Budismo.
Texto do Yogi Kharishnanda Saraswati (1922-2001). Capítulo Oito. A TENTAÇÃO. O
Senhor Budha encaminhou-se novamente para a colossal árvore baniana, sob cuja
folhagem ia ser revelada a Verdade do seu destino. No momento em que se sentou
sob a árvore, caiu a noite. Porém, Mara, o príncipe das trevas, tendo notícia
de que ali estava o Budha, que ele iria libertar os homens e era chegada a hora
de encontrar a Verdade para a salvação do mundo, enviou ordens às potestades do
Mal. Então, os demônios inimigos da Sabedoria e da Luz saíram dos abismos
profundos e se congregaram. Eram Arati, Trishna e Raga, com suas tramas de
paixões, horrores, ignorâncias e concupiscências, com todos os engenhosos
inventos das trevas e do temor, aborrecedores de Budha, cujo espírito tentavam
conturbar. Entre os fragores da tormenta, legiões de demônios se agitaram no
espaço com o ribombar do trovão e relâmpagos ofuscantes, semelhantes a dardos,
que se desprendiam do céu purpúreo. Com estratagemas e conjurações, faziam
aparecer figuras de beleza feiticeira entre a tranquila folhagem, as quais
ressoavam cânticos voluptuosos e murmúrios de amor. Algumas vezes o tentavam
oferecendo-lhe poder: outras, apresentavam-lhe dúvidas sobre a verdade como se
ela fosse ilusão. Chegaram os pecados capitais, os anjos do mal. Primeiro
Attavada, o pecado do egoísmo, que se compraz em contemplar a sua imagem
refletida no Universo como num espelho, lhe diz: Se você é Budha, deixe que os
demais andem nas trevas. Basta que seja invariavelmente você mesmo. Levante-se
e desfrute da felicidade dos deuses, que não sofrem mudança nem derrota nem
luta. Porém, Budha lhe replicou: Em você, a justiça é menosprezível e a
injustiça uma maldição. Vá enganar àqueles que amam a si mesmos. Aproximou-se
depois a pálida dúvida, o pecado irônico, que silvou nos ouvidos do Mestre:
Todas as coisas são ilusões e vã é a ciência de sua vaidade. Você só busca a
sua própria sombra. Levante-se e abandone estes lugares. Não há maior recurso
do que um desdém paciente, e não existe nenhum remédio para o homem, que é
incapaz de deter a roda que gira sem parar. E o Senhor Budha respondeu: Você
nada tem a ver comigo, dúvida insidiosa, o inimigo mais astuto dos homens. Em
terceiro lugar veio a superstição, a feiticeira que se encobre sob o manto da
modesta fé, porém que sempre engana as almas com cerimônias e orações, tendo em
suas mãos as chaves que fecham os infernos e abrem o céu. Disse-lhe a
superstição: Você é audaciosos. Trancafie os nossos livros sagrados, destrua os
nossos deuses, despovoe os templos e
estraçalhe a Lei que mantém os sacerdotes e sustenta os reis. Porém o Budha
respondeu: Você me pede que destrua a forma transitória; porém, a Verdade livre
permanece. Volte para as suas trevas. Depois, adiantou-os galhardamente o mais
ousado tentador. Era Kama, o rei das paixões, que exerce influência até mesmo
sobre os deuses. Era o mestre de amores, o soberano do reino do prazer.
Aproximou-se da árvore, sorridente, com seu arco de ouro enfeitado de flores
vermelhas, e na aljava as setas do desejo e cujas pontas são cinco línguas de
fogo que pungem o coração e ferem mais cruelmente do que dardos envenenados. Acompanhavam-no
cortes de esplêndidas formosuras, de lábios e olhos celestes que sensualmente
louvavam o amor ao som de instrumentos invisíveis e harmoniosos. Era tal o
encanto delas que até a noite parecia suspender o seu curso para ouvi-las, e as
estrelas e a Lua se detiveram atentas à sua carreira, enquanto em seu canto as
beldades recordavam ao Budha as delícias perdidas, e lhe diziam que um mortal
não pode encontrar nos três imensos mundo nada comparável aos perfumados seios
da formosa amante abandonada, nem aos seus rosados mamilos rubros de amor.
Acrescentaram que nada sobrepuja a suave harmonia da forma, que oferece à vista
linhas e encantos da pessoa amada, na indizível harmonia que se encontra de
alma para alma, que faz ferver o nosso sangue e que a vontade adora e deseja
porque sabe que ali está o ótimo, que é o verdadeiro céu onde os mortais são
como deuses, criadores e soberanos, que é o dom dos dons, sempre renovado, e
por ele se podem suportar mil dores. Porque, quem se lembra de ter sofrido quando
era enlaçado por braços ternos e toda a sua vida se fundia num suspiro de
felicidade e num ardente e apaixonado beijo possuía o mundo inteiro? Assim
cantavam com gestos lânguidos, com olhos que soltavam amorosas chamas e com
lábios de sedutores sorrisos. Em sua dança lasciva deixavam entrever os quadris
e coxas como casulos entreabertos que ostentam seus matizes e, no entanto,
ocultam seus corações. Jamais houve para olhos humanos encanto maior do que
aquelas bailarinas noturnas que se aproximava da árvore, cada qual mais
sedutora que a precedente, murmurando: Oh! Excelso Sidharta! Sou sua. Prove de
minha boca e veja se não é deleitosa a minha juventude. Mas ao ver que o
espírito de Budha permanecia inquebrantável, Kama brandiu o seu arco mágico, e
de repente destacou-se do grupo de dançarinas uma figura muito mais bela e
majestosa do que as outras cujo semblante se assemelhava ao da doce Yasodhara.
Seus olhos negros, regados de lágrimas, refletiam paixão extremamente veemente.
Seus braços, abertos para ele, se retorciam de dor; e gemendo suavemente, a
encantadora sombra chamou-o pelo seu nome, dizendo entre suspiros: Meu
príncipe. Estou morrendo porque você me abandonou. Que céu encontrou que seja
comparável ao que gozamos nas margens do límpido Rohim, na Mansão do Prazer;
onde choro por você há já longos e penosos anos? Volte, Sidharta. Oh!, volte!
Ao menos beije-me outra vez em meus lábios, e que ao menos outra vez eu repouse
no seu peito, para que seus sonhos estéreis se desvaneçam. Contemple-me. Não sou
aquela que você ama? Budha respondeu-lhe: Pelo doce amor daquela que desse modo
você lembra, sombra formosa e falsa de vã astúcia, não a maldigo porque você
assumiu uma forma tão querida, ainda que, como todas aparições terrenas, seja
uma ilusão mil vezes enganosa. Desvaneça-se de novo no vazio! Então, ressoou um
grito no bosque, e o tropel sedutor se desvaneceu com as cenas vaporosas.
Capítulo nove. A ILUMINAÇÃO. Afugentado Mara, o Senhor Budha entregou-se à
meditação. Ante os olhos do espírito passaram os males e misérias do mundo,
procedentes das más ações com seus consequentes sofrimentos. Então ele disse: É
verdade que se os homens soubessem antecipadamente o resultado de suas más
ações não as cometeriam; porém, a personalidade é cega e eles continuam sujeitos
aos seus perniciosos desejos. Desejam ardentemente o prazer, e engendram a dor.
Quando a morte destrói sua personalidade, não encontram a paz. Continuam
sujeitos à roda de morte e renascimentos, e aparecem em outra personalidade em
novas existências. Assim continuam movendo-se num círculo, sem poder fugir do
inferno que eles mesmos criaram. Vãos são os prazeres e ineficazes seus
esforços. Ocos como o bambu, e vazios como a bolha de sabão. O mundo está cheio
de pecado e aflição, porque nele domina o erro. Os homens se extraviam porque
pensam que o erra vale mais que a Verdade. E mesmo que vejam a Verdade, os
homens a desprezam pelo erro porque este é no momento mais atraente, embora dê
como resultado a aflição e a infelicidade. Budha começou então a expor a
doutrina do Dharma. O Dharma é a verdade, a lei, a religião. Somente o Dharma
pode livrar-nos do erro, do pecado e da aflição. Ao considerar as causas do
nascimento e da morte, o Bem aventurado reconheceu que a ignorância é a fonte
envenenada de todo o mal, que se encadeia nas doze Vidanas. No princípio da
existência não há conhecimento, e dessa ignorância surgem os apetites da vida
de sensação, que por sua vez engendram as formas orgânicas com os seis campos
de percepção, ou seja, os cinco sentidos e a morte em que os cinco se resumem.
Os seis campos se relacionam com o mundo exterior e, desse contato, provêm a
sensação que tece a rede da personalidade com o apego às coisas materiais. A
personalidade se perpetua nos sucessivos nascimentos que ocasionam dor,
angústia, abatimento, velhice e morte. A causa de toda dor é a ignorância.
Dissipe a ignorância e os apetites que nascem dela se desvanecerão.
Desaparecerá a falsa percepção do mundo material e vocês se livrarão da
concupiscência, do erro, da ilusão, do egoísmo da personalidade, que se
sobrepõem à enfermidade, à velhice, à morte e ao renascimento. O Sábio viu as
quatro nobre verdades que mostram o caminho do Nirvana e o aniquilamento da
personalidade. A primeira nobre verdade é que o sofrimento existe. Sofre-se ao
nascer, ao crescer, ao adoecer e ao morrer. Sofre quem está unido ao que
repugna. Sofre quem se vê forçado a separar-se de quem ama. Sofre quem anela o
que não consegue obter. A segunda nobre verdade é que o sofrimento provém da
concupiscência. O mundo objetivo excita à sensação, e a sensação desperta o
desejo com ânsia de imediata satisfação. O desejo de viver para satisfazer os
desejos da personalidade nos prende nas redes do sofrimento. O prazer sensual é
um acontecimento que resulta em dor. A terceira nobre verdade é que o
sofrimento pode cessar. Quem subjuga a personalidade, livra-se da
concupiscência, e, por conseguinte, do desejo e da dor. A quarta nobre verdade
é que pelo caminho óctuplo chega-se à eliminação do sofrimento. Apenas aquele
que submete sua vontade ao dever salva-se do sofrimento. O homem inteligente
segue o caminho óctuplo e desse modo deixa de sofrer. Eis as oito etapas do
caminho. I. RETA COMPREENSÃO. 2. RETO PROPÓSITO. 3. RETA PALAVRA. 4. RETA
CONDUTA. 5. RETOS MEIOS DE SUBSISTÊNCIA. 6. RETO ESFORÇO. 7. RETA ATENÇÃO. 8.
RETA MEDITAÇÃO. Trilhe-o respeitando o Dharma, isto é, cumprindo o seu dever e
evitando prejudicar outros seres. Pense na lei de causa e efeito, na lei do
Karma que forja o destino do homem, e domine os seus sentimento. Essa é a
doutrina da reta compreensão. Seja benévolo com tudo quanto vive. Extirpe a
maledicência, a inveja e a ira de tal sorte que você se assemelhe ao suave
sopro da brisa. Cuide de seus lábios como se fossem os portais do palácio de um
rei. Que todas as suas palavras sejam francas, sinceras e corteses, como se
você estivesse na presença do rei. Essa é a reta palavra. Que cada uma de suas
ações elimine um vício e estimule uma virtude. Como se entrevê um fio de prata
entre as contas cristalinas de um colar, assim se deve mostrar o amor em toda
boa ação. Essa é a reta conduta. As outras quatro etapas superiores só podem
ser percorridas pelos pés que já não pisam caminhos mundanos. Almas cujas asas
não têm mais plumagem! Não tente voar até o Sol! O ar das regiões inferiores
lhe é suave, e conhecidos e seguros lhes são os caminhos e níveis domésticos a
que você está acostumado. Apenas seres vigorosos podem abandonar o ninho que
cada qual fabricou para si. O amor da mulher e do filho são valiosos. Eu sei
disso. As amizades e os recreios da vida são agradáveis. As compassivas
qualidades de uma conduta virtuosa são úteis. Faça de sua debilidade uma escada
de ouro e eleve-se pela convivência diária com essas ilusões até as verdades
mais dignas de ser amadas. Desse modo, você alcançará cumes mais serenos, a sua
subida será menos penosa, suas culpas não pesarão tanto, e você se fortalecerá
pela vontade para quebrar as ligações dos sentidos e entrar no caminho. Esse é
o Dharma. Essa é a religião. Essa é a Verdade. E o sábio exclamou: Quanto tempo
andei por caminhos errados! Ligado durante muitas vidas pela cadeia dos
desejos, buscando inutilmente a origem da inquietação que tortura o homem, do
egoísmo e da ansiedade inerente à vida terrena, com seu nascimento, suas dores
e sua morte. Porém já o descobri. É a personalidade. Não construam, Oh!
Senhores do Karma, nova casa para mim, porque eu rompi o jugo do pecado e
quebrei o leme da inquietação. Meu espírito entrou no Nirvana. Desvaneceu-se o
desejo. Ali está a personalidade e aqui a Verdade. Onde está a personalidade
não está a Verdade. São incompatíveis. A personalidade é erro transitório do
Samsara, a roda dos nascimentos e mortes; a isoladora separação egoísta, mão da
inveja e do ódio. A personalidade é a insensata avidez e prazeres, o louco afã
dos ilusórios triunfos e da vaidade. Em troca, a verdade se origina da reta
compreensão das coisas; é eternas; é a realidade da existência; é a bem
aventurança que conduz ao reto caminho. A personalidade é uma ilusão, e não há
no mundo nem vício nem pecado que não derive da afirmação da personalidade.
Para alcançar a Verdade é indispensável reconhecer a ilusão da personalidade.
Não é possível caminhar com pés firmes pelo reto caminho sem que se tenha antes
abandonado o embaraçoso lastro das paixões egoístas. A paz perfeita requer o
abandono de toda vaidade. Bem aventurado quem compreende o Dharma. Bem
aventurado o que não prejudica os demais seres humanos. Bem aventurado quem
venceu o pecado e está livre de paixões. Desfruta de completa felicidade quem
vence o egoísmo e a vaidade, porque já é perfeito e santo. Alcançou a suprema
Iluminação. Livro o Evangelho do Budha. Abraço. Davi.
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