sábado, 30 de maio de 2015

Guerra e Paz.



Texto de Ayya Khema (1923-1997). Guerra e paz são a saga épica da humanidade. Elas representam tudo que os nossos livros de história contêm porque são aquilo que está contido nos nossos corações. Se você alguma vez leu Dom Quixote, de Miguel de Cervante (1547-1616) irá se lembrar que ele lutava contra moinhos de vento. Todos estamos fazendo exatamente o mesmo, lutando contra moinhos de vento. Dom Quixote, que foi a invenção da imaginação de um escritor, era um homem que acreditava ser um grande guerreiro. Ele pensava que cada moinho de vento que encontrava era um inimigo e começava a guerrear contra ele. É exatamente isso que fazemos no íntimo dos nossos próprios corações e é por essa razão que essa estória tem um apelo imortal. É uma estória sobre nós mesmos. Escritores e poetas que sobreviveram além da sua própria era, sempre relataram aos seres humanos estórias sobre eles mesmos. A maioria das pessoas não querem ouvir porque não ajuda nada quando outras pessoas nos dizem o que existe de errado conosco, e pouquíssimos se dão ao trabalho de ouvir. Cada um tem que descobrir por si mesmo e a maioria das pessoas não quer fazer isso tampouco. O que realmente significa guerrear contra moinhos de vento? Significa lutar contra tudo que não seja importante ou real, ou seja, só inimigos e batalhas imaginárias. Temas bem insignificantes que convertemos em algo sólido e formidável nas nossas mentes. Podemos dizer: "Eu não posso tolerar isso" e assim começamos a lutar, ou "Eu não gosto dele" e uma batalha se desencadeia, ou "Eu me sinto tão infeliz" e a guerra interior irrompe com furiosidade. Nós nem sabemos direito porque estamos tão infelizes. O tempo, a comida, as pessoas, o trabalho, o lazer, o país, qualquer coisa em geral serve como razão. Porque isso acontece conosco? Por que resistimos à ideia de soltarmo-nos verdadeiramente das coisas e tornarmo-nos aquilo que realmente somos, isto é, nada. Ninguém quer ser nada. Todos querem ser alguma coisa ou alguém, mesmo que seja apenas um Dom Quixote lutando contra moinhos de vento. Ou ainda, alguém que sabe e age, e que irá se tornar alguma outra coisa, alguém que possui certos atributos, concepções, opiniões e idéias. Mesmo as idéias claramente equivocadas são agarradas com firmeza, porque elas fazem com que o "eu" tenha mais solidez. Parece negativo e depressivo ser ninguém e não ter nada. Temos que descobrir por nós mesmos que essa é a sensação mais regozijadora e libertadora que podemos ter. Mas porque tememos que moinhos de vento possam nos atacar, não nos queremos soltar das nossas ideias. Porque não podemos ter paz no mundo? Porque ninguém quer se desarmar. Nenhum país quer assinar um acordo de desarmamento, o que todos nós lamentamos. Mas alguma vez olhamos para ver se nós mesmos na verdade nos desarmamos? Se nós mesmos não fizemos isso, porque nos surpreendermos com o fato de que ninguém mais está preparado para fazer isso também? Ninguém quer ser o primeiro a não ter armas; os outros poderão vencer. Isso realmente importa? Se não houver ninguém que possa ser conquistado? Como pode existir uma vitória sobre ninguém? Deixe que aqueles que lutam vençam todas as guerras, tudo que importa é ter paz no próprio coração. Enquanto resistirmos e rejeitarmos e continuarmos a buscar todo tipo de desculpas racionais para continuar a agir dessa forma, haverá guerras. A guerra se manifesta no exterior através da violência, agressão e morte. Mas como ela se revela internamente? Nós temos um arsenal dentro de nós, não de armas e bombas nucleares, mas que possui o mesmo efeito. E quem se fere é sempre aquele que está atirando, isto é, nós mesmos. Algumas vezes alguma outra pessoa se posiciona dentro da linha de tiro e se ela não for cuidadosa também será ferida. Esse é um acidente deplorável. As principais explosões são as bombas que explodem no próprio coração. A área de desastre é onde elas são detonadas. O arsenal que carregamos conosco consiste na nossa má vontade e raiva, nossos desejos e cobiças. O único critério é que não nos sentimos em paz interiormente. Não precisamos acreditar em nada, só necessitamos verificar se há paz e alegria no nosso coração. Se estiverem ausentes, a maioria das pessoas tentará encontrá-las fora de si mesmas. Assim é como todas as guerras começam. Sempre a culpa é do outro país, e se não houver ninguém em quem colocar a culpa, então a justificativa é a necessidade de mais território para expansão, maior soberania territorial. Em termos pessoais, a pessoa precisa de mais diversão, mais prazer, mais conforto, mais distrações para a mente. Se ela não puder encontrar ninguém mais para culpar pela própria falta de paz, então a pessoa crê que essa é uma necessidade não satisfeita. Quem é essa pessoa que precisa ter mais? Uma invenção da nossa imaginação, lutando contra moinhos de vento. Esse "mais" nunca tem fim. A pessoa poderá ir de país em país, de pessoa em pessoa. Existem bilhões de pessoas neste planeta; é muito improvável que queiramos ver cada uma delas, ou mesmo a centésima parte, uma vida inteira não seria suficiente para isso. Podemos escolher vinte ou trinta pessoas e ir de uma para outra e depois regressar, mudando de uma atividade para outra, de uma ideia para outra. Estamos lutando contra o nosso próprio Dukkha e não queremos aceitar que os moinhos de vento no nosso coração são gerados por nós mesmos. Acreditamos que alguém colocou-os ali contra nós, e se nos movermos iremos escapar deles. Poucas pessoas, por fim, chegam à conclusão de que esses moinhos de vento são imaginários, que é possível removê-los não lhes concedendo força e importância. Que podemos abrir os nossos corações sem temor e de forma gentil, gradual e abandonar as nossas noções e opiniões preconcebidas, concepções e ideias, repressões e respostas condicionadas. Quando tudo isso é removido, o que resta? Um espaço amplo e aberto, que pode ser preenchido com qualquer coisa que se queira. Se a pessoa tiver bom senso, irá preenchê-lo com amor, compaixão e equanimidade. Então não haverá nada mais pelo que lutar. Só o que fica é a felicidade e a paz, que não podem ser encontradas fora de nós mesmos. É impossível tomar algo de fora e colocá-lo dentro de nós. Não dispomos de uma abertura pela qual a paz possa entrar. Temos que começar no nosso íntimo e a partir daí trabalhar para o exterior. A menos que isso se torne claro para nós, estaremos sempre buscando uma nova cruzada. Imagine como era na época das cruzadas! Haviam os nobres cavaleiros que gastavam a sua fortuna para se equipar com as armas mais modernas e avançadas, equipando cavalos e seguidores, e então partindo para levar a religião aos infiéis. Muitos morriam ao longo do caminho devido às dificuldades e às batalhas, e aqueles que chegavam ao fim da jornada, a Terra Santa, ainda assim não obtinham nenhum resultado, apenas mais guerra. Ao analisarmos isso na atualidade, parece algo absolutamente tolo, quase chegando ao ridículo. No entanto, fazemos o mesmo com as nossas vidas. Se, por exemplo, tivéssemos escrito no nosso diário algo que nos tivesse aborrecido há três ou quatro anos atrás e fôssemos ler aquilo agora, pareceria bem absurdo. Não seríamos capazes de lembrar por que razão aquilo poderia ter sido importante. Estamos constantemente engajados nessas tolices com coisas menores e sem importância, e gastamos a nossa energia tentando solucioná-las de forma a satisfazer o nosso ego. Não seria muito melhor esquecer essas formações mentais e dar atenção àquilo que é realmente importante? Existe apenas uma coisa que é importante para todos os seres e isso é um coração feliz e em paz. Isso não pode ser comprado e nem é dado de graça. Ninguém é capaz de dar isso para outrem e nem pode ser achado. Ramana Maharshi (1875-1950), um sábio do sul da Índia, disse: "A paz e a felicidade não são nosso patrimônio de nascença. Qualquer um que as tenha alcançado, assim o fez através do esforço contínuo." Algumas pessoas têm a ideia de que a paz e a felicidade são sinônimos de não fazer nada, não ter tarefas ou responsabilidades, não ter cuidado com os outros. Isso é na verdade resultado de preguiça. Para conquistar a paz e a felicidade é necessário esforço incansável com o próprio coração. Não é possível alcançá-las através da proliferação, tentando obter mais, só querendo menos. Mas tornando-nos cada vez mais vazios, até que reste apenas um espaço vazio, amplo, para ser preenchido pela paz e a felicidade. Enquanto os nossos corações estiverem repletos com gostos e desgostos, como poderão a paz e a felicidade encontrar algum espaço? Uma pessoa pode encontrar paz dentro de si mesma em qualquer situação, qualquer lugar, qualquer circunstância, mas só através do esforço, não através da distração. O mundo oferece distrações e contatos sensuais que são na maioria das vezes muito tentadores. Quanto mais ação houver, mais distraída a mente ficará e menos teremos que observar o próprio Dukkha. Quando há tempo e oportunidade para a introspecção, descobrimos que a realidade interior é distinta daquilo que tínhamos imaginado. Muitas pessoas desviam o olhar com rapidez, elas não estão interessadas nisso. Não é culpa de ninguém que Dukkha existe. A única cura é a renúncia. Na verdade é bem simples, mas poucas pessoas creem nisso a ponto de colocá-la em prática. Existe um conhecido símile da armadilha para macacos. O tipo que é usado na Ásia é um funil de madeira com uma abertura estreita. Na extremidade mais ampla se encontra um doce. O macaco, atraído pelo doce, enfia a pata através da abertura estreita e agarra o doce. No momento de tirar a pata, ele não consegue fazer com que o punho com o doce atravessem a abertura estreita. Ele fica assim aprisionado e o caçador vem e o captura. O macaco não se dá conta que a única coisa que precisa fazer para se libertar é soltar o doce. Assim é a nossa vida. Uma armadilha, porque queremos uma vida doce e agradável. Como não somos capazes de renunciar, ficamos aprisionados no ciclo contínuo de felicidade e infelicidade, sobe e desce, esperança e desespero. Ao invés de tentarmos por nós mesmos, para ver se podemos nos soltar e ser livres, resistimos e rejeitamos essa ideia. No entanto, todos estamos de acordo que aquilo que realmente importa é a paz e a felicidade, que só podem existir numa mente e coração livres. Existe uma estória encantadora de Nazrudin, um Mestre Sufi, que tinha um talento especial para contar estórias absurdas. Certo dia, diz a estória, ele enviou um dos seus discípulos ao mercado e pediu que lhe comprasse uma saco de chiles (espécie de pimentão). O discípulo fez como lhe havia sido pedido e trouxe o saco para Nazrudin, que começou a comer os chiles, um após o outro. Em pouco tempo a sua face ficou vermelha, o nariz começou a escorrer, os olhos começaram a lacrimejar e ele estava engasgando. O discípulo observou isso durante algum tempo cheio de temor e depois disse: "Senhor, a sua face está ficando vermelha, os seus olhos estão lacrimejando e você está engasgando. Porque você não para de comer esses chiles?" Nazrudin respondeu: "Estou esperando encontrar um que seja doce." A ajuda pedagógica dos chiles! Nós, também, estamos esperando por algo, algum lugar que vá criar para nós a paz e a felicidade. Nesse meio tempo, não existe nada além de Dukkha, os olhos estão lacrimejando, o nariz está escorrendo, mas nós não paramos com as nossas próprias criações. Deve haver no fundo do saco uma que seja doce! Não adianta pensar, ouvir ou ler a respeito, a única forma efetiva é olhar para dentro do próprio coração e vê-lo com compreensão. Quanto mais repleto estiver o coração de desejos e cobiças, mais dura e difícil se tornará a vida. Porque lutar contra todos esses moinhos de vento? Eles são construídos por nós mesmos, e nós mesmos podemos removê-los. É uma experiência muito recompensadora investigar o que está criando confusão no próprio coração e mente. Descobrir uma emoção após a outra, não para criar-lhes desculpas e justificativas, mas para compreender que elas constituem os campos de batalha do mundo, e começar a desmantelar as armas para que o desarmamento se torne uma realidade. Budismo Theravada. http://www.nossacasa.net/shunya/. Abraço. Davi.

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