Texto de Ayya Khema
(1923-1997). Guerra e paz são a saga épica da humanidade. Elas representam tudo
que os nossos livros de história contêm porque são aquilo que está contido nos
nossos corações. Se você alguma vez leu Dom
Quixote, de Miguel de Cervante (1547-1616) irá se lembrar que ele lutava contra
moinhos de vento. Todos estamos fazendo exatamente o mesmo, lutando contra
moinhos de vento. Dom Quixote, que foi a invenção da imaginação de um escritor,
era um homem que acreditava ser um grande guerreiro. Ele pensava que cada
moinho de vento que encontrava era um inimigo e começava a guerrear contra ele.
É exatamente isso que fazemos no íntimo dos nossos próprios corações e é por
essa razão que essa estória tem um apelo imortal. É uma estória sobre nós mesmos.
Escritores e poetas que sobreviveram além da sua própria era, sempre relataram
aos seres humanos estórias sobre eles mesmos. A maioria das pessoas não querem
ouvir porque não ajuda nada quando outras pessoas nos dizem o que existe de
errado conosco, e pouquíssimos se dão ao trabalho de ouvir. Cada um tem que
descobrir por si mesmo e a maioria das pessoas não quer fazer isso tampouco. O
que realmente significa guerrear contra moinhos de vento? Significa lutar
contra tudo que não seja importante ou real, ou seja, só inimigos e batalhas
imaginárias. Temas bem insignificantes que convertemos em algo sólido e
formidável nas nossas mentes. Podemos dizer: "Eu não posso tolerar
isso" e assim começamos a lutar, ou "Eu não gosto dele" e uma batalha
se desencadeia, ou "Eu me sinto tão infeliz" e a guerra interior
irrompe com furiosidade. Nós nem sabemos direito porque estamos tão infelizes.
O tempo, a comida, as pessoas, o trabalho, o lazer, o país, qualquer coisa em
geral serve como razão. Porque isso acontece conosco? Por que resistimos à
ideia de soltarmo-nos verdadeiramente das coisas e tornarmo-nos aquilo que
realmente somos, isto é, nada. Ninguém quer ser nada. Todos querem ser alguma
coisa ou alguém, mesmo que seja apenas um Dom Quixote lutando contra moinhos de
vento. Ou ainda, alguém que sabe e age, e que irá se tornar alguma outra coisa,
alguém que possui certos atributos, concepções, opiniões e idéias. Mesmo as
idéias claramente equivocadas são agarradas com firmeza, porque elas fazem com
que o "eu" tenha mais solidez. Parece negativo e depressivo ser
ninguém e não ter nada. Temos que descobrir por nós mesmos que essa é a
sensação mais regozijadora e libertadora que podemos ter. Mas porque tememos
que moinhos de vento possam nos atacar, não nos queremos soltar das nossas
ideias. Porque não podemos ter paz no mundo? Porque ninguém quer se desarmar.
Nenhum país quer assinar um acordo de desarmamento, o que todos nós lamentamos.
Mas alguma vez olhamos para ver se nós mesmos na verdade nos desarmamos? Se nós
mesmos não fizemos isso, porque nos surpreendermos com o fato de que ninguém
mais está preparado para fazer isso também? Ninguém quer ser o primeiro a não
ter armas; os outros poderão vencer. Isso realmente importa? Se não houver
ninguém que possa ser conquistado? Como pode existir uma vitória sobre ninguém?
Deixe que aqueles que lutam vençam todas as guerras, tudo que importa é ter paz
no próprio coração. Enquanto resistirmos e rejeitarmos e continuarmos a buscar
todo tipo de desculpas racionais para continuar a agir dessa forma, haverá
guerras. A guerra se manifesta no exterior através da violência, agressão e
morte. Mas como ela se revela internamente? Nós temos um arsenal dentro de nós,
não de armas e bombas nucleares, mas que possui o mesmo efeito. E quem se fere
é sempre aquele que está atirando, isto é, nós mesmos. Algumas vezes alguma
outra pessoa se posiciona dentro da linha de tiro e se ela não for cuidadosa
também será ferida. Esse é um acidente deplorável. As principais explosões são
as bombas que explodem no próprio coração. A área de desastre é onde elas são
detonadas. O arsenal que carregamos conosco consiste na nossa má vontade e
raiva, nossos desejos e cobiças. O único critério é que não nos sentimos em paz
interiormente. Não precisamos acreditar em nada, só necessitamos verificar se
há paz e alegria no nosso coração. Se estiverem ausentes, a maioria das pessoas
tentará encontrá-las fora de si mesmas. Assim é como todas as guerras começam.
Sempre a culpa é do outro país, e se não houver ninguém em quem colocar a
culpa, então a justificativa é a necessidade de mais território para expansão,
maior soberania territorial. Em termos pessoais, a pessoa precisa de mais
diversão, mais prazer, mais conforto, mais distrações para a mente. Se ela não
puder encontrar ninguém mais para culpar pela própria falta de paz, então a
pessoa crê que essa é uma necessidade não satisfeita. Quem é essa pessoa que
precisa ter mais? Uma invenção da nossa imaginação, lutando contra moinhos de
vento. Esse "mais" nunca tem fim. A pessoa poderá ir de país em país,
de pessoa em pessoa. Existem bilhões de pessoas neste planeta; é muito
improvável que queiramos ver cada uma delas, ou mesmo a centésima parte, uma
vida inteira não seria suficiente para isso. Podemos escolher vinte ou trinta
pessoas e ir de uma para outra e depois regressar, mudando de uma atividade
para outra, de uma ideia para outra. Estamos lutando contra o nosso próprio Dukkha e não queremos aceitar que os moinhos
de vento no nosso coração são gerados por nós mesmos. Acreditamos que alguém
colocou-os ali contra nós, e se nos movermos iremos escapar deles. Poucas
pessoas, por fim, chegam à conclusão de que esses moinhos de vento são
imaginários, que é possível removê-los não lhes concedendo força e importância.
Que podemos abrir os nossos corações sem temor e de forma gentil, gradual e
abandonar as nossas noções e opiniões preconcebidas, concepções e ideias,
repressões e respostas condicionadas. Quando tudo isso é removido, o que resta?
Um espaço amplo e aberto, que pode ser preenchido com qualquer coisa que se
queira. Se a pessoa tiver bom senso, irá preenchê-lo com amor, compaixão e
equanimidade. Então não haverá nada mais pelo que lutar. Só o que fica é a
felicidade e a paz, que não podem ser encontradas fora de nós mesmos. É
impossível tomar algo de fora e colocá-lo dentro de nós. Não dispomos de uma
abertura pela qual a paz possa entrar. Temos que começar no nosso íntimo e a
partir daí trabalhar para o exterior. A menos que isso se torne claro para nós,
estaremos sempre buscando uma nova cruzada. Imagine como era na época das
cruzadas! Haviam os nobres cavaleiros que gastavam a sua fortuna para se
equipar com as armas mais modernas e avançadas, equipando cavalos e seguidores,
e então partindo para levar a religião aos infiéis. Muitos morriam ao longo do
caminho devido às dificuldades e às batalhas, e aqueles que chegavam ao fim da
jornada, a Terra Santa, ainda assim não obtinham nenhum resultado, apenas mais
guerra. Ao analisarmos isso na atualidade, parece algo absolutamente tolo,
quase chegando ao ridículo. No entanto, fazemos o mesmo com as nossas vidas.
Se, por exemplo, tivéssemos escrito no nosso diário algo que nos tivesse
aborrecido há três ou quatro anos atrás e fôssemos ler aquilo agora, pareceria
bem absurdo. Não seríamos capazes de lembrar por que razão aquilo poderia ter
sido importante. Estamos constantemente engajados nessas tolices com coisas
menores e sem importância, e gastamos a nossa energia tentando solucioná-las de
forma a satisfazer o nosso ego. Não seria muito melhor esquecer essas formações
mentais e dar atenção àquilo que é realmente importante? Existe apenas uma
coisa que é importante para todos os seres e isso é um coração feliz e em paz.
Isso não pode ser comprado e nem é dado de graça. Ninguém é capaz de dar isso
para outrem e nem pode ser achado. Ramana Maharshi (1875-1950), um sábio do sul
da Índia, disse: "A paz e a felicidade não são nosso patrimônio de
nascença. Qualquer um que as tenha alcançado, assim o fez através do esforço
contínuo." Algumas pessoas têm a ideia de que a paz e a felicidade são
sinônimos de não fazer nada, não ter tarefas ou responsabilidades, não ter
cuidado com os outros. Isso é na verdade resultado de preguiça. Para conquistar
a paz e a felicidade é necessário esforço incansável com o próprio coração. Não
é possível alcançá-las através da proliferação, tentando obter mais, só
querendo menos. Mas tornando-nos cada vez mais vazios, até que reste apenas um
espaço vazio, amplo, para ser preenchido pela paz e a felicidade. Enquanto os
nossos corações estiverem repletos com gostos e desgostos, como poderão a paz e
a felicidade encontrar algum espaço? Uma pessoa pode encontrar paz dentro de si
mesma em qualquer situação, qualquer lugar, qualquer circunstância, mas só
através do esforço, não através da distração. O mundo oferece distrações e
contatos sensuais que são na maioria das vezes muito tentadores. Quanto mais
ação houver, mais distraída a mente ficará e menos teremos que observar o
próprio Dukkha. Quando há tempo e oportunidade para a
introspecção, descobrimos que a realidade interior é distinta daquilo que
tínhamos imaginado. Muitas pessoas desviam o olhar com rapidez, elas não estão
interessadas nisso. Não é culpa de ninguém que Dukkha existe. A única cura é a renúncia. Na verdade
é bem simples, mas poucas pessoas creem nisso a ponto de colocá-la em prática.
Existe um conhecido símile da armadilha para macacos. O tipo que é usado na
Ásia é um funil de madeira com uma abertura estreita. Na extremidade mais ampla
se encontra um doce. O macaco, atraído pelo doce, enfia a pata através da
abertura estreita e agarra o doce. No momento de tirar a pata, ele não consegue
fazer com que o punho com o doce atravessem a abertura estreita. Ele fica assim
aprisionado e o caçador vem e o captura. O macaco não se dá conta que a única
coisa que precisa fazer para se libertar é soltar o doce. Assim é a nossa vida.
Uma armadilha, porque queremos uma vida doce e agradável. Como não somos
capazes de renunciar, ficamos aprisionados no ciclo contínuo de felicidade e
infelicidade, sobe e desce, esperança e desespero. Ao invés de tentarmos por
nós mesmos, para ver se podemos nos soltar e ser livres, resistimos e
rejeitamos essa ideia. No entanto, todos estamos de acordo que aquilo que
realmente importa é a paz e a felicidade, que só podem existir numa mente e
coração livres. Existe uma estória encantadora de Nazrudin, um Mestre Sufi, que
tinha um talento especial para contar estórias absurdas. Certo dia, diz a
estória, ele enviou um dos seus discípulos ao mercado e pediu que lhe comprasse
uma saco de chiles (espécie de pimentão). O discípulo fez como lhe havia sido
pedido e trouxe o saco para Nazrudin, que começou a comer os chiles, um após o
outro. Em pouco tempo a sua face ficou vermelha, o nariz começou a escorrer, os
olhos começaram a lacrimejar e ele estava engasgando. O discípulo observou isso
durante algum tempo cheio de temor e depois disse: "Senhor, a sua face
está ficando vermelha, os seus olhos estão lacrimejando e você está engasgando.
Porque você não para de comer esses chiles?" Nazrudin respondeu:
"Estou esperando encontrar um que seja doce." A ajuda pedagógica dos
chiles! Nós, também, estamos esperando por algo, algum lugar que vá criar para
nós a paz e a felicidade. Nesse meio tempo, não existe nada além de Dukkha, os olhos estão lacrimejando, o nariz
está escorrendo, mas nós não paramos com as nossas próprias criações. Deve
haver no fundo do saco uma que seja doce! Não adianta pensar, ouvir ou ler a
respeito, a única forma efetiva é olhar para dentro do próprio coração e vê-lo
com compreensão. Quanto mais repleto estiver o coração de desejos e cobiças,
mais dura e difícil se tornará a vida. Porque lutar contra todos esses moinhos
de vento? Eles são construídos por nós mesmos, e nós mesmos podemos removê-los.
É uma experiência muito recompensadora investigar o que está criando confusão
no próprio coração e mente. Descobrir uma emoção após a outra, não para
criar-lhes desculpas e justificativas, mas para compreender que elas constituem
os campos de batalha do mundo, e começar a desmantelar as armas para que o
desarmamento se torne uma realidade. Budismo Theravada. http://www.nossacasa.net/shunya/.
Abraço. Davi.
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