Espiritualidade. Texto de Jiddu krishnamurti
(1895-1986). Capítulo V. O EGOÍSMO – A ÂNSIA DE PRESTÍGIO – OS TEMORES E O MEDO
TOTAL – A FRAGMENTAÇÃO DO PENSAMENTO – A CESSAÇÃO DO MEDO. Antes de irmos mais
adiante, eu quero perguntar-lhe qual é o seu interesse fundamental, constante,
na vida. Pondo de lado quaisquer respostas equívocas, e encarando a questão
direta e honestamente, o que você responderia? Sabe como responder? Não é sua
própria pessoa? Pelo menos é isso o que diria a maioria de nós, se
respondêssemos sinceramente. O que me interessa são os meus problemas, meu
emprego, minha família, o pequeno canto em que estou vivendo, a conquista de
uma posição melhor para mim, mais prestígio, mais poderio, mais domínio sobre
os outros etc. Acho que seria lógico reconhecermos para nós mesmos que está
principalmente interessada a maioria de nós: primeiro “eu”. Diriam alguns que é
mau estarmos interessados principalmente em nós mesmos. Mas que há de mau nisso
senão o fato de o admitirmos tão raramente, decente e honestamente? Se fazemos
isso, sentimo-nos um tanto envergonhados. Eis, portanto, o fato: Cada um de nós
está fundamentalmente interessado em si próprio e, por várias razões, lógicas e
tradicionais, pensa que isso é mau. Mas o que uma pessoa pensa é irrelevante.
Ora, por que introduzir esse fator, o pensar que isso é mau? Isso é uma ideia,
um conceito. O fato é que, fundamentalmente, e perenemente, cada um de nós está
interessado em si próprio. Você dirá que é mais satisfatório ajudar o próximo
do que pensar em si mesmo. Qual a diferença? Isso continua a ser interesse em
si próprio. Se encontra maior satisfação em ajudar os outros, você está
interessado numa coisa que lhe proporciona uma satisfação maior. Por que
admitir qualquer conceito ideológico a esse respeito? Por que essa maneira
dupla de pensar? Por que não dizer: O que realmente desejo é satisfação, seja
sexual, seja ajudando os outros ou tornando-me grande santo, um grande
cientista ou político? Trata-se do mesmo processo, você não acha? Satisfação,
de todas as maneiras, sutis ou óbvias, é o que desejamos. Dizendo que desejamos
liberdade, desejamo-la porque nesse estado se encontra uma satisfação
maravilhosa, e a satisfação máxima, naturalmente, é essa peculiar ideia de auto
realização. O que na verdade estamos buscando é uma satisfação, sem nenhum
vestígio de insatisfação. A maioria de nós aspira à satisfação de ocupar uma
certa posição na sociedade, porque temos medo de ser ninguém. A sociedade é
formada de tal maneira que um cidadão que ocupa uma posição respeitável é
tratado com toda a cortesia, enquanto aquele que não tem posição é tratado a
pontapés. Todos, neste mundo, desejam prestígio, prestígio na sociedade, na
família, ou à direita de Deus-Pai, mas esse prestígio tem de ser reconhecido
por outros, pois, do contrário, não será prestígio. Queremos estar sempre
sentados no palanque. Interiormente, somos remoinhos de aflição e de
malevolência, e, por conseguinte, ser olhado exteriormente como uma grande
figura proporciona imensa satisfação. Esse anseio de posição, de prestígio, de
poder, de ser reconhecido pela sociedade como pessoa de destaque representa uma
vontade de dominar os outros, e essa vontade de domínio é uma forma de
agressão. O santo que busca posição em sua santidade é tão agressivo como as
aves que se bicam num aviário. E, qual a causa dessa agressividade? O medo,
não? O medo é um dos mais formidáveis problemas da vida. A mente que está nas
garras do medo vive na confusão, no conflito, e, portanto, tem de ser violenta,
tortuosa e agressiva. Não ousa afastar-se de seus próprios padrões de
pensamento, e isso gera a hipocrisia. Enquanto não nos livrarmos do medo, ainda
que galguemos o mais lato cume, ainda que inventemos toda espécie de deuses,
ficaremos sempre na escuridão. Vivendo numa sociedade tão corrupta e estúpida,
em que a educação nos ensina a competir – o que gera medo – vemo-nos oprimidos
por temores de toda espécie; e o medo é uma coisa terrível, que torce e
deforma, que ensombra os nossos dias. Existe o medo físico, mas esse é uma
reação herdada do anima. É o medo psicológico que nos interessa aqui, porque,
compreendendo os temores psicológicos em nós profundamente enraizados,
estaremos aptos a enfrentar o medo animal; ao passo que, se primeiramente nos
interessamos no medo animal, jamais compreenderemos os temores psicológicos.
Todos nós temos medo de alguma coisa; não existe o medo como abstração, porém o
medo só existe em relação a alguma coisa. Você sabe quais são os seus temores –
o medo de perder seu emprego, de não ter comida ou dinheiro suficiente, medo do
que pensam de você os vizinhos ou o público, de não ser um “sucesso”, de perder
sua posição na sociedade, de ser desprezado ou ridicularizado; medo da dor e da
doença, de ser dominado por outrem, de não chegar a conhecer o amor, ou de não
ser amado, de perder sua esposa ou seus filhos. Medo da morte ou de viver num
mundo que é igual à morte, um mundo de tédio infinito; medo de que sua vida não
corresponda à imagem que os outros fazem de você; medo de perder a sua fé –
esses e muitos outros incontáveis temores; você conhece seus temores pessoais?
E o que costuma fazer em relação a eles? Não é verdade que foge deles ou que
inventa ideias e imagens para encobri-los? Mas fugir do medo é torna-lo maior.
Uma das causas principais do medo é que não desejamos encarar-nos tais como
somos. Assim temos de examinar tanto os nossos temores como essa rede de vias de
fuga que criamos para nos libertarmos deles. Se a mente, que inclui o cérebro,
procura dominar o medo, se procura reprimi-lo, discipliná-lo, controla-lo,
traduzi-lo em coisa diferente, daí resulta atrito e conflito, e esse conflito é
um desperdício de energia. A primeira coisa, portanto, que devemos perguntar a
nós mesmo é: Que é o medo, e como nasce? Que entendemos pela palavra medo, em
si? Estou perguntando a mim mesmo o que é o medo e não de que é que tenho medo.
Vivo de uma certa maneira; penso conforme um determinado padrão; tenho algumas
crenças e dogmas, e não quero que esses padrões de existência sejam
perturbados, porque neles tenho a minhas raízes. Não quero que sejam
perturbados porque a perturbação produz um estado de desconhecimento de que não
gosto. Se sou separado violentamente das coisas que conheço e em que creio,
quero estar razoavelmente seguro do estado das coisas que irei encontrar. As
células nervosas criaram, pois, um padrão, e essas mesmas células nervosas
recusam-se a criar outro padrão, que pode ser incerto. O movimento do certo
para o incerto é o que denomino medo. Neste momento em que estou aqui sentado,
não estou com medo; não tenho medo do presente, nada está me acontecendo,
ninguém está me fazendo ameaças nem me tomando nada. Mas, além deste momento
presente, uma camada mais profunda da mente está, consciente ou
inconscientemente, pensando no que poderá acontecer no futuro, ou
preocupando-se com algum fato passado que me possa prejudicar. Portanto, tenho
medo do passado e do futuro. Dividi o tempo em passado e futuro. O pensamento
interfere, dizendo: Tenha cuidado, para que isso não torne a acontecer, ou
prepare-se para o futuro! O futuro pode ser perigoso. Agora você tem uma coisa,
mas pode perdê-la. Você pode morrer amanhã. Sua esposa pode abandoná-lo. Você
pode se ver na solidão. Você precisa estar perfeitamente seguro do amanhã.
Considere agora seu temor particular. Olhe-o. Observe suas reações a ele. Pode
olhá-lo em nenhum movimento de fuga, de justificação, condenação ou repressão?
Pode olhar esse medo, sem a palavra que causa medo? Pode olhar a morte, por
exemplo, sem a palavra que suscita medo da morte? A própria palavra produz um
estremecimento; não é verdade? Assim como a palavra amor produz seu
estremecimento, sua imagem peculiar. Pois bem, a imagem que você tem na mente a
respeito da morte, a lembrança de tantas mortes a que assistiu, e o relacionar
a sua pessoa com tais incidentes – é essa a imagem que está criando o medo? Ou,
com efeito, você tem medo do findar e não da imagem que cria o fim? É a palavra
morte que lhe causa medo ou é o próprio findar? Se é a palavra ou a memória que
está lhe causando medo, então não se trata realmente do medo. Você esteve
doente há dois anos, digamos, e a lembrança daquela dor, daquela doença,
persiste, e a memória, agora em funcionamento, diz: Tenha cuidado para não
adoecer de novo. Por conseguinte, a memória, com suas associações, está criando
o medo, e isso não é realmente medo, porque, com efeito, neste momento você
está gozando perfeita saúde. O pensamento, que é sempre velho – pois o
pensamento é reação da memória, e as lembranças são sempre velhas – o
pensamento cria, no tempo, a ideia que lhe faz medo, a qual não é um fato real.
O fato é que você está bem de saúde. Mas a experiência, que permaneceu na mente
como memória, faz surgir o pensamento: Tenha cuidado para não adoecer
novamente. Estamos vendo, pois, que o pensamento engendra uma espécie de medo.
Mas separado desse, existe realmente medo? É o medo sempre resultado do pensamento?
Se é, existe alguma outra forma de medo? Tememos a morte – uma coisa que
acontecerá amanhã ou depois de amanhã, com o tempo. Há uma distância entre a
realidade e o que será. Ora, o pensamento experimentou esse estado: observando
a morte, ele diz: Eu vou morrer. O pensamento cria o medo da morte: e, se não o
cria, existe então realmente o medo? É o medo resultado do pensamento? Se é,
uma vez que o pensamento é sempre velho, o medo é sempre velho. Como dissemos,
não há pensamento novo. Se o reconhecemos, ele já é velho. Portanto, o que
tememos é a repetição do velho – o pensamento sobre o que foi, projetando-se no
futuro. Por conseguinte, o pensamento é o responsável pelo medo. Isso é um fato
que você pode observar por si mesmo. Quando se está diretamente na presença de
alguma coisa, não há medo. Só quando surge o pensamento é que há medo. Por
conseguinte, perguntamos agora: É possível a mente viver de maneira completa,
total, no presente? Só assim a mente não tem medo. Mas, para compreender isso,
você tem de compreender a estrutura do pensamento, da memória e do tempo. E,
compreendendo-a, não intelectual nem verbalmente, porém de maneira real, com
seu coração, sua mente, suas entranhas, você ficará livre do medo; a mente pode
então servir-se do pensamento, sem criar medo. O pensamento, como a memória, é
naturalmente necessário ao viver. É o único instrumento em nossos empregos etc.
O pensamento é a razão da memória, memória acumulada por meio da experiência,
do conhecimento, da tradição, do tempo. Desse acúmulo de memória é que provêm
as nossas reações, e essas reações constituem o pensar. O pensamento, portanto,
é essencial em certos níveis, porém, quando o pensamento se projeta,
psicologicamente, como futuro e como passado, criando o medo bem como o prazer,
a mente se embota e, por conseguinte, torna-se inevitável a inércia. Assim,
pergunto a mim mesmo: Mas por que penso no futuro e no passado em termos de
prazer e de dor, quando sei que esse pensamento gera medo? Não é possível o
pensamento deter-se, psicologicamente, pois de outro modo o medo nunca terá
fim? Uma das funções do pensamento é estar continuamente ocupado com alguma
coisa. Em geral, desejamos ter a mente continuamente ocupada, para nos impedir
de ver-nos como realmente somos. Temos medo de sentir-nos vazios. Temos medo de
encarar os nossos temores. Conscientemente, você pode perceber os seus temores,
mas você está consciente deles nos níveis mais profundos? E como irá descobrir
os temores ocultos, secretos? Pode o medo dividir-se em consciente e
inconsciente? Essa é uma pergunta muito importante. O especialista, o
psicólogo, o analista, dividiram o medo em camadas profundas e camadas
superficiais, mas, se for seguir o que diz o psicólogo ou o que eu digo, você
terá a compreensão de nossas teorias, de nossos dogmas, de nossos
conhecimentos, mas não terá a compreensão de você mesmo. Você não pode se
compreender de acordo com Sigmund Freud (1856-1939), Karl Gustav Jung
(1875-1961) ou de acordo comigo. As teorias de outras pessoas não tem
importância nenhuma. É a você mesmo que deve perguntar se o medo pode ser
dividido em consciente e subconsciente. Ou só existe medo, que você traduz de
diferentes maneiras? Só existe um desejo; só há desejo. Você deseja. Os objetos
do desejo variam, mas o desejo é sempre o mesmo. Assim talvez, da mesma
maneira, só existe o medo. Ao perceber que o medo não pode ser dividido, você
verá que acabou com o problema do subconsciente, pregando uma peça nos
psicólogos e nos analistas. Ao compreender que o medo é um movimento único que
se expressa de diferentes maneiras, e ao ver o movimento e não o objetivo a que
se dirige, você estará então em presença de uma questão imensa: Como olhar o
medo sem a fragmentação que a mente cultivou? Só existe o medo total, mas como
pode a mente que pensa fragmentariamente observar esse quadro total? Pode
observá-lo? Temos levado uma vida de fragmentação e só somos capazes de olhar o
medo através do processo fragmentário do pensamento. Todo o processo do
mecanismo do pensamento é dividir tudo em fragmentos: Eu amo você e eu odeio
você; você é meu amigo, você é meu inimigo; minhas idiossincrasias e
inclinações, meu emprego, minha posição, meu prestígio, minha mulher, meu
filho, minha pátria e sua pátria, meu Deus e seu Deus – tudo isso é fragmentação
do pensamento. E o pensamento olha o estado atual de medo, ou tenta olha-lo, e
o reduz a fragmentos. Vemos, por conseguinte, que a mente só pode olhar esse
medo total quando não há movimentação do pensamento. Você pode observar o medo
sem nenhuma conclusão, sem nenhuma interferência do conhecimento que você
acumulou a seu respeito? Se não pode, então o que está observando é o passado e
não o medo; se pode, nesse caso você está, pela primeira vez, observando o medo
sem a interferência do passado. Só se pode olhar com a mente muito quieta,
assim como só se pode ouvir o que alguém está dizendo, quanto a mente não está
tagarelando, travando consigo um diálogo a respeito de seus problemas e
ansiedades. Você pode, da mesma maneira, olhar o seu medo, sem procurar
dissolvê-lo, sem trazer à cena o seu oposto, a coragem; olhá-lo de fato, e não
tentar fugir dele? Quando diz: Eu tenho de controla-lo, tenho de livrar-me
dele, tenho de compreendê-lo – você está tentando fugir dele. Você pode
observar uma nuvem, uma árvore ou o movimento de um rio, com a mente
relativamente quieta porque essas coisas não são sumamente importantes para
você; mas o observar a si mesmo é muito mais difícil, porque então as
exigências são muito práticas, as reações muito rápidas. Assim, quando você
está diretamente em contato com o medo ou desespero, com a solidão e o ciúme,
ou qualquer outro estado de repulsivo da mente, pode olhar de maneira tão
completa que sua mente fique suficientemente quieta para vê-lo? Pode a mente
receber o medo, e não as diferentes formas de medo; perceber o medo total, e
não aquilo de que você tem medo? Se olhar meramente para os detalhes do medo ou
procurar acabar com os seus temores um a um, você nunca alcançará o ponto
central, que é aprender a viver com o medo. O viver com uma coisa viva, como o
medo, requer uma mente e um coração altamente sutis, que não chegaram a
qualquer conclusão, podendo, portanto, seguir cada movimento do medo. Então, se
você observar o medo, e com ele viver – e isso não leva um dia inteiro, porque
um minuto ou um segundo pode bastar, para se conhecer a inteira natureza do
medo – se viver com ele completamente, você perguntará, inevitavelmente. Qual a
entidade que está vivendo com o medo? Qual a entidade que está observando o
medo, observando cada movimento de todas as formas do medo, e ao mesmo tempo
consciente do fato central do medo? Será o observador uma entidade morta, um
ente estático, que acumula uma grande quantidade de conhecimento e informações
a respeito de si próprio, e essa coisa morta é que está observando e vivendo
com o movimento do medo? Qual é a sua resposta? Não responda a mim, porém a
você mesmo. É você – o observador – uma entidade morta a observar uma coisa
viva, ou você é uma coisa viva a observar outra coisa viva? Porque, no
observador, existem os dois estados. O observador e o censor que não deseja o
medo, o observador é o conjunto de todas as suas experiências relativas ao
medo. E, assim, o observador está separado da coisa a que chama medo; há espaço
entre ambos; está perpetuamente tentando dominá-lo ou dele fugir, e daí provém
essa batalha que é uma enorme perda de energia. Observando-o, você aprenderá
que o observador é meramente um feixe de ideias e lembranças sem validade, sem
substância nenhuma, ao passo que aquele medo é uma realidade; assim, você está
tentando compreender um fato com uma abstração, e isso, naturalmente, você não
pode fazer. Mas será o observador, que diz: tenho medo, diferente da coisa
observada, o medo? O observador é o medo e, uma vez percebido isso, não há mais
dissipação de energia no esforço para livrar-se do medo, e o intervalo de tempo
espaço, entre o observador e a coisa observada, desaparece. Quando perceber que
você é uma parte do medo, que não está separado dele, que você é o medo, então
nada poderá fazer a respeito dele: o medo acabou totalmente. Livro Liberte-se
do Passado. Abraço. Davi
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