quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Nossas Tendências Subjacentes.



Texto de Ayya Khema (1923-1997). A maioria das pessoas tem a tendência de recriminar a si mesmas ou os outros por tudo aquilo que consideram errado. Algumas preferem criticar principalmente os outros, algumas preferem criticar a si mesmas. Nenhuma dessas opções é benéfica, nem traz paz de espírito. Pode ajudar muito, compreender a realidade que impera dentro de cada ser humano através do conhecimento das tendências subjacentes, Anusaya. Se compreendermos que todos os seres humanos possuem essas tendências, então estaremos menos inclinados a fazer críticas ou a ficarmos perturbados ou ofendidos e mais inclinados a aceitar com equanimidade (temperamento ou ânimo que não se altera em qualquer situação). Poderemos ficar mais propensos a trabalhar esses aspectos negativos se nos tornarmos conscientes deles em nós mesmos. As tendências subjacentes são mais sutis que os cinco obstáculos, (Pañca Nivarana): os obstáculos são mais toscos e se apresentam dessa forma. Desejo sensual: querer aquilo que agrada aos sentidos. Má vontade: ficar irado, perturbado. Preguiça e torpor: estar totalmente desprovido de energia. A preguiça se refere ao corpo, o torpor à mente. Inquietação e ansiedade: sentir-se constrangido, intranquilo. Dúvida: não saber qual direção tomar. Esses cinco são facilmente discerníveis em nós mesmos e nos outros. Mas as tendências subjacentes são mais difíceis de serem determinadas com precisão. Elas são as fontes ocultas das quais surgem os obstáculos, e para livrar-se delas é necessário ter aguçada atenção plena e uma grande dose de discernimento. Depois de lidar com os cinco obstáculos dentro de si mesmo, e até certo ponto ter deixado de lado os seus aspectos mais grosseiros, é possível começar a lidar com as tendências subjacentes. A própria palavra sugere a característica dessas tendências, isto é, as suas raízes são profundamente arraigadas e por isso difíceis de serem vistas e eliminadas. As duas primeiras tendências são parecidas com os obstáculos, sensualidade e aversão, e são as bases subjacentes para o desejo sensual e a má vontade. Mesmo quando o desejo sensual foi em grande parte abandonado e a má vontade não mais surge, a disposição para a sensualidade e má vontade ainda permanecem. A sensualidade é parte integrante do ser humano e se manifesta através do apego e reação àquilo que é visto, ouvido, cheirado, saboreado, tocado e pensado. A pessoa se preocupa com as suas sensações sem ter ainda compreendido que os objetos sensuais são nada mais que fenômenos impermanentes que surgem e desaparecem. Enquanto a ausência desse profundo insight ainda predominar, a pessoa atribuirá importância às impressões que surgem através dos sentidos. A pessoa é atraída por elas e busca nelas o prazer. Quando os sentidos ainda desempenham um papel importante numa pessoa, existe a sensualidade. O homem é um ser sensual. Há um verso que descreve a nobre Sangha como tendo pacificado os sentidos. O Discurso do Amor Bondade, Karaniyametta Sutta – Sn I.8, descreve o Bhikkhu ideal como aquele com os sentidos acalmados. Em muitos Suttas o Budha disse que a eliminação do desejo sensual é o caminho para Nibbana. Ter uma auto imagem é bastante prejudicial, porque ela está baseada na ilusão da permanência. Tudo muda constantemente, inclusive nós mesmos, enquanto que uma auto imagem pressupõe estabilidade. Num momento podemos ser sensuais, no momento seguinte enraivecidos. Algumas vezes estamos calmos, outras inquietos. Qual desses somos nós? Ter uma auto imagem cria um conceito de permanência que nunca pode ter qualquer sustentação nos fatos. Isso bloqueia o insight das tendências subjacentes pois a pessoa estará cega para aquilo que não se encaixa na sua auto imagem. A terceira tendência subjacente é a dúvida ou hesitação. Se alguém tem dúvida, ele hesita: O que farei em seguida? A pessoa duvida do próprio caminho, das suas habilidades e de como prosseguir. Devido à hesitação, a pessoa não usa o tempo de forma sábia. Algumas vezes ela irá desperdiçá-lo ou se entregar a atividades que não trazem benefício. A dúvida significa que a pessoa não possui uma visão interior para guiá-la, mas está obcecada pela incerteza. A dúvida e a incerteza estão presentes nos nossos corações devido a uma sensação de insegurança. Temos medo de não estar seguros. Mas não há segurança em lugar nenhum, a única segurança que pode ser encontrada é Nibbana. Esse temor e a insegurança no coração fazem a dúvida e a hesitação surgirem. Se os deixássemos para trás e não lhes déssemos atenção, poderíamos progredir com muito mais facilidade e realizar muito mais. A dúvida e a hesitação são abandonadas ao entrar na correnteza. Aquele que realizou o primeiro Caminho e Fruto não tem mais dúvidas, porque ele teve a experiência pessoal da realidade incondicionada, totalmente diferente da realidade na qual vivemos. Ele agora poderá seguir adiante sem preocupação ou temor. Não há dúvida em relação àquilo que é experimentado diretamente. Se dissermos para uma criança: Por favor não coloque a mão no fogão, pois você poderá se queimar, é bem possível que a criança irá assim mesmo colocar a mão no fogão. Ao tocar e experimentar a sensação dolorosa da queimadura, ela com certeza nunca mais irá tocá-lo. A experiência elimina a dúvida e a hesitação. A próxima tendência subjacente é a idéia incorreta, Ditthi, de relacionar tudo aquilo que ocorre com um Eu. Isso acontece constantemente e pode ser observado com facilidade, pois isso se passa com todas as pessoas. Muito poucas pessoas compreendem: Isso é apenas um fenômeno mental. Elas acreditam: Eu penso. Quando há dor no corpo, poucas dirão: É apenas uma sensação desagradável. Elas dirão: Eu estou me sentindo muito mal, ou, Eu tenho uma dor terrível. Essa reação a tudo aquilo que ocorre como Eu é devida a uma tendência subjacente tão arraigada que requer um grande esforço para afrouxar a sua influência. Deixar de lado a ideia incorreta de um Eu não significa apenas compreender intelectualmente que não existe um Eu verdadeiro. O que é necessário é uma visão interior de todo esse conglomerado de mente e corpo como nada mais que meros fenômenos desprovidos de um dono. O primeiro passo é dado ao entrar na correnteza, quando o entendimento correto acerca do Eu surge, embora todos os apegos aos conceitos de um eu só sejam abandonados pelo Arahant. Em seguida vem a presunção e orgulho, Mana, que neste caso significa ter um certo conceito acerca de nós mesmos, tal como ser um homem ou uma mulher, jovem ou velho, belo ou feio. Concebemos ideias daquilo que queremos, sentimos, pensamos, sabemos, possuímos e do que somos capazes de fazer. Todas essas conceituações criam a noção de posse e nos orgulhamos das posses, conhecimentos, habilidades, sentimentos e de ser alguém especial. Esse orgulho pode estar escondido profundamente em nós mesmos e pode ser difícil de ser encontrado, necessitando uma escavação introspectiva. Isso se deve ao fato de uma grande parte de todo o nosso ser estar envolvido. Quando dizemos: Agora encontre essa noção sobre ser uma mulher, a resposta com freqüência é: Claro que sou uma mulher, o que mais poderia ser? Mas enquanto Eu sou qualquer coisa, mulher, homem, criança, estúpido ou inteligente, Eu estou distante de Nibbana. Qualquer conceituação que eu atribua a mim mesma impede o meu progresso. A tendência subjacente da presunção e orgulho só é desenraizada pelo Arahant. Não existe uma relação direta com algum dos obstáculos que possa ser discernida nesses casos, mas a concepção de um Eu e a ideia incorreta de um Eu são as principais manifestações da delusão, a raiz principal de todas as contaminações. Em seguida, vem o apego à existência ou desejo por ser existir, Bhavaraga. Isso é a nossa síndrome de sobrevivência, o apego à permanência aqui, o fato de não querermos abrir mão disso, de não estarmos preparados para morrer hoje. Temos que aprender a estar preparados para morrer agora, sem desejar morrer, mas estar preparados para isso. Desejar morrer é o outro lado da mesma moeda do apego à existência. É tentar livrar-se da existência porque a vida é dura demais. Mas estar preparado para morrer agora significa que o apego à situação de ser alguém e de estar aqui para provar isso, foi abandonado, pois isso foi reconhecido como uma falácia. Nesse instante o entendimento incorreto de um Eu foi eliminado. O apego à existência nos conduz a uma síndrome de dependência. Queremos que tudo corra bem conosco e nos ressentimos se isso não acontece. Isso cria a aversão e a sensualidade. Freqüentemente, nos esquecemos que somos apenas hóspedes aqui neste planeta e que a nossa visita é limitada e pode acabar a qualquer momento. Esse apego à condição de estar vivo traz muita dificuldade a todos nós porque nos projeta para o futuro fazendo com que não estejamos no momento presente. Se não vivermos no presente, estaremos perdendo completamente a oportunidade de estar vivos. Não há vida no futuro, é tudo imaginação, conjecturas, uma esperança, uma súplica. Se realmente queremos estar vivos e experimentar as coisas como elas são, precisamos estar no aqui e agora, presentes a cada momento. Isso implica no abandono do apego àquilo que possa vir a ocorrer conosco no futuro, especialmente se iremos ou não continuar a existir. Existir neste momento é o suficiente. Ser capaz de abandonar esse apego significa abandonar o futuro, e só então haverá sólida atenção plena, real atenção e plena consciência. O apego à existência irá sempre nos dar a idéia de que algo melhor está por vir se esperarmos um pouco mais, e isso fará com que reneguemos o esforço. O esforço só pode ser feito agora, quem sabe o que o amanhã trará? A ultima das sete tendências é a ignorância, Avijja. Ignorar as Quatro Nobre Verdades. A ignorância é o assim chamado ponto de início na cadeia da causa e efeito que repetidamente nos traz de volta ao nascimento e morte. A ignorância opõe-se à sabedoria, e neste caso ela diz respeito ao fato de desconsiderarmos a realidade por não compreendermos que todo o nosso Dukkha provém do nosso desejo, mesmo que esse desejo seja saudável. Se continuarmos a ignorar as duas primeiras nobre verdades, sem falar na terceira verdade, que é Nibbana, estaremos enredados em Dukkha. A nossa tendência subjacente da ignorância acaba resultando por fim na ideia incorreta de um Eu, a concepção de um Eu, mostrando-nos a interconexão de todas as tendências subjacentes. Sem a ignorância não haveria nenhuma sensualidade nem aversão, nem hesitação ou dúvida, nem entendimento incorreto, nem presunção e orgulho, nem apego à existência. É muito benéfico tomar a característica que repetidamente mais cria dificuldades para nós e fazer dela o nosso foco de atenção. Como as tendências estão todas interconectadas, minimizando uma, irá ajudar a reduzir as demais numa proporção mais controlável. Ver essas tendências subjacentes em nós mesmos requer uma significativa dose de atenção para consigo mesmo, o que exige tempo e isolamento. Não é possível fazer isso enquanto se conversa com os outros. Se a mente estiver clara é possível fazer isso durante as sessões de meditação ou através da contemplação. A contemplação é um auxiliar válido da meditação, um importante companheiro que está sempre direcionado para o insight, enquanto a meditação poderá algumas vezes estar direcionada para a tranquilidade. Contemplação significa olhar para dentro e tentar ver aquilo que estiver surgindo: O que é que me incomoda? Com total honestidade, lembrando das tendências subjacentes, sabendo que todos nós temos essas tendências, podemos nos perguntar: Como elas se manifestam em mim? Uma vez que isso tenha sido visto, será válido contemplar: O que posso fazer para eliminar essa tendência em particular ou pelo menos minimizá-la? Cada um deveria dedicar algum tempo todos os dias para a contemplação. Se alguém passa o dia todo sem qualquer introspecção, não poderá ter esperança de alcançar uma introspecção mais profunda durante a sessão de meditação e uma necessita da outra. http://www.nossacasa.net/shunya/. Abraço. Davi.

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