Fragmento do Livro Vazio Luminoso de Francesca Fremantle (1941- ). Um texto complementar à Liberação Através da Audição (Livro tibetano dos Mortos), descoberto por Karma Lingpa (1326-1386) no mesmo ciclo do termo, apresenta lindamente a Visão Dzogchen. Este texto é chamado: Auto liberação através da visão nua mostrando a consciência.
Ele oferece instruções sobre como reconhecer e permanecer no estado de
consciência suprema, que descreve com grande profundidade. Se um
praticante torna-se acostumado com este estado ao longo da vida, então
ele ou ela será capaz de entrar nele facilmente na hora da morte.(...). Ele
começa por afirmar o ponto fundamental que mente confusa e mente
desperta são uma e a mesma em essência, e que todos os diferentes
caminhos dentro do Budismo levam ao mesmo fim, o reconhecimento da
natureza verdadeira da mente. Maravilhoso!
Uma mente abrange todo o Samsara e o Nirvana.
É a própria natureza da pessoa desde o início,
No entanto não é reconhecida. Sua claridade e consciência fluem incessantemente,
No entanto não é encontrada face a face.
Raiando sem obstrução por toda parte,
Sua realidade não é captada.
De tal forma que este si próprio possa reconhecer a si próprio,
Todas as inconcebíveis 84 mil portas para o Dharma são ensinadas pelos Budhas do passado, do presente e do futuro.
Os Budhas não ensinam nada
Exceto a realização desse si próprio.
É
importante lembrar que no Budismo uma mente não implica em nenhuma
entidade cósmica ou substancial. Ela se refere simplesmente à faculdade
iluminadora, conhecedora da mente, que é a mesma, proceda ela de acordo
com a verdade, que cria o Nirvana, ou de uma forma distorcida, que cria o Samsara.
Não pode ser chamada precisamente de individual ou universal, de
pessoal ou impessoal, porque tais distinções não se aplicam a ela. Essa
mente contém o espectro total do estado desperto: seu vazio essencial,
sua energia radiante e sua manifestação incessante.
Dentro de si o Trikaya é indivisível e completo em um:
Vazio onde absolutamente nada existe é o Dharmakaya,
Claridade, a radiância interior do vazio, é o Sambhogakaya,
Nascendo em toda parte sem obstrução é o Nirmanakaya,
Os três completos em um são sua natureza específica.
Já
que nossa mente é inerentemente Budha, tudo que precisamos fazer é
reconhecer e se basear em nossa verdadeira natureza. A partir desse
ponto de vista, o estado desperto é a nossa mente perfeitamente comum, a
experiência diária. No entanto, mesmo depois que ela nos foi mostrada,
parecemos ser incapazes de reter essa realização. Nossas próprias
tentativas de faze-lo nos atrapalham, porque erram seu objetivo.
Começamos fazendo esforço para mudar, para encontrar alguma coisa, ou
para atingir alguma meta, mas esses mesmos esforços se tornam
contraproducentes. No sentido último, não há realmente nada a fazer e
nada a mudar. No entanto começamos a ter dúvidas e sentimos que somos
incapazes de conquistar qualquer coisa. Desesperamo-nos para chegar em
algum lugar, quando realmente não há nenhum lugar para ir. Esse paradoxo
é enfatizado com uma série de perguntas para nos chocar e fazer ver o
absurdo de toda a situação: quando o método poderoso de entrar nesse si próprio é mostrado,
Seu próprio auto conhecimento no momento presente é apenas isso!
Sua própria auto
iluminaçao não elaborada é apenas isso,
iluminaçao não elaborada é apenas isso,
Então porque dizer que não consegue compreender a natureza da mente?
Não existe nada mesmo para meditar dentro dela,
Então porque dizer que nada acontece quando você medita?
Sua própria experiência direta de consciência é apenas isso,
Então porque dizer que você não consegue encontrar sua própria mente?
Consciência ininterrupta e claridade são apenas isso,
Então por que dizer que não consegue reconhecer a sua mente!
Aquele que pensa sobre a mente é a própria mente,
Então por que dizer que não consegue encontrá-la mesmo se você procurar?
Não existe nada mesmo para ser feito com ela,
Então por que dizer que nada acontece, não importa o que você faça?
Ela só precisa ser deixada naturalmente em seu próprio lugar,
Então por que dizer que ela não vai parar quieta?
Ela só precisa ser deixada à vontade, fazendo nada,
Então por que dizer que você não consegue fazer isso?
Claridade, consciência e vazio inseparáveis estão espontaneamente presentes,
Então por que dizer que sua prática não é bem sucedida?
Espontaneamente auto manifestada sem causa ou condição,
Então por que dizer que você não consegue mesmo se tentar?
Pensamentos são liberados instantaneamente assim que surgem,
Então por que dizer que antídotos têm poder?
Saber no presente momento é apenas isso,
Então por que dizer que você não o sabe?
Essa
passagem está cheia de termos típicos Dzogchen, como auto conhecimento,
auto consciência, auto iluminação e assim por diante. Eles são
ambíguos, e algumas vezes é difícil decidir que aspecto apresentar na
tradução. A palavra usada para aqui "ser" (em sânscrito Sva, em tibetano Rang)
também significa "seu próprio", portanto em alguns contextos parece
apropriado enfatizar que é a sua própria mente, sua própria claridade,
sua própria consciência. Essas qualidades não são criadas por ninguém,
não vêm de nenhum outro lugar e não precisam ser alcançadas ou
aperfeiçoadas de nenhuma forma. É por isso que com frequência
encontramos traduções como "natural", "inerente" ou "intrínseco".
Entretanto, existe mais do que isso. No uso comum, auto conhecimento
implica conhecimento de suas condições interiores, como sendo diferentes
do conhecimento do mundo exterior; mas aqui, o que quer que a pessoa
saiba, perceba ou experimente, é reconhecido como estando dentro da
mente, e portanto é auto conhecimento (Rang Shes).
O que quer que a mente experimente está experimentando a si própria. A
claridade da mente faz com que as aparências surjam e se tornem
visíveis; isso é chamado auto claridade ou auto iluminação (rang gsal).
Os fenômenos que surgem são a própria mente, embora pareçam ser
externos; são conhecidos como auto aparência ou auto exibição (Rang Snang). Auto consciência (Rang-Rig)
em particular se refere ao conhecer fundamental, inato da realidade.
Ela é a consciência da inseparabilidade do vazio e das aparências: a
mente estando consciente de suas próprias criações, do jogo entre o
observador e o observado, e ao mesmo tempo estando consciente dessa
consciência. Dzogchen também utiliza o significativo termo auto liberação (Rang Grol) discutido no capítulo dois do livro. Tudo que parece nos prender e
nos iludir vem da nossa própria percepção equivocada; a mente construiu
sua própria prisão e sua própria teia de enganos. Portanto, assim que a
verdadeira natureza da mente é realizada, ela é vista como tendo estado
sempre essencialmente livre; naquele instante, ela se libera por seu
próprio poder. O texto nos exorta a olhar cuidadosamente para nossa
própria mente e nos assegurar de que ela é de fato verdadeira.
É certo que a natureza da mente é vazia, sem fundamento;
Sua mente é não existente como o espaço vazio.
Olhe para sua própria mente! Ela é assim ou não?
É certo que o que quer que apareça é tudo auto exibição:
Originando-se de si própria como uma aparência, como uma imagem em um espelho.
Olhe para sua própria mente! Ela é assim ou não?
É certo que todas as qualidades são espontaneamente auto liberadas:
Auto produzidas e auto liberadas como nuvens no céu.
Olhe para sua própria mente, ela é assim ou não?
Para
entender todo esse conceito, não basta pensar ou sentir que nada é real
ou que está tudo na mente; é preciso uma percepção genuína da essência
do que a mente é realmente. É por isso que os ensinamentos sobre o vazio
e o Não Ser são fortemente enfatizados antes de qualquer outra coisa. A
própria mente fundamental, a fonte de toda essa exibição, não é a
"minha mente" ou a "sua mente" no sentido limitado e egocêntrico. Toda a
ilusão do "eu" e do "outro" acontece dentro da mente, que abrange a
ambos. Mas enquanto ainda acreditarmos em um eu separado e um mundo lá
fora, a ilusão é certamente real em seus próprios termos. Dizer que tudo
é mente a partir daquele ponto de vista seria loucura. Os praticantes Dzogchen são conhecidos por serem extremamente práticos e realistas.
Long Chenpa, (1308-1364) um grande mestre do séc. XIV, iria rir das pessoas que
sustentam visões filosóficas idealistas, dizendo que é claro que o mundo
externo é real! Com a realização da auto consciência, tudo é visto como
sendo real de uma maneira inteiramente diferente, como a expressão da
natureza desperta. Entre essas visões da vida, existe o período de
transmutação, cheio de paradoxos e ambiguidades. Precisamos estabelecer,
por meio da experiência pessoal direta, os diferentes estágios de
percepção que levam ao estado último. Trungpa Rinpoche (1939-1987) costumava dizer que a prática do Vajrayana é baseada no abandono da esperança de atingir o Nirvana e do medo de permanecer no Samsara.
Ele chamou essa atitude de desesperança, e descreveu toda a vida e o
ensinamento de Padmakara como uma ilustração da desesperança. Para a
maioria das pessoas, incluindo grandes santos como Naropa (1016-1100), um grande erudito renomado por sua extraordinária inteligência e compreensão dos textos sagrados. Milarepa (1040-1123), que atingiu em uma só vida a direita realização do Grande Selo, Maha Mudra e subsequentemente a completa iluminação. Milarepa é visto como um dos mais importantes iogues do Tibete. Sua vida asceta, seu exemplo e ensinamentos no formato de canções de realização, tornaram-se uma fonte de inspiração contínua para todos os praticantes e mestres das diversas linhagens da tradição Budista Tibetana. Desesperança realmente significa o total desespero de perder toda a
esperança, indo até o fundo, antes que sejamos capazes de aceitar a
verdade simples e óbvia. Se o que estamos procurando já está dentro de
nós, se nossa própria natureza já está desperta, então procurar em
qualquer outro lugar só pode nos levar para mais longe dela. A
intensidade da nossa desesperança, sua completude e sua genuinidade
determinam se podemos dar o salto para o reconhecimento direto,
imediato, ou se precisamos seguir um caminho mais gradual de
transformação. Durante o estágio de criação do Vajrayana,
a pessoa realiza sua prática com a atitude de que o resultado já está
alcançado, de tal forma que a esperança de sucesso ou o medo do fracasso
se desfazem gradualmente. Essa convicção é o caminho para superar o
materialismo espiritual, a atitude de apego que vê a iluminação como um
prêmio a ser conquistado no final da jornada. Com fé e confiança na
realidade sempre presente da natureza do Budha, o caminho se torna um
processo contínuo de redescoberta, um revelar daquilo que já está
plenamente presente, em vez de uma jornada difícil até uma meta muito
distante. Como é estranho que ele seja desconhecido, embora esteja presente em toda a parte! Como é estranho esperar por um fruto diferente, outro que não esse! Como é estranho procura-lo em outro lugar, embora ele esteja em si próprio! Maravilhoso!
Isso, consciente no momento presente, claro, embora insubstancial,
Apenas isso é a culminação de todas as Visões!
Isso, sem objeto de pensamento, todo abrangente, embora livre de tudo,
Apenas isso é a culminação de toda a meditação!
Isso, que é chamado de natural, mundano e relaxado,
Apenas isso é a culminação de toda a conduta!
Isso, não buscado, espontaneamente existente desde o início de tudo,
Apenas isso é a culminação de toda a fruição!
Atingir
a iluminação pode parecer não ser nada de especial; aqueles que a
atingiram parecem viver de uma maneira completamente comum e mundana,
sem mesmo meditar, sem nenhum sentido de ter conquistado algo. O estado
ideal de ser de um praticante Dzogchen é totalmente natural; combina
consciência focada com relaxamento sem esforço. Desse ponto de vista,
toda a meditação é inventada e todas as práticas são artificiais. Tentar
atingir a liberação por meio delas é como uma cobra se enroscando em
nós cada vez mais apertados, em vez de se desenroscar sem esforço no
espaço. A pessoa deveria simplesmente se apoiar natural e
espontaneamente na natureza básica da mente. Existe uma história sobre
um lama chamado Zurchungpa que ilustra o estado contínuo de consciência
focada que isso requer. Ele estava sendo questionado por um estudante
de uma tradição diferente que perguntou: No Dzogchen, a meditação não é
considerada a coisa mais importante? Zurchungpa respondeu; O que há
para se meditar a respeito?. Então o estudante perguntou: Bem, você
nunca medita? Ao que Zurchungpa respondeu: O que é que existe que
possa jamais me perturbar, distrair?
Já que não existe nada sobre o que meditar, não meditar em nada mesmo,
Já que não existe nada para ser perturbado, estável em obsequiosidade,
Olhe de maneira desapegada para o estado de não meditação e não perturbação.
Auto consciência, auto conhecer, auto iluminar, brilha claramente:
Essa própria alvorada é chamada mente desperta.
Se
alguém olhou fundo o suficiente para a natureza da mente e é capaz de
tornar-se como a base daquele estado, então se torna possível usar todas
as percepções dos sentidos e toda a experiência da vida, para aumentar
sua própria realização. Sem jamais perder de vista o vazio básico da
mente, o que quer que aconteça é reconhecido como a exibição de seu
aspecto luminoso. Esse é o caso durante nosso estado de vigília diária,
durante sonhos e também após a morte durante o Bardo (estado intermediário entre a vida e a morte na tradição do Budismo Tibetano). Torna-se especificamente importante reconhecer quando as visões do Bardo
aparecem. Se nos tornarmos acostumados a reconhecer o que quer que
surja como uma expressão da natureza luminosa e vazia de nossa mente,
então não seremos levados por nenhuma aparência, por mais impressionante
ou aterrorizante que ela possa ser.
Consciência de todas as aparências como mente, sem apego,
Está desperta, embora ver e visto surjam.
Aparências não são equivocadas, o erro vem através do apego;
Conhecendo o pensamento de apego como mente, ele é auto liberado.
O texto continua:
Não existe nenhuma aparência que não seja conhecida como originada da mente.
Qualquer aparência que surja é a própria mente, desobstruída.
Embora ela surja, como a água e as ondas do oceano,
Já que elas não são duas, isso é liberado na natureza da mente.
Nossa
essência intrínseca é um estado da maior simplicidade, embora durante o
processo de se revelar tenhamos de trabalhar com a complexidade e a
confusão de nossas mentes, como elas são (estão) no presente. Pode
parecer que ensinamentos como esse na verdade encorajem a não meditar ou
fazer qualquer tipo de prática. Entretanto, as vidas dos grandes
mestres Dzogchen mostram que eles passaram muitos anos em retiro e
fizeram esforços tremendos, antes que atingissem o estado espontâneo da
consciência natural. Em adição, suas biografias revelam que tiveram uma
fé e uma devoção extraordinárias a seus gurus
e grande respeito por todos os estágios do caminho. Podem existir
algumas poucas pessoas que, como resultado de práticas de vidas
anteriores, possam penetrar direto na essência em um curto período de
tempo, mas a grande maioria de nós precisa passar por um período mais
longo de preparação. Para se basear no estado de não meditação e
não perturbação (não distração), precisamos praticar a meditação
convencional primeiro, senão apenas permanecemos sob a influencia da
perturbação e distração, quer estejamos conscientes disso ou não. Como diz
o texto:
Todos os seres são na realidade a essência desperta,
Mas sem praticarem de fato eles não irão despertar.
Mesmo
que não possamos perceber aquela essência no presente, simplesmente
sabendo a respeito dela e tendo fé nela fazem uma enorme diferença.
Esses maravilhosos ensinamentos são como o sol num dia nublado: podemos
ter completa confiança que o sol está sempre por trás das nuvens. A
visão Dzogchen pode impregnar subitamente todo caminho, qualquer que
seja a prática na qual estejamos engajados e em qualquer estágio que
tenhamos atingido. O texto conclui com este último conselho:
Ver sua própria consciência de forma nua e direta,
Essa Auto liberação através da visão nua é muito profunda,
Então comece a conhecer isso por si mesmo, sua própria auto consciência! http://www.nossacasa.net/shunya/. Abraço. Davi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário