Escrito por Shin Yatomi com colaboração de Charles Chigusa. Um das
questões de maior debate, quando se diz respeito a qualquer objeto religioso, é
se este é sagrado ou representa o sagrado. Ou seja, se o objeto é uma real
incorporação ou um símbolo do que é para ser reverenciado como adoração? Estas
questões sobre a natureza dos objetos religiosos têm desempenhado um papel
importante na história da religião. A Controvérsia Iconoclástica, na qual
os cristãos debateram os méritos dos ícones religiosos, é considerada o passo
final que levou ao cisma entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa
Grega em 1054. A interpretação da Eucaristia, o pão e vinho consagrados e
utilizados na Comunhão Sagrada, tem sido uma outra fonte de disputas
doutrinárias na Igreja Cristã, desde o início da Idade Média, especialmente
durante o período da Reforma. Na décima terceira sessão do Conselho de Trento,
realizado em 1551, a Igreja Católica Romana reafirmou sua doutrina de
transubstanciação, declarando a transformação de todas as substâncias presentes
no pão e no vinho, no Corpo e Sangue de Cristo, e que somente a aparência do
pão e do vinho permanecem após a consagração. Os protestantes se opuseram a esta
visão. Por exemplo, Martinho Lutero (1483-1546) proclamou que após a
consagração, as substâncias, tanto o Corpo e o Sangue de Cristo, como o pão e o
vinho, coexistiam em união. Além disso, Ulrich Zwingli (1484-1531), afirmou que
a Última Ceia foi inicialmente um ritual memorial e que não houve nenhuma
mudança em nenhum dos elementos. Como é evidente na história do
Cristianismo, o objeto religioso geralmente desperta tensão e ansiedade para
aqueles que acreditam que o divino está além da expressão material. Ao mesmo
tempo, as pessoas buscam algo tangível como objeto ou expressão de sua fé.
Algumas pessoas consideram um sinal divino como a própria divindade, enquanto
outros reduzem o significado do objeto sagrado para um símbolo ritual
destituído de sua própria espiritualidade. Deste modo, a natureza do objeto
religioso está geralmente no centro do debate teológico e na confusão existente
em diversos movimentos religiosos. O Gohonzon é um Símbolo ou a própria
Incorporação? No caso do Budismo de Nitiren, seu objeto de devoção representa tanto o
símbolo como a incorporação. Quando as pessoas olham para o Gohonzon pela
primeira vez, o que enxergam? No que o transformam? É um pergaminho com
inscrições desconhecidas, mas que representa um ícone religioso ou fórmula
sagrada? Qualquer que seja a reação, é difícil de perceber os caracteres
orientais arranjados num padrão específico, embora, muitos não tenham a menor
ideia do que estes caracteres significam ou a razão deles estarem posicionados
desta forma. Como a nossa primeira impressão revela alguns pontos importantes
com respeito ao seu significado, o ato de percebemos inicialmente os caracteres
escritos e o seu arranjo gráfico, nos proporciona algumas pistas da intenção de
Nitiren em criar este objeto de devoção. Em resumo, o Gohonzon representa a
iluminação de Nitiren, assim como, o nosso inato estado de Budha. O Gohonzon é
um símbolo do estado de Budha potencial de toda a humanidade, significa algo
além do que si próprio. Esta é a razão para que Daishonin explanasse para o seu
idoso discípulo Abutsu bo, o significado do seu oferecimento ao Gohonzon, na
qual é referido como a Torre do Tesouro, como se segue: “Você pode pensar que
está oferecendo presentes para a Torre do Tesouro, mas não. O senhor está
oferecendo para si mesmo. O senhor é o próprio que é originalmente iluminado”.
Aqui, Nitiren explica que quando oramos ao Gohonzon, este reflete a nossa
própria natureza de Budha inata. O Gohonzon reflete nossa reverência em direção
ao supremo potencial interior. Neste sentido, o Gohonzon funciona como um
direcionador para o estado de Budha, sendo esta, uma representação simbólica.
Entretanto, na passagem acima, Daishonin nos adverte para não confundir a
manifestação com o manifesto, na qual materializa e externaliza o estado de
Budha que existe dentro de cada um de nós. Todavia, sob outro prisma, o Gohonzon
age como uma incorporação da iluminação de Daishonin. O Gohonzon não é uma
entidade viva, auto consciente e que de forma intrínseca incorpora a iluminação
de Nitiren, mas age em nossa prática como se fosse. Como ele cita: “Eu,
Nitiren, escrevi minha vida em tinta sumi, assim creia no Gohonzon com todo o
seu coração. O desejo do Budha é o Sutra de Lótus, mas o espírito de Nitiren
não é outro que o Nam myoho rengue kyo”. Quando nós depositamos nossa fé no
Gohonzon e oramos imbuídos com o mesmo espírito descrito nesta passagem, o
Gohonzon se transforma de um simples papel escrito em uma concreta manifestação
da iluminação de Nitiren na realidade de nossa consciência. Logo, o Gohonzon
funciona como um estímulo externo que desperta o nosso potencial interior para
o estado de Budha. De um lado, nós compreendemos que o Gohonzon é uma
representação simbólica de nossa natureza de Budha. De outro lado, em nossa
prática, nós oramos como se o Gohonzon fosse a incorporação real da vida
iluminada de Nitiren e desta forma, podemos obter a confiança de que a mesma
natureza existe em nossas próprias vidas. O ato de observar o Gohonzon como a
incorporação da iluminação de Nitiren não é meramente uma crença simplista,
pois embora o Gohonzon permaneça fisicamente como papel e tinta; este é a
afirmação de nossa crença na iluminação de Nitiren e em nosso próprio potencial
iluminado. Neste sentido, o Gohonzon atua no papel do ausente Nitiren, como um
exemplo concreto de atingir a iluminação. Desta forma, o Gohonzon atua em nossa
prática tanto como um símbolo e como a incorporação do estado de Budha.
Entretanto, deve ser notado que o Gohonzon como a incorporação da iluminação
não deve ser encarado como uma presença misteriosa do divino em um objeto
inanimado. O Gohonzon somente se torna a incorporação do estado de Budha
através da nossa fé e da nossa prática. Em outras palavras, a importância do
Gohonzon como a incorporação da iluminação de Nitiren é somente significativa e
real na medida que os praticantes oram com fé e observam-no como um exemplo a
ser seguido, não como uma força externa salvadora. Neste sentido, o significado
do Gohonzon como desejado por Nitiren é de criar através de uma dinâmica
interação entre o objeto de devoção e o devoto. Embora, o significado do
Gohonzon seja incompleto sem a fé e a prática do seguidor. A Torre do Tesouro: A
Imagem do Gohonzon. O design do Gohonzon tem origem junto ao surgimento do Budismo
Mahayana, movimento que tomou forma durante o século I, na Índia. Como forma de
reação ao Budismo monástico, que enfatizava a salvação pessoal através de
austeridades, os budistas do movimento Mahayana enfatizavam a importância do
altruísmo e o papel dos praticantes leigos (bodhisattvas) na propagação dos
ensinos. Os seguidores desta doutrina intitularam-na “Mahayana” ou “Grande
Veículo” que buscava conduzir o maior número de pessoas para o caminho da
iluminação enquanto se referiam ao budismo monástico como “Hinayana” ou
“Pequeno Veículo”. O movimento popular Mahayana desenvolveu-se em torno da
adoração de estupas, edificações em formato de torre originalmente construídas
para consagrar as relíquias do Budha Sakyamuni. Após a sua morte, entre os
séculos IV e V AC, os seus seguidores leigos começaram a construir estas
estupas, com destaque no reinado do rei Asoka (268 AC 232), que foi o terceiro
governante da dinastia Maurya e o primeiro rei da Índia unificada. Muitos
praticantes leigos se reuniam em torno destas estupas, buscando homenagear o
falecido Budha. A popularidade da adoração da estupa se torna evidente ao detectarmos o
papel central da Torre do Tesouro contida no Sutra de Lótus e posteriormente,
Nitiren Daishonin, utilizou a imagem da Torre do Tesouro contida no Sutra de
Lótus como fonte gráfica primordial na inscrição do Gohonzon. No centro deste
consta “Nam myoho rengue kyo, Nitiren”, na qual significa despertar para a Lei
Universal do Nam myoho rengue kyo ou Estado de Budha. Ele explanou: “A Torre do
Tesouro é o Nam myoho rengue kyo”, assim, Nitiren observava a Torre do Tesouro
descrita no Sutra de Lótus como a natureza inerente do estado de Budha
existente na vida de todas as pessoas. Logo, ele escreveu para um de seus
discípulos: “Abutsu bo é a própria Torre do Tesouro, e a Torre do Tesouro é o
próprio Abutsu bo”. As inscrições em ambos os lados do Gohonzon descrevem a assembleia de
vários seres vivos que se reúnem em torno da Torre de Tesouro para ouvirem as
preleções de Sakyamuni como descrito no Sutra de Lótus. Alguns dos
participantes nem são seres humanos, como a filha do Rei Dragão, que chegou a
alcançar o estado de Iluminação. A diversidade da chamada Cerimônia do Ar,
descrita no Sutra de Lótus, reflete a natureza da adoração das antigas estupas,
na qual não era limitada para a elite monástica, mas era aberta para todas as
pessoas. Estas inscrições no Gohonzon representam os dez estados de vida: 1.
Intenso sofrimento e desespero (Inferno), Desejos insaciáveis (Fome), Egoísmo e
Estupidez (Animalidade), Arrogância e Beligerância (Ira), Calma Provisória
(Tranquilidade), Alegria Intensa Provisória (Êxtase), Auto Aperfeiçoamento
(Erudição), Despertar para Verdades Parciais da Natureza e Humanidade
(Absorção), Altruísmo (Bodhisattva), e o indestrutível estado de felicidade com
base na compaixão e sabedoria (Estado de Budha). De forma gráfica, o Gohonzon
mostra que cada um dos dez estados de vida, quando embasados firmemente na Lei
do Nam myoho rengue kyo, exibe as suas funções positivas que visam nutrir a
existência e trazer a felicidade. Por exemplo, embora possamos nos encontrar no
estado de Inferno, através de nossas orações ao Gohonzon, podemos transformar
nosso intenso sofrimento e desespero como fonte de força e esperança para
sobrepujar todas as dificuldades. Incidentalmente, alguns dos aspectos rituais
que envolvem a nossa prática ao Gohonzon tem origem na adoração dos budistas
Mahayana em torno das estupas. Por exemplo, o soar do sino deriva do
oferecimento de música defronte a estupa, assim como o oferecimento de incenso
e flores, como descrito no Sutra de Lótus. Palavras e Imagem: Universalidade
Subjetiva. A forma de expressão escolhida por
Nitiren Daishonin para descrever a Torre do Tesouro é única. Ele descreve a
Torre do Tesouro e a assembleia de vários seres através de caracteres escritos.
Embora haja exemplos de descrição pictorial da Torre do Tesouro ou de objetos
religiosos caligráficos que precedem o Gohonzon; a imagem da Torre do Tesouro
por Nitiren descrita somente através de caracteres escritos é rara e sem
precedentes. O uso de caracteres gráficos segue a ênfase sobre as escrituras
dentro da tradição budista. Após a morte de Sakyamuni, as estupas contendo as
relíquias de Sakyamuni tornaram-se objetos de veneração entre os praticantes
leigos. Em pouco tempo, as imagens pictoriais e esculturas de Sakyamuni e
outros Budhas, assim como de Bodhisattvas e divindades budistas, começaram a
ser produzidas como ícones religiosos. Além disso, especialmente dentro da
tradição Mahayana, foi dado uma ênfase maior em relação às escrituras, chegando
ao ponto das pessoas adorarem os textos budistas. Por exemplo, na Índia
medieval, os Sutras da Sabedoria (Prajna Paramita) tornaram-se o objeto de
devoção entre os budistas Mahayana. Com respeito à importância religiosa das
escrituras dentro da tradição Mahayana, Jacob N. Kinnard comentou: “As
relíquias e estupas são certamente dignas de veneração (...), mas o livro é
mais valioso e valorizado, pois é a fonte da sabedoria do Tathagata, e
consequentemente a origem da iluminação do Budha e a fonte de valor destas
relíquias”. Geralmente, Daishonin também enfatizou a importância dos materiais
escritos, particularmente o Sutra de Lótus. Por exemplo, ele declarou: “O Sutra
de Lótus é tanto o ensino do Budha como a incorporação do seu ensino. Se o
indivíduo deposita sua sincera fé em cada um dos caracteres e devota em
aplicá-los, então irá se tornar um Budha em sua presente forma” (MWD, 969).
Refutando o budismo Zen medieval, que rejeita o papel das escrituras budistas,
Daishonin declarou: “Se alguém renega os caracteres escritos, o que mais
poderia ser considerado como o trabalho do Budha?” (Gosho Zenshu, 153) Ele
também declarou: “Os caracteres são a forma para que todos os seres humanos
manifestem as suas mentes” (Ibidem, 380). O uso de caracteres escritos por
Daishonin no estabelecimento do Gohonzon reflete a sua forte crença no papel do
material escrito na comunicação, não somente na realidade física, como também
na realidade espiritual da humanidade. O uso da imagem da Torre do Tesouro por
Daishonin, como o tema gráfico para a inscrição do Gohonzon e o uso de
caracteres escritos como uma forma de expressão, demonstra sua profunda
compreensão em relação à natureza da veneração religiosa. Ele parece ter
compreendido como uma imagem e um texto escrito ecoam de forma diferente da
mente humana. Ao escrever o Gohonzon como uma imagem expressa em caracteres,
Daishonin unificou uma imagem gráfica específica com a universalidade dos
caracteres escritos para transmitir a realidade do estado de Budha que é único
para cada pessoa, ao mesmo tempo que é simultaneamente universal para toda a
humanidade. O aspecto universal, ainda que subjetivo, do estado de Budha é um
ponto central no ensino de Daishonin, na qual promove o nosso despertar ao supremo
potencial existente em nossas vidas e de todas as pessoas. O Gohonzon é concreto
no sentido que descreve uma imagem específica, mas não é uma imagem pictorial
da Torre do Tesouro, Sakyamuni ou Nitiren Daishonin. Se o Gohonzon fosse desta
forma, seria fácil observá-lo como a descrição da vida de algum ser ou de algum
fato ocorrido no remoto passado. Se o Gohonzon fosse a imagem de Daishonin, nós
poderíamos respeitá-lo, mas nunca poderíamos nos sentir identificados com ele.
Simplesmente, porque a maioria de nós, não iria parecer como um monge japonês
do século XIII. Ao invés disto, Daishonin criou o Gohonzon em caracteres que
descrevem uma imagem específica da Torre do Tesouro, na qual simboliza o nosso
estado de Budha inato. Os caracteres escritos são utilizados para expressar
conceitos universais, mas geralmente, eles não possuem um senso de proximidade.
Em contrapartida, as imagens despertam respostas elícitas das pessoas, pois
desencadeiam um processo imediato em nossos sentidos físicos. O Gohonzon, em
termos de motivo gráfico e caligráfico, é um híbrido em sua comunicação escrita
e visual. Observando a forma como Daishonin escolheu para escrever o Gohonzon,
pode-se afirmar que ele provavelmente buscava comunicar-se com os aspectos
conceptuais e sensoriais da nossa mente, sobre a universalidade da natureza de
Budha e sua proximidade em nossas vidas. Jean Paul Friedrich Richter
(1763-1825), um crítico literário alemão, explanou sobre a natureza subjetiva
da poesia como se segue: “A poesia devia ser como a lua, que de noite segue
aquele transeunte que passeia por uma floresta em todo o seu percurso, ao mesmo
tempo que acompanha outro indivíduo de maré a maré. Ao mesmo tempo,
simplesmente descreve seu grande arco por todo o céu e finalmente delineia-se por
toda a Terra e todos os viajantes”. A analogia de Richter sobre a lua serve
para descrever as funções do Gohonzon. Ele ilumina a existência do estado de
Budha de cada praticante. Ao mesmo tempo, o Gohonzon traça a órbita da
iluminação para que todas as pessoas possam vê-la. O Gohonzon, como a lua que
segue individualmente todos os viajantes da Terra, traz luz ao estado de Budha
inato de cada um de nós. O intento de Daishonin é trazer o
significado universal do Gohonzon para todas as pessoas e também evidenciar os
aspectos culturais e linguísticos deste. Ele utilizou palavras e personagens da
Índia, China e Japão para retratar o Gohonzon. Duas divindades
budistas estão inscritas em sânscrito medieval, o grande Bodhisattva Hatman é
originário da mitologia japonesa, e há o Grande Mestre Tientai, que estabeleceu
a supremacia do Sutra de Lótus na China medieval. No Japão da época, estes três
países eram vistos como a totalidade do mundo civilizado. Em outras palavras,
Daishonin provavelmente desejou criar um Gohonzon universal, tanto em
linguagem, como em conteúdo. Alguns dos aspectos físicos do Gohonzon
sugerem considerações minuciosas por Daishonin no que se refere à criação de um
objeto de devoção adequado para conduzir uma mensagem única para todos os
praticantes: a realidade pessoal e universal da natureza de Budha. Com certeza,
o que é mais importante em nossa prática é o ato de recitar o Nam myoho rengue
kyo ao Gohonzon. Entretanto, estes pequenos detalhes aparentemente revelam
muito sobre a sabedoria e compaixão de Daishonin. O objetivo deste artigo é que
através deste conhecimento possamos nos tornar cientes das intenções de
Daishonin ao inscrever o Gohonzon, incentivando-nos a orar de forma mais
vigorosa e convicta. http://www.maisbelashistoriasbudistas.com.br.
Abraço. Davi.
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