Budismo.
Texto de Padma Dodge. www.budavirtual.com.br.
A NOÇÃO DE MATERIALISMO ESPIRITUAL COMO DESCULPA. O ego pode se apropriar até
mesmo das ferramentas que mais diretamente surgiram para enfrentá-lo. Quando cursei filosofia, reli Walden ou A Vida nos Bosques, de
Henry David Thoureau (1817-1862), após muitos anos. Não me entendam mal na
avaliação que segue no segundo parágrafo: a prosa de Thoureau é extraordinária,
e o experimento todo, no seu contexto espaço-temporal, é também algo digno de
respeito. Os transcendentalistas, como já escrevi em outros textos, são a mais
requintada mistura do espírito maverick estadunidense com o
iluminismo e o começo daquele cosmopolitanismo que viria a desembocar no multiculturalismo
– que evidentemente é uma boa coisa, que permite, por exemplo, que ocidentais
como nós admiremos e pratiquemos uma tradição asiática como o budismo. E,
claro, o experimento de Thoureau também era uma reação dramática contra o status
quo, que em alguns sentidos vale até hoje: um sujeito que vai para o
mato, em plena revolução industrial, para ver o quanto mesmo ele precisa
trabalhar, quando não está ocupado em agradar as expectativas dos outros.
Fantástico. Porém, quando reli este livro, após alguns
anos de prática do darma, em particular do vajrayana, o que se salientou foi o
reconhecimento de uma perspectiva de autocentramento, ou mesmo uma MENTALIDADE
DE POBREZA em Thoureau – isto é, uma perspectiva no fundo,
autolimitadora, e não libertadora. Com relação ao autocentramento, é fácil
entender, o espírito independente, por vários aspectos positivos que tenha,
tende ao individualismo, e Thoureau, ninguém irá negar, se especializava em
“fazer as coisas a seu modo”, acima de qualquer advertência ou feedback.
No caso dele isso pode não ter produzido exatamente um asshole (babaca?
cretino?), como muitas vezes produz, mas certamente havia um pouco da
mentalidade mesquinha, da economia dos recursos próprios para o
autodesenvolvimento, sem olhar tanto para as necessidades dos outros. Mesmo
considerando que ele estivesse dedicado à escrita, e com isso, ansiasse por
leitores, e tenha beneficiado muitas pessoas com sua narrativa. Ainda assim, é claro que Thoureau não tinha em mente qualquer tipo
de comprometimento perante leitores, e nem imaginaria algo assim. Sua noção
radical de liberdade incluía uma visão de compaixão, mas era uma compaixão, se
pode dizer, em certo sentido restrita, pequena. Essa perspectiva também existe
na tradição budista, e é relativamente válida. Refletindo sobre isso e sobre
muitas atitudes que vejo na sanga incipiente, reconheci que o espírito
individualista (do qual certamente os transcendentalistas não são culpados, mas
que ampliaram e divulgaram como ninguém) unido a uma noção distorcida de
materialismo espiritual, junto com os sempre presentes estereótipos, tanto
sobre o que é um budista, e sobre a própria condição, quanto sobre a condição
do “darma no ocidente”, leva muitas vezes a um EMPOBRECIMENTO DA
PERSPECTIVA E DA PRÁTICA BUDISTA. “Materialismo espiritual” é um
termo cunhado por Chögyam Trungpa Rinpoche (1939-1987) – mestre consumado que
era chamado pelo mais elevado título dentro do vajrayana, “rigdzin”
(“vidyadhara”), isto é, alguém que detém o reconhecimento da natureza da
realidade, além dos sonhos adventícios que incluem o próprio espaço e o tempo.
O materialismo espiritual é apropriação da prática espiritual pela perspectiva
mundana, para autoengrandecimento ou autojustificação, e inclui desde praticar
a espiritualidade para sustentar uma imagem de “pessoa do bem”, até usar os
ensinamentos para encontrar um “lugar no mundo”, no extremo na forma de uma
carreira, mas no mínimo como identidade perante os outros, e como forma de
inserção no mundo. Porém, o sofisticado ensinamento sobre
materialismo espiritual é muitas vezes rebaixado a uma condenação ao ASPECTO
MATERIAL OU FORMAL DA PRÁTICA. Algumas vezes as pessoas dizem que
determinados elementos da prática, especialmente rituais, ou a aquisição dos
muitos apetrechos do vajrayana (sino, textos, roupas), configuram por si só
“materialismo espiritual”; algumas pessoas chegam ao ponto de chamar de
materialismo espiritual as tradicionais acumulações de milhares de mantras, ou
de tempo de meditação e os retiros longos, que os praticantes tradicionalmente
fazem no budismo tibetano. Evidentemente, apetrechos e
rituais elaborados PODEM ajudar a cristalizar uma “identidade
de praticante”, que por sua vez, PODE se tornar materialismo
espiritual. Mas em si mesmos eles não são, de forma alguma, materialismo
espiritual. Todos os métodos aparentes do budismo são uma manifestação da
compaixão dos budas. A mentalidade empobrecida pode até gerar uma identidade de
despojamento, que abre mão da prática formal, do professor, dos textos, da
postura de meditação, dos votos, da perspectiva do refúgio, do convívio com a
sanga, do estudo sistemático, e das oferendas de tempo, trabalho e dinheiro ao
darma – e esse abandono todo, como também apropriação de um conceito budista
(no caso o próprio “materialismo espiritual”) para a autojustificação,
configura exata, justa e novamente apenas materialismo espiritual. Esse modo do
materialismo se estabelece como apenas uma espécie de apego à noção do “não
materialismo”, novamente uma forma de construir uma “identidade de praticante”.
Agora uma identidade de isento, budista de internet, ou mesmo “não praticante”,
sem compromissos, de desgarrado ou despojado das formas, alguém que “renuncia
ao próprio darma”, já que o darma exposto em termos qualquer estrutura possível
seria apenas um dedo que aponta para a lua, e o que interessa é a lua,
evidentemente. Taca fogo nesse dedo de uma vez, então! Claro, porque a lua está sendo incessantemente reconhecida sem
nenhum suporte relativo. Não sei nem porque usar a palavra “budismo” ou falar
no assunto, então. Imagina se algo assim seria uma desculpa! Em vez de uma compreensão aguda dos quatro pensamentos que
transformam a mente (nascimento humano precioso, impermanência, carma e
insatisfatoriedade inerente ao samsara), ocorre uma desqualificação de qualquer
método sublime e testado pela linhagem em nome de uma sabedoria MERAMENTE
NOMINAL, isto é, uma ideia meio nebulosa de sabedoria que surge de ver uns
vídeos e pensar alguns minutos, de forma não sistemática, sobre o assunto. Basicamente,
um “insight de maconheiro”. Muito menos que um remendo mal feito (a metáfora
usual para quem toma entendimento intelectual por realização), uma falta de
honestidade para consigo mesmo, e para com a tradição budista inteira. Os grupos e fóruns de budismo na internet estão basicamente cheios
desse tipo de “realização espiritual”, tornando esses lugares basicamente as
piores fontes sobre o budismo que existem. Essa perspectiva é ainda pior do que
aqueles reformistas para a modernização do darma que já querem mudar tudo sem
nem mesmo conhecer o darma com qualquer profundidade ou ter feito três dias de
prática consistente, que são também bastante comuns! Se as instituições budistas e a sanga como estrutura de
sustentação do darma são negados como um todo, o que resta para os aspectos
menores dos métodos específicos? Que dizer da mentalidade que abdica de
qualquer baliza que signifique a consecução de uma prática – tal como a
contagem de mantras – porque isso, porventura, pode se tornar um ponto de
fixação? O fato é que a tradição, inclusive a tradição que Trungpa Rinpoche
passou a seus próprios alunos, tem essas balizas: e a tradição tem embutidos
inúmeros mecanismos para evitar que essas “metas projetadas” se tornem
materialismo espiritual. Isto está previsto na prática, e em como se deve lidar
com esses números (um aspecto, por exemplo, é que as acumulações são assunto
privado, você não fala sobre elas, outro aspecto é a dedicação de mérito – a
sua prática é uma oferenda). Uma pessoa que não se engajou em nenhum modo
tradicional de prática e julga esses modos como contraproducentes está apenas
fazendo afirmações frívolas. Não há semana sem que uma
citação do Dalai Lama falando de “excesso de ritualística” no budismo tibetano
não passe pelo meu Facebook. No entanto me pergunto se essas pessoas conhecem a
prática do próprio Dalai Lama, ou dos grandes praticantes ocidentais que
receberam iniciações e orientação direta dele. Imagino realmente que, fora de
contexto uma afirmação assim possa parecer uma liberação da estrutura
aparentemente claustrofóbica do detalhismo tibetano. (A maioria das citações
budistas que se vê são mal interpretadas devido a falta de contexto). Porém, o
fato é que o que parece excessivo para alguns pode ser QUALQUER NÍVEL
DE RITUAL, até mesmo manter um altar, ou recitar votos de refúgio em voz
alta. Essa mentalidade de pobreza, ou “medo” do materialismo espiritual,
pode levar ao que o budismo descreve como o “extremo do niilismo”. Nesse
extremo, há uma indisposição, ainda que leve, com o aspecto relativo. Na
perspectiva saudável, embora o aspecto relativo seja reconhecido como
inteiramente sem fundamento, ele é completamente aceito sem nenhum tipo de má
vontade. Embora não seja reificado – não seja levado a sério – ele não é em
nenhum aspecto negligenciado. Isso implica, por um lado, as “obrigações”
mundanas, com a “sociedade” (boletos!) e principalmente as pessoas que nos são
próximas, e enfim com todos os seres – um pouco a contragosto de Thoureau, que
não queria responder a ninguém, apenas à própria consciência – mas também
implica dar prioridade à prática espiritual com algum nível de estrutura, ela
também parte do aspecto relativo. Nessa abordagem não há um
aprisionamento ao relativo, mas um usufruto completo da perspectiva absoluta só
pode ter como resultado uma boa vontade completa com o aspecto relativo, seja
este mundano, seja espiritual. OS TRÊS VEÍCULOS. Embora isso não seja claro para muitas pessoas, o vajrayana não é
uma escola, tradição ou linhagem – ainda que existem muitas escolas, tradições
e linhagens que foquem o vajrayana. Nenhum yana é identificado como uma
tradição, uma escola, ou uma linhagem – ainda que algumas vezes a nomenclatura
“mahayana” seja usada mais amplamente dessa forma na literatura técnica.
Algumas pessoas, ao serem perguntadas que tipo de budismo praticam, respondem
“vajrayana” ou “budismo tibetano” – e embora ambas as respostas tenham
problemas, num âmbito laico apenas a segunda resposta é aceitável. A primeira
resposta passa a ideia de que o vajrayana é possível sem os outros yanas, o que
é um absurdo. Além do que um praticante vajrayana, por discrição e para não
soar arrogante, não afirmaria “eu pratico os métodos mais sofisticados do
budismo”, que é o que “vajrayana” implica. Claro, o “budismo tibetano” não
é tibetano, mas uma mistura de vários budismos de origem indiana, e até um
pouco da tradição chinesa, que chegaram ao Tibete. Dizer que se pratica o
“budismo tibetano” pode informar um leigo, mas também não é, estritamente falando,
justo com a tradição. Além disso, não devemos ver o budismo como inerentemente
atrelado aos aspectos culturais ou de uma etnia. O budismo que os tibetanos
preservaram tem aspectos culturais, mas todos os métodos têm sua origem nos
ensinamentos do Buda, e na visão dos próprios tibetanos, eles vieram todos do
Buda. Quando ocidentais dizem que o vajrayana é um budismo com elementos
tibetanos ou hinduístas, eles afirmam tal coisa ignorando a própria tradição,
que se reconhece e se valida como tendo sua origem integralmente no Buda. Você
é curioso com o darma e toma refúgio no historiador, ou você toma refúgio no
darma e é curioso com o historiador? “Yana”, veículo, é um termo que
surgiu para designar sucessivas interpretações ou perspectivas do ensinamento
do Buda. Assim, o hinayana (“caminho estreito”), foca justamente a tal
perspectiva da MENTALIDADE DE POBREZA, e foi ensinado pelo Buda
para seres peculiarmente “covardes” – no sentido de que eles não se acham
capazes de um dia revelar qualidades que beneficiem cada um dos seres, mas
definitivamente se acham capazes de beneficiar a si próprios, num sentido
“supramundano”, claro. Melhor não pensar amplamente demais, e assim se perder
em expectativas injustificadas, não é mesmo? Algumas pessoas ficam
extremamente chateadas ao ler uma descrição assim, porque elas acham que
estamos falando de um grupo de praticantes determinado no espaço e no tempo, e
que isso é uma crítica sectária. Ora, qualquer um que encare os ensinamentos
budistas sem essa perspectiva (de se comprometer com a iluminação de todos os
seres, e não apenas com a própria) é um praticante do hinayana, pertença a que
tradição pertencer. O budismo indo-tibetano e as tradições mahayana em geral
apenas usaram essa classificação para chamar a atenção para o fato de que HÁ
ENSINAMENTOS LEGÍTIMOS DO direcionados para essa perspectiva, e eles PRODUZEM
RESULTADOS. A pessoa pode perfeitamente ter esse foco estreito e ainda
assim o BUDA, em sua grande compaixão, deixou uma infinidade de métodos que
podem ser usados nesse contexto (nessa mentalidade meio Walden) e
que produzem um resultado definitivo. Porém, esse resultado
definitivo produzido pelo hinayana no indivíduo não é idêntico à realização do
Buda. A segunda perspectiva, o mahayana, é que, após muitas vidas de prática,
alguém pode revelar TODAS as qualidades de um Buda –
beneficiando assim a TODOS OS SERES sem exceção. Veja como já
nessa mera descrição a pessoa que se fixa à noção de materialismo espiritual
pode usar essa visão grandiosa para justificar uma escolha pelo hinayana. Ora,
“budista não quer ser melhor que os outros”, certamente somos mais humildes que
isso! Como somos humildes, não assumimos essas coisas de vastidão ou riqueza: a
visão mais mesquinha possível é a realista, é a que vale! Lá fora as coisas não
são bem assim, meu irmão. Não só eu só posso beneficiar a mim mesmo, como
pensar que eu posso beneficiar os outros só pode ser uma extrema arrogância!
Nessa mentalidade, a pessoa não quer erguer o pescocinho e
proclamar o yana descrito como “melhor”: essas nomenclaturas são apenas uma
invenção desse pessoal para rebaixar os outros. Que ousadia desses mahayanistas
ficarem dizendo que existem práticas espirituais – completas, genuínas –, mas
inferiores! O próprio fato de falarem em melhor e pior já em si configura
materialismo espiritual! E então surge esse montão de
gente com complexo de santidade, em que a sanga budista não serve para nada,
porque é feita de pessoas imperfeitas. Chuta-se uma moita – principalmente em
grupo de internet – e saem milhares. Bom, esse tipo de jogo niilista
com as palavras pode servir a uma comunidade hippie ou a perspectivas new
age, mas nenhuma forma de budismo opera sem o reconhecimento do valor dos
ensinamentos (e sanga, e prática formal, e coisas como acumulações). É possível
que tradições budistas não falem em yanas, mas elas necessariamente descrevem
várias formas de pensar não budistas como INFERIORES. Até umas
melhores e umas piores, mas a melhor de todas, sempre a perspectiva do Buda. É
simples amor próprio. Não há nenhuma contradição aqui, aliás, haveria
contradição se uma pessoa seguindo um método específico achasse que qualquer
método serve igualmente. Isso seria o cúmulo da arbitrariedade. Ora, é porque
as pessoas veem valor em certas particularidades – e cuidadosamente se
asseguraram do valor do que estão examinando – que elas se engajam nessas
particularidades. Caso haja uma identificação não saudável à particularidade,
aí temos coisas como sectarismo e guerras religiosas, e assim por diante. Mas o
mero fato de haver uma particularidade e uma identificação não arbitrária e não
solidificada a essa particularidade, não configura nenhum tipo de materialismo
espiritual, fracasso ou desrespeito. Ora, respeitar a opinião do outro inclui a
respeitar quando, e especialmente quando, ela está justamente errada! (Desde
que ela não seja uma visão errônea, é claro, nesse caso a opinião é uma fonte
de sofrimento e não deve ser respeitada). A UNIÃO DOS TRÊS YANAS.
Sua Santidade o Dalai Lama já afirmou que, embora o diferencial
dos ensinamentos vajrayana seja classicamente descrito como o uso das aflições
mentais – tais como o desejo ou a raiva – no caminho espiritual, o fato é
que MESMO APENAS O HINAYANA já faz esse uso. Afinal de contas,
essa mentalidade de pobreza é o que nos leva a reconhecer que está tudo errado
com as coisas e assumir renúncia. É justamente o que nos leva a reconhecer o
samsara, a experiência cíclica, como insatisfatória – algo essencial para todos
os níveis de prática. (Em certo sentido, embora a mentalidade de pobreza por si
só produza mais sofrimento e mais pobreza, quando o refúgio no Buda está
presente – quando há ao menos um foco de amplidão e riqueza na mente –, a
mentalidade de pobreza pode ser efetivamente usada como caminho espiritual: ela
redunda no hinayana). Assim, são descritos três
aflições mentais básicas, e as três correspondem aos yanas: o hinayana
corresponde à aflição da aversão ou raiva – porque foca na renúncia e
reconhecimento da natureza cheia de sofrimento do samsara; o mahayana corresponde
à aflição do desejo ou apego – porque foca na preocupação com os seres, e em
seu benefício, e no contínuo revelar de qualidades; e o vajrayana corresponde à
aflição da ignorância – uma vez que diretamente usa a própria ilusão do sonho
(todas as noções duais) como método espiritual, como por exemplo, a meditação
em formas de deidades, nas energias do corpo ou diretamente na natureza da
mente, reconhecendo todas suas expressões como sendo de uma mesma natureza.
Isto está no cerne do ensinamento vajrayana que explica que o aspecto puro ou a
essência de cada emoção aflitiva é de fato uma sabedoria não sendo reconhecida
e exercida, e que a aflição pode ser reconhecida em sua natureza verdadeira.
O vajrayana olha para a mentalidade de pobreza do hinayana e diz
“ótimo, pelo menos aí a mente se volta para o darma e renuncia ao samsara”. Ele
olha para a mentalidade grandiosa do mahayana e diz “fantástico, a pessoa não
hesitar perante uma tarefa que vai levar milhões de vidas (levar todos os seres
à iluminação) é a própria expressão da mente além do tempo”. Ele olha para a
própria mentalidade e diz: “eu lambo o mel da navalha de unir realização e
prática como se não houvesse dois momentos”. A partir dessa perspectiva, o
hinayana é focado em comportamento – em ética. Não é que não haja meditação e
outras práticas no hinayana, mas quando a ênfase ou prioridade da prática é uma
vida ilibada e um aspecto livre de máculas, certa santidade individualista
(semelhante mesmo à perspectiva de Thoureau com seu experimento) isso pode
implicar limitação. Da mesma forma que com os outros aspectos do caminho, não é
o fato de ter uma vida ilibada ou ética que vai ser o problema – aliás, elas
são imprescindíveis, e sem a prática do hinayana, o mahayana e o vajrayana não
são possíveis: os yanas são cumulativos. É apenas que existe uma tendência para
a seriedade, ou despojamento – uma fixação ou seriedade ali –, em alguns casos
isso pode impedir a flexibilidade que permite a operação de uma mente mais
ampla. O mahayana, portanto, é quando a ética e a vida ilibada são tidas
como importantes, mas secundárias frente às necessidades reais dos seres. O
exemplo clássico é que, no hinayana, ao ver um cervo passar e ser perguntado
por um caçador para onde o animal foi, é necessário falar a verdade ou ficar em
silêncio. Para o mahayana, é perfeitamente lícito ASSUMIR A
RESPONSABILIDADE DE MENTIR PARA PROTEGER UMA VIDA. Isso vem de uma mente
que não se prende a prescrições, mas que tem flexibilidade para lidar com as
situações, e não se importa tanto com as consequências para si próprio – tanto
as cármicas como, muito mais ainda, as em termos de reputação – mas sim se
importa com o real benefício dos seres, no caso, o benefício tanto ao caçador,
dificultando com que ele cometa a desvirtude de matar, quanto ao animal, ao
proteger sua vida. O vajrayana adiciona um elemento selvagem a
essa sabedoria. E, ao ler isso, podemos pensar em alguém agindo de forma
tresloucada, mas o fato é que a sabedoria é incorporada a qualquer elemento
formal ou informal – não há sobras, não há aspecto que não seja coberto. Assim,
além de uma mente ampla, há esse aspecto de riqueza. Na prática o que ocorre é
que o vajrayana dispõe de “meios hábeis”, ou miríades de estruturas
tradicionais e elaborações bizantinas, que cobrem todos os aspectos da mente,
além de uma percepção deles como puros ou impuros. Hinayana é a direção certa, mahayana é encontrar a espaçosidade
nessa direção, e o vajrayana todos os conteúdos desse espaço como um rico
ornamento. Para uma pessoa que tende a conceitualizar
muito, por exemplo, em vez de um método que amarre essa mente tagarela, o
vajrayana tem métodos para converter essa tendência discursiva e obsessiva na
visualização de uma mandala detalhada – uma configuração de deidades (algumas
vezes como um exército em batalha), cada uma delas de uma cor, segurando
implementos específicos e emanando luzes de um jeito ou de outro. A mente
conceitualizadora fica assim totalmente ocupada por elementos, porém o que cada
um desses elementos aponta incessantemente é apenas e justamente a natureza do
darma. Assim a energia criativa da mente, que para os outros veículos é
rejeitada ou perante a qual se aplica antídotos, é diretamente aproveitada, sem
nenhuma perspectiva empobrecida que imponha um ditatorial “silencie a mente”,
porque isso seria “mais nobre”, ou “mais parecido com o que o Buda fez”.
Simplesmente, se a mente se configura assim, isso pode ser aproveitado, sem má
vontade alguma. ESPAÇO PLENO DE POTÊNCIAL. Sua Santidade o Dalai Lama pode pregar publicamente a necessidade
de shamata e outras formas de meditação silenciosa como muito mais importantes
do que a ritualística vajrayana, no entanto ele todo ano concede uma iniciação
que permite uma prática em que mais de 700 deidades são visualizadas. Embora
certa perspectiva historiográfica mundana e especulativa vá dizer que essas
práticas advêm de fontes não budistas, não é assim que os próprios tibetanos ou
Sua Santidade veem. Para eles, e para ocidentais devotos como eu, foi o próprio
BUDA que transmitiu, de forma mais restrita, esses ensinamentos. Porque esses
ensinamentos foram transmitidos de forma mais restrita? Porque, particularmente
em tempos mais tranquilos, a mentalidade de pobreza não é capaz de praticá-los,
e os entende erroneamente. Sua Santidade, ao frisar publicamente os elementos
mais despojados do budismo, mas seguindo sustentando toda a riqueza do
detalhismo vajrayana, está apenas sendo cuidadoso, como é efetivamente o
recomendado. O vajrayana é o melhor método, mas também o mais perigoso. Todos nós temos rotinas e entendemos aspectos de trabalho, ou
mesmo de tarefas domésticas como cozinhar, como uma sequência de etapas. Em vez
de considerar os afazeres “mundanos”, existe então essa noção da “sadhana”, que
em um de seus sentidos mais rasos, é um “roteiro de meditação”. As várias
etapas da prática purificam toda nossa perspectiva sobre rotina, afazeres e
trabalho – tudo que ocorre em etapas. Isto é, aos poucos, com a prática, até
mesmo a concatenação de ideias e a interpretação de frases são imbuídas de uma
perspectiva de riqueza. Ora, o que a conceitualização ou a leitura (em voz
alta) poderiam fazer por nós? São aspectos do samsara – o hinayana claramente
irá afirmar isso (a não ser dos textos do próprio Cânone Páli – aí é a palavra
do Buda, libertadora). Mas o treinamento ritual do vajrayana revela a sabedoria
em todos os aspectos sequenciais, sejam “mundanos” ou “espirituais”, sem de
fato um apego direto a causalidade ou a sequência, muito pelo contrário. Quando
perguntamos a um lama sobre cada uma das etapas “mas eu faço a meditação
exatamente enquanto leio, ou logo antes, ou depois?” Ele vai simplesmente nos
dizer que fazemos a prática no “espaço que criamos” ou “no espaço da mente”.
Esse espaço-tempo não é o espaço físico que contém galáxias, é um espaço muito
mais vasto – aplicamos a mente simultaneamente com o que lemos, como der, de
uma forma espaçosa. Não é um tempo que se conta em segundos ou bilhões de anos,
é atemporal. A prática do mahayana e o vajrayana ampliam o reconhecimento desse
espaço de prática de forma inimaginável. Sem nunca abandonar o aspecto
relativo, que de fora, se observado por alguém que não entende o que está
acontecendo, vê apenas uma pessoa rezando e tocando alguns instrumentos tais
como um tambor de mão ou um sino. ALÉM DO MATERIALISMO ESPIRITUAL
COMO DESCULPA. Assim, sem dúvida que buscar uma ordenação
monástica no Theravada, ou acumular mantras, ou sentar por horas numa
determinada postura podem configurar materialismo espiritual.
Ora, o ego é bastante esperto, ele consegue transformar qualquer coisa
em materialismo espiritual. Isso, nessa altura, já devíamos
estar cansados de saber. O ponto não é usar a ideia de
materialismo espiritual como uma crítica a esse ou aquele modo de prática –
quem faz isso está apenas agindo de forma sectária. Evidentemente que, se a
pessoa acha que acumular mantras é materialismo espiritual, também vai achar
que marcar tempo num relógio para fazer prática formal é materialismo
espiritual. Ou que estudar o darma, ou tomar refúgio, ou frequentar uma sanga,
ou, no extremo, até ver vídeos de ensinamentos no computador. E assim, qualquer
coisa que demarque prática formal, ou mesmo prática cotidiana, vai se tornar um
obstáculo, e enfim, a prática ela mesma vai ser vista como um obstáculo.
Mas a prática é um obstáculo? Algumas pessoas dirão que, para
budas, a prática, particularmente a formal, seria um obstáculo, porque como
eles nunca se distanciam da realização, um método para produzir realização
nesse caso seria “uma simples perda de tempo”. Mas, por outro lado, nada é um
obstáculo para BUDAS, e eles não estão no tempo, então não há “perda de tempo”
para um buda. Normalmente, para praticantes como nós, tanto as práticas simples
como as mais complexas são bastante úteis, e ambas servem para revelar se somos
capazes de manter o ponto crucial em meio a uma diversidade ampla de fenômenos.
Em outras palavras, se alguém está praticando mesmo, com base na visão do darma
e como uma expressão das próprias qualidades e as da linhagem, qualquer prática
é a manifestação das atividades do Buda, e nenhuma prática deve ser evitada –
todas devem ser aproveitadas, sem preconceito. Além disso, a própria
diversidade de práticas, e a aceitação das minúcias, é o que vence a
mentalidade de pobreza. A tradição nyingma descreve
Guru Rinpoche como já tendo surgido na flor de lótus (foi assim que ele nasceu,
segundo a tradição) completamente iluminado. Ainda assim, ele praticou
formalmente, os textos dizem, para dar exemplo para nós, que precisamos da
prática. Assim, pessoas que evitam a prática formal, ou mesmo evitam apenas
aspectos aparentemente grosseiros da prática formal, como marcação de tempo ou
quantidade, talvez sejam mais iluminadas que Guru Rinpoche, e ainda estejam num
lugar com apenas seres completamente iluminados, que não precisam sequer de
exemplo de prática espiritual. Por outro lado, existe uma “pequena
possibilidade” disso ser apenas desculpa, e um exagero niilista, ou um tanto
coisa de hippie new age em torno da concepção profunda de
materialismo espiritual. Pode até ser que seja algo assim (…). O LUGAR CERTO
DO CONCEITO DE MATERIALISMO ESPIRITUAL. Assim, COMEÇAR pelo
conceito de materialismo espiritual não é proveitoso. É preciso praticar e ter
alguma espiritualidade para então inevitavelmente distorcer isso, e então
aplicar um antídoto. Se a pessoa COMEÇA COM O ANTÍDOTO, DAÍ
POSSIVELMENTE ELA NÃO GERA NEM MESMA A PRÁTICA. Isso acontece
frequentemente. Existe certa mentalidade de riqueza até mesmo
em acatar que o materialismo espiritual vai inevitavelmente acontecer. Em certo
sentido, a mente que se DEFENDER do materialismo espiritual,
antes de estabelecer espiritualidade, é mesquinha. É como uma criança que não
joga futebol porque pode ralar o joelho. Ora, todo mundo rala o joelho enquanto
criança, muitas vezes. Se deixássemos de fazer algo porque poderíamos ter o
joelho ralado, o quanto teríamos perdido? Da mesma forma, precisamos entrar em
situações que vão revelar nossos obstáculos. Se não deixamos o materialismo
espiritual se formar, nós não o enfrentamos – ele segue lá, como um potencial
oculto. Para qualquer praticante, o conceito sublime que Trungpa Rinpoche
nos deixou é essencial, é um esforço diário. Já aprendemos pelo menos um pouco
a não usá-lo como desculpa, mas a reconhecer que diariamente caímos nessa
armadilha – e, como com o ralar de joelhos, levantamos, sacudimos o pó e
seguimos o jogo da prática formal e cotidiana. PS.: Este texto está focado no
vajrayana e na tradição tibetana, mas mesmo no Zen ou no Theravada há inúmeras
práticas budistas importantes, como recitação de textos e oferendas diárias
perante o altar. Os budistas desgarrados – budistas “de internet” – podem se
sentir um pouco perdidos com essas ideias, porque esse é exatamente o tipo de
coisa que se aprende apenas presencialmente (também a meditação silenciosa, é
preciso dizer, só se aprende pessoalmente). Da mesma forma, acumulações e as
práticas vajrayana começam no relacionamento com o professor, e não existem
fora desse relacionamento. Assim, para quem é curioso com o budismo e deseja
tomar refúgio, aqui pode nascer uma vontade forte de efetivamente conhecer
pessoalmente a tradição, nem que isso implique gastos e viagens (dentro e fora
do Brasil). Que assim seja! Que todos abandonem a
mentalidade derrotista do despojamento espiritual. Que possamos nos engajar nos
métodos do Buda com toda sofreguidão e paixão que temos pelo vasto fast food do samsara, e que enfim essas próprias aflições
de ânsia pelo darma, em choque com o darma, se revelem qualidades intrínsecas
da mente, incapazes de causar dano a nós mesmos e aos outros. Que os aspectos
de simplicidade e complexidade, facilidade e dificuldade, sejam totalmente
transcendidos. Que não julguemos a prática de nosso professor, e sim a acatemos
como nossa, até revelar para benefício de todos os seres, e como expressão da
realização inata, toda a multiplicidade infinita de meios que levam ao
reconhecimento final. www.budavirtual.com.br.
Abraço. Davi
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