Na
tradição budista, fazemos distinção entre compreensão intelectual, experiência
instável e realização estável. A compreensão intelectual, como um remendo mal
costurado que vai cair com o tempo, é temporária. Se formos adiante em nossa
prática, poderemos ter um vislumbre da verdadeira natureza da mente, mas como a
névoa, ela se dissipará. O que buscamos alcançar com nosso trabalho é uma
realização imutável como o espaço, que por sua própria natureza nunca se
altera. Quando cresce a nossa compreensão da impermanência e da qualidade
ilusória da existência, começamos a observar os fenômenos sem projetar nossas
falsas suposições; com o tempo, passamos a reconhecer o estado desperto
intrínseco, aberto e nu, como a nossa verdadeira natureza e a verdadeira natureza
da realidade. Para ter acesso a experiência daquilo que é natural, comece
reconhecendo a impermanência em cada ação do seu corpo, em cada palavra da sua
fala, em cada movimento da sua mente. Ao movimentar sua mão, reconheça na
mudança de posição uma demonstração de impermanência. Primeiro, ela estava do
lado esquerdo, depois do direito. Com sua respiração, reconheça a
Impermanência, à medida que ela vai e vem, vai e vem. Com a prática, o processo
intelectual deliberado de olhar para cada coisa e pensar, Isto é impermanente,
evolui para um conhecer natural, espontâneo, da constante manifestação das
mudanças. Isso ameniza nossa atitude em relação à realidade; começamos a
apreciar a verdade das metáforas do Budha que descrevem os fenômenos como
ilusões ou imagens de um sonho, como alucinações, ecos ou arco íris, aparentes,
mas não tangíveis nem corpóreos, como reflexos da lua sobre a água; brilhantes,
porém não sólidos. Nossa compreensão convencional está baseada em suposições
que foram passadas a nós, suposições que dependem de formas convencionais de
percepção. Fomos ensinados a dar nome às coisas, atribuindo-lhes uma realidade
que não possuem. A mente convencional é muito linear, pulando de um pensamento
para outro, Podemos nos imaginar como pensadores multifacetados, cujas ideias
formam algo como um mosaico, mas somos tão somente seres que mudam muito
depressa. Todos os conceitos e pensamentos que surgem na mente, na verdade toda
a nossa experiência da realidade, não é muito diferente de desenhos feitos com
o dedo sobre a superfície da água. No próprio ato em que uma imagem está sendo
criada, ela deixa de existir. A crença na solidez das nossas experiências
produz apego com aversão, os quais, por sua vez, alimentam perpetuamente o fogo
do Samsara até que a realidade fica parecendo um inferno devorador.
Compreender a verdade das nossas experiências é como deixar de pôr lenha na
fogueira. As chamas não desaparecem imediatamente, mas sem combustível, o fogo
lentamente vai morrendo. Sem apego e aversão, não somos confundidos pelo jogo
de atração e repulsão dos fenômenos. Aí, nessa abertura natural, o espaço claro
da mente ao final de um pensamento, antes que o próximo apareça, está o estado
desperto. Grandes praticantes alcançaram a iluminação trazendo continuamente
consciência para seu trabalho. Durante todo o dia, por doze anos, o mestre
indiano Tilopa (988-1069) prensou sementes de gergelim para fazer óleo.
Com cada movimento, seu estado desperto permanecia inteiramente presente; não
escapava para o passado nem para o futuro, não se perdia em voos da imaginação.
O mesmo acontecia com Togtzepa, um praticante que cavava valas: a cada
movimento, ele mantinha o estado desperto. Semelhantemente, muitos dos oitenta
e quatro Mahasiddhas da Índia, praticantes altamente realizados,
exerciam profissões comuns. Enquanto trabalhavam, eles meditavam. Não importava
o que faziam. Como repousavam em seu estado desperto, em meio às atividades a
que se dedicavam, eles desenvolveram a capacidade de transformar fogo em água,
água em fogo, atravessar paredes e voar pelo ar. Em vez de ficarem sujeitos à
realidade ordinária, eles se tornaram senhores dela. Evidentemente, a
finalidade da meditação não é transformar água em fogo, mas essas capacidades
são subprodutos que aparecem naturalmente quando cortamos nosso apego às
percepções ordinárias da realidade. Certa vez, o filho de um rei foi ter com um
iogue para receber instruções sobre meditação. Depois que o iogue
lhe mostrou um método, o menino disse: Isso não dará resultado para mim. Mas eu
conheço música. Haveria uma meditação que eu pudesse praticar, enquanto toco
meu instrumento? Lembre-se ao tocar, respondeu o iogue, que o som é
vacuidade, e a vacuidade é som. O som não está além da vacuidade; a vacuidade
não está além do som. Nós também seremos capazes de transformar rapidamente a
mente se trouxermos consciência a todas as nossas atividades. Se você está
construindo alguma coisa, mantenha a mente presente a cada movimento do
martelo. Não deixe que os pensamentos se interponham. Ao escrever, mantenha sua
mente junto de cada movimento da caneta ou toque nas teclas do computador. Não
deixe que ela fique saltando de um lado para outro. Quando você estiver
cortando lenha, mantenha a consciência junto de cada golpe do machado. Seja o
que for que estiver fazendo. relaxe a mente. Nesse processo, repousamos
suavemente em uma postura de abertura, imersos no que esta acontecendo,
totalmente presentes, mas ao mesmo tempo cientes da exibição dos fenômenos. Um
adulto que esteja a olhar crianças num parque, nunca perde a noção de que elas
estão brincando, O adulto não se fixa, de forma deliberada, na atividade delas,
dizendo: Elas estão brincando, elas estão brincando, elas estão brincando. Há,
porém, um reconhecimento, um conhecimento desse fato. Com frequência perdemos
esse relaxamento da mente quando estamos completamente mergulhados em nosso
trabalho; por exemplo, quando ficamos tão envolvidos com alguma coisa que
estamos escrevendo, tal como se estivéssemos dentro das palavras. Ao
repousarmos a mente, porém, há um pouco mais de espaço. E como estarmos um
pouco fora do que está acontecendo, cientes de que é uma manifestação, uma
exibição, mas sem nos distanciarmos e criarmos dualidade. A vida dos grandes
praticantes demonstra, repetidas vezes, que para manter sua prática do Dharma
uma pessoa não precisa renunciar ao mundo. Tampouco é preciso renunciar ao Dharma
para se manter envolvido com as atividades do mundo. É possível integrar
ambas as coisas em uma única vida. Gradativamente, novas prioridades e um
equilíbrio necessário aparecem. Em minha vida, testemunhei quatro pessoas
alcançarem o corpo de arco íris na hora da morte; elas não viviam em
monastérios, mas moravam com suas famílias. Quando tinha vinte e dois anos,
presenciei um homem alcançar o corpo de arco íris, e a maioria das pessoas
sequer sabia que ele fazia prática espiritual. Não há necessidade alguma de
qualquer exibição externa para se obter êxito no caminho espiritual. Não é o
corpo que alteramos para nos tornarmos iluminados, é a mente. Você pode adotar
o estilo de vida de um eremita, abandonar sua preocupação com comida, roupa,
riqueza, amigos, família, lar e mudar-se para uma montanha, dedicando-se
inteiramente à meditação. Esse é um modo de praticar perfeitamente válido, Dentro
do Vajrayana, uma das escolas budistas, porém, há um outro modo. Sua
vida externa continua com a forma habitual. Você não deixa sua casa, não
renuncia a nada, mas nunca se aparta da virtude, nunca se separa do Dharma,
da intenção de trazer benefícios ou do estado desperto. Tilopa disse a
seu aluno Naropa. Você é aprisionado não pelas aparências, mas por seu
apego às aparências; portanto, corte esse apego, Naropa. Nós nos
conservamos presos ao Samsara não simplesmente porque temos bens
materiais, uma posição elevada ou amigos, mas porque nos apegamos a essas
coisas. A prática tem que acontecer de forma consistente, bem ali onde a mente
está ativa, bem ali junto de cada experiência de desejo, raiva ou alegria, a
cada momento. Então sua meditação e o seu trabalho se unem, é uma espécie de
casamento. Se você deseja resultados rápidos, não é suficiente meditar apenas
uma ou duas horas por dia. Nunca pense: Agora vou trabalhar; mais tarde vou
meditar. Quem é que sabe se a sua vida vai durar tanto? É difícil adiarmos a
visita do senhor da morte. Quando ele aparecer, não lhe dará ouvidos se você
disser: Sinto muito, mas tenho estado muito ocupado e agora preciso meditar.
Dê-me só uma semana, um mês ou três anos. Através de prática com devoção,
desenvolvemos a capacidade de transformar condições negativas em condições que
nos sustentem. Chamamos a isso trazer as adversidades para o caminho, ou seja,
não ser bloqueado, desviado ou avassalado por uma determinada coisa, mas ver
nela uma oportunidade para prática. Então, todo o mundo fenomênico serve como
um professor, ajudando-nos a desenvolver nossas habilidades de lidar com a
vida. Podemos tornar tudo o que acontece conosco parte do caminho. Provações se
transformam em oportunidade para prática porque nos forçam a cultivar paciência.
Aprendemos a aceitar adversidades com alegria porque compreendemos que, quando
sofremos, purificamos carma. Uma única dor de cabeça pode purificar o
que seriam centenas de anos de sofrimento em um dos reinos dos infernos. Isso
não quer dizer que rejeitemos a felicidade; antes, regozijamo-nos com ela e
dedicamos nosso mérito aos outros seres, rezando, orando, para que a felicidade
deles seja duradoura. Às vezes, quando começam a fazer meditação, algumas
pessoas me dizem que são um caso perdido, que é impossível controlar seus
pensamentos. Eu lhes asseguro que isso é um sinal de melhora. A mente delas
sempre foi revolta; acontece apenas que, finalmente, elas estão notando isso.
No passado, elas deixavam sua mente vagar livremente, seguindo as correntes de
pensamento que surgissem, fossem quais fossem. Agora, porém, que têm maior
percepção do que ocorre na mente, elas podem começar a mudar. Você pode se
queixar de que meditação não é fácil. Mas lembre-se de que você está conduzindo
sua mente como um cavalo selvagem para dentro do curral do estado desperto.
Você terá certeza de que sua prática está dando resultado, se não estiver mais
tão dominado por suas emoções e confusão, se trouxer para todas as suas ações,
onde quer que esteja, uma qualidade de abertura, de relaxamento e uma intenção
de compaixão, permanecendo consciente dos movimentos da mente e da natureza de
todas as coisas que acontecem à sua volta. Certa vez, um aluno que estava tendo
dificuldade com meditação veio à presença do Budha. Quando o Budha perguntou qual
era a profissão dele, o homem respondeu que era músico e tocava alaúde. O Budha
perguntou: Quando você está pondo as cordas no seu violão, você as estica com
bastante força ou as deixa bem soltas?. O homem respondeu, Nenhuma das duas
coisas. Se eu as esticar demais ou deixá-las soltas demais, o tom sairá errado.
Tenho que encontrar um ponto de equilíbrio. Com isso, ele havia respondido sua
própria pergunta sobre meditação. Quer seja em nossa prática ou em nosso
trabalho, precisamos manter um equilíbrio, não ficaremos tensos e apegados
demais, nem soltos e desleixados demais. Conta-se a história de um ótimo lama
que tinha um aluno bastante obtuso, ignorante, lerdo, que fazia perguntas
óbvias, mas nunca entendia direito as respostas. Um dia, o professor, com
grande frustração, olhou para ele e disse: Mas você não tem chifres,
querendo dizer: Você não é uma vaca, você deveria entender o que eu estou
dizendo. O aluno, continuando a não entender, pensou que o professor quisesse
dizer que ele deveria ter chifres. Levando isso a sério, entrou em
retiro, visualizando, a cada dia, que possuía chifres. Três anos mais tarde, o
professor perguntou a um assistente. O que foi feito daquele meu aluno que não
era tão brilhante? Quando informado de que o aluno estava em retiro meditando,
o lama exclamou: Mas como ele pode estar meditando? Ele não sabe nada.
Tragam-no aqui. Um mensageiro foi então enviado para buscar o aluno. Ao chegar
na caverna do retiro, ele espiou pela pequena porta e viu o aluno sentado lá
dentro, com um belo par de chifres. O mensageiro o chamou dizendo: Seu
professor quer vê-lo; venha, por favor. O aluno se levantou para sair, mas não
conseguiu fazer com que aqueles chifres enormes passassem pela pequena porta.
Ele disse ao mensageiro, por favor, apresente minhas desculpas ao meu professor
eu gostaria de ir até ele, mas não consigo sair da caverna por causa dos meus
chifres. O professor, ao ouvir o fato, disse: Isso é maravilhoso! Diga a ele,
agora, para meditar que não tem chifres. Pela força da sua concentração, o
aluno removeu os chifres em sete dias e voltou á presença do lama.
Depois de receber instruções adequadas sobre meditação, ele muito rapidamente
alcançou realização. As pessoas dão muitos motivos para não fazerem prática
espiritual. Algumas dizem que não acreditam nos ensinamentos; outras sentem que
não estão prontas ou que não têm a capacidade necessária. Isso, porém, é um
erro. Quer acreditemos ou não no Samsara, é aqui que estamos. Quer
acreditemos ou não no carma, nós o estamos criando. Quer acreditemos ou
não nos venenos da mente, eles estão ai. Que vantagem há em não se acreditar em
remédio? Quer estejamos ou não prontos para fazer prática, a morte e as doenças
não vão nos esperar. Por que não nos preparar? Por que não desenvolver a
capacidade de ajudar a nós mesmos e aos outros? Não meditar depois de termos
recebido os ensinamentos é como comprarmos todas as nossas comidas preferidas,
arrumá-las bem na cozinha, e então não comer. Vamos morrer de fome. Meditar é
como comer; nossa despensa está cheia e nós partilhamos daquilo que coletamos.
Em vez de dizer, não tenho tempo hoje, amanhã vou meditar. Não tenho tempo
nesta semana, vou fazer a semana que vem. Este ano tem sido muito corrido, vou
deixar para o próximo ano, precisamos sentir uma necessidade imediata de fazer
prática, agora mesmo, não apenas hoje, não apenas nesta hora, mas neste exato
momento. Agora, rezo para que a verdadeira natureza de todos os seres, sem
exceção, seja revelada, para que cada um de nós veja com clareza a sua verdade
inerente, e fique livre dos grilhões do sofrimento e das dificuldades impostas
pelas limitações da mente. Vamos dedicar a esse fim todas as virtudes destes
ensinamentos, das mudanças que vamos viver por termos sido expostos a estas
verdades, e das mudanças que as pessoas a nossa volta vão atravessar por nos
verem encarnar o que aprendemos. Possam essas virtudes se irradiar em todas as
direções, em ondas de benefícios. Os portões da prática budista. Chagdud Tulku
Rinpoche (1930-2002). http://www.nossacasa.net/shunya/.
Abraço. Davi.
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