Judaísmo. Há 500 anos, no dia 29 de março de 1516, a Sereníssima
República de Veneza determinou que os judeus fossem obrigados a viver numa área
delimitada, que passou a se chamar “Ghetto”. Os judeus de Veneza lá
viveram durante quase 300 anos, até 1797, quando os muros foram derrubados por
Napoleão Bonaparte (1769-1821). A longa e rica história dos judeus de Veneza
será lembrada no decorrer deste ano de 2016 com uma série de eventos
organizados pela comunidade judaica veneziana e a prefeitura da cidade. Apesar
de segregá-los atrás do muro do Gueto, a Sereníssima República de Veneza
demonstrou ao longo de sua história uma relativa tolerância em relação aos
judeus, atraindo para a cidade milhares deles vindos de toda a Europa e do
Levante (região da costa mediterrânea de Gaza a Turquia). Entre os muros do
Gueto passaram importantes personalidades do mundo judaico. Lá foram erguidas
esplêndidas sinagogas e foi em Veneza que se imprimiram milhares de livros
judaicos. O intuito dos organizadores é fazer do lugar usado no passado para
marginalizar os judeus um veículo para a revitalização da, hoje, cada vez menor
comunidade judaica veneziana. Os primórdios. A
Sereníssima República de Veneza, fundada no século VII na Lagoa de Veneza, teve
grande influência política na história europeia. Foi uma grande potência
marítima durante a Idade Média e o Renascimento, dominando o mar Adriático, o
Mediterrâneo e, principalmente, o lucrativo comércio entre a Europa e o
Levante. A Sereníssima Veneza atingiu seu apogeu na primeira metade do século
XV. Na época, seus domínios compreendiam parte da Lombardia, da Ístria, da
Dalmácia e vários territórios no ultramar. O poderio comercial da cidade atraía
mercadores de todos os países da Europa e do Mediterrâneo, inclusive muitos
judeus. De acordo com os historiadores, datam do final do século 10 as
primeiras provas de uma presença judaica em Veneza, apesar de haver indicações
de que seus comerciantes já atuavam na cidade em séculos anteriores. Os
primeiros documentos datam de 945 e 992, quando o Senado proibiu que
embarcações indo ou vindo do Oriente levassem judeus a bordo. Apesar dessa
proibição, eram raras as atitudes anti judaicas por parte da República.
Ludovico Muratori (1672-1750), historiador italiano do século 18,
escreveu em sua obra Dissertazione que, em 1090, o nome “Giudecca” já
era usado na cidade. Há registros de uma audiência concedida, em 1314, pelo
então Doge, dirigente máximo da República de Veneza, um judeu cretense que
levava uma mensagem de seus irmãos de Creta. Mas, até o final do século XIV, a
presença judaica na cidade era temporária e esporádica, apesar da tolerância da
Sereníssima em relação à presença de seus banqueiros e comerciantes. Durante
toda a Idade Média o fato deles possuírem capital era do maior interesse para
os governantes, de modo geral, e Veneza não foi exceção. Eram inúmeras as
vantagens econômicas das cidades que permitiam aos judeus se estabelecerem em
seus domínios. Além do substancial aporte de capital que estimulava a economia,
eles pagavam exorbitantes impostos anuais para concessão da licença de
permanência e de abertura de casas bancárias. E, acima de tudo, os governantes
podiam fixar as taxas de juros e exigir empréstimos em condições favoráveis ou
até livre de juros. Apesar da Igreja Católica proibir aos cristãos emprestar
dinheiro a juros, a necessidade de conseguir empréstimos não desaparecera nem
para os governantes nem para os governados. Ciente dessas vantagens, a
oligarquia veneziana que governava a cidade foi gradualmente se posicionando a
favor da admissão dos judeus, principalmente após as guerras contra Gênova e Chioggia (1378
e 1381) terem esvaziados os cofres do estado. Um dos líderes da Quarantia propôs,
em 1381, a admissão na cidade de prestamistas e, no ano seguinte, foi permitida
a entrada de judeus. Em 1385 foi concedida a primeira “Condotta”, um acordo
entre a República de Veneza e os banqueiros judeus, que lhes dava a permissão
para se estabelecer em Veneza para emprestar dinheiro a juros. O acordo que
tinha a duração de 10 anos detalhava as regras que esses banqueiros deviam
seguir. Entre outras, fixava o salgado imposto anual a ser pago, o número de
bancos que podiam abrir e as taxas de juros que podiam cobrar. Veneza lhes deu
permissão de eleger seus líderes comunitários, mas não de adquirir propriedades
na cidade, exercer atividades artísticas ou artesanais, tampouco de ocupar
cargos públicos ou militares. No ano seguinte, 1386, o Senado lhes concedeu uma
área isolada do Lido onde enterrariam seus mortos. Ainda em 1385, Veneza firmou
um acordo com os banqueiros judeus que viviam em Mestre, situada em terra firme
frente às ilhas de Veneza, para que concedessem empréstimos a taxas favoráveis
às camadas mais pobres da cidade. Com este acordo, a Sereníssima conseguiu
aliviar a pobreza da população e assim reduzir as tensões sociais que tinham
emergido após as guerras, e, ao mesmo tempo, direcionar a hostilidade das
massas contra os prestamistas judeus. A Condotta de 1385, no entanto, não
foi renovada em 1394 sob o pretexto de que os judeus não estavam seguindo as
regras impostas às suas atividades. É provável que por trás dessa atitude
estivesse o temor de sua penetração no comércio. Expulsos de Veneza, os judeus
se espalharam pelas outras cidades da região do Venetto. A política
restritiva que os impedia de viver em Veneza não se estendia a seus domínios no
ultramar e na península italiana. A atitude da República em relação aos judeus
sempre foi ambivalente e era constante a discussão no Senado se deveria ou não
permitir aos banqueiros judeus trabalharem e circularem livremente na cidade.
Receberam a permissão de permanência durante um período de15 dias no mês e os
que viviam em Mestre utilizavam-se dessa concessão para atuar em Veneza. Mas
para serem reconhecidos como judeus já eram obrigados a usar em suas
vestimentas um círculo amarelo. Apesar de oficialmente expulsos, uma série de
decretos revelam que em meados do século XV ainda havia judeus em Veneza. Em
1423, receberam ordem de vender, em um prazo de dois anos, as propriedades que
possuíam na cidade e em 1443 foram proibidos de manter escolas de qualquer
tipo. Por outro lado, em 1430, o Senado determinara que mesmo os judeus de Corfu,
que embarcavam em navios venezianos, deviam portar em suas roupas o círculo
amarelo. Dessa forma estava implicitamente eliminada a proibição de transportar
em navios da República Veneziana judeus e suas mercadorias. Em meados do século
XV verifica-se em toda a Europa uma sensível piora da situação dos judeus.
Entre os fatores que provocaram o clima anti judaico estava a cruzada
contra a usura e contra os judeus travada pelos Frades Menores (franciscanos),
que criaram, em 1462, instituições para emprestar dinheiro isentas de objetivo
de lucro, os Montidi Pietà. Mas, Veneza e Mestre não aceitaram o
estabelecimento dos Monti di Pietá, nem tampouco subordinar suas
relações com os judeus às determinações de 1442 do Papa Eugene IV (1383-1447),
que ordenara a total separação física entre judeus e cristãos. Ademais, a
República tentou evitar em seus domínios, nem sempre com sucesso, a onda de
intolerância e as acusações de assassinato ritual em relação aos judeus que
dominavam a Europa. A criação do Gueto. A Guerra da Liga de
Cambrai foi o momento decisivo na história dos judeus de Veneza. Em dezembro de
1508 formara-se uma coligação militar entre a França, o Sacro Império Romano
Germânico e a Espanha para lutar contra a Sereníssima. Ainda faziam parte da
aliança a Inglaterra, Hungria, Savoia, Ferrara, Mântua e Florença. O Papa Júlio
II (1443-1513) aderiu à Liga em março de 1509, integrando os Estados
Pontifícios. O objetivo da Liga era deter a expansão da República e, se
possível, destruí-la, dividindo os ricos despojos. Em abril de 1509, vendo o
avanço dos exércitos inimigos, judeus que residiam em Mestre e em outras áreas
do Venetto fugiram para Veneza. Esta última assinara em 1503 um
acordo com os banqueiros de Mestre, que lhes permitia refugiar-se na cidade na
eventualidade de uma guerra. O Senado percebeu rapidamente que autorizar a
permanência dos judeus na cidade traria grandes benefícios econômicos e
financeiros à República, extremamente necessários em momento tão difícil.
Apenas para se ter uma ideia, os impostos anuais que os judeus passariam a
pagar sanariam as finanças do Estado. Em 1513, as autoridades concederam ao
banqueiro judeu Anselmo del Banco (AsherMeshullam), de Mestre, e a
seus associados, a autorização de viver e emprestar dinheiro em Veneza. Mas, o
fato da República ter perdido grande parte de seu território e as tropas inimigas
terem chegado até as portas da Lagoa criaram um clima de tensão em relação à
população judaica. Em suas pregações, os franciscanos diziam que a derrota era
o resultado dos pecados cometidos pelos venezianos, o mais sério dos quais era
permitir aos judeus viverem livremente na cidade. Rapidamente surgiram duas
facções sobre a atitude a ser tomada em relação aos incômodos judeus:
expulsá-los ou não? Os argumentos dos que eram contra a expulsão eram
financeiros. Além dos vultosos impostos que pagavam anualmente, eles haviam
disponibilizado, sob a forma de vantajosos empréstimos, grandes e
indispensáveis somas à República. O governo da Sereníssima resolveu o “dilema”
optando por uma segregação em massa. Em 20 de março de 1516, um dos membros do
Conselho, após atacar violentamente os judeus de forma verbal, pediu que fossem
confinados no Ghetto Nuovo, localizado no bairro de São Jerônimo. O
Doge e Conselho aprovaram a solução. Se quisessem continuar a viver em Veneza,
os judeus teriam que viver juntos em uma determinada área, separados do
restante da população. Anselmo del Banco (1450-1530) e outros
banqueiros tentaram, inutilmente, resistir. Em 29 de março um decreto criava o
Gueto de Veneza: “Todos os judeus devem viver juntos, nas casas localizadas ao
redor do pátio que se encontra dentro do gueto na paróquia de San Gerolano e,
para evitar que eles não perambulem à noite nos limites do Ghetto Nuovo e
do Ghetto Vecchio, deverão ser utilizadas duas pontes de acesso (...)
que terão portões que serão abertos pela manhã (...) e fechados à
meia-noite (...) ”. No dia 10 de abril de 1516, setecentos judeus de origem
alemã, Tedeschi, como eram chamados, e também de origem italiana,
mudaram-se para o Gueto Novo. A maioria dos historiadores acredita que a
palavra “ghetto” era uma palavra do dialeto veneziano, usada na época para se
referir às fundições que havia na área. A palavra provém do termo italiano gettare (derramar).
No passado, o Ghetto Nuovo tinha sido usado para despejar
resíduos de fundição de cobre, enquanto oGhetto Vecchio era a zona de
fundição de Veneza. As autoridades “lacraram” o Ghetto Nuovo. Dois
muros foram erguidos e todas as saídas foram fechadas. Portas e janelas que se
abriam para a parte externa foram muradas, ficando abertas apenas as que davam
para o pátio. Durante o dia, os judeus podiam saír, andar e trabalhar
livremente pela cidade, mas sofriam severas penalidades se fossem encontrados
fora do gueto à noite. A Sereníssima decretou, ainda, que os judeus não podiam
ser proprietários das casas onde viviam, nem de qualquer outro estabelecimento.
Era enorme o problema de espaço e, como não tinham permissão para construir
novos prédios, a solução era acrescentar andares acima dos existentes. O
estabelecimento do gueto, no entanto, não implicava um direito automático de
residência, sendo a permissão de permanência na cidade – as Condottas –
negociada a cada 5 anos. Para obtê-la os judeus tinham que oferecer novos
empréstimos e doações ao governo. Como vimos, a atitude dos venezianos em
relação aos judeus sempre foi ambivalente. Enquanto as decisões do Senado eram
influenciadas pelos interesses socioeconômicos da República, a hostilidade em
relação aos judeus estava presente no cotidiano da população. Em 1537, o novo
acordo que elevou para 10 anos o direito de permanência foi mais um marco na
história judaica de Veneza. Apesar das tensões, das periódicas ameaças de
expulsão e da sistemática chantagem financeira pelas autoridades, estava
garantida a permanência legal de seus membros na cidade. Iniciava-se, assim, um
período de estabilização e florescimento da vida judaica, pois, embora
segregados por trás dos muros do gueto, em Veneza viviam melhor que qualquer
outro lugar da Europa. Uma análise dos termos das Condottas concedidas
aos judeus asquenazitas mostra que, ao longo das décadas, novas
cláusulas foram incluídas. A mais importante se refere à mudança de atitude em
relação ao tipo de empréstimos que eles eram obrigados a disponibilizar. O
governo aumentara sua participação como fonte de crédito para os pobres,
reduzindo as taxas de juros que podiam ser cobradas e aumentando o número de
casas de penhores que deviam estar disponíveis para a população cristã. Essa
atitude fez com que mudasse o perfil da atividade financeira, passando de uma
atividade voluntária de alguns poucos banqueiros ricos para se transformar em
uma responsabilidade imposta à comunidade judaica. Como a inadimplência das
camadas mais pobres era grande, os judeus que viviam em Veneza não tinham como
arcar com os custos das casas de penhores e viram-se forçados a apelar para
seus correligionários de Mestre, que passaram a contribuir financeiramente. A
chegada dos judeus ibéricos. Após a expulsão dos judeus da Espanha, em
1492, e de Portugal, em 1496, muitos dos viajantes que passavam por Veneza eram
judeus e conversos ibéricos. Alguns se estabeleceram na cidade, enquanto outros
ficavam algum tempo antes de seguir para o Império Otomano. Esses mercadores
ibéricos que se estabeleceram em Veneza passaram a ser chamados de “Levantini”.
A República não tardou em reconhecer o poder econômico dos levantinos e quando
eles se queixaram das difíceis condições em que eram obrigados a viver, no Ghetto Nuovo,
em virtude da falta de espaço, o Senado lhes concedeu, em junho de 1541, uma
área adjacente, chamada de Ghetto Vecchio. Embora o governo veneziano
fosse católico e preocupado com a fé da população, não se importou com o fato
de que inúmeros conversos ibéricos, logo ao chegar a Veneza, tenham ido direto
para o Gueto e lá passado a viver abertamente como judeus. Ao menos
oficialmente, não tolerava os conversos que viviam fora do Gueto, fazendo-se
passar por católicos, enquanto praticavam secretamente o judaísmo. Apesar do
Papa ter advertido repetidamente a República sobre a presença na cidade de
cristãos novos (judeus) que haviam voltado a seguir abertamente o judaísmo,
Veneza manteve grande tolerância em relação aos judeus e aos conversos que
chegaram à cidade. Até mesmo o estabelecimento do Tribunal da Inquisição Romana
moderna, criada em 1542 e subordinada ao Vaticano, provou ser difícil. A Igreja
e Veneza bateram de frente, divergindo em relação à função, gestão e composição
da nova instituição e atitude da Sereníssima em relação aos judeus. Somente em
1548, uma relutante Veneza cedeu às pressões papais e a Inquisição se instala
na cidade. E, uma única vez no século XVI, no ano de 1550, aparentemente por
pressões do imperador Carlos V (1500-1558), o governo veneziano agiu contra os conversos
ibéricos, proibindo-os de se estabelecer nos domínios da República. A medida
foi de curta duração e, apesar da pressão do núncio papal e da Inquisição, a
cidade continuou a servir de refúgio para os que queriam voltar ao judaísmo. A
causa dos mercadores conversos foi defendida perante o Senado veneziano, em
1579, por Daniel Rodriga, um abastado judeu português que ajudara Veneza a
abrir o porto de Split. Rodriga apresentou uma série de projetos que tinham
como objetivo restaurar o então decadente comércio marítimo da cidade, ao passo
que simultaneamente beneficiava os mercadores judeus e, acima de tudo, lhes
obtinha privilégios em Veneza. Rodriga apontou para o fato de que era vasta a
rede de contatos dos conversos ibéricos nos portos do Mediterrâneo e que se
lhes fossem oferecidas garantias de segurança, esses comerciantes trariam suas
mercadorias para a cidade, aumentando sua receita alfandegária e permitindo que
Veneza tivesse crescimento econômico e mantivesse sua função de entreposto
comercial. Transcorridos vários anos, no fim, a persistência de Rodriga foi
recompensada. A guerra travada por Veneza contra o Império Otomano esvaziara os
cofres públicos. O comércio marítimo estava moribundo, pois se tornara
arriscado devido à pirataria, e a nobreza veneziana recusava-se a enfrentar os
novos perigos. Em 1589, diante do declínio comercial, o Senado promulgou uma
nova Condotta. Esse acordo dava aos comerciantes conversos da Península
Ibérica, chamados de “ponentinos”, a permissão de residir em Veneza e praticar
seu judaísmo abertamente, dando-lhes também imunidade em relação à Inquisição
sobre seu passado. A Condotta estendia a permissão de permanência aos
judeus “levantinos”. Caberia a esses dois grupos atuar no comércio entre Veneza
e o Levante. A nova Condotta mantinha sua obrigação de viverem no
Gueto e a proibição de estarem fora de seus muros à noite. Somente médicos em
atendimento a cristãos, mercadores que tinham compromissos de trabalho ou
judeus em situação de emergência podiam ausentar-se do Gueto durante a noite.
Era também obrigatório o uso do chapéu amarelo, um elemento importante na
política de segregação adotada pelo governo. Com o tempo, a cor passou a ser
vermelha, embora os levantinos continuassem a usar o amarelo. O florescimento comercial
decorrente da presença dos sefaraditas na cidade fez com que Veneza
lhes concedesse sucessivas Condottas. A riqueza dos judeus da Nação
Levantina Ponentina tornou-se famosa em toda a Europa. Em 1607, um
cronista inglês ao descrever os sefaraditas de Veneza disse: “(...).
Entre muitas mulheres judias, algumas eram as mais lindas que vi em minha vida
(...) e tão elegantes com seus vestidos (...) suas correntes de ouro e seus
anéis com pedras preciosas, com as quais as condessas inglesas teriam dificuldades
de competir (...)”. Em 1633, os judeus garantiram ao governo veneziano que mais
mercadores viriam para Veneza se lhes fosse concedido um lugar adequado para
viver. As autoridades então cederam uma área com 20 moradias ao longo do canal,
a partir do Gueto Novo em direção quase oposta ao Gueto Velho, local que viria
a ser conhecido como Gueto Novíssimo. Havia uma diferença fundamental em
relação aos outros dois. Enquanto a denominação dos outros dois era usada antes
do estabelecimento dos judeus e devem sua origem a uma antiga fundição que lá
existira, o Gueto Novíssimo jamais foi associado a qualquer fundição. Foi assim
chamado por ser o novo bairro judaico compulsório. Assim, o termo ghetto fechava
o círculo na cidade de sua origem: desde seu uso original específico como
fundição em Veneza, até o uso genérico lá e em outras cidades para designar uma
região segregada, delimitada e compulsória de moradia judaica. A vida
no gueto. Dentro do gueto, no perímetro composto por três bairros
interligados - Ghetto Nuovo, Vecchio e Nuovissimo - os
judeus criaram uma comunidade heterogênea composta por asquenazitas alemães,
italianos, franceses, levantinos, espanhóis e portugueses, assim como conversos
e visitantes chegados de todas as partes do mundo judaico. A falta de espaço
era um problema geral. De acordo com os dados mais conservadores, em 1560 havia
1.424 judeus que lá viviam. No final do século eram em torno de 2 mil,
aproximadamente 1,5% da população total da cidade; chegando a 4-5 mil em meados
do século 17. Impossibilitado de se expandir horizontalmente, o gueto cresceu
verticalmente. Os prédios tornaram-se mais altos e, os apartamentos, menores.
Andares eram construídos acima dos já existentes e as casas de 2 pisos viram-se
acrescidas de até 8 andares. Se a riqueza dividia o gueto
horizontalmente, determinando em que andar alguém podia viver e de quantos
metros podia dispor, a origem dos que nele viviam o dividia verticalmente. Para
as autoridades venezianas, a comunidade judaica era separada em duas Nações, cada
uma sendo regulamentada porCondottas específicas: os alemães e os
levantinos ponentinos. Mas, esta divisão oficial não refletia a
complexidade da comunidade. A Nação Alemã incluía, além de judeus asquenazitas originários
de países de língua alemã, também italianos e franceses. E, os levantinos e os ponentinos eram
comunidades independentes. As sinagogas, chamadas de Scuole (literalmente,
escolas, “casas de ensino”), constituíam o centro da vida do judeu veneziano do
gueto. Intramuros, cada grupo estabeleceu sua sinagoga, centro de convergência
e principal manifestação de sua identidade. As cinco principais
sinagogas do gueto são em estilo barroco-renascentista e retratam a Idade de
Ouro do judaísmo veneziano. As fachadas são discretas, mas os interiores,
suntuosos, apesar do uso de materiais “nobres”, como o mármore, ser proibido
pelas autoridades, que permitiam apenas os considerados “pobres”, como a
madeira, e as pinturas trompe l’oeil, imitando o marmorizado. As primeiras
sinagogas do Ghetto Nuovo foram construídas nos andares mais
altos, em parte por questões de segurança, mas também porque a solução atendia
as especificações da lei judaica e as determinações da Sereníssima. Três
sinagogas estão localizadas no Gueto Novo. Duas eram de rito asquenazita:
a Scuola Grande Tedesca, a primeira sinagoga a ser inaugurada,
em 1528-29, e a Scuola Canton, erguida em 1531-32, que provavelmente
foi fundada por judeus da Provença, que decidiram separar-se dos alemães. A Scuola Italiana,
a terceira, foi fundada em 1575 e congregava os judeus italianos que seguiam
seu próprio rito. É no Ghetto Vecchio, no Campiello delle Scuole,
que estão localizadas as duas sinagogas sefaraditas:a Scuola Grande Spagla,
dos ponentinos, e a Scuola Levantina. A elegância exterior e a
suntuosidade do interior das duas refletem a estabilidade e riqueza vivida
pelos judeus de Veneza, no século XVII. Segundo a tradição oral, a sinagoga dos
levantinos foi erguida em 1538, três anos antes do ingresso oficial dos judeus
dessa origem no gueto. Um documento de 1680 atesta a demolição da estrutura
antiga para a construção de outra com maiores dimensões. A Scuola Spagnola,
oficialmente chamada deKahal Kadosh Talmud Torá, é a maior, mais
suntuosa e mais conhecida dentre as sinagogas venezianas. Serviu como modelo
para a comunidade sefaradita de Amsterdã. Apesar de não haver
documentos que atestem a data, acredita-se ter sido fundada por volta de 1580 e
reconstruída, de acordo com a tradição oral, em 1635. No gueto de
Veneza viveram algumas personalidades religiosas de destaque, sendo a mais
conhecida o rabino Leon Modena (1571-1648), autor de inúmeros trabalhos, entre
os quais uma autobiografia em hebraico, que revela o cotidiano e as práticas
religiosas dos judeus de Veneza de sua época, inclusive seu vasto
relacionamento com seus vizinhos cristãos. Outra personalidade
importante, contemporânea de Modena, foi o rabino Simone Luzzatto (1583-1663).
Ele é lembrado principalmente por seu Discorso sopra il stato degl’Ebrei et
in particular demoranti nel’inclita citti di Venetia (Discurso
do Status dos Judeus e em Particular dos que Viviam na Ilustre Cidade de
Veneza,1638). Escrito em italiano e dirigido à nobreza veneziana, tinha como
objetivo evitar a expulsão dos judeus. Em sua obra, Luzatto revela
informações importantes sobre a situação econômica e comercial de seus
correligionários. Também foi significativa em Veneza, a presença de
renomados médicos judeus, atraídos pela proximidade com a Escola de Medicina de
Pádua. O fato da Escola admitir estudantes judeus era de grande importância por
ser considerada a melhor da Europa no gênero. Impressão em hebraico. Veneza
emergiu no século 16 como um dos principais centros de impressão não apenas em
italiano, latim e grego, mas também em hebraico, judeo-italiano, ladino e
iídiche. Teve, de fato, um importante papel nos primórdios da história da
imprensa e editoração em hebraico, tendo contribuído amplamente para a educação
e cultura judaica. Um dos principais editores de livros em
hebraico, na Veneza renascentista, foi Daniel Bomberg, um cristão da
Antuérpia, que imprimiu importantes obras nesse idioma. Em 1516, Bomberg publicou
o Pentateuco, a primeira de uma longa série de publicações que fariam dele um
dos maiores editores de sua época. De suma importância foi também a publicação
da edição completa do Talmud Babilônico (1520-1523) com comentários
de Rashi e de Tosafistas, cujo formato e paginação serviu de
modelo para publicações posteriores, bem como do Talmud de Jerusalém.
Por mais de 30 anos, segundo escreveu em sua obra Cecil Roth, os livros
judaicos continuaram a ser publicados. “É difícil dizer se eles eram mais dignos
de louvor pela finura do papel, a beleza das letras ou a excelência da
matéria”. Um dos raros momentos de harmonia entre a Igreja e a
República levou, em 21 de outubro de 1553, à queima de livros hebraicos na
Praça São Marcos, o que foi uma grande perda para a comunidade judaica e para
os editores cristãos. Os judeus de Veneza não aceitaram passivamente a
proibição da Igreja em relação aos livros judaicos e, com pressões e doações,
obtiveram certa flexibilidade no decreto papal. Em outubro de 1554, um decreto
do Papa Julius III interrompeu a “caça” aos livros judaicos, permitindo
novamente a posse de obras em hebraico. Como resultado da medida
papal, em 1560, em Veneza, editores reiniciaram suas atividades. Estima-se que
dos 3.986 livros hebraicos impressos na Europa antes de 1650, cerca de um
terço, 1.284, tenham sido impressos em Veneza. O declínio No
século 18, tanto a Sereníssima quanto a comunidade judaica viram seu poderio
econômico diminuir drasticamente. A peste bubônica que se abateu sobre Veneza
em 1630 e resultou na morte de 50 mil pessoas, um terço da população, afetou as
condições sócio econômicas da cidade. Particularmente impactados foram os
grandes comerciantes judeus que, devido ao medo de infecção, tiveram que
suspender a importação e exportação de mercadorias, e viram seus estoques serem
queimados. Se não bastasse, foram obrigados a pagar exorbitantes novos
impostos. Para piorar a situação, em 1645,Veneza e o Império otomano voltaram a
se enfrentar militarmente, travando ainda mais o comércio marítimo. O
longo período de crise foi desastroso para toda a população, cuja pobreza
cresceu, criando uma grande pressão sobre os bancos pertencentes aos judeus. O
governo veneziano tinha grande preocupação, sobretudo porque precisava de uma
comunidade judaica em bom estado de solvência para operar as casas de penhores.
A crise nos bancos causara uma sangria financeira na comunidade judaica nos
últimos 30 anos do século XVII, criando uma situação paradoxal: suas dívidas
constituíam uma blindagem mais poderosa contra a expulsão do que toda a sua
riqueza passada. Consequentemente, em 1722 as autoridades criaram o Magistrado
do Inquisitorato sopra l’Universitá a degliEbrei, com
o objetivo de restaurar e manter a liquidez da comunidade. Durante o restante
do século, esse Magistrado criou, juntamente com o Senado, uma serie de
regulamentos na tentativa de promover o funcionamento das casas de penhores,
como forma de conseguir a liquidação das dívidas substanciais da comunidade
judaica com cristãos venezianos e outras comunidades judaicas de Amsterdã, Haia
e Londres. As autoridades queriam com isso restaurar a capacidade de liquidez
da comunidade judaica, mas acabaram supervisionando de perto todos os aspectos
diários de seus negócios financeiros. Em 1738, as Condottas concedidas
aos judeus alemães, levantinos e ponentinos, até então em separados, foram
unificadas por mais 10 anos. A medida era mais do que necessária, pois as
distintas atividades econômicas e responsabilidades referentes aos dois grupos
de judeus haviam-se fundido com o passar do tempo. Há muito, os mercadores
judeus vinham fazendo pagamentos contribuindo financeiramente com as casas dos
penhores dos judeus alemães e, desde 1634, estes tinham participação no
comércio marítimo com o Levante. Em 1797, vendo o avanço das tropas
de Napoleão, a comunidade judaica oferece prata e ouro à República num último
esforço para salvar Veneza. No dia 6 de abril, o Senado veneziano lhes emite um
decreto de agradecimento, um dos últimos atos da Sereníssima. Em maio,
os exércitos franceses já estavam às margens da Lagoa e a República veneziana
se autodissolveu. No dia 12 de maio, a cidade foi entregue a Napoleão. No
dia 7 de julho, o governo municipal, que assumira o governo, ordenou que os
portões do Gueto fossem derrubados e removidas todas as diferenças e separações
entre os judeus e o restante da população. No pátio do Gueto Novo os judeus
cantaram e dançaram comemorando sua liberdade e a chegada de Napoleão. A
história do Ghetto chegara ao fim, iniciando-se a história dos judeus
venezianos como cidadãos – uma história ainda conturbada. Apesar de nunca mais
terem que morar no gueto, os judeus só foram definitivamente emancipados,
passando a usufruir de igualdade de direitos com os demais segmentos da
população, em 1866, quando Veneza passa a fazer parte do Reino de Itália. www.morasha.com.br. Abraço. Davi.
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