Texto de Shin Yatomi (1961- ).
Têm visto os desenhos que formam as dunas? Dependendo do tamanho e a forma dos
grãos de areia, a direção dos ventos e as características da superfície do
terreno, as areias movediças podem formar uma miríade de desenhos nas dunas. Os
desenhos de escalas ou ondulações sempre estão mudando. Assim como esses
desenhos de areia sempre mutantes, tudo o que nos rodeia (nós incluídos) está
mudando constantemente. E como as dunas, a maneira como mudam as coisas ou as
pessoas estão em função da sua relação com seu meio ambiente. Nagarjuna, o mestre
budista que, segundo acredita-se, viveu na Índia no final do segundo século e
começo do terceiro, expôs o ensino de sunyata (ku, em japonês), que é traduzido
de diversas maneiras como não substancialidade, vazio ou vacuidade. Ele desenvolveu
o conceito de não substancialidade a partir do princípio da origem dependente
(Pratityasamutpada, em sânscrito; engi, em japonês) de Sakyamuni. Nagarjuna afirmava
que dado que tudo surge e continua existindo em virtude da sua relação com
outros fenômenos (ou seja, pela origem dependente), não tem, em absoluto,
substância própria fixa ou independente (quer dizer, é não substancial). Visto
sob esta perspectiva, não há nada que não possa ser mudado. Nada existe
totalmente por si mesmo, e nenhuma forma é absoluta e imutável. O universo,
então, está cheio de novas situações a cada momento. Esta natureza aberta do
universo também se aplica aos seres humanos. Nossa vida está cheia de novas
possibilidades para o futuro. Tudo depende da maneira como nos enxergamos, o
quanto reconhecemos nossas possibilidades, e que tipo de relações criamos com
nosso ambiente. De acordo com a perspectiva da não substancialidade, tudo muda não só na
sua aparência ou forma mas também na sua natureza ou significado. Uma balsa,
por exemplo, pode ser útil para que um viajante cruze um rio. Mas seria tolice
que ele transportasse a balsa uma longa distância depois de cruzar o rio. A
balsa, então, converte-se numa pesada carga, um obstáculo para sua viagem.
Neste sentido, o conceito da não substancialidade sugere que é tolice que
baseemos nossa vida em coisas que possuímos, como a riqueza ou a posição, e nos
apeguemos a elas. Como a balsa, essas coisas só têm um valor imediato, e
apegar-se a elas pode até converter-se numa carga na nossa viagem para a
perfeição. E do ponto de vista da eternidade, não são nada. O importante é que
geremos uma relação positiva com nosso ambiente sempre cambiante a todo momento
e, dessa maneira, criemos valor. Se baseamos nossa vida na crença de que o
dinheiro ou o status social têm um valor e significado permanentes, mais tarde
ou mais cedo nossas expectativas se verão miseravelmente traídas. Por exemplo,
estaríamos colocando-nos a nós mesmos em perigo se nos aferramos a um punhado
de dólares, em vez de uma jarra com água, quando atravessamos um deserto. Se
nos apegamos à riqueza material ignorando nosso bem-estar espiritual,
eventualmente também nos tornaremos miseráveis. Ao mesmo tempo, se
desenvolvemos a capacidade para utilizar a riqueza material para apoiar nossa
felicidade e beneficiar os outros, sem recusá-la nem escravizar-nos a ela,
nossa vida pode ver-se mais realizada. O conceito da não substancialidade de
Nagarjuna mostra que não existe um valor absoluto, bom ou mau, designado às
coisas ou eventos das nossas vidas. Seus significados dependem, essencialmente,
do que fazemos com eles. Sem importar o doloroso ou desafortunado que possa ser
um evento que possamos encontrar, ainda podemos criar dele um significado
positivo, dependendo de como o vemos e o quê fazemos com ele. Nossa visão e as
ações resultantes, porém, estão determinadas não simplesmente pela nossa
compreensão intelectual e sim pela nossa consciência essencial ou o estado do
nosso ser mais profundo. É aqui onde nossa prática do Budismo pode efetuar uma
mudança positiva. O conceito da não substancialidade também nos ajuda a descobrir dentro
de nós um mundo de novas possibilidades. As vezes limitamos nosso potencial,
pensando que continuaremos sendo iguais para sempre. Eu nasci assim. Nunca mudarei.
Como ilustra o conceito da não substancialidade, porém, nada é exatamente igual
de um instante a outro. Se bem as coisas podem ser piores, também podem
melhorar. Portanto, melhorar nossa vida é possível, e sempre seremos capazes de
fazê-lo. Neste sentido, estabelecer limitações equivale a viver sob a ilusão de
que a imagem que temos de nós mesmos neste momento, é uma realidade fixa. Na
realidade, é não substancial e mutável. Provavelmente o significado mais
importante do ensino da não substancialidade é que não existimos totalmente por
nossa conta. O significado da nossa vida, e da nossa felicidade, surge através
da interconexão com os que nos rodeiam, com a comunidade e o mundo no qual
vivemos. Uma analogia que utiliza-se para descrever este principio no Budismo,
é a de dois fardos de cana que permanecem parados enquanto cada um estiver
apoiando-se no outro. O significado é que não existe uma distinção fundamental
entre nossa felicidade e a dos outros. Cair na ilusão de que somos
independentes dos outros é afastar-nos do mundo que nos rodeia. Este tipo de
egoísmo resulta contraproducente. O conceito da não substancialidade ensina que
todas as coisas, incluindo nossas vidas, existem somente enquanto estão no
contexto das suas relações com outros fenômenos. Nada tem uma substância
independente por si mesmo. Por exemplo, um ser humano no vazio do espaço
rapidamente se transformará numa massa sem vida queimado como carvão por
um lado, devido à ação direta dos raios do sol, e congelado pelo outro. Sem ar
nem água nem outras formas de vida que lhe brindem nutrientes, um ser humano
morrerá. E no nosso mundo moderno, poucos de nós poderíamos sobreviver
facilmente sem o sistema de comércio que nos rodeia, que inclui o transporte, a
distribuição de alimentos, etc. Muitas pessoas estão envolvidas nestes esforços
e todos dependemos delas. Não reconhecer e apreciar isto devido à ilusão da
identidade independente originará desequilíbrio e infelicidade. Isolados, nossa vida
perde significado. Mas, dependendo de como nos relacionamos com os outros e com
nosso ambiente, podemos realizar o infinito potencial que possuímos e
compartilhar nosso próprio valor com o mundo que nos rodeia. Neste sentido, os
mais desafortunados são aqueles que se isolam na prisão do seu próprio egocentrismo
e trancam a porta por dentro insistindo em que suas vidas são fundamentalmente
separadas. Numa irônica inversão da sua verdadeira intenção, os que procuram um
valor absoluto na sua própria existência, ignorando a felicidade dos outros
estão, na realidade, esvaziando sua vida de significado e substância. Com a
ausência dessas relações, tudo o que fica é não substancialidade ou vazio. Em
última análise, o conceito da não substancialidade é um ensino através do qual
despertamos nossa benevolência e transcendemos nosso eu egoísta, de modo que
podemos envolver-nos ativamente com os outros. Quando vemos a felicidade dos
outros como nossa e lhes estendemos uma genuína atenção, nossa vida se
transforma do vazio à substância. A este respeito, Nitiren Daishonin diz: Viver baseado na não
substancialidade é praticar com dedicação desinteressada. (Gosho Zenshu, pág.
737): tradução não oficial. Esse Gosho ainda não foi traduzido ao português).
Como o explica sucintamente Daishonin aqui, quando vivemos pela felicidade dos
outros com dedicação desinteressada, estamos pondo em ação o ensino da não
substancialidade. Como o explica o notável estudioso budista Hajime Nakamura, o
próprio Nagarjuna apreciou e sustentou os valores da gratidão e o ideal do bodhisattva.
Ele viu a importância de realizar a interconexão de todas as vidas assim como
manifestar gratidão e benevolência na ação altruísta. O conceito da não
substancialidade sugere que o desinteresse pode ser o caminho mais curto para
uma significativa individualidade. Do Livro Yasahi Kyogaku. http://www.maisbelashistoriasbudistas.com.br.
Abraço. Davi.
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