"Boatos
espalharam-se por toda a região acerca do sábio Homem Santo que vivia
em uma pequena casa sobre a montanha.
Um homem da vila decidiu fazer a longa e difícil jornada para
visitá-lo. Quando chegou na casa, ele viu um simples velho dentro que o
recebeu, abrindo a porta.
Eu gostaria de ver o sábio Homem Santo, disse ele ao outro. O velho sorriu e permitiu-o entrar.
Enquanto
eles caminhavam ao longo da casa, o homem da vila olhava ansiosamente
em torno, antecipando seu encontro místico e divino com um homem
considerado um verdadeiro Santo.
Mas antes que pudesse dar pela coisa, ele já havia percorrido a
extensão da casa e levado para fora. Ele parou e voltou-se para o velho:
Mas eu quero ver o Homem Santo!”
Já
o fizeste. disse o velho. Todos que tu encontras em tua vida, mesmo se
eles pareçam simples e insignificantes (...) veja cada um deles como um
sábio Homem Santo. Se fizeres deste
modo, então quaisquer que sejam os problemas que trouxeste aqui hoje,
serão resolvidos.
E fechou a porta."
Conto Zen
Texto de
Hammalawa Saddhatissa
(1914-1990). Quem não procura um mestre, um guia, um orientador? De
certo modo estamos todos nesta busca, ou já estivemos em algum momento,
até que a decepção do cotidiano sem mágica
dominasse nosso coração. Já na infância (quem sabe justamente por causa
dela) ansiosamente sonhávamos encontrar o herói ou heroína que
possuiria o maravilha da dignidade mágica dos seres perfeitos. Queríamos
estar próximos desta personagem luminosa e bela,
e de muitas formas também queríamos ser como ela. De início, imaginamos
o Mestre nas figuras imaginárias e celestiais, nas fadas-madrinhas, nos
magos poderosos, nos seres maravilhosamente inefáveis que povoam as
nossas mentes infantis. Lutavam contra dragões,
contra os monstros que espreitavam nossos sonhos. Logo depois surge a
possibilidade do Mestre existir em nosso pai, nossa mãe; para aqueles em
cuja infância esta possibilidade era impossível, o Mestre era todo
aquele que nos transmitisse a promessa de força
e orientação - para melhor ou para pior: um professor, nossos avós,
quem sabe? À medida que crescemos e o mundo se torna cada vez mais
difícil de definir apenas através dos contos e sonhos da infância,
recriamos a concepção do mestre através das nossas muitas
e variadas projeções e expectativas pessoais, nossa educação religiosa,
nossa cultura. Em determinado momento o mestre se dilui no amplo
deserto de concretude, racionalismo e rotina que muitas vidas se tornam.
O poderoso sonho de infância, aquela potencialidade
valiosa que toda criança carrega consigo e que poderia fazer surgir em
cada ser humano toda a sua beleza e sabedoria, se esvai no processo
endêmico de inconsciência e falta de discernimento das sociedades. A
angústia da solidão da alma espreita os corações
cotidianos, fazendo nascer crentes ou céticos, românticos ou cínicos,
mas poucos buscadores conscientes. Assim a ideia do mestre passa para
outros universos, e o ideário do orientador e guia é direcionado para o
mundo político, social, religioso ou místico
menos leve e mais prático da idade adulta. Neste momento o desejo
humano de realização
psico espiritual se espraia para um grande
espectro de possibilidades: alguns mantém a beleza potencial da infância
e sabem amadurecer esta busca em si mesmos, mas a maioria sucumbe à
frieza do cotidiano, à praticidade cética do
intelecto ou às futilidades pessoais e simplesmente troca o simbolismo
do mestre sensível pelo do mestre vazio, ideológico ou artificial; mais
alguns se perdem nas fantasias distorcidas, fanatismos religiosos ou
misticismos exacerbados e anseiam pelo encontro
com algum ser fantástico, extraordinário ou extraterrestre, que
representará em maior ou menor grau aquilo que secretamente esperam
encontrar, ou eles mesmos encarnarem. Força? Poder? Fama? Assombro ou
sabedoria mística? Qual será a grande sedução do mestre?
Qual será a mágica adulta que nos fará seguir este ou aquele, qual
inspiração a figura do líder nos provoca? Pois acredite, todos nós
seguimos ou buscamos seguir alguém que nos inspire. Mesmo aqueles que
sucumbiram à frieza do dia-a-dia sem mágica ainda desejam
ouvir palavras que lhes façam sentir melhor o ritmo da vida, apesar de
nem mesmo saberem disso. Mesmo os racionalistas, determinados a jamais
admitir sua subordinação aos sonhos, também abrigam secretamente no
coração o anseio pelo encontro com a sabedoria
(talvez travestida em intelectualismo empírico) e seguem atentamente os
seus mestres do conhecimento ou da retórica. Assim, o que estamos
buscando realmente? O que desejamos do mestre? Na verdade, todos
queremos um pai. Até porque a mãe, mesmo a mais fria
e cruel, não pode nos negar o fato de que habitamos seu útero, e com
ela compartilhamos carne e sangue. Mas o pai (...) onde está nosso pai?
Como atingi-lo, tocá-lo em sua intimidade, ser uno com ele? Onde está o
útero paterno dentro do qual podemos nos forjar
homens e mulheres íntegros e sábios? Eis o porque da busca pelo mestre
ser uma busca de natureza yang, masculina, criativa; de uma certa forma
buscamos a comunhão com o pai,
queremos conhecer um modo de também unir nossa carne e sangue com a
face masculina da vida. Pois apesar da aparente ditadura paternalista
das sociedades humanas, somos muito mais órfãos do toque firme das
sábias mãos paternas do que do suave embalar do amoroso
colo materno. Por que? Porque a Mulher se define em si mesma, é íntegra
em sua profunda integração com a terra, é a representação da Raiz do
Mundo. Mas o Homem se perde em muitas batalhas, está sempre imerso em
uma peregrinação eterna para encontrar sua própria
tradução, representa o inefável e fugidio Coração do Céu. Sempre temos a
Grande Mãe próxima de nossas mãos e corações; já o Grande Pai, este
temos de alcançar por esforço próprio, pois jamais estará no mesmo lugar
duas vezes; o mestre não nos espera, ele caminha
pela margem do rio, apontando sempre para a verdadeira meta: a margem
oposta. Realmente, o Pai se move por caminhos misteriosos (...). Mas
quando esta constatação nos escapa, quando o vinho do místico não atinge
nossos lábios com a força necessária, esquecemos
o sentido da busca e queremos apenas um mestre que corrobore nossas
metas, que nos diga aquilo que queremos ouvir, e que seja como nossas
fantasias pessoais imaginam. Na tradição
Taoísta, assim como na Zen buddhista,
há uma importante lição sobre o mestre, lição esta que aprendi no
início de minha prática e que se provou completamente pertinente ao
longo de meus anos de estudos
e esforços: quase sempre subestimamos
o verdadeiro mestre.
Essa é uma lição amarga. Certa vez, um amigo me confessou que ele
realmente busca encontrar alguém que encarne o poder místico de um
mestre; alguém
que transmitisse alguma luz ou energia transcendente, alguém que
emanasse o poder da sabedoria através de fenômenos psíquicos,
manifestações de poder mental. Assim, seria fácil ele dizer para si
mesmo com convicção: Sim!
ESSE é um verdadeiro mestre!
Quantos de nós pensam exatamente o mesmo? Quantos entendem a força de
caráter e sabedoria como algo que só pode ser transmitido de forma
mágica, divina, não-humana? E no entanto, o mestre possui o coração
simples e a mente clara dos seres de bom senso. O mestre não precisa
levitar, não transforma o chumbo em ouro, não carrega em si uma
necessária magia sedutora. Gostaria de encontrar um mestre?
Eu tenho a lhe oferecer duas boas possibilidades, ambas facilmente
alcançáveis: a primeira, observe sua família e amigos; no seio de seus
semelhantes mais rotineiros está a face de um mestre poderosíssimo. Este
é um mestre implacável e duro, porque ele não
é condescendente com nossas vaidades, mimos ou fantasias ignorantes. Em
meio às pessoas que povoam nosso cotidiano, pessoas que menos
valorizamos como sábias e coerentes, pode-se ouvir o sussurro de uma
linguagem sutil de aprendizagem e sabedoria. Mas este
mestre exige muita atenção e prática para ser visto e ouvido;
normalmente é o mais acessível e o menos perceptível. Afinal, se
fôssemos conscientes de que nossa fonte mais profunda de humildade e
sabedoria reside justamente nos aspectos menos inusitados da
vida, não seriamos estes homens e mulheres tão tensos e insatisfeitos
que somos, não é mesmo? Muita tristeza e muitas mágoas seriam evitadas
se todos nós soubéssemos enxergar o Mestre no cotidiano de nossas
relações familiares e fraternas, nas faces de nossos
inimigos e nos gestos de nossos semelhantes. O segundo meio de buscar o
mestre pode ser encontrado no contato com pessoas de bom senso e
coerência. Elas existem, podem acreditar. Mas o problema é que
frequentemente elas não estão na TV, em templos ou oferecendo
palestras grandiosas. O segredo para conhecer este mestre é: aprenda a
ouvir atentamente, refletir cuidadosamente, e comprovar por prática
direta se aquilo o que é dito é saudável e possui fundamento. Simples
não? Nem tanto. Estamos muito cheios de si para
abaixar a nossa guarda e enfrentar as opiniões e ideias com a mente
vazia, a mente no Não Eu. Aquilo que ouvimos do mundo atinge nosso
entendimento após passar pelo filtro de nossas próprias expectativas,
nossos anseios, nosso egoísmo. Assim, nem sempre o
que entendemos como saudável o será realmente. Deste modo, como a
tradição Zen, e antes dela a
Taoísta, procura demonstrar, o mestre quase
sempre nos passa despercebido, às vezes até menosprezado. Muitos de nós
são profissionais em se posicionarem independentes e alheios a qualquer
mestre. O argumento é o mesmo: devemos buscar
o mestre em nós mesmos, e não externo a nós. Ora, de fato este
argumento tão difundido carece de um detalhe, em geral esquecido: aquilo
que fundamenta nossa capacidade de auto organização e auto orientação
depende fundamentalmente daquele mestre externo, sem
nome e sem corpo definido, encarnado nos seres extraordinários que
passam por nós em certos momentos, apontando o caminho através de suas
ações coerentes e candura de espírito. A vida possui uma fantástica
capacidade de nos apresentar o místico através do
comum. Ela faz isso todo o tempo, sem cessar. Ás vezes conhecemos
grandes pessoas, ouvimos advertências e orientações valiosíssimas de
seres aparentemente sem nenhuma importância religiosa, social, política
ou espiritual, e serão neles que o Mestre vai se
manifestar. Só depois, muito depois, poderemos ouvir o mestre interior.
Jamais pretenda negar o valor da vida externa na pretensão de atingir
seu mestre interno. Mas e o mestre físico, aquele homem ou mulher
palpável junto ao qual podemos nos sentar e ouvir
as palavras de conforto e otimismo que irão nos curar as feridas da
alma? Bem, estes na verdade são apenas arautos do verdadeiro mestre.
Surgem e desaparecem com o tempo, seguindo as marés da vida humana. São
místicos e transcendentais? Isso não tem a mínima
importância, os mestres reais são apenas honestos e verdadeiros, e
condutores de uma sabedoria claramente amadurecida e equilibrada que
pode curar-nos de nós mesmos. Se podem levitar ou lançar raios pelos
olhos, será irrelevante. Como podemos reconhecer o
grau de coerência de um pretenso mestre? Para isso, é preciso uma
grande dose de disciplina e prática contemplativa, e muita energia de
discernimento e atenção. Vivemos um tempo onde muita informação é
oferecida, e pouca paciência é praticada para ponderar
sobre sua validade. Mas não se iluda com seu mestre, se acha que já o
encontrou: ele também passará. Mesmo o homem ou mulher mais sábio não
será o mestre definitivo, eles apenas indicam um caminho de atenção e
prática constante, de forma a que reconheçamos
finalmente a face e a voz do mestre real em todas as coisas do mundo.
Eis porque é dito no zen: se
encontrares o Buddha, mate-o.
Pois, afinal, não há maior professor e mestre do que este: a liberdade
da mente. Deixo para o final deste ensaio
o anúncio da maior busca possível: a busca pela liberação de si mesmo.
Quando passamos pela vida, olhando cada canto e esquina à procura do
santo, do divino e do sábio, devemos aprender a lição de que o
ensinamento mais precioso é a simples capacidade de viver
sem apegos, sem aversões, sem indiferenças. Ao compreendermos a arte da
felicidade através da ótica de consciência, o quê mais haverá para
buscar?
http://www.nossacasa.net/shunya. Abraço. Davi.
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