Judaísmo. Por Rabino Lorde Jonathan Sacks
(1948- ). O Futuro das Comunidades
Judaicas na Europa. O ódio que começa com os judeus nunca termina com os judeus.
Isto é o que quero que entendamos, hoje. Não foram apenas os judeus que
sofreram com Adolfo Hitler (1889-1945). Não foram apenas os judeus que sofreram com Joseph Stalin (1878-1953). Não
são apenas os judeus que sofrem com o ISIS (estado islâmico) ou a Al Qaeda ou o "Jihad Islâmico".
Cometemos um grande erro se pensamos que o antissemitismo constitui uma ameaça
apenas para os judeus. Trata-se de uma ameaça, antes de mais nada, para a
Europa e as liberdades que este continente levou séculos para conquistar.
O antissemitismo não tem a ver com os judeus. Tem a ver com antissemitas. Tem a
ver com pessoas que não podem aceitar responsabilidade por seus próprios
fracassos e, ao contrário, têm que culpar um terceiro. Historicamente, se você
fosse cristão à época dos Cruzados, ou alemão após a Primeira Guerra Mundial
(28/06/1914 – 11/11/1918), e visse que o mundo não tinha se saído da maneira
que você acreditava que sairia, você culparia os judeus. Isto é exatamente o
que está ocorrendo hoje. E tudo o que eu disser é pouco sobre quão perigoso
isto é. Não apenas para os judeus, mas para todos aqueles que valorizam a
liberdade, a compaixão e a humanidade. O surgimento do antissemitismo em uma
cultura é o primeiro sintoma de uma enfermidade, o sinal prematuro de aviso de
um colapso coletivo. Se a Europa permitir que o antissemitismo floresça, isso
será o início de seu fim. E o que pretendo fazer com estes breves comentários é
simplesmente analisar um fenômeno repleto de incerteza e ambiguidade, pois
necessitamos de precisão e compreensão para entender por que os antissemitas
estão convencidos de que não o são. Primeiro, definamos o que é antissemitismo.
Não gostar de judeus não é antissemitismo. Todos nós conhecemos pessoas de quem
não gostamos. Tudo bem, isto é humano; sem perigo algum. Segundo, criticar
Israel não é antissemitismo. Em conversa recente com alunos de colégio, eles me
perguntaram se criticar Israel era antissemitismo. Eu disse que não. E
expliquei a diferença. Perguntei-lhes: Vocês acreditam que têm o direito de
criticar o governo britânico? Todos levantaram o braço. Perguntei, então: “Quem
acredita que a Inglaterra não tem o direito de existir?”. Ninguém levantou o
braço. Então, agora vocês sabem a diferença, disse-lhes. E todos concordaram.
Antissemitismo significa negar aos judeus o direito de existir coletivamente
como judeus com os mesmos direitos que os demais. Essa negação assume
diferentes formas em diferentes eras. Na Idade Média, os judeus eram odiados
por causa de sua religião. Nos séculos 19 e início do 20 eram odiados por causa
de sua raça. Hoje somos odiados por causa de nosso Estado-nação, o Estado de
Israel. O antissemitismo assume diferentes formas, mas segue sendo a mesma
coisa: a ideia de que os judeus não têm o direito de existir como seres humanos
livres e iguais aos demais. Uma coisa que nem eu nem meus contemporâneos
esperávamos era que o antissemitismo reaparecesse na Europa com o Holocausto
ainda tão vívido em nossa memória. A razão para não o esperarmos foi o fato de
a Europa ter empreendido o maior esforço coletivo, em toda a História, para
assegurar-se de que o vírus do antissemitismo jamais voltasse a infectar o
corpo político. Foi um empenho colossal de legislação antirracista, educação
sobre o Holocausto e diálogo inter-religioso. Contudo e apesar de tudo, o
antissemitismo retornou. Em 27 de janeiro de 2000, representantes de 46
governos de países de todo o mundo se reuniram em Estocolmo – Suécia para
emitir uma declaração conjunta de recordação do Holocausto e de continuação da
luta contra o antissemitismo, o racismo e o preconceito. E, então, veio 11 de
setembro, e em poucos dias, as teorias de conspiração inundaram a Internet bradando
que tinha sido obra de Israel e de seu Serviço Secreto, o Mossad. Em abril de
2002, em Pessach
(páscoa), eu estava em Florença com um casal judeu de Paris, quando
eles receberam uma ligação do filho dizendo: “Mãe, pai, está na hora de deixar
a França. Aqui já não é mais seguro para nós”. Em maio de 2007, numa reunião
privada aqui em Bruxelas – Bélgica, eu disse aos três líderes da Europa, à
época, Ângela Merkel (1954- ),
Presidente do Conselho Europeu; José Manuel Barroso (1956- ), Presidente da Comissão Europeia; e
Hans-Gert Pöttering (1945- ), Presidente
do Parlamento Europeu, que os judeus da Europa estavam começando a se perguntar
se havia futuro para eles na Europa. Isso foi há mais de nove anos. Desde
então, as coisas só pioraram. Já em 2013, antes de alguns dos piores
incidentes, a Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia revelou que
quase ⅓ dos judeus da Europa pensavam em emigrar em virtude do antissemitismo.
Na França, o número era de 46%; na Hungria, 48%. Deixem-me perguntar-lhes algo.
Quer sejam judeus, cristãos ou muçulmanos: vocês ficariam em um país onde fosse
necessária a presença da polícia para protegê-los enquanto fizessem suas
orações? Onde seus filhos precisassem de policiais armados para protegê-los, no
colégio? Onde, se usassem um símbolo de sua fé em público, estariam
arriscando-se a serem insultados ou atacados? Onde, quando seus filhos chegam à
universidade, são insultados e intimidados em virtude do que ocorre em alguma
outra parte do mundo? Onde, quando expressam sua própria visão da situação, são
silenciados, aos gritos? Isto está ocorrendo com os judeus em toda a Europa. Em
cada um dos países da Europa, sem exceção, os judeus temem pelo futuro de seus
filhos. A continuar assim, os judeus continuarão a deixar a Europa, até que,
excetuando-se os fragilizados e os idosos, a Europa finalmente se tornará Judenrein, limpa de
judeus. Como isto aconteceu? Aconteceu da forma como os vírus sempre
vencem o sistema imunológico humano, ou seja, por mutação. O novo antissemitismo
é diferente do antigo de três maneiras. Já mencionei uma delas. Primeiro os
judeus foram odiados por sua religião. Depois por sua raça. Hoje são odiados
por seu Estado-nação. A segunda diferença é que o epicentro do antigo
antissemitismo era a Europa. Hoje, é o Oriente Médio e é transmitido
globalmente pelos novos meios eletrônicos. A terceira é especialmente
perturbadora. Vou explicar. Odiar é fácil; difícil é justificá-lo publicamente.
Ao longo da História, quando as pessoas buscavam justificar o antissemitismo,
fizeram-no mediante recurso à mais alta fonte de autoridade de sua cultura. Na
Idade Média, essa fonte era a religião. Tínhamos, então, anti-judaísmo
religioso. Na Europa pós-Iluminismo, essa fonte era a ciência. Estas eram,
então, as duas bases da ideologia nazista – o Darwinismo Social e o
assim-chamado Estudo Científico da Raça. Hoje, a mais alta fonte de
autoridade no mundo são os direitos humanos. É por isso que Israel – a única
democracia em pleno funcionamento no Oriente Médio – com uma imprensa livre e
um judiciário independente – é acusada, com regularidade, dos cinco pecados
capitais contra os direitos humanos: racismo, apartheid, crimes contra a
humanidade, limpeza étnica e tentativa de genocídio. O novo antissemitismo teve
tamanha mutação que qualquer um de seus adeptos pode negar que seja
antissemita. Afinal, dirá, “Não sou racista. Não tenho nada contra os judeus ou
o judaísmo. Meu único problema é com o Estado de Israel”. Mas num mundo
de 56 países muçulmanos e 103 cristãos, há apenas um único Estado judeu –
Israel – que constitui ¼ de 1% da extensão de terra do Oriente Médio. Israel é
o único entre os 193 países-membros das Nações Unidas que tem seu direito à
existência constantemente contestado, tendo, além disso, um país, o Irã, e
muitos, muitos outros grupos, comprometidos com sua destruição. Antissemitismo
significa a negação do direito dos judeus de existirem como judeus, com os
mesmo direitos que todos os demais. A forma em que se reveste,
hoje, é o antissionismo. Há, naturalmente, uma diferença entre sionismo e
judaísmo, e entre judeus e israelenses, mas esta diferença não existe para os
antissemitas. Foram judeus – e não israelenses – as pessoas assassinadas em
ataques terroristas em Toulouse, Paris, Bruxelas e Copenhague - Dinamarca. O
antissionismo é o antissemitismo de nossos dias. Na Idade Média os judeus foram
acusados de envenenar os poços, disseminando a peste e matando crianças cristãs
para usar seu sangue. Na Alemanha nazista, foram acusados de controlar a
América capitalista e a Rússia comunista. Hoje, somos acusados de dirigir a
ISIS e os EUA. Todos os antigos mitos foram reciclados, do Libelo de Sangue aos
Protocolos dos Sábios de Sion. As caricaturas que inundaram o Oriente
Médio são clones das publicados no Der
Sturmer, um dos principais veículos de propagando nazista entre
1923 e 1945. A arma fundamental do novo antissemitismo é assombrosa em sua
simplicidade. Vejam: o Holocausto jamais deverá ocorrer novamente. Mas os
israelenses são os novos nazistas; os palestinos são os novos judeus; todos os
judeus são sionistas. Portanto, os verdadeiros antissemitas de nossos dias são,
nem mais nem menos, que os próprios judeus! E não se trata de ideias marginais.
Estão disseminadas em todo o mundo muçulmano, incluindo as comunidades na
Europa, e estão, aos poucos, infectando a extrema esquerda, a extrema direita,
os círculos acadêmicos, os sindicatos e, até mesmo, algumas igrejas.
Tendo-se curado do vírus do antissemitismo, a Europa está sendo re-infectada
por partes do mundo que nunca passaram pela autoanálise pela qual a Europa
passou, assim que os fatos sobre o Holocausto se tornaram conhecidos. Como tais
absurdos chegaram a ser críveis? Estamos entrando em um campo vasto e complexo,
e eu escrevi um livro sobre o mesmo; mas a explicação mais simples é a que
segue. Quando coisas ruins acontecem a um grupo, seus integrantes podem
fazer uma destas duas perguntas: “O que fizemos de errado?” ou “Quem nos fez
isto?”. Todo o destino do grupo dependerá da pergunta que escolherem. Se perguntarem,
“O que fizemos de errado?”, terão dado início à autocrítica essencial a uma
sociedade livre. Se perguntarem “Quem nos fez isto?”, esse grupo se terá
definido como vítima. E, a seguir, procurará um bode expiatório a quem culpar
por todos os seus problemas. Classicamente, esse tem sido o grupo dos judeus.
Antissemitismo é uma forma de fracasso cognitivo que ocorre quando determinados
grupos sentem que seu mundo está saindo do controle. Teve início na Idade
Média, quando os cristãos perceberam que o Islã os vencera em lugares que eles
consideravam seus, o principal deles, Jerusalém. Foi quando em 1096, a caminho
da Terra Santa, os Cruzados primeiro se detiveram para massacrar as comunidades
judaicas no Norte da Europa. No Oriente Médio nasceu na década de 1920 com o
colapso do Império Otomano. Na Europa o antissemitismo ressurgiu, na década de
1870, durante um período de recessão econômica e ressurgente
nacionalismo. E está reaparecendo na Europa, atualmente, pelas mesmas
razões: recessão, nacionalismo e uma reação contrária aos imigrantes e outras
minorias. O antissemitismo ocorre quando a política da esperança abre caminho
para a política do medo, que rapidamente se transforma em política do ódio.
Isto, então, reduz problemas complexos a simplicidades. Divide o mundo em preto
e branco, vendo todas as falhas de um lado e todos os complexos de vítima do
outro. Seleciona um grupo, entre centenas de criminosos, a quem culpar. O
argumento é sempre o mesmo. Nós somos inocentes; eles são culpados. Daí se deduz
que, para sermos livres, eles, os judeus ou o Estado de Israel, precisam ser
destruídos. Assim se iniciam os grandes crimes. Os judeus eram odiados
por serem diferentes. Eram a minoria não-cristã mais visível em uma
Europa cristã. Hoje, somos a presença não-muçulmana mais visível em um Oriente
Médio islâmico. O antissemitismo sempre se tratou da incapacidade de um grupo
de dar espaço à diferença. Nenhum grupo que adote essa linha jamais poderá, nem
irá criar uma sociedade livre. Portanto, terminarei aonde comecei. O ódio que
começa com os judeus nunca termina com os judeus. O antissemitismo é contra os
judeus apenas de forma secundária. Primariamente tem a ver com o fracasso de
alguns grupos em aceitar a responsabilidade por seus próprios fracassos, e de
construir seu próprio futuro com seu próprio esforço. Nenhuma sociedade que
promoveu o antissemitismo manteve a liberdade, os direitos humanos ou a
liberdade religiosa. Toda sociedade movida pelo ódio começa buscando destruir
seus inimigos, mas termina destruindo a si própria. A Europa, hoje, não é
fundamentalmente antissemita. No entanto, permitiu que o antissemitismo
penetrasse através dos novos meios eletrônicos. Falhou em reconhecer que o novo
antissemitismo é diferente do antigo. Não estamos, hoje, de volta à década de
1930. Mas estamos chegando perto de 1879, quando Wilhelm Marr (1819-1904)
fundou a Liga de Antissemitas, na Alemanha; de 1886, quando Édouard Drumont
(1844-1917) publicou La
France Juive; e de 1897, quando Karl Lueger se tornou prefeito de
Viena. Estes foram momentos-chave na disseminação do antissemitismo, e o que
precisamos fazer, hoje, é recordar que o que foi dito naquele então sobre os
judeus está sendo dito, hoje, sobre o Estado Judeu. A história dos judeus na
Europa nem sempre foi feliz. O tratamento que esse continente deu aos judeus
agregou certas palavras ao vocabulário humano: disputas, conversão forçada,
Inquisição, expulsão, auto da fé, gueto, pogrom e Holocausto – palavras
escritas com lágrimas e sangue judeu. E, com tudo isso, os judeus amavam a
Europa e contribuíram para enriquecê-la com alguns de seus maiores cientistas,
escritores, acadêmicos, músicos, formadores da mente moderna. Se a Europa se
deixar ser arrastada novamente por essa mesma estrada, essa será a história contada
em tempos vindouros. Primeiro vieram atrás dos judeus. Depois dos cristãos.
Depois dos gays. Depois dos ateus. Até que não houvesse nada da alma da Europa,
a não ser uma lembrança distante, moribunda. Tentei, aqui, dar voz àqueles que
não têm voz. Falei em nome dos assassinados de Roma, Sinti, dos gays, dos
dissidentes, dos deficientes mentais e físicos, e de um milhão e meio de
crianças judias assassinadas em virtude da religião de seus avós. Em seu nome,
digo a vocês: vocês sabem onde essa estrada acaba. Não se deixem arrastar por
ela, novamente. Vocês são os líderes da Europa. Seu futuro está em suas mãos.
Se não fizerem nada, os judeus partirão, a liberdade europeia morrerá e haverá
uma mácula moral no nome da Europa que toda a eternidade não bastará para
apagar. Detenham-na, enquanto ainda há tempo. Transcrição de um discurso do
Rabino Lorde Jonathan Sacks na Conferência “O Futuro das Comunidades Judaicas
na Europa”, no Parlamento Europeu, Bruxelas - Bélgica, em 27 de setembro de 2016.
Tradução Lilia Wachsmann. Rabino Lorde Jonathan Sacks - Rabino Chefe das
Congregações Hebraicas Unidas da Commonwealth e Av Beit Din (presidente)
do Beth Din de 1991 a 2013. Em 2009, foi recomendado para um pariato vitalício,
com assento na Casa dos Lordes, com o título de Barão Sacks de Aldgate na City
of London - Inglaterra. Desde que deixou o cargo de Rabino Chefe, o Rabino Sacks vem
trabalhando como Professor de Pensamento Judaico na Universidade de Nova
York - USA, Professor de Pensamento Judaico na Yeshiva University e Professor de
Direito, Ética e Bíblia no King’s College de Londres.
www.morasha.com.br. Abraço. Davi.
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