Como
o Samsara se manifesta? O que quer que percebamos ao nosso redor com nossos
cinco sentidos, todos os tipos de sentimentos de relação e repulsão, se formam
em nossa mente. Não são as percepções em si que nos mantém no ciclo de
existências, mas sim o modo pelo qual reagimos a elas e o modo pelo qual as
interpretamos. É nisso que Vajrayana nos dá meios extraordinários para não
perpetuar o Samsara: ele nos mostra como perceber os fenômenos como sendo a
exibição pura de sabedoria. O ódio ou a raiva que possamos sentir por alguém
não são inerentes àquela pessoa. Eles existem apenas em nossa mente. Assim que
vemos o nosso inimigo, nossos pensamentos se fixam na memória do mal que ele
fez para nós, em seus ataques presentes e naqueles que poderá fazer no futuro.
Nos tornamos irritados a ponto de não sermos mais capazes de suportar o som de
seu nome. Quanto mais liberdade nós damos a estes pensamentos, mais a raiva irá
nos invadir e, com ela, a vontade irresistível de pegar uma pedra para lhe
jogar, ou de um bastão para lhe bater. Deste modo, um simples instante de raiva
nos conduz ao paradoxo do ódio. O ódio parece muito poderoso para vocês, mas de
onde ele tira o poder de dominá-los a esse ponto? É uma força externa, com
braços e pernas, armas e guerreiros? Ou é uma força interna, que está dentro de
vocês? Se esse for o caso, vocês podem identifica-la em seu cérebro, em seu
coração, ou em alguma parte de vocês? Apesar de ser impossível de localizá-lo?,
o ódio parece ter uma presença muito concreta que tende a amarrar a mente, a
solidificá-la, e desse modo a desatrelar todo um processo de sofrimento para
vocês e para os outros. Assim como as nuvens que, apesar de serem
insubstanciais para suportar o menor peso, podem encobrir o céu e o sol, do
mesmo modo os pensamentos podem obscurecer o brilho da consciência iluminada.
Reconheçam a vacuidade da mente, sua transparência, e ela retornará por si mesma ao seu estado natural de
liberdade. Reconheça a vacuidade do ódio e ele perderá seu poder de fazer o
mal. Ele se tornará a sabedoria que é como o espelho. Quando falamos da
ignorância, nos referimos ao fato de que não estamos conscientes de nossa
natureza de Budha. Nos comportamos como um mendigo que segura uma joia
preciosa, mas a joga fora porque não sabe do seu valor. É por causa da
ignorância que não acreditamos no karma,
nas consequências inevitáveis de nossos atos. Congelados pela ignorância,
falhamos em reconhecer a vacuidade e persistimos em acreditar na realidade dos
fenômenos. Esta crença é a fonte de todas as percepções ilusórias e é a raiz
das oitenta e quatro mil emoções negativas. Porém, ao contrário das trevas de
uma caverna subterrânea, escondida da luz solar, a ignorância não é eterna.
Como qualquer fenômeno, ela pode emergir apenas na vacuidade e não tem
existência independente. Uma vez que vocês tenham reconhecido sua verdadeira
natureza, a vacuidade, a ignorância se transforma na sabedoria da dimensão
absoluta. Deixados por si mesmos, os pensamentos criam o ciclo das existências.
Na ausência do exame crítico, eles retêm sua realidade aparente, perpetuando o
Samsara com uma força que aumenta cada vez mais. Porém, nenhum deles, seja bom
ou ruim, possui a menor realidade tangível. Todos, sem exceção, são
inteiramente vazios, como arco-íris, imateriais e intocáveis. Nada pode alterar
a natureza de Budha, mesmo quando os véus superficiais a escondem de nossa
visão. Os pensamentos são o jogo da consciência. Eles surgem nela e se
dissolvem nela. Se reconhecermos que esta consciência está na própria origem
dos pensamentos, deveremos compreender que os pensamentos nunca começaram,
continuaram ou deixaram de existir. Neste ponto, os pensamentos são incapazes
de perturbar a mente. Enquanto corrermos atrás de nossos pensamentos, seremos
como o cachorro que corre atrás de uma pedra; não importa quantas pedras
joguemos, ele correrá atrás delas a toda hora. Porém, se olharmos para a
consciência, que está na origem de todos os pensamentos, cada pensamento
surgirá e se dissolverá dentro do espaço dessa consciência, sem gerar outros
pensamentos. Deste modo, seremos como um leão, que não corre atrás da pedra,
mas sim atrás daquele que a jogou (...), e só se joga uma pedra em um leão!
Para conquistar a cidadela não criada da natureza da mente, devemos ir à fonte
e reconhecer a origem dos pensamentos.
De outro modo, um pensamento dará origem a um segundo, então a um terceiro e
assim por diante. Assim, estamos constantemente obcecados pelas memórias do
passado, antecipamos o futuro e perdemos a consciência do momento presente. Vamos
preservar o estado da simplicidade. Se experimentarmos felicidade, sucesso,
abundância e outras condições favoráveis, devemos considera-las como sonhos,
ilusões, e não apegarmos a elas. Se formos golpeados pela doença, calúnia,
destituição ou por outras provações físicas ou morais, devemos evitar ficar
desencorajados, reavivar nossa compaixão e desejar que os sofrimentos de todos
os seres se exaurem pelo nosso sofrimento. Então, em todas as circunstâncias,
sem cair nos estados de euforia ou desespero, vamos permanecer livres, à
vontade da serenidade imperturbável. Se a nossa mente, sendo livre do passado e
do futuro, repousa em um estado de consciência clara, sem ser atraída por
objetos externos ou se preocupar pelas elaborações mentais, ela ficará na simplicidade
primordial. Neste estado, a mão de ferro da vigilância forçada não tem a
necessidade de imobilizar os pensamentos. Diz-se que O Estado de Budha é a
simplicidade natural da mente. Uma vez que tenhamos esta simplicidade, devemos
preservá-la com uma atenção livre de esforço. Devemos assim desfrutar da
liberdade interior, dentro da qual é desnecessário bloquear os pensamentos ou
temer que eles interrompam a meditação. O Estado de Budha parece ser uma meta
distante, virtualmente fora de nosso alcance. Porém, a vacuidade natural de
nossa mente é o Corpo Absoluto, sua expressão luminosa é o Corpo de Êxtase
Perfeito, a compaixão universal que emana dele é o Corpo Manifesto, e a unidade
intrínseca destes três corpos é o Corpo Essencial. Estes quatro corpos do
Budha, ou Kaya, sempre estiveram presentes em nós; é apenas por ignorar a sua
presença que nós os consideramos com sendo uma meta externa. “Minha meditação
está correta? Quando farei progresso? Jamais atingirei o nível de meu mestre
espiritual”. Dividida entre a esperança e a dúvida, nossa mente nunca está em paz. Conforme o nosso humor, um
dia praticamos intensamente e, no dia seguinte, nem tanto. Somos apegado às
experiências agradáveis que emergem do estado de calma mental e desejamos
abandonar a meditação quanto falhamos em tentar reduzir o fluxo de pensamentos.
Esse não é o modo correto de praticar. Qualquer que seja o estado em que nossos
pensamentos estejam, devemos nos aplicar constantemente à prática regular, dia
após dia, observando o movimento de nossos pensamentos e voltando até a origem
deles. Não devemos esperar ser imediatamente capazes de manter, dia e noite, o
fluxo de nossa concentração. Quando começamos a meditar sobre a natureza da
mente, é preferível fazer sessões curtas de meditação, várias vezes pro dia.
Com perseverança, realizamos progressivamente a natureza de nossa mente, e essa
realização se tornará mais firme. Neste estágio, os pensamentos terão perdido o
poder de nos perturbar e de nos subjugar. A vacuidade, a natureza última da
Dharmakaya, o Corpo Absoluto, não é um simples “nada”. Ela possui,
intrinsecamente, a faculdade de conhecer os fenômenos. Esta faculdade é o
aspecto luminoso ou cognitivo do Dharmakaya, cuja expressão é espontânea. O
Dharmakaya não é o produto de causas e condições; é a natureza original da
mente. O reconhecimento desta natureza primordial assemelha-se ao nascer do sol
da sabedoria na noite de ignorância; é dissipada instantaneamente. A claridade
do Dharmakaya não aumenta e diminui como a lua; é com a luz imutável que brilha
no centro do sol. Quando as nuvens se amontoam, a natureza do céu não é
corrompida; e quando as nuvens se dispersam, ela não é melhorada. O céu não se
torna menos ou mais vasto. Ele não muda. É o mesmo com a natureza da mente; ela
não é deteriorada pela chegada dos pensamentos, nem melhorada pelo
desaparecimento deles. A natureza da mente é a vacuidade; sua expressão é a
claridade. Estes dois aspectos são essencialmente, um único aspecto, simples
imagens projetadas para indicar as diversas modalidades da mente. Seria inútil
se apegar em torno da noção de vacuidade e então da claridade, como se fossem
entidades independentes. A natureza última da mente está além de todos os
conceitos, de toda definição e de toda
fragmentação. ”Eu poderia caminhar sobre as nuvens!”, diz uma criança. Mas se
ela alcançasse as nuvens, não encontraria lugar algum para colocar seus pés.
Igulalmente, se não examinarmos os pensamentos, eles apresentam uma aparente
solidez; mas se os examinarmos, nada há lá. Isso é o que é chamado de ser, ao
mesmo tempo, vazio e aparente. A vacuidade da mente não é o nada, nem um estado
de entorpecimento, pois ela possui, por sua própria natureza, uma faculdade
luminosa de conhecimento, que é chamada de consciência, ou consciência
iluminada. Estes dois aspectos, a vacuidade e a Consciência, não podem ser
separados. Eles são essencialmente um, como a superfície do espelho e as
imagens que são refletidas nela. Os pensamentos se manifestam dentro da
vacuidade e são reabsorvidos nela, assim como um rosto que aparece e desaparece
em um espelho; o rosto nunca esteve no espelho, e quando cessa o reflexo, ele
não deixou de existir realmente. O próprio espelho nunca mudou. Assim, antes de
entrarmos no caminho espiritual, permanecemos no assim chamado estado “impuro”
do Samsara, que é, aparentemente, governado pela ignorância. Quando nos
comprometemos a esse caminho, cruzamos por um estado onde a ignorância e a
sabedoria estão misturadas. Ao final, no momento da Iluminação, apenas o
conhecimento puro existe, mas ao longo do caminho desta jornada espiritual,
apesar de aparentemente existir uma transformação, a natureza da mente nunca
mudou; ela não foi corrompida ao entrar no caminho e não foi melhorada na hora
da realização. As qualidades infinitas e inexprimíveis do conhecimento
primordial, o verdadeiro Nirvana, são inerentes à nossa mente. Não é necessário
cria-las, fabricar algo novo. A realização espiritual serve apenas para
revela-las através da purificação, que é o próprio caminho. Finalmente, se
considerarmos do ponto de vista último, estas qualidades são, por si mesmas,
apenas o vazio. Assim, o Samsara é vacuidade, o Nirvana é vacuidade, e,
consequentemente, um não é “mal” e nem o outro é “bom”. Quem realizou a
natureza da mente é livre do impulso de rejeitar o Samsara e de obter o Nirvana. É como uma criança que
contempla o mundo com uma simplicidade inocente, sem conceitos de beleza ou
feiura, de bem ou mal. Ele não é mais vítima de tendências conflitantes, a
fonte dos desejos ou aversões. De nada serve se preocupar com os rompimentos da
vida diária, como uma criança que se alegra ao construir um castelo de areia e
que chora quando ele desmorona. Veja como os seres pueris se jogam nas
dificuldades, como uma borboleta que mergulha na chama de um lampião, para se
apropriarem do que desejam e se libertarem do que odeiam. É melhor deixar o fardo,
que todos estes apegos imaginários trazem, do que suportá-lo em cima de nós. O
Estado de Budha contém, em si mesmo, cinco “corpos” ou aspectos do Estado Búdico: o Corpo Manifesto,
o Corpo de Êxtase Perfeito, o Corpo Absoluto, o Corpo Essencial e o Imutável
Corpo de Diamante. Eles não devem ser buscados fora de nós: eles são
inseparáveis do nosso ser, de nossa mente. Assim que tenhamos reconhecido esta
presença, há um fim para a confusão. Não teremos mais qualquer necessidade de
buscar a Iluminação a partir de fora. O navegante que aportou em uma ilha feita
inteiramente de buscar a Iluminação a partir de fora. O navegante que aportou
em uma ilha feita inteiramente de fino
ouro não irá encontrar uma simples pepita, não importa o quanto procure.
Devemos entender que todas as qualidades do Budha sempre existiram
inerentemente em nosso ser. Dilgo Khyentse Rinpoche (1910- ). http://www.nossacasa.net/shunya/. Abraço. Davi.
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