sexta-feira, 3 de março de 2017

CRESCIMENTO II



Espiritualidade. Texto de Sri Prem Baba (1951-  ). Capítulo II. CRESCIMENTO II. MECANISMO DE AMORTECIMENTO –  Vamos compreender melhor o que é isso que estou chamando de “amortecedor”. Essa é uma palavra que costumo usar para descrever um processo de anestesia interna. O amortecimento é uma forma de retirar algo do nosso campo de percepção, uma maneira de rebaixar a consciência. Trata-se de um mecanismo de fuga da realidade similar ao processo de negação que descrevi anteriormente, mas que atua na psique humana em momentos e níveis de profundidade diferentes. A negação é quando somos levados a romper com a nossa naturalidade, é uma forma de anestesiar a dor gerada pela ruptura com a nossa essência. A energia que utilizamos para anestesiar essa dor original é a nossa energia vital, o próprio substrato do prazer. Nós utilizamos a própria energia do prazer para amenizar o nosso sofrimento e dessa maneira ocorre uma ligação entre o prazer e o sofrimento. Em outras palavras, passamos a sentir prazer em sofrer. E essa é uma das razões pelas quais o sofrimento se perpetua neste planeta. No amortecimento, a energia é retirada do prazer que determinado objeto ou situação nos traz. O mecanismo é o mesmo, mas trata-se de um nível mais superficial, uma camada sobreposta. Os amortecedores servem para manter no inconsciente aqueles conteúdos que, na infância, foram ali guardados através da negação. Mas justamente por constituírem uma camada mais superficial, eles são mais facilmente identificáveis através da auto observação. Os vícios são os amortecedores mais óbvios, porém qualquer coisa pode se tornar um amortecedor. Qualquer objeto, situação ou coisa que façamos pode ser utilizado dessa maneira. E isso vai depender da nossa atitude perante a vida. A cada situação, temos a chance de escolher se vamos usar o que a vida está nos oferecendo como um amortecedor ou como um despertador da consciência. Sempre temos  a escolha de cultivar o sofrimento ou de aproveitar a situação para crescer e nos libertarmos dele. Essa escolha dependa da nossa maturidade e disposição para tomar as rédeas do nosso próprio destino. Existem diversas classes de amortecedores que têm a função de adormecer diferentes aspectos da consciência. Alguns são mais grosseiros e mais fáceis de identificar, como os vícios em cigarro e álcool, por exemplo. Outros são mais difíceis de identificar, pois, normalmente, se confundem com algo positivo, como o fazer compulsivo e o fazer sem presença. Num mundo em que a corrida pelo sucesso e a competição tornaram-se comportamentos normais, o fazer compulsivo tornou-se uma virtude. Neste mundo, a pessoa que não tem essa compulsão é muitas vezes vista como preguiçosa. Entretanto, assim como a preguiça, o fazer compulsivo pode estar a serviço do adormecimento da consciência. Enquanto a preguiça é uma paralisia, um congelamento interno que tem a função de manter sentimentos negados, o fazer compulsivo é um excesso de movimento que serve para a mesma coisa. O fazer sem presença é outro aspecto do fazer compulsivo. Se você não colocar a alma naquilo que está realizando, essa ação se torna um passatempo. Não importa qual seja a atividade, se não estiver total na ação, ela será apenas uma distração. Nesse sentido, até mesmo o autoconhecimento e a prática espiritual podem ser amortecedores. Aquilo que teria a função de despertar a consciência se torna uma forma de adormecê-la. Isso ocorre quando você repete um mantra e realiza determinados rituais espirituais de forma mecânica, ou quando desenvolve o vício psicanalítico de ficar analisando tudo. Você acha que está presente, mas trata-se de um ato mecânico, um hábito. Pensa estar lúcido, mas na verdade, está cada vez mais longe da realidade – você está fugindo desesperadamente dela. Está preso nos jogos da mente. Quando digo “colocar a alma” na ação, quero dizer que essa ação precisa ser movida por um propósito – o propósito da alma. As pessoas estão fazendo muitas coisas no mundo, mas nenhuma dessas coisas tem conexão com o seu propósito. O fazer tornou-se compulsivo justamente porque está sendo utilizado como um amortecedor da angústia existencial. Esse fazer-se transformou em uma maneira de sobreviver, um passatempo até que a morte chegue. Muitos estão nessa situação, pois se acostumaram e se acomodaram assim. Alguns passarão a vida esquecidos de que, em algum momento, tiveram o sonho de realizar algo. Aqui estou me referindo ao sonho como uma revelação do propósito da alma, como um comando do Eu Superior. Alguns se esquecem de que, algum dia, receberam esse comando e, simplesmente, passam a fazer alguma coisa para sobreviver. Alguns fazem algo para alimentar a máscara e cristalizar o ego, para conquistar poder. Essa ação, no entanto, é compulsiva e completamente desconectada do propósito da alma. É um fazer sem presença. Tudo é realizado pela simples força do hábito. Independentemente da sua natureza, o desejo é o que mantém os vícios e os amortecedores. Ele é um poço sem fundo; quanto mais realizamos, mais temos desejos. Isso ocorre porque eles nascem da carência, e a carência não pode ser suprida de fora para dentro. Ela é um estado emocional no qual acreditamos não ter o que precisamos. O que pode nos libertar desse estado é o reconhecimento de que tudo que estamos buscando compulsivamente fora de nós existe em abundância dentro de nós. Vimos anteriormente que, em algum momento da nossa jornada, nós perdemos a consciência da fonte da vida que nos habita. Essa fonte que nutre e supre todas as nossas necessidades está dentro de nós, mas nos esquecemos dessa verdade. Isso gera uma profunda sensação de falta, que é a carência. E a carência faz com que nos tornemos pedintes enquanto permanecemos sentados sobre um baú de diamantes. Costumo usar o baú como metáfora para a nossa riqueza interior, como um símbolo que representa essa fonte de onde vem tudo de que necessitamos. Ele é o campo da potencialidade pura, um lugar onde tudo é possível e onde nada falta. AMORTECEDORES CLÁSSICOS – Os principais amortecedores que impedem o despertar da consciência são o sexo, o dinheiro e a comida, mas obviamente, esses três elementos são parte da experiência humana na Terra. Na verdade, eles também são instrumentos de desenvolvimento. Entretanto, por causa das distorções, eles se tornam amortecedores. Uma distorção ocorre quando o eu inferior se apropria de algo. Quando o medo e o ódio se apoderam de um instrumento legítimo de desenvolvimento, este se torna nocivo. A comida, o sexo e o poder são forças que foram desvirtuadas e passaram a ser usadas para abrandar as dores e as angústias latentes do ser humano, por isso costumo chamá-los de “amortecedores clássicos”. COMIDA – nossa vida social gira em torno dela. Nossa rotina diária é programada de acordo com as nossas refeições. Comer é uma das principais formas de lazer das pessoas, e uma das poucas fontes de prazer para muita gente. O interessante é ver que, enquanto muitos passam fome, alguns estão sofrendo por não conseguirem comer menos. Alguns vivem em função da falta; outros, em função da fartura de alimento. Poucos compreendem o poder que a comida exerce em nossas vidas, não somente pelas razões que acabei de mencionar, mas também por ela ser o nosso combustível. Nosso corpo é composto pelos alimentos e se move a partir da energia que eles proporcionam. O que comemos transforma-se no nosso corpo e, nesse sentido, nós, literalmente, somos o que comemos. Apesar de a ciência, há pouco tempo, ter conseguido medir a influência do que ingerimos, até mesmo no que diz respeito às mutações genéticas, essa dimensão da vida humana ainda é um mistério para nós. SEXO – uma das grandes compulsões da humanidade . Você pode até não fazer sexo, mas não tira ele da cabeça. Aliás, é justamente por reprimir o desejo sexual que o ser humano tornou-se dependente da pornografia e das distorções da sexualidade. Costumo dizer que a luxúria é a rainha desse mundo. Mas quando falo de luxúria, não estou fazendo um julgamento moral, e sim me referindo ao uso da energia sexual para manipular, dominar e obter poder sobre o outro. Não há nada de errado com o sexo. Ele é natural. O problema está nas distorções e perversões sexuais. Elas são o grande entorpecente. PODER – nosso maior vício é o desejo de poder, principalmente na forma do dinheiro. Não é necessário falar muito para concordarmos que o ser humano é completamente dependente do dinheiro. Se a luxúria é a rainha deste mundo, o dinheiro é o rei. Dinheiro é sinônimo de poder. Através dele, você compra aquilo que deseja, e isso pode incluir indivíduos. As pessoas vivem para ganhar dinheiro, enquanto deveriam ganhar dinheiro para viver. Elas têm muito para gastar, mas não têm tempo para isso. O dinheiro tornou-se o meio e o fim. Para muitos, além de ter dinheiro, sucesso significa também ter um cargo importante, ter influência sobre muitas pessoas ou ter fama. A compreensão sobre os amortecedores é essencial para que possamos tomar consciência daquilo que nos mantém distanciados da verdade. Mas também é importante compreender que não estou julgando ou criticando o uso dessas ferramentas de amortecimento. Entendo que às vezes a dor é tão intensa que você não dá conta. Quando a dor de cabeça é muito forte, normalmente é preciso tomar um analgésico, mas se a dor persiste, é necessário procurar a sua causa. O mesmo ocorre no nível emocional: você utiliza determinado recurso para amortecer a dor até que possa construir uma estrutura emocional sólida capaz de suportá-la. Mas por que o contato com a dor é importante? Porque nesse núcleo de dor está a causa da doença e, portanto, a cura. O problema é quando você se torna viciado no analgésico e não quer mais deixar de usá-lo. Assim, você fecha o acesso ao núcleo da dor e inibe a possibilidade de cura. Estando sob o efeito de anestésicos, a impressão é a de que tudo está bem, de que tudo está “normal”. Você não está sentindo dor e por isso acredita estar saudável, mas na verdade está ficando cada vez mais doente. O vício, não importa qual seja, é um amortecedor que está a serviço da proteção de apegos. Não importa qual seja o seu vício. Ao se tornar um viciado, você está se protegendo e ao mesmo tempo fugindo de alguma coisa. No mais profundo, está fugindo de si mesmo. Por alguma razão, existe um medo de olhar para dentro de si e enxergar a realidade. Talvez você tenha vergonha de alguma coisa. Talvez sinta medo de ver que toda a sua vida foi construída a partir de uma fantasia, uma ficção. O fato é que, em algum momento, para poder lidar com a dor, você criou uma história e passou a viver nela. Essa foi a forma que você encontrou para aliviar a dor por ter sido reprimido, humilhado, esquecido, abandonado, rejeitado (...). Então você se tornou o personagem principal dessa história e passou a acreditar que é esse personagem. Com o passar do tempo, foi se apegando aos elementos da narrativa criada. Boa parte das histórias tem no mínimo três personagens, um herói, um vilão e uma vítima. E dependendo da fase da sua vida, você transita entre esses diferentes papéis. Alguns passam a vida inteira em um único papel, porque, nesse caso, o amortecedor está sendo eficiente. Entretanto, na maioria dos casos, o amortecedor vai perdendo a força, e você precisa mudar de personagem. Há sempre uma necessidade de mudança. Mas estando apegado ao papel, você se sente constantemente ameaçado. Está sempre com medo. E o medo é proporcional à dimensão do seu apego. Quando a vida o convida a fazer uma mudança, ela é vista como um perigo. Mas qual é o perigo? O maior perigo é descobrir que a história que você sempre acreditou ser a sua vida é apenas uma invenção da mente. Os amortecedores são utilizados para anestesiar e ao mesmo tempo para remover o medo. Mas você tem medo de perder as suas conquistas justamente porque elas são os seus anestésicos. As suas feridas ainda estão abertas, uma vez que, não tendo condições de lidar com elas, você precisou negá-las. Você não percebe esse processo interno por causa da anestesia, mas as dores do passado estão lá, influenciando a sua vida atual. Sem ter consciência disso, sua vida é impulsionada pelo passado e suas escolhas atuais são influenciadas por ele. NORMOSE – Certa vez, uma pessoa me perguntou: “Ok, eu estou mesmo viciado. Estou viciado em sexo, em álcool, em pornografia (...). Mas se está tudo bem na minha vida, por que tenho que mudar alguma coisa? Por que eu tenho que ir atrás da dor? Por que não posso continuar assim?” Um dos sintomas mais comuns do profundo amortecimento no qual o ser humano se encontra é a normose, uma doença psíquica cuja principal característica é um estado quase hipnótico no qual a pessoa acredita que tudo está absolutamente “normal”: a corrupção é normal, a violência é normal, contar uma “mentirinha” é norma; a traição conjugal é normal, a competição, o fingimento, a trapaça, o engarrafamento (...). Tudo é “normal”. Os seus relacionamentos são fúteis e não duram mais do que algumas semanas, mas isso é “normal”; você passa mais tempo na internet procurando fotos de mulheres do que com a sua própria companheira, mas isso é “normal”; você não consegue ficar alegre em uma festa sem beber álcool, mas isso é “normal”; o planeta está sendo destruído, os animais estão sendo mortos, o lixo que produzimos está sendo enviado para o espaço, nossos alimentos estão contaminados (...). Mas está tudo bem na vida, porque tudo é “normal”! Então a resposta é sim, você pode continuar vivendo dessa maneira. Durante algum tempo, você pode escolher viver anestesiado, pelo menos até o momento em que o KARMA (uma palavra que tem origem no sânscrito – a língua sagrada falada pelos hindus de antigamente – cuja raiz (Kr) cuja raiz quer dizer fazer ou agir e o sufixo (ma) quer dizer efeito. Em resumo para cada ação há um efeito ou reação) bater à porta, ou seja, até que o efeito das suas ações comece a aparecer na sua vida. E esse efeito pode surgir de diversas maneiras: na forma de uma perda, uma doença, uma depressão, uma compulsão, uma síndrome, um acidente, ou até mesmo como um paixão. Vida é  movimento, e tudo está em constante transformação. Chega o momento em que a vida traz um desafio que faz com que você queira se mover. Durante algum tempo, é provável que você consiga levar a vida com certo nível de amortecimento (aliás, alguns permanecem assim por toda a existência), até que algum acontecimento importante o surpreende e você se assusta. Começa a se sentir desconfortável. Passa a sentir uma angústia, uma inquietude sem explicação. Então surgem os questionamentos em torno do sentido da vida. Você percebe que não é feliz apesar de tudo estar “normal”, de tudo estar “bem”. E quanto mais envelhece mais triste fica, porque toma consciência de que conquistou muitas coisas, mas ainda não conquistou a si mesmo. Quando essa inquietação bate à sua porta, vem a pergunta: “O que eu fiz com a minha vida? Eu construí casas, comprei coisas, adquiri cultura, mas ainda não sei quem sou, não sei por que estou aqui”. Livro Propósito – A Coragem de Ser Quem Somos. Abraço. Davi.

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