeição da paciência; como o príncipe Sutasoma, completou a perfeição da verdade; como o príncipe Temiya, completou a perfeição da determinação; como o rei Ekarāja, completou a perfeição da bondade amorosa; como o asceta Lomahāmsa, completou a perfeição da compaixão. Depois de completar a perfeição da generosidade, o bodhisattva renasceu no paraíso de Tuṣita, como um deus chamado Śvetaketu. A convite dos deuses, quando as condições de período, continente, lugar, clã e mãe foram encontradas, o bodhisattva nasceu no jardim de Lumbinī como o príncipe Siddhārtha Gautama, filho da Māyā Devī e Śūddhodana  do clã guerreiro dos Sakyas. Este foi o último renascimento do bodhisattva. Siddhārtha Gautama renunciou à realeza, estudou com os maiores professores do seu tempo, gerou a intenção de alcançar o despertar, acumulou mérito e sabedoria, finalmente atingiu o estado de Buddha, girou a roda do Dharma, isto é, deu ensinamentos, e atingiu a liberação final (parinirvāṇa). Ele seria conhecido como o Sábio dos Śākyas (Sakyamuni). Diz-se que o nosso tempo é uma era afortunada (bhadrakalpa) porque cinco Buddhas (ou mil Buddhas, segundo algumas tradições) aparecerão para ensinar o caminho da iluminação. Destes Buddhas, Śākyamuni foi o quarto. Dez bodhisattvas receberam dele uma profecia definitiva e certamente atingirão o despertar no futuro: Maitreya, Rāma, Pasenadikosaka, Abhidhu, Dīghasoni, Samkacca, Subha, Todeyya, Nalāgiri e Paraleyya. Todos eles estão completando as perfeições, com exceção de Maitreya , que já as completou e será o quinto Buddha desta era. Maitreya aparecerá em nosso mundo quando não houver mais praticantes com realizações espirituais; quando os métodos que conduzam ao despertar (absorções meditativas, insights, caminhos espirituais, frutos espirituais e preceitos) tiverem desaparecido; quando o aprendizado das três seções do cânone buddhista tiver desaparecido; quando os símbolos da comunidade budista (mantos e votos monásticos) tiverem desaparecido; e quando as relíquias do Buddha Śākyamuni tiverem desaparecido. No momento em que surgirem as condições necessárias para renascer neste mundo, o bodhisattva Maitreya descerá do paraíso de Tuṣita, e aparecerá como o filho do rei Saṅkha de Ketumati (atual cidade de Vārāṇasī, Índia). Diz-se que os ensinamentos de Śākyamuni devem durar 5.000 anos; portanto, Maitreya deve aparecer daqui a aproximadamente 2.500 anos. Segundo o Anāgata Vamasa Desanā, serão incapazes de ver Maitreya aqueles que tiverem renascido no inferno Avīci como resultado das cinco não virtudes hediondas (matar a própria mãe, matar o próprio pai, matar um ser santo, ferir um Buddha ou causar uma divisão na comunidade buddista). Depois de Maitreya, aparecerá o Budha Rāma, mas somente depois de 100.000 mahākalpas. Rāma será sucedido pelos Buddhas Pasenadikosaka, Abhidhu, Dīghasoni, Samkacca, Subha, Todeyya, Nalāgiri e Paraleyya.  Extraído do site: http://harmonizaçaoquantica.com.br.


Editor do Mosaico. Esse texto As Vidas Passadas do Budha, lembrou-me da escritura cristã no evangelho de Mateus 1:1-25. Nele vemos a genealogia de Jesus, desde os primórdios de sua ascendência até seu nascimento. Leiam e percebem o escopo da forma escrita, fatos e eventos relacionados no passado remoto e “presente” de Jesus pouco antes de seu aparecimento na terra. Parece que, como a escritura pali hindus é bem anterior (88 AC 76), ao canon da Vulgata cristã (Bíblia completa na língua latina) concluída  por São Jerônimo (347-420) em 390 de nossa era, pelo menos a forma apresentada desse capítulo, é particularmente semelhante a seção do livro Khuddaka Nikaya. Os dois iluminados Christo e Budha passaram por singulares processos de encarnação.   Abraço. Davi.

 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O PECADO DA IDOLATRIA

 

Islamismo. www.ligaislamica.org.br. Texto do Sheikh Muhamad Al Kubai. O PECADO DA IDOLATRIA. Graças a Deus, o Senhor dos mundos! Testemunho que não há outra divindade além de Allah e testemunho que Muhammad é seu Servo e mensageiro. Irmãos e irmãs crentes, talvez muitos de vocês estranhem o titulo do sermão de hoje. Em um primeiro momento pode parecer contraditório, pois como pode ser possível que um crente, que se declara como tal, para fugir da idolatria pode, ainda assim, continuar cometendo um pecado tão abominável? Na verdade irmãos e irmãs, esse título é inspirado nas palavras do Altíssimo expressadas no versículo 106, na surata 12, cujo significado é: “E sua maioria (os crentes), na verdade, não crê em Allah sem atribuir-lhe parceiros”. (Alcorão Sagrado). Em outro versículo: “Os crentes que não macularem a sua fé com injustiças obterão a segurança e serão iluminados.” (Alcorão, 6:82) Irmãos e irmãs na fé, a questão da idolatria é mais grave e sutil do que o ser humano possa imaginar. Para se entender esta gravidade, basta sabermos que a idolatria e o único pecado imperdoável aos olhos de Deus, o Onividente, e está bem claro nas sagradas escrituras do Alcorão Sagrado: “Allah jamais perdoará a quem lhe atribuir parceiros; porém, fora isso, perdoa a quem Lhe convém”. (Surata 4:48) O Profeta Muhammad (SAAS) nos advertiu em relação à idolatria e à associação de qualquer entidade a Deus, pois é algo que se infiltra sorrateiramente em nossos corações e nos alerta em seu hadice dirigido a todas as pessoas, cujo significado é: “cuidado com a idolatria que é imperceptível como o andar de uma formiga”. Perguntaram as pessoas: “Como podemos nos resguardar?”. E o nobre Profeta respondeu: “Digam: ‘Amparamo-nos no Criador para que não caiamos no pecado da idolatria e, por meio de nossas ações, pedimos seu perdão caso o façamos sem a intenção e sem percebê-lo”’. A fé possui vários graus e, da mesma, forma ocorre com a idolatria. Há graus de idolatria que impedem por completo a entrada de uma alma no Paraíso. Disse o Altíssimo no versículo 72, da surata 5: “Quem atribuir parceiros a Allah será impedido de entrar no Paraíso”. (Alcorão Sagrado). Há também tipos de idolatria que aniquilam tudo o que a pessoa pode ter feito de bom. Disse o Criador: “Já te foi revelado, assim como aos teus antepassados: se idolatrares (a outro que não a Allah), suas boas obras perderão os seus efeito e valores e vocês passarão a integrar a lista dos desventurados (os que perderam a graça de Allah)”. (Alcorão, 65:39) A maioria das pessoas imagina que a idolatria significa somente o suplício diante de uma estátua ou um entalhe na pedra em vez de Deus. Certamente que isso é um tipo de idolatria, mas a visível é óbvia. Mas o que dizer em relação à idolatria invisível que se esgueira em nosso coração sem que tenhamos consciência de sua presença e que ameaça as bases de nossa crença? É obrigação de todo muçulmano e de toda muçulmana a purificação do coração, varrendo para fora todas as formas de idolatria. O temor de cair na idolatria é o que leva o crente a se elevar em sua fé fazendo com que atinja a plenitude de sua religião ao compreender por completo os conceitos de unicidade e completa lealdade a Deus. Por essa razão repetimos a mesma súplica em todas as nossas orações para que sejamos ajudados a não cair em nenhum tipo de idolatria, consciente ou inconscientemente, visível ou invisível. Ao observarmos os tipos de doenças existentes percebemos que as que se desenvolvem sem apresentar sintomas são as mais perigosas e, em sua maior parte, são percebidas somente quando não há mais possibilidade de cura, pois a moléstia já se apossou de todo o organismo. Dirigimo-nos a Deus em nossas orações, iniciando nossas súplicas com as seguintes palavras: “Eu, monoteísta e submisso a Deus, dirijo minha face ao Senhor que a tudo criou nos Céus e na Terra e neles inseriu a sua ordem, afirmo que não faço parte dos idólatras e politeístas”. Essa declaração pressupõe firmemente que somos inocentes do crime de estarmos associando qualquer coisa a Deus. A idolatria não é somente a ideia que temos de associação de outros deuses ao Deus Único – Allah – o conceito de idolatria abrange muito mais que isso. Se, em cada oração fazemos a súplica para que não caiamos na idolatria, mesmo que sejamos monoteístas declarados, significa que há outros tipos sutis de idolatria na qual podemos cair sem percebermos ou termos consciência a qualquer momento. Irmãos e irmãs, os sábios mencionam vários tipos sutis de idolatria que podem se infiltrar no coração do crente a qualquer momento do dia e temos que nos manter alertas, pois alguns desses tipos de idolatria podem ocorrer durante uma súplica, uma intenção ou objetivo, por meio de uma submissão, medo ou amor a algo, alguém ou a uma situação. As situações anteriormente mencionadas nos desviam do caminho em que Deus é o nosso único procurador e socorredor. A súplica é um tipo de adoração a Deus, O Altíssimo e, por essa razão, não devemos nos dirigir a nada e a ninguém para que interceda por nós. Podemos nos refugiar em Deus e devemos somente nos submeter Ele. O nobre Profeta Muhammad (SAAS) disse para um de seus companheiros: “Maadh, dirija seus pedidos somente para Deus e somente a Ele peça para que o guie quando precisar de orientação”. Se o servo de Deus orar, jejuar ou peregrinar a Meca em busca de prestígio, fama ou de outro objetivo que não seja a aproximação de Deus, está cometendo a idolatria por meio da intenção e do objetivo. Se alguém der a orientação sobre o que é lícito ou ilícito sem se basear no Sagrado Alcorão, na Sunnah e na Jurisprudência Islâmica, para si ou para outros, estará cometendo SHIRK (IDOLATRIA). A submissão é uma das formas de adoração a Deus e só a Ele devemos ter tal atitude. Ao repetir as seguintes palavras de Deus contidas no versículo 31, da surata 9, cujo significado é: “Tomaram por senhores seus rabinos e seus monges, em vez de Allah”, o Profeta (SAAS) explicou que eles não passaram a idolatrar os rabinos e os monges, mas, sim, a aceitar o que eles ditavam como pecado, apesar de ter sido liberado por Deus; e o que era ilícito para Deus, como permitido. Essas pessoas cometeram o pecado da idolatria (shirk) e podemos concluir que, se assim nos comportarmos, de forma que não atenda às ordens de Deus, estaremos colocando sócios para Ele. Revejam seus conceitos segundo os critérios islâmicos no que se refere à família, à participação da mulher nas decisões em todos os âmbitos da sociedade, à busca de conhecimento, à dignidade da nação islâmica. Deus, o Altíssimo, disse no versículo 165, da surata 2: “Entre os humanos, há aqueles que adotam, em vez de Allah, rivais (a Ele), aos quais professam igual amor a Ele; mas os crentes só amam fervorosamente a Allah”. (Alcorão Sagrado). Assim, vemos que Deus nos proibiu de amar a qualquer pessoa ou coisa com a mesma intensidade que amamos a Ele. O amor a Deus deve superar o amor que sentimos por tudo e até mesmo o amor que sentimos por nossa existência. O não cumprimento dessa proibição também é um tipo de idolatria! Quanto ao medo, trata-se de um dos meios que nos levam à idolatria, pois acabamos temendo às pessoas e às situações do dia a dia, superando nosso temor a Deus. Disse o Altíssimo: “Temei a mim, se sois crentes”. (Alcorão Sagrado, 3:175). Não há como uma pessoa realmente ser crente, repetindo mais de cinquenta vezes, as palavras “ALLAHU AKBAR” (Deus é o maior) em suas orações e, no seu íntimo, temer às pessoas ou às circunstâncias do mundo. No que se refere ao depósito de nossa confiança, Deus nos diz: “Confiai em Allah, se sois crentes”. (Alcorão, 5:23) Jamais seremos crentes se depositarmos nossa confiança em qualquer ser ou entidade que não Allah; ao depositarmos nossa confiança em nossa inteligência, esforço físico, negócios, profissão, conta bancária (dinheiro) etc., estamos negligenciando o Todo Poderoso que é o nosso Único Procurador. De nada nos serve tudo o que foi citado anteriormente sem que Deus abençoe e permita que ajam em nosso benefício. Caso assim procedermos, cometeremos shirk (um tipo de idolatria ) pois tudo só se concretiza com a permissão de Deus, o Criador de tudo. Peçamos a Deus para que respeitemos a unicidade e para que sejamos leais tão-somente a Ele, o Altíssimo, e para que compreendamos o versículo 19, da surata 47, cujo significado é: “Conscientiza-te, portanto, que não há mais divindade além de Allah”. Prestemos atenção: Deus não disse "diga", mas, sim, "conscientiza-te”; é uma ordem e uma advertência ao mesmo tempo. Que a misericórdia de Deus nos acompanhe sempre nos protegendo dos sussurros que nos descaminham, sejam eles dos humanos ou dos jinns (gênios). Sheikh Mohamad Al Bukai
11/11/2011. www.ligaislamica.org.br. Abraço. Davi

 

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

O BEM E O MAL

 

Espiritismo. www.fetnet.org.br. Texto de Allan Kardec. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Capítulo III. O BEM E O MAL. Origem do Bem e do Mal. O Instinto e a Inteligência. Destruição dos Seres Vivos uns Pelos Outros. 1. Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo todo sabedoria, todo bondade, todo justiça, tudo o que dele procede há de participar dos seus atributos, porquanto o que é infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que seja irracional, mau e injusto. Logo, o mal que observamos não pode ter nele a sua origem. 2. Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, quer se lhe chame Arimane,28 quer Satanás, de duas coisas uma: ou ele seria igual a Deus e, por conseguinte, tão poderoso quanto este, e de toda a eternidade como Ele, ou lhe seria inferior. No primeiro caso haveria duas potências rivais, incessantemente em luta, cada uma procurando desfazer o que fizesse a outra, contrariando-se mutuamente. Esta hipótese é inconciliável com a unidade de vistas que se revela no ordenamento do universo. No segundo caso, sendo inferior a Deus, aquele ser lhe estaria subordinado. Não podendo existir de toda a eternidade como Deus, sem ser igual a este, teria tido um começo. Se foi criado, só o poderia ter sido por Deus. Este, então, teria criado o Espírito do mal, o que seria a negação da bondade infinita. (Veja-se O céu e o inferno. Primeira parte, capítulo IX, Os demônios.) 3. Entretanto, o mal existe e tem uma causa. Os males de toda espécie, físicos ou morais, que afligem a humanidade apresentam duas categorias que importa distinguir: a dos males que o homem pode evitar e a dos que independem da sua vontade. Entre os últimos, é preciso que se incluam os flagelos naturais. O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode penetrar nem abranger o conjunto dos desígnios do Criador; julga as coisas do ponto de vista da sua personalidade, dos interesses artificiais e convencionais que criou para si mesmo e que não se compreendem na ordem da natureza. É por isso que, muitas vezes, se lhe afigura mal e injusto aquilo que consideraria justo e admirável se lhe conhecesse a causa, o objetivo, o resultado definitivo. Pesquisando a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo traz o selo da sabedoria infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação às coisas que não compreende. 4. O homem recebeu em partilha uma inteligência com cujo auxílio lhe é possível conjurar, ou pelo menos atenuar muito os esforços de todos os flagelos naturais. Quanto mais saber ele adquire e mais se adianta em civilização, tanto menos desastrosos se tornam os flagelos. Com uma organização social sábia e previdente, chegará mesmo a neutralizar as suas consequências, quando não possam ser inteiramente evitados. Assim, mesmo com referência aos flagelos que têm certa utilidade para a ordem geral da natureza e para o futuro, mas que causam danos no presente, Deus facultou ao homem os meios de lhes paralisar os efeitos. É assim que ele saneia as regiões insalubres, neutraliza os miasmas pestíferos,29 fertiliza terras incultas e trabalha por preservá-las das inundações; constrói habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem aos ventos, tão necessários à depuração da atmosfera, e se coloca ao abrigo das intempéries. É assim, finalmente, que pouco a pouco a necessidade lhe faz

criar as ciências, por meio das quais melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta o seu próprio bem-estar. 5. Tendo o homem que progredir, os males aos quais se acha exposto são um estimulante para o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e morais, incitando-o a procurar os meios de evitá-los. Se nada tivesse a temer, nenhuma necessidade o induziria a procurar o melhor; seu espírito se entorpeceria na inatividade; nada inventaria nem descobriria. A dor é o aguilhão que impele o homem para frente, na senda do progresso. 6. Porém, mais numerosos do que os males que o homem não pode evitar são os que ele cria pelos seus próprios vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo. Aí se encontra a causa das guerras e das calamidades que estas acarretam, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte, enfim, da maior parte das doenças. Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria, tendo por único objetivo o bem. O homem encontra em si mesmo tudo o que lhe é necessário para cumpri-las. Sua rota está traçada na consciência, e a Lei divina está gravada no coração. Além disso, Deus lhe lembra disso constantemente por intermédio de seus messias e profetas, de todos os Espíritos encarnados que trazem a missão de o esclarecer, moralizar e melhorar e, nestes últimos tempos, por uma infinidade de Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte. Se o homem se conformasse rigorosamente com as Leis divinas, certamente evitaria os males mais agudos e viveria feliz na Terra. Se não o faz, é em virtude do seu livre-arbítrio, sofrendo assim as consequências do seu proceder. (O evangelho segundo o espiritismo, cap. V, itens 4, 5, 6 e seguintes.) 7. Entretanto, Deus, cheio de bondade, pôs o remédio ao lado do mal, isto é, faz que do próprio mal saia o bem. Chega um momento em que o excesso do mal moral se torna intolerável e impõe ao homem a necessidade de mudar de vida. Instruído pela experiência, ele se sente compelido a procurar no bem o remédio de que necessita, sempre por efeito do seu livre-arbítrio. Quando toma melhor caminho, é por sua vontade e porque reconheceu os inconvenientes do outro. A necessidade, pois, o constrange a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo modo que o constrangeu a melhorar as condições materiais da sua existência (item 5). 8. Pode-se dizer que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor. Assim como o frio não é um fluido especial, também o mal não é um atributo distinto; um é a antítese do outro. Onde não existe o bem, forçosamente existe o mal. Não praticar o mal, já é um princípio do bem. Deus somente quer o bem; só do homem procede o mal. Se na Criação houvesse um ser preposto ao mal, ninguém o poderia evitar; mas, tendo o homem a causa do mal em si mesmo, e tendo ao mesmo tempo o livre-arbítrio e por guia as Leis divinas, evitá-lo-á sempre que o queira. Tomemos um fato vulgar por termo de comparação. Um proprietário sabe que nos confins de suas terras há um lugar perigoso, onde poderia perecer ou ferir-se quem por lá se aventurasse. Que faz a fim de prevenir os acidentes? Manda colocar perto um aviso, proibindo que prossigam os que ali passem, devido ao perigo. Aí está a lei, que é sábia e previdente. Se, apesar disso, um imprudente desatende o aviso, ultrapassa o ponto permitido e sai-se mal, de quem ele se pode queixar, senão de si mesmo? Dá-se a mesma coisa com o mal; o homem o evitaria se observasse as Leis divinas. Deus, por exemplo, impôs limite à satisfação das necessidades; o homem é advertido pela saciedade; se ultrapassa esse limite, o faz voluntariamente. As doenças, as enfermidades, a morte que daí podem resultar provêm da sua imprevidência, e não de Deus. 9. Sendo o mal o resultado das imperfeições do homem e tendo sido este criado por Deus, dir-se-á que Deus não deixa de ter criado, se não o mal, pelo menos a causa do mal. Se Deus houvesse criado perfeito o homem, o mal não existiria. Se o homem tivesse sido criado perfeito, fatalmente penderia para o bem. Ora, em virtude do seu livre-arbítrio, ele não pende fatalmente nem para o bem nem para o mal. Quis Deus que ele ficasse sujeito à lei do progresso e que o progresso fosse fruto do seu próprio trabalho, a fim de que tivesse o mérito deste, da mesma maneira que lhe cabe a responsabilidade do mal que pratique pela própria vontade. A questão, pois, consiste em saber-se qual é, no homem, a origem da sua propensão para o mal.30 10. Estudando-se todas as paixões e, mesmo, todos os vícios, vê-se que as raízes de ambos se acham no instinto de conservação. Esse instinto se encontra em toda a sua força nos animais e nos seres primitivos mais próximos da animalidade, nos quais ele exclusivamente domina, sem o contrapeso do senso moral, por não ter ainda o ser nascido para a vida intelectual. Ao contrário, o instinto se enfraquece à medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria. O destino do Espírito é a vida espiritual, porém, nas primeiras fases da sua existência corpórea, só lhe cumpre satisfazer às exigências materiais e, para tal fim, o exercício das paixões constitui uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas, uma vez saído desse período, outras necessidades se lhe apresentam, a princípio semi morais e semi materiais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito exerce domínio sobre a matéria, sacode-lhe o jugo, avança pela senda providencial e se aproxima do seu destino final. Se, ao contrário, ele se deixa dominar pela matéria, atrasa-se e se identifica com o bruto. Nessa situação, o que era outrora um bem, porque era uma necessidade da sua natureza, transforma-se num mal, não só porque já não constitui uma necessidade, mas porque se torna prejudicial à espiritualização do ser. Muita coisa, que é qualidade na criança, torna-se defeito no adulto. O mal é, pois, relativo, e a responsabilidade é proporcional ao grau de adiantamento. Todas as paixões têm, portanto, a sua utilidade providencial, pois, se assim não fosse, Deus teria feito coisas inúteis e até nocivas. É o abuso que constitui o mal, e o homem abusa em virtude do seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, livremente escolhe entre o bem e o mal. O instinto e a inteligência 11. Qual a diferença entre o instinto e a inteligência? Onde começa um e acaba o outro? Será o instinto uma inteligência rudimentar ou uma faculdade distinta, um atributo exclusivo da matéria? O instinto é a força oculta que impele os seres orgânicos a atos espontâneos e involuntários, tendo em vista a sua conservação. Nos atos instintivos não há reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a planta procura o ar, se volta para a luz, dirige suas raízes para a água e para a terra em busca de nutrientes; que a flor se abre e fecha alternativamente, conforme as necessidades; que as plantas trepadeiras se enroscam em torno daquilo que lhes serve de apoio ou a ele se fixam com as suas gavinhas. É pelo instinto que os animais são avisados do que lhes é útil ou nocivo; que buscam, conforme a estação, os climas propícios; que constroem, sem ensino prévio, com mais ou menos arte, segundo as espécies, leitos macios e abrigos para a sua prole, armadilhas para apanhar a presa de que se nutrem; que manejam com habilidade as armas ofensivas e defensivas de que são providos; que os sexos se aproximam, que a mãe choca os filhotes e que estes procuram o seio materno. No homem, o instinto domina exclusivamente no começo da vida; é por instinto que a criança faz os primeiros movimentos, toma o alimento, grita para exprimir suas necessidades, imita o som da voz, tenta falar e andar. No próprio adulto, certos atos são instintivos, tais como os movimentos espontâneos para evitar um risco, para fugir a um perigo, para manter o equilíbrio do corpo; tais ainda o piscar das pálpebras para moderar o brilho da luz, a respiração etc. 12. A inteligência se revela por atos voluntários, refletidos, premeditados, combinados, de acordo com a oportunidade das circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma. Todo ato maquinal é instintivo. O ato que denota reflexão, combinação, deliberação é inteligente. Um é livre, o outro não o é. O instinto é um guia seguro, que nunca se engana; a inteligência, pelo simples fato de ser livre, está por vezes sujeita a errar. Se o ato instintivo não tem o caráter do ato inteligente, revela, todavia, uma causa inteligente, essencialmente apta a prever. Se se admitir que o instinto procede da matéria, será forçoso admitir que a matéria é inteligente, até mesmo bem mais inteligente e previdente do que a alma, pois que o instinto não se engana, ao passo que a inteligência está sujeita a errar. Se se considerar o instinto uma inteligência rudimentar, como se há de explicar que, em certos casos, seja superior à inteligência que raciocina? Como explicar que torne possível a execução de atos que esta não pode realizar? Se ele é atributo de um princípio espiritual especial, qual vem a ser esse princípio? Já que o princípio se apaga, dar-se-á que esse princípio se destrua? Se os animais são dotados apenas de instinto, não tem solução o destino deles e nenhuma compensação os seus sofrimentos, o que não estaria de acordo nem com a justiça, nem com a bondade de Deus. (Cap. II, item 19.) 13. Segundo outro sistema, o instinto e a inteligência teriam um só e mesmo princípio. Chegado a certo grau de desenvolvimento, esse princípio, que primeiramente apenas tivera as qualidades do instinto, passaria por uma transformação que lhe daria as da inteligência livre. Se fosse assim, no homem inteligente que perde a razão e passa a ser guiado exclusivamente pelo instinto, a inteligência voltaria ao seu estado primitivo e, quando o homem recobrasse a razão, o instinto se tornaria inteligência e assim alternativamente, a cada acesso, o que não é admissível. Aliás, a inteligência e o instinto se mostram muitas vezes simultaneamente no mesmo ato. No caminhar, por exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem põe maquinalmente um pé à frente do outro, sem nisso pensar; mas quando quer acelerar ou diminuir o passo, levantar o pé ou desviar-se de um obstáculo, há cálculo, combinação; ele age com propósito deliberado. A impulsão involuntária do movimento é o ato instintivo; a direção calculada do movimento é o ato inteligente. O animal carnívoro é impelido pelo instinto a se alimentar de carne, mas as precauções que toma e que variam conforme as circunstâncias, para agarrar a presa, a sua previdência das eventualidades são atos da inteligência. 14. Outra hipótese, que, aliás, se conjuga perfeitamente à ideia da unidade de princípio, ressalta do caráter essencialmente previdente do instinto e concorda com o que o Espiritismo ensina, no tocante às relações do mundo espiritual com o mundo corpóreo. Sabe-se agora que muitos Espíritos desencarnados têm por missão velar pelos encarnados, dos quais se constituem protetores e guias; que os envolvem nos seus eflúvios fluídicos; que os homens agem muitas vezes de maneira inconsciente, sob a ação desses eflúvios. Sabe-se, além disso, que o instinto, que por si mesmo produz atos inconscientes, predomina nas crianças e, em geral, nos seres cuja razão é fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria atributo nem da alma nem da matéria; não pertenceria propriamente ao ser vivo, mas seria efeito da ação direta dos protetores invisíveis que supririam a imperfeição da inteligência, provocando atos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria qual o andador com que se amparam as crianças que ainda não sabem andar. Então, do mesmo modo que se deixa gradualmente de usar o andador à proporção que a criança se equilibra sozinha, os Espíritos protetores deixam entregues a si mesmos os seus protegidos à medida que estes se tornam aptos a guiar-se pela própria inteligência. Assim, o instinto, longe de ser o produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, sê-lo-ia de uma inteligência estranha, na plenitude da sua força, inteligência protetora, que supriria a insuficiência, quer de uma inteligência mais jovem, que aquela compeliria a fazer, inconscientemente, para seu bem, o que ainda fosse incapaz de fazer por si mesma, quer de uma inteligência madura, porém, momentaneamente tolhida no uso de suas faculdades, como se dá com o homem na infância e nos casos de idiotia e de afecções mentais. Diz-se providencialmente que há um deus para as crianças, para os loucos e para os ébrios. Esse ditado é mais verdadeiro do que se crê. Aquele deus não é senão o Espírito protetor, que vela pelo ser incapaz de se proteger, utilizando-se da sua própria razão. 15. Nesta ordem de ideias, ainda se pode ir mais longe. Por mais racional que seja, essa teoria não resolve todas as dificuldades da questão. Se observarmos os efeitos do instinto, notaremos, logo de começo, uma unidade de vistas e de conjunto, uma segurança de resultados, que cessam logo que a inteligência livre substitui o instinto. Além do mais, reconheceremos profunda sabedoria na apropriação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades de cada espécie. Semelhante unidade de vistas não poderia existir sem a unidade de pensamento, e esta é incompatível com a diversidade das aptidões individuais; só ela poderia produzir esse conjunto tão harmonioso que se realiza desde a origem dos tempos e em todos os climas, com uma regularidade e uma precisão matemáticas, cuja ausência jamais se nota. A uniformidade no que resulta das faculdades instintivas é um fato característico que implica forçosamente a unidade da causa. Se a causa fosse inerente a cada individualidade, haveria tantas variedades de instintos quantos fossem os indivíduos, desde a planta até o homem. Um efeito geral, uniforme e constante há de ter uma causa geral, uniforme e constante; um efeito que atesta sabedoria e previdência deve ter uma causa sábia e previdente. Ora, uma causa dessa natureza, sendo necessariamente inteligente, não pode ser exclusivamente material. Não se encontrando nas criaturas, encarnadas ou desencarnadas, as qualidades necessárias à produção de tal resultado, temos que subir mais alto, isto é, ao próprio Criador. Se nos reportarmos à explicação dada sobre a maneira pela qual se pode conceber a ação providencial (cap. II, item 24); se figurarmos todos os seres penetrados do fluido divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de vistas que presidem a todos os movimentos instintivos para o bem de cada indivíduo. Essa solicitude é tanto mais ativa quanto menos recurso tem o indivíduo em si mesmo e na sua inteligência. É por isso que ela se mostra maior e mais absoluta nos animais e nos seres inferiores do que no homem. Segundo essa teoria, compreende-se que o instinto seja um guia sempre seguro. O instinto maternal, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atrativas da matéria, fica realçado e enobrecido. Em razão das suas consequências, ele não devia ser entregue às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Por intermédio da mãe, o próprio Deus vela pelas suas criaturas que nascem. 16. Esta teoria não destrói de modo algum o papel dos Espíritos protetores, cujo concurso é fato observado e comprovado pela experiência; mas deve-se notar que a ação desses Espíritos é essencialmente individual; que se modifica segundo as qualidades próprias do protetor e do protegido e que em parte alguma apresenta a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, em sua sabedoria, conduz Ele próprio os cegos, mas confia a inteligências livres o cuidado de guiar os clarividentes, para deixar a cada um a responsabilidade de seus atos. A missão dos Espíritos protetores é um dever que aceitam voluntariamente e lhes é um meio de se adiantarem, dependendo o adiantamento da forma pela qual o desempenhem. 17. Todas essas maneiras de considerar o instinto são forçosamente hipotéticas e nenhuma apresenta caráter seguro de autenticidade, para ser tida como solução definitiva. A questão será certamente resolvida um dia, quando se tiverem reunido os elementos de observação que ainda faltam. Até lá, temos que limitar-nos a submeter as diversas opiniões ao crivo da razão e da lógica e esperar que a luz se faça. A solução que mais se aproxima da verdade será decerto a que melhor condiga com os atributos de Deus, isto é, com a suprema bondade e a suprema justiça. (Cap. II, item 19.) 18. Sendo o instinto o guia, e sendo as paixões as molas da alma no período inicial do seu desenvolvimento, por vezes se confundem em seus efeitos. Há, entretanto, entre esses dois princípios, diferenças que é preciso considerar. O instinto é guia seguro, sempre bom. Pode, depois de certo tempo, tornar-se inútil, porém nunca prejudicial. Enfraquece-se pela predominância da inteligência. As paixões, nas primeiras idades da alma, têm de comum com o instinto o fato de serem as criaturas solicitadas por uma força igualmente inconsciente. As paixões nascem principalmente das necessidades do corpo e dependem, mais do que o instinto, do organismo. O que, acima de tudo, as distingue do instinto, é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes. Variam, ao contrário, de intensidade e de natureza, conforme os indivíduos. São úteis, como estimulante, até a eclosão do senso moral que, de um ser passivo, faz que nasça um ser racional. Nesse momento, tornam-se não só inúteis, mas prejudiciais ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização retardam. Abrandam-se com o desenvolvimento da razão. 19. O homem que só agisse pelo instinto poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual criança que não deixasse o andador e não soubesse utilizar-se de seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, mas, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões só se domam pelo esforço da vontade. Destruição dos seres vivos uns pelos outros 20. A destruição recíproca dos seres vivos é uma das leis da natureza, que, à primeira vista, menos parecem conciliar-se com a bondade de Deus. Pergunta-se por que Deus criou para eles a necessidade de mutuamente se destruírem, para se alimentarem uns à custa dos outros. Para quem vê apenas a matéria e restringe a sua visão à vida presente, parece, de fato, que há uma imperfeição qualquer na obra divina. É que em geral os homens julgam a perfeição de Deus do ponto de vista humano; medem a sabedoria divina pelo próprio julgamento que dela fazem, e pensam que Deus não poderia fazer coisa melhor do que eles próprios fariam. Como a curta visão de que dispõem não lhes permite apreciar o conjunto, não compreendem que um bem real possa decorrer de um mal aparente. Só o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua essência verdadeira, bem como o da grande lei de unidade, que constitui a harmonia da Criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar-lhe a sabedoria providencial e a harmonia, justamente onde apenas vê uma anomalia e uma contradição. 21. A verdadeira vida, tanto do animal quanto do homem, não está no envoltório corpóreo, do mesmo modo que não está no vestuário. Está no princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo. Esse princípio necessita do corpo para se desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre realizar sobre a matéria bruta. O corpo se consome nesse trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, dele sai cada vez mais forte, mais lúcido e mais apto. Que importa, pois, que o Espírito mude mais ou menos frequentemente de envoltório? Não deixa por isso de ser Espírito. É absolutamente como se um homem mudasse cem vezes no ano as suas vestes. Não deixaria por isso de ser homem. Por meio do espetáculo incessante da destruição, Deus ensina aos homens o pouco caso que devem fazer do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida espiritual, fazendo que a desejem como uma compensação. Deus, alegarão, não podia chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem constranger os seres vivos a se entredevorarem? Se tudo é sabedoria em sua obra, devemos supor que esta não existirá mais num ponto do que em outros; se não o compreendemos assim, devemos atribuí-lo à nossa falta de adiantamento. Contudo, devemos tentar a pesquisa da razão do que nos pareça defeituoso, tomando por bússola este princípio: Deus há de ser infinitamente justo e sábio. Procuremos, portanto, em tudo, a sua justiça e a sua sabedoria e curvemo-nos diante do que ultrapasse o nosso entendimento. 22. Uma primeira utilidade que se apresenta de tal destruição, utilidade puramente física, é verdade, é esta: os corpos orgânicos só se conservam com o auxílio das matérias orgânicas, por só elas conterem os elementos nutritivos necessários à transformação deles. Como os corpos, instrumentos de ação do princípio inteligente, precisam ser constantemente renovados, a Providência faz que sirvam ao seu mútua manutenção. É por isso que os seres se nutrem uns dos outros. Mas é o corpo que se nutre do corpo, sem que o Espírito se aniquile ou altere, fica apenas despojado do seu envoltório.31,32 23. Há também considerações morais de ordem mais elevada. É necessária a luta para o desenvolvimento do Espírito. Na luta é que ele exercita as suas faculdades. O que ataca em busca do alimento e o que se defende para conservar a vida usam de habilidade e inteligência, aumentando, em

consequência, suas forças intelectuais. Um dos dois sucumbe; mas, em realidade, que foi que o mais forte ou o mais destro tirou ao mais fraco? A veste de carne, nada mais; mais tarde o Espírito, que não morreu, tomará outra. 24. Nos seres inferiores da Criação, naqueles a quem ainda falta o senso moral, nos quais a inteligência ainda não substituiu o instinto, a luta não pode ter por objetivo senão a satisfação de uma necessidade material. Ora, uma das necessidades materiais mais imperiosas é a da alimentação. Eles, pois, lutam unicamente para viver, isto é, para fazer ou defender uma presa, visto que nenhum móvel mais elevado os poderia estimular. É nesse primeiro período que a alma se elabora e ensaia para a vida. No homem, há um período de transição em que ele mal se distingue do bruto. Nas primeiras idades, domina o instinto animal e a luta ainda tem por alvo a satisfação das necessidades materiais. Mais tarde, contrabalançam-se o instinto animal e o sentimento moral; o homem então luta, não mais para se alimentar, mas para satisfazer à sua ambição, ao seu orgulho, a sua necessidade de dominar. Para isso, ainda lhe é preciso destruir. Todavia, à medida que prepondera o senso moral, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade de destruir, acabando mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa essa necessidade. O homem tem horror ao sangue. Entretanto, a luta é sempre necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois mesmo chegando a esse ponto que nos parece culminante, ele ainda está longe de ser perfeito. Só à custa de sua atividade que o Espírito adquire conhecimentos, experiência e se despoja dos últimos vestígios da animalidade. Mas, nessa ocasião, a luta, de sangrenta e brutal que era, se torna puramente intelectual. O homem luta contra as dificuldades, e não mais com os seus semelhantes. www.fetnet.org.br. Abraço. Davi