Texto de Ayya Khema
(1923-1997). A maioria das pessoas tem a tendência de recriminar a si mesmas ou
os outros por tudo aquilo que consideram errado. Algumas preferem criticar
principalmente os outros, algumas preferem criticar a si mesmas. Nenhuma dessas
opções é benéfica, nem traz paz de espírito. Pode ajudar muito, compreender a
realidade que impera dentro de cada ser humano através do conhecimento das
tendências subjacentes, Anusaya. Se compreendermos que todos os
seres humanos possuem essas tendências, então estaremos menos inclinados a
fazer críticas ou a ficarmos perturbados ou ofendidos e mais inclinados a
aceitar com equanimidade (temperamento ou ânimo que não se altera em qualquer
situação). Poderemos ficar mais propensos a trabalhar esses aspectos negativos
se nos tornarmos conscientes deles em nós mesmos. As tendências subjacentes são
mais sutis que os cinco obstáculos, (Pañca Nivarana): os
obstáculos são mais toscos e se apresentam dessa forma. Desejo sensual:
querer aquilo que agrada aos sentidos. Má vontade: ficar irado,
perturbado. Preguiça e torpor: estar totalmente desprovido de
energia. A preguiça se refere ao corpo, o torpor à mente. Inquietação e
ansiedade: sentir-se constrangido, intranquilo. Dúvida: não
saber qual direção tomar. Esses cinco são facilmente discerníveis em nós mesmos
e nos outros. Mas as tendências subjacentes são mais difíceis de serem
determinadas com precisão. Elas são as fontes ocultas das quais surgem os
obstáculos, e para livrar-se delas é necessário ter aguçada atenção plena e uma
grande dose de discernimento. Depois de lidar com os cinco obstáculos dentro de
si mesmo, e até certo ponto ter deixado de lado os seus aspectos mais
grosseiros, é possível começar a lidar com as tendências subjacentes. A própria
palavra sugere a característica dessas tendências, isto é, as suas raízes são
profundamente arraigadas e por isso difíceis de serem vistas e eliminadas. As
duas primeiras tendências são parecidas com os obstáculos, sensualidade e
aversão, e são as bases subjacentes para o desejo sensual e a má vontade. Mesmo
quando o desejo sensual foi em grande parte abandonado e a má vontade não mais
surge, a disposição para a sensualidade e má vontade ainda permanecem. A sensualidade é parte integrante do ser humano e
se manifesta através do apego e reação àquilo que é visto, ouvido, cheirado,
saboreado, tocado e pensado. A pessoa se preocupa com as suas sensações sem ter
ainda compreendido que os objetos sensuais são nada mais que fenômenos
impermanentes que surgem e desaparecem. Enquanto a ausência desse profundo
insight ainda predominar, a pessoa atribuirá importância às impressões que
surgem através dos sentidos. A pessoa é atraída por elas e busca nelas o prazer.
Quando os sentidos ainda desempenham um papel importante numa pessoa, existe a
sensualidade. O homem é um ser sensual. Há um verso que descreve a nobre Sangha
como tendo pacificado os sentidos. O Discurso do Amor Bondade, Karaniyametta Sutta – Sn I.8, descreve
o Bhikkhu ideal como aquele com os sentidos acalmados. Em muitos Suttas o Budha
disse que a eliminação do desejo sensual é o caminho para Nibbana. Ter uma auto
imagem é bastante prejudicial, porque ela está baseada na ilusão da
permanência. Tudo muda constantemente, inclusive nós mesmos, enquanto que uma
auto imagem pressupõe estabilidade. Num momento podemos ser sensuais, no
momento seguinte enraivecidos. Algumas vezes estamos calmos, outras inquietos.
Qual desses somos nós? Ter uma auto imagem cria um conceito de permanência que
nunca pode ter qualquer sustentação nos fatos. Isso bloqueia o insight das
tendências subjacentes pois a pessoa estará cega para aquilo que não se encaixa
na sua auto imagem. A terceira
tendência subjacente é a dúvida ou hesitação. Se alguém tem dúvida, ele hesita:
O que farei em seguida? A pessoa duvida do próprio caminho, das suas
habilidades e de como prosseguir. Devido à hesitação, a pessoa não usa o tempo
de forma sábia. Algumas vezes ela irá desperdiçá-lo ou se entregar a atividades
que não trazem benefício. A dúvida significa que a pessoa não possui uma visão
interior para guiá-la, mas está obcecada pela incerteza. A dúvida e a incerteza
estão presentes nos nossos corações devido a uma sensação de insegurança. Temos
medo de não estar seguros. Mas não há segurança em lugar nenhum, a única
segurança que pode ser encontrada é Nibbana. Esse temor e a
insegurança no coração fazem a dúvida e a hesitação surgirem. Se os deixássemos
para trás e não lhes déssemos atenção, poderíamos progredir com muito mais
facilidade e realizar muito mais.
A dúvida e a hesitação são abandonadas ao entrar na correnteza. Aquele
que realizou o primeiro Caminho e Fruto não tem mais dúvidas, porque ele teve a
experiência pessoal da realidade incondicionada, totalmente diferente da
realidade na qual vivemos. Ele agora poderá seguir adiante sem preocupação ou
temor. Não há dúvida em relação àquilo que é experimentado diretamente. Se
dissermos para uma criança: Por favor não coloque a mão no fogão, pois você
poderá se queimar, é bem possível que a criança irá assim mesmo colocar a mão
no fogão. Ao tocar e experimentar a sensação dolorosa da queimadura, ela com
certeza nunca mais irá tocá-lo. A experiência elimina a dúvida e a hesitação. A próxima
tendência subjacente é a idéia incorreta, Ditthi, de
relacionar tudo aquilo que ocorre com um Eu. Isso acontece constantemente e
pode ser observado com facilidade, pois isso se passa com todas as pessoas.
Muito poucas pessoas compreendem: Isso é apenas um fenômeno mental. Elas
acreditam: Eu penso. Quando há dor no corpo, poucas dirão: É apenas uma
sensação desagradável. Elas dirão: Eu estou me sentindo muito mal, ou, Eu tenho
uma dor terrível. Essa reação a tudo aquilo que ocorre como Eu é devida a uma
tendência subjacente tão arraigada que requer um grande esforço para afrouxar a
sua influência. Deixar de lado a
ideia incorreta de um Eu não significa apenas compreender intelectualmente que
não existe um Eu verdadeiro. O que é necessário é uma visão interior de todo
esse conglomerado de mente e corpo como nada mais que meros fenômenos desprovidos
de um dono. O primeiro passo é dado ao entrar na correnteza, quando o
entendimento correto acerca do Eu surge, embora todos os apegos aos conceitos
de um eu só sejam abandonados pelo Arahant. Em seguida vem a
presunção e orgulho, Mana, que neste caso significa ter um
certo conceito acerca de nós mesmos, tal como ser um homem ou uma mulher, jovem
ou velho, belo ou feio. Concebemos ideias daquilo que queremos, sentimos,
pensamos, sabemos, possuímos e do que somos capazes de fazer. Todas essas
conceituações criam a noção de posse e nos orgulhamos das posses,
conhecimentos, habilidades, sentimentos e de ser alguém especial. Esse orgulho
pode estar escondido profundamente em nós mesmos e pode ser difícil de ser
encontrado, necessitando uma escavação introspectiva. Isso se deve ao fato de
uma grande parte de todo o nosso ser estar envolvido. Quando dizemos: Agora
encontre essa noção sobre ser uma mulher, a resposta com freqüência é: Claro
que sou uma mulher, o que mais poderia ser? Mas enquanto Eu sou qualquer coisa,
mulher, homem, criança, estúpido ou inteligente, Eu estou distante de Nibbana. Qualquer
conceituação que eu atribua a mim mesma impede o meu progresso. A tendência
subjacente da presunção e orgulho só é desenraizada pelo Arahant. Não
existe uma relação direta com algum dos obstáculos que possa ser discernida
nesses casos, mas a concepção de um Eu e a ideia incorreta de um Eu
são as principais manifestações da delusão, a raiz principal de todas as
contaminações. Em seguida, vem o
apego à existência ou desejo por ser existir, Bhavaraga. Isso
é a nossa síndrome de sobrevivência, o apego à permanência aqui, o fato de não
querermos abrir mão disso, de não estarmos preparados para morrer hoje. Temos
que aprender a estar preparados para morrer agora, sem desejar morrer, mas
estar preparados para isso. Desejar morrer é o outro lado da mesma moeda do
apego à existência. É tentar livrar-se da existência porque a vida é dura
demais. Mas estar preparado para morrer agora significa que o apego à situação
de ser alguém e de estar aqui para provar isso, foi abandonado, pois isso foi
reconhecido como uma falácia. Nesse instante o entendimento incorreto de um Eu
foi eliminado. O apego à
existência nos conduz a uma síndrome de dependência. Queremos que tudo corra
bem conosco e nos ressentimos se isso não acontece. Isso cria a aversão e a
sensualidade. Freqüentemente, nos esquecemos que somos apenas hóspedes aqui
neste planeta e que a nossa visita é limitada e pode acabar a qualquer momento.
Esse apego à condição de estar vivo traz muita dificuldade a todos nós porque
nos projeta para o futuro fazendo com que não estejamos no momento presente. Se
não vivermos no presente, estaremos perdendo completamente a oportunidade de
estar vivos. Não há vida no futuro, é tudo imaginação, conjecturas, uma
esperança, uma súplica. Se realmente queremos estar vivos e experimentar as
coisas como elas são, precisamos estar no aqui e agora, presentes a cada
momento. Isso implica no abandono do apego àquilo que possa vir a ocorrer
conosco no futuro, especialmente se iremos ou não continuar a existir. Existir
neste momento é o suficiente. Ser capaz de abandonar esse apego significa
abandonar o futuro, e só então haverá sólida atenção plena, real atenção e
plena consciência. O apego à
existência irá sempre nos dar a idéia de que algo melhor está por vir se esperarmos
um pouco mais, e isso fará com que reneguemos o esforço. O esforço só pode ser
feito agora, quem sabe o que o amanhã trará? A ultima das sete
tendências é a ignorância, Avijja. Ignorar as Quatro Nobre
Verdades. A ignorância é o assim chamado ponto de início na cadeia da causa e
efeito que repetidamente nos traz de volta ao nascimento e morte. A ignorância
opõe-se à sabedoria, e neste caso ela diz respeito ao fato de desconsiderarmos
a realidade por não compreendermos que todo o nosso Dukkha provém
do nosso desejo, mesmo que esse desejo seja saudável. Se continuarmos a ignorar
as duas primeiras nobre verdades, sem falar na terceira verdade, que é Nibbana, estaremos
enredados em Dukkha. A nossa tendência subjacente da
ignorância acaba resultando por fim na ideia incorreta de um Eu, a concepção de
um Eu, mostrando-nos a interconexão de todas as tendências subjacentes. Sem a
ignorância não haveria nenhuma sensualidade nem aversão, nem hesitação ou
dúvida, nem entendimento incorreto, nem presunção e orgulho, nem apego à
existência. É muito benéfico
tomar a característica que repetidamente mais cria dificuldades para nós e
fazer dela o nosso foco de atenção. Como as tendências estão todas
interconectadas, minimizando uma, irá ajudar a reduzir as demais numa proporção
mais controlável. Ver essas
tendências subjacentes em nós mesmos requer uma significativa dose de atenção
para consigo mesmo, o que exige tempo e isolamento. Não é possível fazer isso
enquanto se conversa com os outros. Se a mente estiver clara é possível fazer
isso durante as sessões de meditação ou através da contemplação. A contemplação é
um auxiliar válido da meditação, um importante companheiro que está sempre
direcionado para o insight, enquanto a meditação poderá algumas vezes estar
direcionada para a tranquilidade. Contemplação significa olhar para dentro e
tentar ver aquilo que estiver surgindo: O que é que me incomoda? Com total
honestidade, lembrando das tendências subjacentes, sabendo que todos nós temos
essas tendências, podemos nos perguntar: Como elas se manifestam em mim? Uma
vez que isso tenha sido visto, será válido contemplar: O que posso fazer para
eliminar essa tendência em particular ou pelo menos minimizá-la? Cada um
deveria dedicar algum tempo todos os dias para a contemplação. Se alguém passa
o dia todo sem qualquer introspecção, não poderá ter esperança de alcançar uma
introspecção mais profunda durante a sessão de meditação e uma necessita da
outra. http://www.nossacasa.net/shunya/.
Abraço. Davi.
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