Texto
da monja Ayya Khema (1923-1997). No Sutta Nipata encontramos um
discurso do Budha intitulado "O Chifre do Rinoceronte" onde ele compara o
isolamento do sábio ao rinoceronte indiano. O Budha elogia o estar só e o
refrão em cada estrofe do sutta é: "Perambule só igual a um
rinoceronte." Existem dois tipos de isolamento, o mental, Citta Viveka, e
o corporal, Kaya Viveka. Todos estão familiarizados com o
isolamento corporal. Afastamo-nos e sentamos sozinhos num cômodo ou caverna, ou
dizemos para as pessoas com as quais estamos vivendo, que queremos ficar a sós.
As pessoas em geral apreciam esse tipo de isolamento por períodos curtos de
tempo. Se esse isolamento é mantido, em geral é porque essa pessoa não é capaz
de se relacionar com os outros ou sente temor em relação a eles, porque não
existe amor suficiente no seu próprio coração. Muito frequentemente há uma
sensação de solidão, que é prejudicial ao isolamento. A solidão é um estado
mental negativo no qual a pessoa se sente despojada de amizades. Quando se vive
em família ou numa comunidade, algumas vezes é difícil obter o isolamento
físico, pode até nem ser muito prático. Mas o isolamento físico não é o único
tipo de isolamento que existe. O isolamento mental é um fator importante para a
prática. A menos que a pessoa seja capaz de despertar em si mesma o isolamento
mental, ela não será capaz de introspecção, de descobrir que mudanças dentro de
si ela necessita fazer. O isolamento mental significa antes de mais nada e
principalmente não ser dependente da aprovação de terceiros, da conversa
social, de um relacionamento. Não significa que a pessoa irá demonstrar
inimizade em relação aos outros, apenas que a pessoa possui independência
mental. Se uma pessoa for gentil conosco, muito bem. Se não for esse o caso,
isso também está bem e tanto faz. O chifre do rinoceronte é reto e tão forte
que não somos capazes de curvá-lo. Será que as nossas mentes podem ser assim? O
isolamento mental elimina a conversa fútil que é prejudicial ao desenvolvimento
espiritual. Conversar sobre absolutamente nada, apenas para soltar vapor. Se
permitirmos que o vapor escape de uma panela não seremos capazes de cozinhar a
comida. A nossa prática pode ser comparada com a colocação de calor em nós
mesmos. Se deixarmos o vapor escapar repetidamente, esse processo interno será
interrompido. É muito melhor deixar que o vapor acumule e descobrir o que está
cozinhando. Essa é a tarefa mais importante que podemos realizar. Todos
deveriam ter a oportunidade, todos os dias, de estar fisicamente sós por algum
tempo, para que possam se sentir realmente sós, totalmente isolados. Algumas
vezes poderemos pensar: "As pessoas estão falando a meu respeito."
Isso não importa, nós somos os donos do nosso kamma (O Kamma são ações
intencionais. Denota a intenção ou volição benéfica ou prejudicial, e os seus
fatores mentais concomitantes que causam o renascimento, moldando o destino dos seres. As intenções se
manifestam como ações benéficas ou maléficas como o corpo, linguagem e a
mente). Se falarem a nosso respeito é o kamma deles. Mas se ficamos
preocupados, esse é o nosso kamma. Ter interesse naquilo que está sendo dito é
o suficiente para demonstrar que dependemos da aprovação de outras pessoas.
Quem está aprovando quem? Talvez os cinco khandhas: corpo,
sensação, percepção, formações mentais e consciência, estejam aprovando. Ou
quiçá (talvez ou porventura), os cabelos, os pelos do corpo, unhas, dentes e
pele? Qual Eu está aprovando, o bom, o mau, o medíocre ou talvez o não Eu? A
menos que possamos encontrar dentro de nós mesmos uma sensação de solidez, do
centro onde não há movimento, sempre haverá a sensação de insegurança. Ninguém
pode ser apreciado por todos, nem mesmo o Budha. Como estamos tomados pelas
contaminações, sempre estamos vigiando as contaminações dos outros. Nada disso
importa, e tudo isso não tem a menor importância. A única coisa importante é
ter atenção plena; estar totalmente atento a cada passo do caminho, às ações
praticadas, sensações e pensamentos. É tão fácil esquecer isso. Sempre há uma
outra pessoa com quem conversar ou um outro café para beber. Assim é como o
mundo vive, e no entanto os seus habitantes são muito infelizes. Mas o caminho
do Budha conduz para além do mundo, para a felicidade independente. Soltar o
vapor, as conversas fúteis e a busca por amizades, essas são as coisas erradas
que não devem ser feitas. Tentar descobrir o que as pessoas pensam a seu
respeito é insignificante e irrelevante e não tem nada a ver com o caminho
espiritual. O isolamento mental significa que a pessoa é capaz de estar só,
ainda que no meio da multidão. Mesmo no meio de uma grande multidão de pessoas
agitadas, a pessoa ainda é capaz de operar a partir do próprio centro,
distribuindo amor e compaixão sem ser influenciada por aquilo que está
acontecendo à sua volta. Isso pode ser chamado de isolamento ideal e significa
que a pessoa se afastou do futuro e do passado, o que é necessário para
permanecer só e íntegra. Se houver apego ao futuro, então existe a preocupação,
e se houver anseio pelo passado, então haverá ou desejo, ou rejeição. Essa é a
tagarelice constante da mente, que não conduz ao isolamento mental. O
isolamento só pode ser experimentado plenamente quando há paz interior. De
outro modo a solidão irá empurrar a pessoa para tentar remediar a sua sensação
de vazio e perda. "Onde estão todos? Como posso permanecer sem amizades?
Preciso conversar sobre os meus problemas." A atenção plena é capaz de
tomar conta disso tudo porque ela tem que surgir no momento presente e não tem
nada a ver com o futuro nem com o passado. Ela nos mantém totalmente ocupados e
evita que cometamos erros que fazem parte da natureza dos seres humanos. E
quanto mais acurada for a atenção plena, menos frequentes serão os erros. Erros
no plano mundano também têm repercussões no caminho supramundano, porque eles
ocorrem devido à falta de atenção plena, o que não permite que superemos
o Dukkha que nós mesmos nos causamos. Tentaremos repetidamente
encontrar alguém a quem possamos culpar, ou alguém que nos possa entreter. O
isolamento ideal surge quando uma pessoa pode estar só ou com outros e
permanecer íntegra, sem ser capturada pelos problemas dos outros. Poderemos
responder da maneira apropriada, mas não seremos afetados. Todos temos a nossa
vida interior e só poderemos conhecê-la bem quando a tagarelice mental for
interrompida e pudermos nos ocupar com as nossas emoções mais íntimas. Uma vez
que tenhamos testemunhado o que ocorre no nosso íntimo, vamos querer mudar
isso. Apenas o Perfeitamente Desperto, Arahant, possui uma
vida interior que não necessita mudança. O nosso estresse interior e a falta de
paz nos empurram para fora, para encontrar alguém que possa remover aquele
momento de Dukkha, mas só nós, nós mesmos, podemos fazer isso.
O isolamento pode ser físico, mas essa não é a sua função principal. A mente em
isolamento é aquela que é capaz de ter pensamentos profundos e originais. Uma
mente dependente pensa de modo rotineiro, como todos pensam, porque ela anseia
aprovação. Esse tipo de mente compreende de modo superficial, da mesma maneira
que o mundo compreende, e não é capaz de captar a profundidade dos ensinamentos
do Budha. A mente em isolamento está tranquila porque não é influenciada. É
interessante que uma mente tranquila, que só depende de si mesma, também é
capaz de memorizar. Como uma mente assim não está repleta do desejo de eliminar
Dukkha, ela pode relembrar sem muita dificuldade. Esse é um dos
benefícios adicionais. O principal benefício de uma mente em isolamento é a sua
imperturbabilidade. Ela não é abalada e se mantém sem nenhum apoio, como uma
árvore sólida que não necessita de suporte. Porque ela é poderosa por seus
próprios méritos. Se a mente não possuir vigor suficiente para depender apenas
de si mesma, ela não terá a força e determinação para realizar o Dhamma
(princípio de comportamento que os seres deveriam seguir de forma a si encaixar
dentro da ordem natural das coisas. Qualidades da mente que deveriam
desenvolver de forma a compreender a mente em si mesma). A nossa prática deve
incluir o estar a sós durante algum tempo todos os dias para a introspecção e
contemplação. Ler, ouvir e conversar diz respeito à comunicação com os outros,
que em certas ocasiões é necessário. Mas é essencial ter tempo para a auto
investigação: "O que está ocorrendo no meu íntimo? O que estou sentindo?
Isso é benéfico ou não? Estou plenamente satisfeito sozinho? Quanta preocupação
tenho com o ego? O Dhamma é o meu guia ou estou confuso?" Se houver alguma
névoa na mente, tudo que precisamos é de uma lanterna para penetrá-la. E essa
lanterna é a concentração. Saúde, riqueza e juventude não significam não Dukkha. Elas
são um disfarce. A enfermidade, pobreza e velhice facilitam a compreensão da
insatisfação na nossa existência. Quando estamos sós, esse é o momento de nos
conhecermos. Podemos investigar o significado do Dhamma que ouvimos e sermos
capazes de concretizá-lo nas nossas vidas. Podemos utilizar aqueles aspectos do
Dhamma com os quais nos identificamos mais. A mente solitária é uma mente
poderosa, porque ela sabe como permanecer imóvel. Isso não significa deixar
completamente de se associar com as pessoas, isso seria falta de amor
bondade, Metta. Uma mente solitária é capaz de estar sozinha e
introspectiva e também de amar os outros. Viver numa comunidade do Dhamma é o
ideal para a prática. A meditação é o meio de obter a concentração, que é a
ferramenta para dissipar a névoa que envolve a todos que não são um Arahant. Certas
ocasiões, na vida em comunidade, existe a união, o amor e a assistência. Isso
deveria ser o resultado de Metta e não da tentativa de
evadir Dukkha. Na próxima vez que iniciarmos uma conversa,
deveríamos investigar primeiro: "Porque estou tendo esta discussão? Ela é
necessária ou estou entediado e quero fugir dos meus problemas?" A plena
consciência é o fator mental que se une com a atenção plena proporcionando
direção e objetivo. Examinamos se a nossa linguagem e ações possuem o propósito
correto, se estamos empregando meios hábeis e se o objetivo inicial foi
alcançado. Se não tivermos um rumo bem definido, a conversa fútil surgirá como
consequência. Até mesmo na meditação a mente faz isso, devido à falta de
treinamento. Quando praticamos a plena consciência, precisamos parar por um
momento e examinar a situação completa antes de seguir adiante. Esse poderá vir
a ser um dos nossos hábitos hábeis, nem sempre encontrado no mundo. Um
importante aspecto dos ensinamentos do Budha é a combinação da plena
consciência com a atenção plena. O Budha com frequência os recomenda como o
caminho para o fim do sofrimento e nós precisamos praticá-los nos nossos
pequenos esforços diários. Eles podem consistir em aprender algo novo,
memorizar uma sentença do Dhamma, memorizar uma estrofe de um sutta, um novo
insight acerca de si mesmo, a compreensão de um aspecto da realidade. Uma mente
como essa obtém força e auto confiança. A renúncia é a maior ajuda para
conquistar a auto confiança. A pessoa se dá conta de que é capaz de lidar com
praticamente tudo, por exemplo a comida, por um bom tempo. Certa vez o Budha
foi a um vilarejo no qual ninguém depositava fé nele. Ele não recebeu nenhum
alimento, ninguém no vilarejo deu a ele qualquer atenção. Ele foi para os
arredores e sentou sobre um pouco de palha e meditou. Um outro asceta que
passou por ali e viu que o Budha não havia recebido nenhum alimento se condoeu
dele: "Você deve estar se sentindo muito mal sem ter o que comer. Eu sinto
muito. Você nem mesmo tem um lugar adequado para dormir, apenas palha." O
Budha respondeu: "Alimentamo-nos de alegria. A alegria interior pode
alimentar-nos por vários dias." Uma pessoa pode estar bem sem muitas
coisas, desde que elas tenham sido abandonadas voluntariamente. Se alguém tomar
as nossas posses e resistirmos, é Dukkha. Mas quando
praticamos a renúncia, ganhamos força e criamos as condições para que a mente
seja auto suficiente. A auto confiança surge e cria uma espinha dorsal
realmente forte. A renúncia ao companheirismo mostra se somos auto suficientes.
O Budha não advogava práticas ascéticas exageradas e prejudiciais. Mas nós
poderíamos abrir mão, por exemplo, das conversas à tarde e ao invés disso
meditar. Depois disso, a mente irá se sentir satisfeita com o seu próprio
esforço. Quanto mais esforço puder ser feito, mais satisfação surgirá. Nós
precisamos de uma mente solitária para a meditação, portanto precisamos
praticá-la durante algum tempo a cada dia. A mente em isolamento possui dois
atributos; um é a atenção plena e a plena consciência e o outro é a
introspecção e a contemplação. Ambos fazem com que a mente se unifique. Só a
união produz a força e a unificação traz o poder. Budismo Theravada. http://www.nossacasa.net/shunya/.
Abraço. Davi.
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