quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Uma Sincera Amizade.



Texto da escritora e poetisa ucraniana brasileira Clarice Lispector (1920-1977). Uma Amizade Sincera. "Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada. Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seus amores. Experimentávamos ficar calados — mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos. Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir um vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo. Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto — eis nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade. Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação. Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo. Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco. Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou. Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias. Data dessas férias o começo da verdadeira aflição. Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos. É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tomamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade — posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão. Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar. Encerrada a questão com a Prefeitura — seja dito de passagem, com vitória nossa — continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa. Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos. A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso ADEUS no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que ÉRAMOS AMIGOS. AMIGOS SINCEROS".  http://www.poesiaspoemaseversos.com.br. Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, Ucrânia. Depois passou junto com a família pela Bulgária, Rússia, Alemanha e finalmente em 1922 chega ao Brasil. É conhecida por sua franqueza, coragem e sinceridade. Gostava de dizer o que pensava nos momentos oportunos, prezando os ambientes onde se encontrava. Atenta a vida nacional de sua época e contextualizada com as transformações sociais no mundo, procurava com sutilidade introduzir seus pontos de vista através da sua poesia e textos literários. Esse que acabamos que ler mostra um pouco sua extrema sensibilidade quando o assunto diz respeito as emoções e sentimentos. A primeira metade do século XX foi uma época de agitação política e manifestações reivindicatória. Como exemplo temos as diferenças entre a burguesia (patrões) e o proletariado (trabalhadores), ascensão do capitalismo, surgimento dos movimentos artísticos: expressionismo, cubismo, abstracionismo, surrealismo; legislações trabalhistas e emancipação feminina. O último liderado pela filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986) teve reverberação nos escritos de Clarice. Sua obra Felicidade Clandestina mostra a interioridade humana, sua busca por desejos insatisfeitos e comportamentos descobertos que clareiam o horizonte da realização e felicidade. A condição feminina é avaliada em vários episódios descritos nessa obra trazendo a esperança de que a mulher com seu poder de superação e coragem alcançará seu lugar preterido nos extratos sociais, minimizando sua condição até aquela época de inferioridade em relação ao homem. Os escritos da Clarice por serem filosóficos e poéticos trazem dificuldades na sua interpretação. O raciocínio ilumina algum pontos, mas precisamos usar a abstração e imaginação para decifrar seus mistérios, como ela mesmo disse: "sou tão misteriosa que nem eu me entendo". O tema dessa "dissertação" é a amizade, entretanto, bem diferente daquilo que costumamos entender como amizade. Parece claro que a contrariedade e obstáculo estão presentes nos relacionamentos que envolvem os homens e mulheres. A idealização da amizade como sonho onírico de paz e segurança está longe de ser alcançada na perspectiva da argumentação de Clarice, quando diz "solidão de um ao lado do outro". Mesmo numa amizade sincera teremos a sensação de algo que não foi preenchido, isso depreende-se no momento em que ela se expressa: "eu começava a me sentir um vazio". Podemos inferir que a "amizade sincera" não pressupõe a presença do outro como indispensável. Até chega-se a cogitar que o afastamento, o distanciamento do "objeto" desejado é um sinal positivo dum relacionamento duradouro. A frase: "não queríamos nos rever. E sabíamos que éramos amigos", traz essa conotação. Aqui estamos pensando em amigos e não em casais comprometidos pelo "matrimônio" ou ajuntamento concordemente pactuado entre ambos seja homo ou hétero sexual. O sentimento de Clarice na esperança de um reencontro, poeticamente, está na frase "um aperto de mão comovido foi o nosso adeus  no aeroporto". Aqui é uma figura de linguagem chamada antífrase que consiste em afirmar exatamente o contrário do que foi falado. A partida tinha uma esperança de chegada. O nível elevado de amizade expressa o desapego e renúncia pelo outro. Um “amor” desprovido de interesse, sem egoísmo e nem possessivo, tendo o objetivo de manifestar o altruísmo e abnegação em atitudes, palavras e pensamentos. O apego é o contrário do amor. "Após a sua iluminação, Nirvana, o Budha começou a ensinar exatamente a partir de onde estamos. Ele disse: a vida do jeito que levamos não é satisfatória. Há uma falta interior, um vazio interior; um sentimento interior de falta de sentido que não se pode preencher com coisas ou pessoas. Qual é a causa desta instabilidade inerente, nesse sentido inerente de insatisfação que nos corrói? O Budha ensinou que a razão essencial para esta doença dentro de nós é o nosso apego. Nossa mente cheia de desejos que são baseados em nossa ignorância essencial". A amizade é simples, desimpedida, sem interesse ou recompensa por qualquer "serviço" realizado. A única glória é a disposição em se dar manifestada no amor e compaixão. "Certa vez o discípulo Ananda aproximou-se do Budha e comentou que: metade do caminho está baseado em amizade, companhia e associação com o bem. E o Budha assim respondeu: Ananda, não diga isto. Não meio, mas todo o caminho é estabelecido em amizade, companhia e associação com o bem. Essa passagem demonstra muito bem a ênfase colocada na amizade espiritual". Um companheirismo que propicia a evolução espiritual daqueles que estão envolvidos no relacionamento de progresso e desenvolvimento da interioridade manifestada em nossa individualidade superior como parte do Supremo Ser. A escritora compreendeu bem o conceito de amizade que foge ao racional, precisando da imaginação ponderada para um entendimento claro e evidente. A poetisa aborda a delicada noção de homoafetividade ao dizer que "dei um pequeno broche de ouro aquela que é hoje minha mulher". Esse assunto na segunda metade do século XX era um tabu não ousando ser explanado em círculos sociais pois carregava uma forte motivação discriminatória, inclusive com violência física e moral ao portador desse gênero sexual. Mas Clarice não escondia sua opção sexual dos amigos e dos leitores que apreciavam sua obra. Conforme fala Norma Curi: "diziam que Clarice era sensual como Marlene Dietrich (1901-1992), escrevia como Virgínia Wolf, (1882-1941) era herdeira de Franz Kafka (1883-1924) e melhor que Jorge Luis Borges (1889-1986). Era nativa e estrangeira, judia e cristã, bicho e pessoa, homoafetiva e dona de casa, homem e mulher, bruxa e santa. Clarice veio de um mistério e partiu de outro". Abraço. Davi.  

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