quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Liberando a Beleza.



Texto de Radha Burnier (1923-3013). De acordo com a filosofia platônica, a alma do homem já existia no mundo puro de ser onde não há começo, um mundo de perfeita beleza, harmonia e luz, antes de ser arrastada para este mundo de sombras. Contudo, aqui neste mundo dos sentidos, que é o mundo das sombras efêmeras e mera imagens, quando a alma tem certas experiências, por exemplo, quando encontra um belo objeto, isso é uma lembrança do que conheceu no mundo invisível de perfeição que já esqueceu. Também conforme o pensamento hinduísta, o espírito do homem, seu verdadeiro ser, é o terreno de todos os valores derradeiros. Em essência, o homem é divino, embora esteja limitado pelas vestes que o envolvem;  e a verdadeira natureza do divino é ter a forma de Verdade. Bondade e Beleza. Esses são atributos do ser perfeito, assim como Felicidade e Consciência pura. Tais atributos divinos são sempre coexistentes. No estado absoluto, nenhum desses atributos existe sem os outros. Na verdade, eles são simplesmente aspectos ou facetas da divindade, reflexos da mesma luz. Entretanto, não é possível conhecer a beleza absoluta, a verdade e a bondade a menos que a consciência, que conhece esses atributos, esteja na mais pura condição, não sofrendo modificações nem abalos externos. E é nesse estado de saber ou de ser que existe Felicidade, que é o deleite do Espírito, bem longe do prazer que à apenas sua opaca sombra. Assim, a verdadeira natureza do homem é divina, enquanto que neste mundo dos sentidos de percepções, ele sempre é impelido a buscar entre as sombras aquilo que já conheceu, e numa profunda parte de si mesmo lembra essa realidade. É por isso que na Índia dizem que perceber a beleza em qualquer medida é uma convergência de experiência passadas da alma. Como a Beleza absoluta é sempre coexistente com a Felicidade, é natural que nas mentes das pessoas o prazer esteja ligado a beleza relativa, que percebem nas formas, e, como dissemos, o prazer é a contraparte grosseira de um deleite do Espírito que é Felicidade. Assim, quando temos prazer com determinado objeto, ou quando a mente vê a possibilidade de prazer num objeto, ele nos parece belo. Um rapaz que vê numa moça uma fonte de prazer para si e deseja possuí-la, descobre nela todo tipo de beleza que não é visível às outras pessoas. Mas essa mesma moça, quando cessa de ser seu objeto de gratificação, não parece ter toda beleza que previamente sua mente lhe atribuiu. Cada forma e objeto parecem belos porque o sentimento do belo é baseado no prazer dos sentidos e da mente, mas cedo ou tarde, perdem seu encanto. Até a beleza de prazeres mais sutis sem desejo de posse, como a beleza que se sente ao olhar uma passagem ou ouvir uma música, desaparecem depois de certo tempo. Quem vive num belo lugar ou perto de algo belo, não se emociona mais como antes, quando deram estímulo a seus sentidos. Naturalmente não é incomum que uma pessoa pense que deve apreciar a beleza e periodicamente fale nela, mas na verdade, não se emociona internamente, pois não tem mais o estímulo dos sentidos. Não nos referimos à expressão verbal, mas a resposta interna. A verdadeira natureza do prazer, e por conseguinte da beleza associada ao prazer, é que ela se desgasta e sacia, ou busca sempre novos estímulos. Por isso Eric Newton (1893-1965), um renomado crítico, diz que o teste da presença e intensidade da beleza é o prazer, motivado pela gratificação do desejo de repetir a experiência. Entretanto, outro escritor conhecido, Jacques Maritain (1882-1973) diz que a percepção da beleza produz deleite, e o intenso deleite do espírito, o absoluto contrário do prazer, a agradável titilação da sensibilidade. Quando, mesmo por um momento, a Beleza pura é tocada, nesse instante a consciência fica liberada dos impedimentos e limites que normalmente a distorcem e a restringem. E, nesse momento de liberação, há também o deleite do espírito porque, como mencionado antes, ambos, a beleza e o verdadeiro deleite são coexistentes com a consciência  em estado puro. Essa experiência de momentânea liberdade e deleite, que acompanha a percepção da beleza, age como um estímulo em quem teve essa experiência, e ele busca repeti-la. Não são apenas as formas grosseiras de prazer como o desejo de possuir fisicamente objetos atraentes que a pessoa quer repetir muitas vezes. Ela anseia pela experiência que começa nos níveis mais densos e, depois, conforme ela vai evoluindo, requer alegria mais refinadas. Por isso, há pessoas que se ocupam com o que pensam ser belo. Precisam de satisfação contínua com isso; buscam a alegria do estímulo; ficam completamente absorvidos no desejo de repetir tal experiência e a excitação que ela proporciona, assim como outros são absorvidos no estímulo que dá o conhecimento intelectual. O desejo de repetir a experiência cria naturalmente um hábito e um vício, embora o que se busque repetir seja belo ou elevado. A ânsia por experiência de qualquer natureza é o verdadeiro obstáculo que impede a realização da Felicidade e Beleza divinas porque nessa busca interminável sempre modifica a consciência. Mesmo quando não existe o desejo de repetir a mesma experiência, há a expectativa de algo similar, baseada na lembrança do que já se conhece. Dessa maneira, a mente está numa condição de inquietação. A consciência torna-se instável e não consegue refletir o divino, sendo engolida pela escuridão das coisas finitas. Diz Plotino (204-270) “Quem busca belezas inferiores como se pegasse a realidade, sem dúvida será como na fábula, pois são apenas belas imagens refletidas na água onde se alongam como sombras que mergulham no lago e desaparecem”. A Beleza pura, a Beleza do Divino não pode ser captada por se precisar dela. Não podemos ver a beleza porque há intenção de vê-la. Não é a revelação de algo novo, mas é a revelação de algo que existe sempre, que ocorre quando, de alguma maneira, o observador participa de sua natureza, isto é, quando ele se libera de todas as impurezas que surgem em seu ser pelas atividades nascidas do desejo da mente. Assim, aprender a ver a Beleza em todo seu esplendor não é apenas apreciar os belos objetos ou cultivar um gosto refinado. Alguns indianos antigos diziam que o deleite surge quando cessa a ânsia. Diz Krishnaji (1887-1910): “Existe a beleza que não oferece estímulo (...). Encontramos essa beleza não por deseja-la, por precisar dela, por almejá-la, mas somente quando todos os desejos pela experiência chegaram ao fim”. Isso não significa virar as costas ao mundo e não olhar as maravilhas da Criação, as árvores, os rios, o céu, o rosto das pessoas etc., tudo são imagens de Beleza, mas devemos olhá-las de maneira diferente, purificadas da névoa dos sentidos.  Devemos nos movimentar e ter uma visão interna mais pura, que está em todos os homens, mas que é usada somente por poucos. Esse olho interno abre-se somente quando houver um estado mental direcionado para o mais elevado objetivo humano, a liberdade. É um estado mental no qual as transformações produzidas pelos apegos chegam ao fim, quando não há dependência em nada de fora, e as limitações produzidas pelos sentidos de tempo, espaço, nome e forma caem aos pedaços. Tais limitações existem porque há apego a determinados objetos e formas, a suas lembranças e ao desejo de mais prazer. Quando a alma ou espírito é liberado dessas limitações, ela assume sua verdadeira forma, que é a forma da  mais pura consciência, brilhando com beleza e refletindo o divino. Por isso, um dos maiores escritores indianos, escrevendo sobre Beleza, disse que quem a quiser ver deve ter um coração que esteja livre de impurezas e brilhe intensamente. A menos que o coração seja claro como cristal, delicado e sensível como um botão de flor, não pode vibrar em harmonia com a vida, transcendendo os limites da existência separadas.  Disse Michelangelo (1475-1564): “A beleza é a purificação das superficialidades”. Provavelmente ele se referia ao trabalho de um escultor que, ao remover as superficialidades, liberava a beleza na pedra. A observação aplica-se muito bem ao que ocorre dentro de cada indivíduo. A beleza não é objetiva nem subjetiva, porque está em toda parte, esperando ser reconhecida. Tal compreensão surge quando um indivíduo vê a si mesmo como o escultor faz com a pedra, de onde ele vai liberar uma beleza invisível, e continua a remover o supérfluo cortando e polindo para que a beleza até então invisível se mostre. Quando não há beleza interna, não há beleza externa, somente a imagem da beleza. Mas, por meio da reta percepção e do conhecimento começamos a liberar a alma ou Eu da sórdida prisão construída pela densidade dos desejos do corpo e dos sentidos, havendo, então, uma percepção cada vez maior na Beleza imortal. E, com cada insight, haverá aumento de claridade, uma vez que, até uma momentânea visão do Real, é como uma ablução (lavagem do corpo) purificadora. E assim, ao liberar a Beleza, a Beleza torna-se o Libertador. Plotino disse: O homem infeliz, não é aquele que negligencia as belas cores e formas corpóreas, que não tem poder e cai do domínio e do reino, mas só quem não tem a divina posse pela qual o amplo domínio da terra e do mar, e ainda o mais extenso império dos céus, deve ser abandonado e esquecido, se, desprezando e deixando estes muito para trás, pretende sempre chegar à felicidade substancial de ver a verdadeira Beleza. Peter Sterry (1613-1672) disse: “As principais coisas da beleza são luz e proporção. Teu Cristo em ti são ambas; a luz e a sabedoria de Deus. Vives então belamente quando esta luz envolve teus pensamentos, afeições e ações, brilhando em tudo e tomando cada coisa proporcional em si mesma”. Publicação da Sociedade Teosófica no Brasil. Abraço. Davi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário