Cristianismo.
44º sermão alemão do Mestre Eckhart (1260-1328). Título em latim: BEATI
PAUPERES SPIRITU QUIA IPSORUM EST REGNUM CAELORUM. A felicidade abriu sua boca
de sabedoria e afirmou: Mateus 5:3 “Bem aventurados os pobre de espírito, pois
deles é o Reino dos Céus”. Todos os anjos, todos os santos e tudo que foi
nascido deve ficar silente quando a sabedoria do Pai abre Sua boca; pois toda
sabedoria dos anjos e das criaturas é pura loucura diante da sabedoria
insondável de Deus. E foi esta sabedoria que declarou que são abençoados os
pobres. Existem dois tipos de pobreza. A primeira é uma pobreza extrema, e isto
é útil e deve ser muito elogiada naquele que a pratica voluntariamente, por
amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, pois Ele mesmo tinha isto neste terra. Sobre
esta pobreza eu nada mais direi neste momento. Mas existe uma outra pobreza,
uma pobreza que é de natureza interna, e é a esta que se aplicam as palavras de
Nosso Senhor quando ele disse: Bem aventurado os pobres de espírito”. Agora eu
rogo ao mel de suas almas que sejam desta forma para que possam compreender
este sermão: pois que pela verdade eterna eu digo que a menos que sejam como
esta verdade a qual abordaremos neste momento, não será possível que me
compreendam. Algumas pessoas indagaram de mim o que vem a ser a pobreza, e o
que é um homem pobre. Responderei a tal da seguinte forma: O Bispo Alberto diz
que um homem pobre é aquele que se satisfaz com todas as coisas que Deus criou
e isto está bem dito. Mas vamos falar melhor, tomando a pobreza em um sentido
mais elevado. É um pobre aquele que nada quer, que nada sabe e que nada tem.
Falemos neste momento sobre estes três pontos, e eu rogo a vocês que
compreendam esta sabedoria se puderem: mas se não puderem compreender, não
precisam ficar preocupados, porque vou dizer uma tal verdade que muito poucas
pessoas podem compreender. Em primeiro lugar, é um pobre aquele que nada quer.
Existem pessoas que absolutamente não compreendem o que isto quer dizer: são
aqueles que ficam muito apegados a asceticismo (devoto ou contemplativo) e
práticas externas, achando que muito fazem ao se submeter a tais práticas.
Possa Deus lhes ter em compaixão, pois tão pouco compreendem da verdade
divinal. Costumam chamar estas pessoas de santas ou de sagradas por que aparentam
sê-lo externamente, mas eu digo que por dentro nada mais são que bons idiotas,
pois ignoram completamente o que vem a ser a verdade divina. Estas pessoas
dizem que o pobre é aquele que nada deseja e explicam isto da seguinte: A
pessoa deve levar sua vida de tal forma que jamais faça o que quer em nada que
seja, mas deve se esforçar por realizar a maravilhosa vontade de Deus. Está
tudo bem com estas pessoas por que suas intenções são boas, e podemos até
chegar a lhes elogiar estas suas vontades. Possa Deus em sua misericórdia lhes
abrir os reinos dos céus! Mas pela sabedoria de Deus eu afirmo que tais pessoas
não são de forma alguma pobres, nem se parecem mesmo que seja levemente aos
pobres. São muito admirados por aqueles que nada sabem, mas eu digo que não tem
o menor valor, são completos idiotas sem qualquer compreensão que seja da
verdade divina. Talvez até que ganhem os céus por suas boas intenções, mas da
pobreza da qual falaremos agora não tem a menor ideia que seja. Se então, me
perguntassem o que vem a ser o pobre que nada quer, eu diria o seguinte:
Enquanto eu estava ainda em minha primeira causa, eu ainda não tinha nenhum
Deus e era minha própria causa: então eu nada queria e nada desejava, pois eu
era o ser puro e um conhecedor de mim mesmo no gozo da verdade. Então eu queria
a mim e nada queria de mais: o que eu queria eu era, e o que eu era eu queria,
e assim estava eu livre de Deus e de todas as coisas. Mas quando deixei meu
livre arbítrio para trás e recebi meu ser criado, então eu possuía um Deus.
Pois antes que houvessem criaturas, Deus não era “Deus”. Ele era Aquilo que Ele
era. Mas quando as criaturas entraram para a existência e receberam seus seres
criados, então Deus não era “Deus” em Si mesmo, era Ele “Deus” nas criaturas.
Quando dizemos que Deus enquanto “Deus” não é o objetivo supremo das criaturas,
isto quer dizer que o mesmo status elevado é possuído mesmo pela menor das
criaturas de Deus. E se tomássemos como exemplo uma mosca que tivesse a razão,
e que pudesse sondar intelectualmente as profundeza eternas de Deus, do ser de
Deus, do qual ela mesmo proveio, teríamos que dizer que Deus com tudo aquilo
que O torna “Deus” seria incapaz de satisfazer e de realizar aquela mosca!
Portanto rezemos a Deus para que possamos estar livres de Deus, para que
possamos com isto ganhar a verdade e gozá-la eternamente, ali onde o anjo
mais elevado , a mosca e a alma são perfeitamente iguais, ali onde eu me quedei
e queria aquilo que eu era, e era aquilo que queria. Então podemos concluir: se
a pessoa é realmente pobre de vontade, deve querer e desejar tão pouco quanto
queria e desejava enquanto não era ainda. E é desta forma que a pessoa chega a
ser pobre pelo não querer. Em segundo lugar, ele é pobre que nada sabe. Já
dissemos algumas vezes que a pessoa deve viver como se não vivesse nem para si
mesmo, nem pela verdade e nem por Deus sequer. Mas agora faremos diferentemente
e iremos mais além, dizendo: Para que a pessoa possua esta pobreza deve viver
de tal forma que não esteja consciente que não vive para si mesmo, ou
para a verdade, ou para Deus. Deve estar possuído de uma tal falta de todo
conhecimento que nem saiba nem reconheça, nem sinta que Deus habite nele: mais
ainda, deve estar livre de toda compreensão que nele possa existir. Pois que quando
esta pessoa estava no ser eterno de Deus, nada mais habitava nele: o que ali
habitava era ele mesmo. Eis pois por que declaramos que a pessoa deve estar tão
livre de seu próprio conhecimento quanto aquela época em que ele ainda não era.
Esta pessoa deve deixar que Deus funcione como desejar, e ele mesmo nada fazer,
estando inativo. Pois que tudo que vem de Deus é pura atividade: o trabalho
verdadeiro da pessoa é amar e conhecer. Agora a pergunta fica colocada: Onde
reside a bem aventurança pela sua maior parte? Alguns mestres dizem que está no
conhecer e em amar. Pois que existe algo na alma de onde veem tanto o
conhecimento quanto o amor. Mas isto mesmo nem conhece nem ama da forma que o
fazem os poderes da alma. Quem conhece isto, conhece a origem da felicidade.
Isto não tem um antes ou um depois, nem espera que algo venha a si, pois isto
não pode nem ganhar nem perder. E assim isto está privado do conhecimento que
Deus esteja nele funcionando: ao invés isto é apenas si mesmo, gozando a si
mesmo na forma de Deus. É assim que eu digo que a pessoa deve estar quitada e
liberta que nem conheça e nem perceba que Deus esteja nele funcionando: desta
forma a pessoa é pobre. Os mesmos dizem que Deus é um ser, um ser intelectual
que conhece tudo. Mas nós dizemos que Deus não é um ser e que não é
intelectual, e que sequer conhece isto ou aquilo. Assim é que Deus está livre
de todas as coisas, e assim mesmo Ele é todas as coisas. Para ser pobre de
espírito, a pessoa deve estar pobre de todo seu conhecimento não coisa alguma,
nenhum Deus, nenhuma criatura, nem a si mesmo. Isto é necessário, que a pessoa
não deseje conhecer ou compreender qualquer coisa que seja dos trabalhos de
Deus. Assim a pessoa pode chegar a ser pobre de seu próprio conhecimento. Em
terceiro lugar ele é um pobre que nada tem. Muitos existem que dizem que a
perfeição é realizada quando não mais se tem coisa alguma materialmente na
Terra e isto é verdade em um sentido, quando é voluntário. Mas não foi este o
sentido em que o quis mencionar. Eu já disse antes, aquele que é pobre não é
aquele que quer fazer a vontade de Deus, mas aquele que de tal forma vive que
está livre de sua própria vontade e da vontade de Deus, assim como estava
quando ainda não era. Desta pobreza declaramos que é a mais elevada. Em segundo
lugar, dissemos que é o aquele que nada sabe do funcionamento de Deus dentro de
si. Aquele que está tão livre do conhecimento e da compreensão de Deus como
Deus mesmo está de todas as coisas, esta pessoa então tem a pobreza mais pura.
Mas esta terceira pobreza é a mais correta, que é quando a pessoa nada tem, e
da qual vamos discorrer neste momento. Prestem atenção no seguinte! Eu disse
com frequência no passado e eminentes autoridades também o fizeram, que a
pessoa deve estar de tal forma liberta de todas as coisas e de todos os
trabalhos, tanto de dentro como de fora, que possa ser uma casa digna de Deus,
onde Deus possa trabalhar. Agora digamos algo de mais além. Se o homem estiver
livre de todas as criaturas, de Deus e de Si mesmo e se mesmo assim Deus achar
um lugar nele onde possa funcionar, então declaramos que enquanto isto estiver
naquele homem, ele ainda não é pobre na pobreza mais pura. Pois que não é a
intenção de Deus em Seus trabalhos que a pessoa deva achar um lugar dentro de
si onde Deus possa funcionar: pois a pobreza do espírito quer dizer tão livre
de Deus e de todos Seus trabalhos que Deus, se desejar trabalhar na alma, é Ele
mesmo o lugar onde possa funcionar, o que alias Ele faz com a maior satisfação.
Pois que se Deus achar uma pessoa tão pobre, então Deus realiza Seus trabalhos
e a pessoa se queda passiva a Deus, então Deus é o próprio lugar onde funciona,
sendo Deus como é, um trabalhador. É justamente aqui, nesta pobreza, que a
pessoa dá entrada essência eterna que ele foi uma vez, que é agora e que será
por todo sempre. Esta é a palavra de São Paulo em I Coríntios 15:10. Diz ele:
“Tudo o que sou, o sou pela graça de Deus”. Este sermão parece se elevar acima
da graça e do ser e da compreensão e da vontade e de todo desejo, então como
podem ser verdadeiras as palavras de São Paulo? O fato é que são verdadeiras as
palavras de São Paulo: era forçoso que a graça de Deus nele se encontrasse,
pois a graça de Deus causou com que aquilo que em si era acidental se
aperfeiçoasse como essência. Quando a graça terminou seu trabalho, Paulo
permaneceu aquilo que ele era. Assim dizemos que a pessoa deve ser tão pobre
que nem possua nem tenha qualquer lugar onde Deus possa operar. Preservar um
lugar é preservar a distinção. Eis pois que rezo a Deus que me livre de Deus,
pois meu ser essência está acima de Deus, tomando Deus como a origem das
criaturas. Pois naquela essência de Deus na qual Deus se encontra acima de ser
e de distinção, ali eu era eu mesmo e me conhecia a mim mesmo de tal forma que
me constituísse neste homem que aqui está. Portanto eu sou minha própria causa
de acordo com minha essência que é eterna e não de acordo com meu vir a ser,
que é temporal. Portanto sou não nascido, e de acordo com meu modo não nascido,
não poderei jamais morrer. De acordo com meu modo não nascido fui eternamente,
sou agora e serei para todo sempre. Aquilo que sou por virtude do nascimento,
deve por força vir a perecer, já que é mortal. No meu nascimento todas as
coisas também nasceram, e eu era a causa de mim mesmo e de todas as
coisas: se eu o quisesse, não teria sido e todas as coisas não teriam sido. Se
não tivesse sido, Deus também não teria sido. Sou eu a causa de Deus ser Deus:
se não tivesse sido, Deus então não teria também sido Deus. Mas vocês não
precisam saber disto. Um grande mestre disse que seu abandonar corpo e mente é
mais nobre que sua emanação e isto é um fato. Quando flui desde Deus, todas as
criaturas disseram: Eis que Deus existe!, mas isto não pode me fazer abençoado,
pois que através disto eu me percebo como criatura. Mas no meu abandonar corpo
e mente, onde me quedo livre de minha vontade, da vontade de Deus e de todos
seus trabalhos e do próprio Deus mesmo, então me encontro acima de todas as
criaturas e não sou mais nem Deus nem criatura, mas sim aquilo que era, que
deverei para sempre permanecer sendo. Ali é que receberei um selo que me
elevará acima de todos os anjos. Com este selo ganharei uma tal riqueza que não
ficarei contente com Deus enquanto Deus, ou com todos Seus trabalhos divinos:
pois que este abandonar corpo e mente me garante e me confirma que eu e Deus
nada mais somos que uma só coisa. Então é que sou o que era, então não sou nem
crescimento nem decadência, pois que então sou a causa que não se move e que
com isto move todas as demais coisas. Aqui Deus não encontra nenhum lugar no
homem, pois que o homem através de sua pobreza ganha para si mesmo o que ele
foi eternamente, e que deverá para sempre permanecer sendo. Aqui Deus é uma
coisa com o espírito, e esta é a pobreza mais estrita que a pessoa pode
realizar. Se alguém houver que não possa compreender isto que foi dito, não
precisa se preocupar com nada. Pois enquanto a pessoa não for igual a esta
verdade, não pode compreender minhas palavras, pois esta é a verdade nua e crua
que proveio diretamente do coração de Deus. Vivamos nós para experimentar isto
eternamente, a tal nos ajude Deus. Amém. Abraço. Davi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário