Por Fernando Santana. O impacto do pedido de impeachment contra a
Presidente da República nas redes sociais merece muita atenção para
evitar que as análises, até o julgamento definitivo, não sigam com
feição de espetáculo. O episódio não pode ter caráter exclusivamente
político-partidário, distante do caráter técnico-jurídico que é o núcleo
da questão. Medida tão drástica não pode prescindir de exato
ajustamento à previsão constitucional. É preciso resguardar a
legitimação democrática de um mandato outorgado pelo povo. Não haverá
processo e julgamento justos enquanto duas questões fundamentais não
forem superadas. Em primeiro lugar, não se pode entender como condenação
automática o parecer proferido pelo Tribunal de Contas da União, um
órgão adjuvante. Esse parecer tem caráter opinativo, insuficiente para
formar juízo definitivo sobre irregularidades administrativas na
execução financeira e orçamentária. Em segundo lugar, deve-se definir o
reflexo de práticas ocorridas no mandato anterior ao atual, as chamadas
“pedaladas fiscais”, para saber se elas indicam grave comportamento
comissivo ou omissivo, de tipo doloso, revelador de improbidade e
locupletamento. A recente aprovação pelo Congresso de uma nova meta
fiscal, permitindo que o governo feche contas no vermelho, sem que isso
signifique descumprimento da lei orçamentária para o exercício de 2015,
retiraria, indiretamente, a aparente carga de eficácia do parecer do TCU
em relação ao exercício de 2014. Ou seja: afeta justamente o escudo
fundamental do pedido de impedimento em tramitação na Câmara dos
Deputados. O Congresso, ainda agora, admitiu revisar metas, superou as
“pedaladas” e o alegado conflito com a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Ou seriam situações diversas? De todo modo, não se pode desprezar o
argumento da falta de reflexo do exercício de um mandato em outro, por
via de reeleição, como se inexistisse autonomia entre os dois
compromissos constitucionais do governante, legitimados, cada um, por
eleições, diplomações, posses e exercícios distintos, para efeito do
parágrafo quarto do artigo 86 da Constituição. Por outro lado, é
inafastável a exigência de verificar se determinada transgressão
administrativa, no plano da execução financeira e orçamentária, por si,
tem o sentido de comportamento pessoal e indigno, marcado de
imoralidade, atribuível a comportamento pessoal ou direto da Presidente
da República, com domínio pleno na execução de todos os fatos, para
fazer incidir o artigo 85 da Carta Magna. As graves consequências do
impeachment e a desordem institucional a que pode levar reclamam a prova
de falta de honestidade pessoal ou decoro, com enriquecimento ilícito e
manipulação das funções do cargo, ou atuação sob influências espúrias e
para satisfação de interesses pessoais. Quando as infrações não são de
monta, por improbidade ou locupletamento, e carecendo de dolo, nada
autoriza dizer que houve crime de responsabilidade, nem o forte sentido
de atentado à Constituição, por isso mesmo exigindo um juízo de
admissibilidade bem mais rigoroso para a imposição do impedimento pelo
Congresso. Basta conferir a distância substancial, pelo conteúdo ético
dos comportamentos, entre os fatos que deram causa ao episódio anterior,
em 1992, que derrocou Fernando Collor de Mello, e os que sustentam o
pedido contra a Presidente Dilma Rousseff. Por último, insta dizer que a
configuração de crime de responsabilidade não pode ser inteiramente
alheia à dogmática do direito penal, ou o impeachment deixa de ser
instituto de guarda da Constituição e se transmuta em mera sede de
disputas políticas. Quer dizer: comprova-se a gravidade do fato e o
elemento volitivo doloso, que dão à infração aquele sentido de atentado,
ou não se fala em crime de responsabilidade, até por desproporção entre
a falta e as consequências que acarreta, pois não há outro critério
para sopesar a conduta, justaposta ao merecimento de uma censura penal,
mesmo que não haja exata correspondência normativa entre ele e o crime
comum, inclusive pela distinção da natureza das sanções aplicáveis a um e
outro. Certo mesmo é que é figura híbrida de infração
político-administrativa que tomou de empréstimo a feição de infração
penal: assim como nem toda irregularidade administrativa é ato de
improbidade, nem toda prática de um ato inconstitucional ou por desvio
de legalidade tem sentido de atentado à Constituição. Foram estas
as súmulas das razões majoritárias do Relatório da Comissão Especial do
Conselho Federal da OAB, que sustentei, para análise dos fundamentos
jurídicos do impeachment, sem ceder à fortíssima carga
político-partidária do momento, que não permite espaço para uma reflexão
crítica, com o mínimo de embasamento técnico, como se houvesse confusão
entre o voto de desconfiança, típico dos regimes parlamentaristas e o
impeachment, próprio da forma presidencialista de governo, sob outras
exigências formais e substanciais de admissibilidade. Resta esperar
serenidade dos que hão de julgar para fazer o contraponto com as razões
do inconsciente coletivo, a indicar que o impeachment não é mero juízo
de conveniência e oportunidade, vai além de uma simples e livre opção do
parlamento, ainda quando haja um difuso sentimento de desencanto e de
frustração com os caminhos e rotas assumidas pelo governo. Outros são as
soluções da via democrática. *Fernando Santana, 68 anos, advogado,
conselheiro federal da OAB e professor da Universidade Federal da Bahia -
Brasil. Foi integrante da comissão da OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil) nacional que estudou a reprovação das contas de 2014 do governo
federal pelo Tribunal de Contas da União. http://www.estadao.com.br.
Abraço. Davi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário