Teosofia. Por Jiddu
Krshnamurti (1895-1986). AUTOCONHECIMENTO. São tão colossais os problemas do
mundo, tão extremamente complexos, que, para compreendê-los e resolvê-los,
temos de estuda-los de maneira muito simples e direta; e a simplicidade, a ação
direta não dependem de circunstâncias exteriores nem de nossos preconceitos e
caprichos pessoais. A solução não se encontra em conferências e em projetos,
nem na substituição de velhos por novos líderes etc. A solução encontra-se
evidentemente no criador do problema, no criador de malefícios, do ódio e da
enorme incompreensão existente entre os seres humanos. O criador desse mal,
desses problemas, é o indivíduo, você e eu, não o mundo, tal como o concebemos.
O mundo são as nossas relações com os outros; não é uma coisa separada de você
e de mim; o mundo a sociedade, são as
relações que estabelecemos ou procuramos estabelecer entre nós. Você e eu, por
conseguinte, somos o problema, e não o mundo, porque o mundo é a “projeção” de
nós mesmos, e para compreendê-lo precisamos compreender a nós mesmos. O mundo
não está separado de nós, nós somos o mundo, e nossos problemas são os
problemas do mundo. Nunca é demais reprisar isso; porque temos uma mentalidade
tão indolente; pensamos que os problemas do mundo não nos dizem respeito e têm
de ser resolvidos pelas Nações Unidas (ONU) ou pela substituição dos velhos por
novos líderes. Denotamos uma mentalidade muito elementar ao pensar dessa
maneira, porque somos os responsáveis por essa aterradora miséria e pela
confusão que vai no mundo, por este constante perigo de guerra. Para
transformarmos o mundo, precisamos começar por nós mesmos; e o que é relevante
no começar por nós mesmos é a intenção. A intenção deve ser a de compreendermos
a nós mesmos e não de esperarmos que outros se transformem ou realizem uma
alteração superficial pela revolução da esquerda ou da direita. Importa
compreendermos que essa obrigação é nossa, sua e minha. Porque, por mais
insignificante que seja o mundo em que vivemos, se pudermos nos transformar,
introduzir na existência diária um ponto de vista radicalmente diferente,
então, talvez, venhamos a influir no mundo como um todo, o que é fruto de
nossas relações com os outros, em escala ampliada. Vamos buscar descobrir o
processo da compreensão de nós mesmos, que não é um processo isolado. Ele não
implica retirar-se para longe do mundo, porquanto não se pode viver no
isolamento. Ser é estar em relação, e não existe uma coisa tal como viver no
isolamento. É a falta de relações corretas que gera conflitos, angústias e
lutas. Por menor que seja nosso mundo, se pudermos transformar nossas relações
dentro desse pequeno mundo, essa transformação, qual onda sonora, irá se
dilatando constantemente, no mundo exterior, por mais limitadas que sejam: e
que, se pudermos operar uma transformação ai, não uma transformação
superficial, porém radical, começaremos a transformar o mundo. A verdadeira revolução
não se relaciona com um padrão especial, quer da esquerda, quer da direita; é
uma revolução de valores, uma revolução em que passamos dos valores sensuais
aos que não são sensoriais nem criados por influências ambientais. Para descobrir esses valores verdadeiros, que
devem produzir uma revolução radical, uma transformação ou regeneração, é
imprescindível que compreendamos a nós mesmos. O AUTOCONHECIMENTO é o começo da
sabedoria e por conseguinte o começo da transformação ou regeneração. Para compreendermos
a nós mesmos, é necessária a intenção de compreender, e ai reside nossa
dificuldade. Embora descontentes, quase todos nós desejamos realizar uma
alteração súbita; nosso descontentamento é canalizado no sentido de consecução
de certo resultado. Quando estamos descontentes, procuramos uma ocupação
diferente, ou então sucumbimos ao ambiente. Nosso descontentamento, ao invés de
inflamar-nos de entusiasmo, fazendo-nos investigar a vida, o processo inteiro
da existência, canaliza-se, e, em consequência disso, tornamo-nos medíocres,
perdendo aquele ímpeto, aquela intensidade necessária para compreender o
significado total da existência. Por essa razão, é importante descobrirmos
essas coisas por nós mesmos, visto que o AUTOCONHECIMENTO não nos pode ser dado
por outrem e não se encontra com a ajuda de livro algum. Devemos descobrir, e
para descobrir são necessárias a intenção, a busca, a pesquisa. Enquanto for
débil ou inexistente essa intenção de descobrir, de investigar profundamente, a
mera asserção ou o desejo esporádico de nos esclarecermos sobre nós mesmos
serão de pequeníssima importância. Assim, a transformação do mundo efetua-se
pela transformação do indivíduo porque o indivíduo é o produto e uma parte do
processo total da existência humana. Para nos transformarmos é essencial o
AUTOCONHECIMENTO; se não sabemos o que somos não há base para o pensamento
correto; se não conhecemos não pode haver transformação. Deve o indivíduo
conhecer a si mesmo tal como é, e não como deseja ser, pois isto é apenas um ideal,
e portanto, fictício, imaginário. Só o que é pode ser transformado, e não
aquilo que desejamos ser. Para um indivíduo conhecer a si mesmo, tal como é,
precisa de extraordinária vigilância por parte da mente, porquanto o que é está
sujeito a transformação constante, constante mudança, e para o acompanhar com
presteza não deve a mente estar restringida por nenhum dogma ou crença, nenhuma
norma particular de ação. Se desejamos seguir uma coisa, não há vantagem alguma
em estarmos amarrados. Para o indivíduo conhecer-se a si mesmo, deve ter
lucidez, vigilância, por parte da mente, com inteira independência de todas as
crenças, de toda idealização, uma vez que as crenças e os ideais, só nos
oferecem uma cor, pervertendo o exato percebimento. Se você é ganancioso,
invejoso, violento, o simples fato de nutrir um ideal de não violência, de não
ganância, é de pouco valor. Saber porém, que somos gananciosos ou violentos,
sabe-lo e compreendê-lo, requer um percebimento extraordinário, não é verdade?
Requer honestidade, lucidez de pensamento, ao passo que seguir um ideal
apartado do que é, representa uma fuga, que nos impede de descobrir e de atuar
diretamente sobre o que somos. A compreensão do que somos, não importa como
somos – feios, belos, perversos, malignos – sem disfarce, é o começo da
virtude. A virtude é essencial, porque dá liberdade. É só na virtude que se
pode descobrir que se pode viver – não no cultivo da virtude, que leva só à
respeitabilidade, e não à compreensão e à liberdade. Há diferença entre ser
virtuoso e “vir a ser” virtuoso. O ser virtuoso vem com a compreensão do que é,
ao passo que o “vir a ser” virtuoso é adiamento, ocultação do que é com o que
desejaríamos ser. Por conseguinte, no “vir a ser” virtuosos, evita-se a ação
direta sobre o que é. Esse processo de evitar o que é, pelo cultivo do ideal, é
considerado virtuoso; se o observarmos, porém, muito atenta e diretamente,
veremos que não tem essa qualidade. É um mero adiamento do nosso encontro com o
que é. Virtude não é “vir a ser” o que não é; virtude é compreensão do que é,
portanto, o estado em que estamos livres do que é. A virtude é essencial numa
sociedade que se está desintegrando rapidamente. Para criar um novo mundo, uma
nova estrutura, diversa da velha, é preciso liberdade para descobrir; e para
ser livre, é indispensável a virtude, porque sem virtude não há liberdade. Pode
o homem imoral, que luta para se tornar virtuoso, chegar a conhecer a virtude?
O homem que não é moral nunca pode ser livre e, por conseguinte, nunca
descobrirá o que é a realidade. A realidade só se encontra na compreensão do
que é, para compreender o que é, deve haver liberdade, libertação do medo do
que é. Para compreender esse processo, deve haver a intenção de conhecer o que
é, de seguir cada pensamento, cada sentimento, cada ação. É dificílimo
compreender o que é, porquanto o que é nunca está em repouso, nunca é estático,
está sempre em movimento. O que é é o que você é, e não o que desejaria ser;
não é o ideal, porque o ideal é fictício: é aquilo que você faz, que pensa e
sente, momento por momento. O que é é o fato real, e a compreensão do fato real
requer vigilância, requer uma mente muito atenta e veloz. Mas se começamos
condenando o que é, se começamos reprovando-o ou resistindo-lhe, não
compreenderemos seu movimento. Se desejo compreender alguém, não devo
condená-lo, devo observá-lo, estuda-lo. Devo amar a coisa que estou estudando.
Se desejamos compreender uma criança, devemos amá-la e não condená-la. Devemos
brincar com ela, observar-lhe os movimentos, as idiossincrasias, os modos de
conduta, se apenas a condenamos, se resistimos a ela ou a reprovamos, não pode
haver compreensão da criança. Da mesma forma, para compreendermos o que é,
temos de observar o que pensamos, sentimos e fazemos momento por momento. É
isso que tem existência real. Qualquer outra ação, qualquer ideal ou ação
ideológica, não tem existência real; é um simples desejo, desejo fictício de
sermos diferentes do que é. Para compreender o que é necessita-se de um estado
mental em que não haja identificação ou condenação, o que requer um espírito ao
mesmo tempo alerta e passivo. Achamo-nos nesse estado, quando realmente
desejamos compreender uma coisa; quando há intensidade de interesse, esse
estado mental torna-se existente. Quando estamos interessados em compreender o
que é, compreender o real estado da mente, não precisamos força-la,
discipliná-la ou controla-la; pelo contrário, há uma vigilância, um alertar
passivo. Esse estado de vigilância vem quando existe o interesse, quando existe
a intenção de compreender. A compreensão fundamental de si mesmo não resulta da
aquisição de conhecimentos ou da acumulação de experiências, pois isso é só
cultivo da memória. A compreensão de si mesmo acontece momento por momento: se
apenas acumulamos o conhecimento do “eu”, esse conhecimento impede a
compreensão mais profunda, porque o conhecimento e a experiência acumulados
tornam-se o centro que permite ao pensamento focalizar-se e ter existência. O
mundo não é diferente de nós e de nossas atividades, porque o que somos é o que
cria os problemas do mundo/ a dificuldade, no que respeita à maioria de nós, é
que cria os problemas do mundo; a dificuldade, no que respeita à maioria de
nós, é que não nos conhecemos diretamente, mas queremos um sistema, um método,
um meio de ação, pelo qual possam ser resolvidos os numerosos problemas
humanos. Ora, existe algum meio, algum sistema de nos conhecermos? Qualquer
pessoa talentosa, qualquer filósofo pode inventar um sistema, um método; mas,
naturalmente, a observância de um sistema só produzirá um resultado criado por
esse sistema, não é verdade? Se sigo um determinado método de conhecer a mim
mesmo, terei o resultado que esse sistema necessariamente produz; mas o
resultado, é evidente, não será a compreensão de mim mesmo, quer dizer, se sigo
um método, um sistema, um meio de me conhecer, estou moldando meu pensar,
minhas atividades segundo um padrão, e a observância de um padrão não é
compreensão de si mesmo. Por conseguinte, não há método para alcançar o
AUTOCONHECIMENTO. A busca de método implica invariavelmente o desejo de
alcançar algum resultado, e é isso justamente o que todos nós queremos.
Seguimos a autoridade, se não a de uma pessoa, pelo menos a de um sistema, de
uma ideologia, porque desejamos um resultado que seja satisfatório, que nos dê
segurança. Na realidade não desejamos compreender a nós mesmos, nossos impulsos
e reações, o inteiro processo do nosso pensar, tanto consciente como
inconsciente. Preferimos seguir um sistema que nos garanta um resultado. Seguir
um sistema é invariavelmente o resultado do nosso desejo de segurança, de
certeza, e daí, é claro, não resulta a compreensão de nós mesmos. Quando
seguimos um método, necessitamos de autoridades – instrutor, guru, salvador,
Mestre – que nos garantam o que desejamos, e esse, por certo, não é o caminho
do AUTOCONHECIMENTO. A autoridade impede a compreensão de nós mesmos, não é
verdade? Sob a égide de uma autoridade, de um guia, podemos ter, por algum
tempo, um sentimento de segurança, um sentimento de bem estar, que não é a
compreensão do processo total de nós mesmos. A autoridade, por sua própria
natureza, impede o pleno conhecimento de nós mesmos; por conseguinte, acaba
destruindo a liberdade; e só na liberdade pode haver criação. Só pode haver
criação pelo AUTOCONHECIMENTO. A maioria dentre nós não é criadora; somos
relógios de repetição, meros gramofones a tocar e a retocar certas cantigas da
experiência, certas conclusões e lembranças, nossas próprias ou de outrem. Essa
repetição não constitui um existir criador – mas é o que desejamos. Desejando
estar inteiramente seguros, vivemos em busca de métodos e meios para alcançar
essa segurança e criamos, assim, a espontânea tranquilidade da mente, em que
existe a única possibilidade do estado de criação. Nosso problema resulta, sem
dúvida, de termos perdido o sendo criador. Ser criador não significa pintar
quadros ou escrever poesias e tornar-se famoso. Tal ação não é criadora, mas
simples capacidade de expressar uma ideia, que o público aplaude ou despreza. Não
se devem confundir capacidade e potência criadora. Capacidade não é criação. A
potência criadora é um “estado de ser” inteiramente diferente, não é? É um
estado em que o “eu” está ausente, em que a mente já não é o foco de nossa
experiência, de nossas ambições, de nossos apetites e desejos. A criação não é
um estado contínuo, renova-se a cada momento, é um movimento em que não existe
ou “eu” ou “meu”, em que a mente não se foca em nenhuma experiência particular,
em nenhuma ambição, realização, fim e incentivo. Só quando não existe o “eu”,
pode haver criação – esse único estado de ser em que pode existir a realidade,
a criadora de todas as coisas. Esse estado não se concebe nem se imagina, não
se formula nem se copia, não se alcança por meio de sistema, de filosofia ou de
disciplina alguma; ao contrário, só pode nascer da compreensão do processo
total de nós mesmos. A compreensão de nós mesmos não é um resultado, uma
culminação, é o nos vermos a cada momento, no espelho das relações – em nossas
relações com a propriedade, as coisas, as pessoas e as ideias. Mas achamos
difícil estar alertas, estar vigilantes, e por isso preferimos amortecer nossas
mentes seguindo um método, aceitando autoridades, superstições e teorias que
nos deem satisfação. Desse modo, nossas mentes se tornam lassas, exaustas,
insensíveis. A mente em tais condições nunca se achará em estado de criação.
Esse estado de criação vem tão somente quando o “eu”, que é o processo de
reconhecimento e acumulação, deixa de existir, porque, afinal de contas, a
consciência, como “eu”, é o centro do reconhecimento, e reconhecimento é mero
processo de acumulação de experiência. Todos temos medo de “ser nada”, porque
todos desejamos “ser alguma coisas”. O homem pequeno quer tornar-se um grande
homem, o não virtuosos quer ser virtuoso, o fraco e obscuro anseia pelo poder,
por posição e autoridade. É essa a incessante atividade da mente, que nunca
pode estar quieta para compreender o estado de criação. Para que se possa
transformar o mundo que nos rodeia, esse mundo de angústias, guerras,
desemprego, fome, divisões de classes e confusão extrema, urge operar uma
transformação em nós mesmos. A revolução deve começar dentro de nós mesmos, mas
não de acordo com alguma crença ou ideologia, porque revolução baseada em ideia
ou na observância de determinado padrão, não é, em absoluto, e, obviamente,
revolução. Para que se possa operar uma revolução fundamental em nós mesmos,
temos de compreender o processo integral do nosso pensamento e do nosso
sentimento, nas relações. É essa a única solução para todos os nossos
problemas, pois não é solução o fato de termos mais disciplinas, mais crenças,
mais ideologias e mais instrutores. Se pudermos compreender a nós mesmos, como
somos, de momento em momento, sem processo de acumulação, ganharemos uma
tranquilidade, que não é produto da mente, uma tranquilidade não imaginada e
não cultivada. E é só neste estado de tranquilidade que pode haver criação.
Sociedade Teosófica no Brasil – Brasília – DF. Abraço Davi.
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