Budismo Nitiren Daishonin. Por Daisaku Ikeda (1928- ). Eu tenho um espelho que sempre mantenho
comigo. Realmente, não é nada mais do que um pedaço de vidro quebrado do
tamanho de um palmo. Um pedaço de espelho quebrado, o tipo de objeto que
provavelmente pode ser encontrado em qualquer lata de lixo. Mas, para mim, pode
ser qualquer coisa, menos lixo. Quando a minha mãe se casou, ela o trouxe como
parte do seu enxoval, uma penteadeira com um belo espelho embutido. Quantas
vezes a sua jovem face de noiva não foi refletida neste espelho. Entretanto,
após vinte anos, o espelho se quebrou e meu irmão mais velho, Kiichi e eu,
separamos os cacos e ficamos com os dois pedaços maiores. Pouco depois, a
guerra teve início. Meus quatro irmãos mais velhos, um por um, foram convocados
para a batalha, alguns foram para a China, outros para o Sudeste Asiático. Eu
senti uma grande repulsa contra os esforços em prol da guerra. Meus quatro
irmãos - que estavam no auge de suas vidas, prontos para trabalharem e
contribuírem para nossa família - foram tirados de nós, em sucessão, por um
simples pedaço de papel – o comunicado de convocação. Eu nunca esquecerei
o desgosto e raiva com que Kiichi, ao deixar a China, descrevia as atrocidades
desumanas que ele presenciou serem cometidas pelo Exército Japonês. O Japão
estava errado, ele dizia, sentindo pena do povo chinês. Assim, eu cultivei um
profundo ódio pela guerra, sua crueldade, estupidez e inutilidade.
Tragicamente, a Guerra do Pacífico presenciou o crescente e selvagem
nacionalismo japonês em toda a Ásia. Os japoneses se tornaram emissários
do inferno, trazendo a dor e o sofrimento irreparável tanto para os nossos
vizinhos asiáticos, como para o próprio povo japonês. Nós nunca devemos
esquecer as terríveis crueldades que foram infringidas sobre o belo país das
Filipinas. Eu ofereço as minhas sinceras desculpas pela incalculável miséria
causada pelos militares japoneses daquela época. Minha mãe, cujos quatro
filhos mais velhos foram tirados dela, tentava não mostrar sua dor, mas ela
pareceu ter envelhecido repentinamente. Então, os ataques aéreos tiveram
início sobre Tóquio e em pouco tempo, se tornou algo diário. Eu mantive meu
pedaço de espelho sempre comigo, guardando-o carinhosamente dentro da minha
camisa, ao me esquivar dos bombardeios que caiam sobre nós. A guerra lançou seu
espectro sobre tudo em nossas vidas. Finalmente, o fim que todos nós já
sabíamos chegou: a derrota. “Em 15 de agosto de 1945 o Japão rende, sendo os
documentos de rendição finalmente assinados a bordo do convés do navio de
guerra americano USS Missouri em 2 de setembro de 1945, o que pôs fim a
guerra”. A guerra – que foi levantada e mantida pela égide do Imperador – agora
terminava com a voz do Imperador nas rádios, clamando o povo japonês a suportar
o insuportável. Aos dezessete anos, meu coração estava dilacerado entre a
esperança e a ansiedade. As pessoas somente sentaram em
completo torpor. Mas, logo, nós percebemos que os céus estavam tranquilos pela
primeira vez, em muitos meses. Um senso de alívio pareceu se espalhar. Ao menos
nesta noite, nós poderíamos acender as luzes. Que brilho! Eu pensei – que
maravilha é a paz. Nós todos estávamos aliviados, mas ninguém chegou e disse:
“Eu estou feliz que perdemos. Graças que a guerra acabou”. O único desejo da
minha mãe, sua única esperança, era o seguro retorno dos seus filhos. Ela
estava particularmente preocupada em relação a Kiichi. Nós não tínhamos
recebido nenhuma notícia dele desde que ele escreveu dizendo ter deixado a
China em direção ao Sudeste Asiático. De tempos em tempos, ela nós dizia que
havia visto Kiichi em seus sonhos, e que ele havia lhe dito que estaria
retornando em breve. Eventualmente, cerca de dois anos após o término da guerra e meus outros
irmãos terem retornado, nós recebemos uma notificação de que Kiichi havia sido
morto na Birmânia (atual Myanmar). Neste momento, eu pensei no pedaço de
espelho, pois sabia que ele carregava no bolso da frente do seu uniforme. Eu
pude imaginá-lo, tirando o espelho do seu bolso e mirando sua face com barba a
fazer, pensando continuamente em sua mãe que permanecia em casa. Quando a minha mãe
recebeu a notícia da morte de Kiichi, ela virou-se de costas para nós, trêmula
pela perda. Esta foi a sua maior perda, a mais profunda tristeza que ela
experimentou em sua vida. Eu senti, nas profundezas da minha vida, a tragédia e
a inutilidade da guerra. A guerra, que produz tamanho sofrimento para uma mãe
inocente de qualquer crime, é absolutamente maligna. A guerra somente
traz o sofrimento e miséria para as pessoas comuns, as famílias e mães. Sempre
são as pessoas desconhecidas e sem nome que sofrem e lamentam em meio a lama e
as chamas. Na guerra, a vida humana é usada como um meio para se alcançar um
determinado fim, vidas que podem ser sacrificadas por motivos estratégicos.
Existe um ditado que diz que é preciso 20 anos de paz para se construir um
homem, mas somente 20 segundos para destruí-lo. Esta é a razão para que sejamos
sempre contra a guerra – não nos engajando, nem permitindo que outros
participem nesta barbárie. Todas as rivalidades e conflitos devem ser
resolvidos, não através do poder, mas pela sabedoria. Nos incertos e
turbulentos tempos após a derrota japonesa, eu deixei minha casa e me mudei
para um alojamento. O quarto era pequeno, mal mobiliado e feio, mas por sorte,
eu tinha o pedaço de espelho quebrado comigo. Todas as manhãs, antes de ir para
o serviço, eu o usava para me barbear e pentear meu cabelo. Em 1952, quando me
casei, minha esposa trouxe consigo uma nova penteadeira, e a partir daquela
data, eu olhava minha face neste novo espelho. Um dia, eu encontrei a minha
esposa com o pedaço do velho espelho em suas mãos e um olhar confuso em seu
rosto. Quando eu percebi que o espelho estava prestes a ser jogado na cesta do
lixo, caso eu não falasse nada, eu lhe disse sobre toda a história relacionada
a ele. De alguma forma, ela achou uma pequena e elegante caixinha e guardou o
pedaço de espelho dentro dela. O espelho continua guardado nesta caixa até os
dias de hoje. Todas as vezes que olho para o pedaço de espelho quebrado, ele me
comunica com os árduos dias da minha juventude que são difíceis de descrever,
com as orações da minha mãe e com o triste destino do meu irmão mais velho. E
eu continuarei a mirá-lo enquanto eu viver. http://www.maisbelashistoriasbudistas.com.br.
Abraço. Davi.
Fonte: Mirror Weekly – Semanário publicado na República das
Filipinas
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