terça-feira, 27 de março de 2018

MEUS PAIS E MINHA INFÂNCIA


Livro Autobiografia de Um Iogue. Paramahansa Yogananda (5 de janeiro de 1893 a 7 de março de 1952) foi um iogue e guru indiano. É considerado um dos maiores emissários da antiga filosofia da Índia para o Ocidente. Através da Self Realization Fellowship (SRF), a organização que fundou ao chegar aos Estados Unidos da América. Foi pioneiro ao promover a prática da meditação por meio das lições que os estudantes recebiam em casa, pelo correio, para cumprir a sua missão mundial de difundir as técnicas de KRIYA YOGA. Paramahansa Yogananda teve sua singular história de vida imortalizada no best-seller Autobiografia de um Iogue. Capítulo 1. MEUS PAIS E MINHA INFÂNCIA. OS TRAÇOS CARACTERÍSTICOS DA CULTURA INDIANA têm sido, desde sempre, a busca das verdades últimas e a concomitante relação entre guru (1) e discípulo. Meu próprio caminho conduziu-me a um sábio semelhante a CRISTO. Sua bela vida foi modelada para o benefício de todas as épocas. Foi ele um dos grandes mestres que constituem a mais autêntica riqueza da Índia e que, surgindo em todas as gerações, ergueram as fortificações que evitaram para sua terra o destino que sofreram o antigo Egito e a Babilônia. Minhas recordações mais antigas abrangem traços anacrônicos de uma encarnação anterior. Lembro-me claramente de uma existência longínqua em que era um iogue (2) entre as neves do Himalaia. Esses lampejos do passado, por alguma ligação não dimensionável, permitiram-me também vislumbres do futuro. Antes me lembro das indefesas humilhações da infância. Era com ressentimento que eu tinha consciência de ser incapaz de me locomover e de me expressar livremente. Sucessivas ondas de oração erguiam-se dentro de mim ao reconhecer essa impotência física. Minha forte vida emocional exprimiu-se mentalmente em palavras de muitas línguas. Entre a confusão interna de idiomas, habituei-me, pouco a pouco, a ouvir as sílabas bengalis do meu povo. Como se enganam os adultos ao avaliar o alcance da mente infantil considerando-a limitada aos brinquedos e aos dedinhos dos pés! A efervescência psicológica e meu corpo desobediente levaram-me a muitas e obstinadas crises de choro. Recordo-me da desorientação e do assombro que meu desespero provocava em toda a família. Lembranças mais felizes também se acumulam: os caminhos de minha mãe, as primeiras tentativas que fiz para balbuciar frases e dar os primeiros passos. Esses triunfos infantis, normalmente logo esquecidos, nos dão, entretanto, um alicerce natural de autoconfiança. O grande alcance de minha memória não é caso único. Sabe-se de muitos iogues que conservaram ininterruptamente a consciência de si mesmos durante a dramática transição da VIDA para a MORTE e de uma VIDA para OUTRA. Se o homem é apenas um corpo, a perda desse corpo realmente seria para ele o fim de sua identidade. Se, porém, no decurso de milênios os profetas falaram a verdade, o homem é essencialmente uma ALMA, INCORPÓREA e ONIPRESENTE. Apesar de insólitas, recordações nítidas da primeira infância não são extremamente raras. Durante minhas viagens por numerosos países, ouvi, de lábios de homens e mulheres verazes, o testemunho de recordações que remontam à mais tenra idade. Nasci em 5 de janeiro de 1893, Gorakhpur, no nordeste da Índia, perto das montanhas do HIMALAIA. Ali passei meus primeiros oito anos. Éramos oito irmãos: quatro meninos e quatro meninas. Eu, Mukunda Lal Ghosh (3), fui o quarto a nascer e o segundo varão. Meu pai e minha mãe eram bengalis, da casta xátria (4). Ambos foram abençoados com uma natureza santa. O mútuo amor que os uniu, tranquilo e digno, nunca se expressou com frivolidade. Sua harmonia conjugal perfeita era o foco de serenidade em torno do qual girava o tumulto de oito filhos pequenos. Meu pai, Bhagabati Charan Ghosh, era bondoso, sério, as vezes rigoroso. Embora lhe tivéssemos muito amor, nós crianças mantínhamos para com ele certa distância que beirava a reverência. Excepcional em matemática e lógica, ele guiava-se principalmente por seu intelecto. Minha mãe, porém, era uma rainha de coração e nos educou inteiramente pelo amor. Depois que ela morreu, papai externou mais sua afeição interior. Notei que seu olhar muitas vezes parecia metamorfosear-se no olhar de minha mãe. Foi em presença de mamãe que travamos os primeiros contatos agridoces com as Escrituras. Ela recorria ao Mahabharata e ao Ramayana (5) para dali retirar histórias adequadas às exigências disciplinares. Nessas ocasiões, instrução e castigo caminhavam de mãos dadas. Em sinal de respeito por meu pai, mamãe nos vestia cuidadosamente, todas as tardes, para recebe-lo ao regressar do escritório. O cargo por ele ocupado era equiparável ao de vice-presidente, em uma das maiores companhias ferroviárias da Índia – a de Bengala Nagpur. Seu trabalho implicava fazer viagens; nossa família viveu em diversas cidades durante minha meninice. Mamãe tinha mão aberta para os necessitados. Papai também era caridoso, mas seu respeito à lei e à ordem se estendia ao orçamento doméstico. Certa quinzena, mamãe gastou, alimentando os pobres, mais do que a renda mensal de papai. Por favor, tudo o que peço é que seja caridosa dentro de limites razoáveis. Mesmo uma repreensão suave de seu esposo era de suma gravidade para minha mãe. Sem revelar aos filhos seu desacordo com papai, ela fez vir uma carruagem de aluguel. Adeus, vou-me embora para a casa de minha mãe. Antiquíssimo ultimato! Rompemos em lamentos, estupefatos. Nosso tio materno chegou no momento oportuno. Segredou a meu pai algum sábio conselho, certamente provindo de priscas eras. Depois de papai ter pronunciado algumas palavras de conciliação, mamãe alegremente dispensou a carruagem. Assim terminou a única divergência de que tive conhecimento entre meus pais. Mas recordo-me de uma discussão característica: Por favor, preciso de dez rupias para dar a uma pobre mulher que veio bater à nossa porta. O sorriso de mamãe era persuasivo. Por que dez rúpias? Uma é o bastante. Papai acrescentou uma justificação. Quando meu pai e meus avós faleceram subitamente, eu soube pela primeira vez o que era a pobreza. De manhã, comia unicamente uma pequena banana, antes de caminhar vários quilômetros até a escola. Mais tarde, na Universidade, sofri tantas privações que me vi forçado a pedir a um abastado juiz o auxílio de uma rupia por mês. Ele recusou, declarando que mesmo uma rupia era  importante.  Com que amargura você se lembra da recusa dessa rupia! O coração de minha mãe teve uma lógica instantânea. Você quer que essa mulher também se lembre dolorosamente da recusa das dez rupias que ela necessita com urgência? Você ganhou! Com o gesto imemorial dos derrotados, meu pai abriu a carteira. Aqui está uma nota de dez rupias. Entregue-a com os meus votos de felicidade. Papi tinha a tendência de primeiro dizer “não” a qualquer proposta nova. Sua atitude perante aquela desconhecida, que tão depressa conquistara a compaixão de minha mãe, era um exemplo de sua cautela habitual. Na verdade, a aversão à aceitação imediata é apenas uma homenagem ao princípio da “reflexão necessária”. Sempre achei meu pai justo e equilibrado em seus julgamentos. Se eu pudesse reforçar meus numerosos pedidos com um ou dois bons argumento, ele invariavelmente poria ao meu alcance o objetivo ambicionado – fosse uma viagem de férias ou uma nova motocicleta. Meu pai foi um austero disciplinador de seus filhos quando pequenos. Mas sua atitude para consigo mesmo era verdadeiramente espartana. Por exemplo, nunca frequentou o teatro, mas buscava recreação em várias práticas espirituais e na leitura do Bhagavad Gita (6). Repudiando qualquer luxo, usava um mesmo par de sapatos velhos até que se tornassem imprestáveis. Seus filhos compraram automóveis depois que seu uso se tornou popular, mas papai contentava-se com o bonde para ir diariamente ao escritório. Ele não tinha interesse em acumular dinheiro por amor ao poder. Certa ocasião, depois de organizar o Banco Urbano de Calcutá, recusou beneficiar-se disso e não guardou para si nenhuma das ações do banco. Desejara apenas cumprir um dever cívico nas horas de folga. Vários anos depois de meu pai ter-se aposentado, um contador veio da Inglaterra para a Índia a fim de examinar os livros da Estrada de Ferro Bengala-Nagpur. Surpreso, o auditor descobriu que papai jamais havia requerido suas bonificações vencidas. Ele fez sozinho o trabalho de três homens! O contador informou à companhia. Tem em haver 125.000 rupias – 41.250 dólares de remunerações atrasadas. O tesoureiro enviou-a papai um cheque com esse valor. Meu pai deu tão pouca importância ao assunto que se esqueceu de mencioná-lo à família. Muito tempo depois, meu pai foi interrogado por Bishnu, meu irmão mais moço, que havia notado a grande quantia depositada ao ver um extrato do banco. Por que me exaltar com lucro material? Papai respondeu. Quem procura alcançar a serenidade mental não se rejubila com o lucro nem se desespera com a perda. Sabe que o homem chega sem dinheiro a este mundo e dele parte sem levar uma única rupia! Pouco depois de seu casamento, meus pais tornaram-se discípulos do grande mestre Lahiri Mahasaya (1828-1895), de Benares. Essa associação fortaleceu o temperamento naturalmente ascético de meu pai. Certa ocasião, mamãe fez uma confidência notável à minha irmã mais velha, Roma: Seu pai e eu nos unimos como maridos e mulher apenas uma vez por ano, com o intuito de termos filhos. Meu pai conheceu pela primeira vez Lahiri Mahasaya por intermédio de Abinash Babu (7), funcionário de um ramal da Estrada de Ferro Bengala-Nagpur. Em Gorakhpur, Abinash Babu instruía meus jovens ouvidos com cativantes histórias sobre muitos santos da Índia. Concluía, invariavelmente, prestando tributo às glórias superiores de seu próprio guru. Alguma vez lhe contaram em que circunstâncias extraordinárias seu pai se tornou discípulo de Lahiri Mahasaya? Era  uma preguiçosa tarde de verão e estávamos sentados na varanda de minha casa quando Abinash fez esta pergunta em tom intrigante. Neguei com a cabeça, sorrindo, antecipadamente de satisfação. Anos atrás, antes de você nascer, supliquei a meu chefe – seu pai – uma licença de sete dias a fim de visitar meu guru em Benares. Seu pai ridicularizou meu plano. Vai se converter num fanático religioso? Perguntou-me. Concentre-se em seu trabalho no escritório, se quiser progredir. Naquele dia, voltando tristemente para casa por uma vereda no bosque, encontrei-me com seu pai, que era transportado numa liteira. Ele dispensou servidores e a liteira, passando a caminhar a meu lado. Procurando me consolar, começou a discorrer sobre as vantagens de lutar pelo sucesso mundano. Mas eu o escutava sem prestar atenção. Meu coração repetia: Lahiri Mahasaya, não posso viver sem te ver. O caminho levou-nos à orla de um campo tranquilo, onde os raios do Sol ao entardecer coroavam a ondulante elevação do capim) bravo. Paramos, em admiração. E ali, no campo, a alguns metros de nós, apareceu subitamente a forma de meu grande guru (8). Bhagabati, você é muito duro com seu funcionário”” A voz ressoava em nossos ouvidos atônitos. Meu guru desapareceu tão misteriosamente como viera. De joelhos, eu exclamava: Lahiri Mahasaya! Lahiri Mahasaya! Durante alguns momentos seu pai ficou imobilizado pelo assombro. Abinash, além de conceder a sua licença, concedo também a minha, a fim de irmos amanhã para Benares. Preciso conhecer esse grande Lahiri Mahasaya, capaz de se materializar à vontade para interceder por você! Levarei minha esposa e pedirei a esse mestre que nos inicie na Senda Espiritual. Levarei minha esposa e pedirei a esse MESTRE que nos inicie na Senda Espiritual. Você nos levará até ele? Sem dúvida! Eu transbordava de alegria ante a resposta miraculosa à minha prece e a rápida e favorável alteração no curso dos acontecimentos. Na noite seguinte seus pais e eu viajamos de trem para Benares. Chegando lá no outro dia, contratamos um trole para cobrir parte do caminho, e depois tivemos de andar por ruelas estreitas para chegar à isolada moradia de meu guru. Entrando em sua pequena sala, fizemos uma reverência ao mestre, firme na habitual postura de lótus. Ele piscou os olhos penetrantes e os fixou em seu pai: Bhagabati, você é muito duro com seu funcionário! As palavras eram as mesmas pronunciadas dois dias antes no campo de Gorakhpur. E acrescentou: Alegro-me por haver permitido a Abinash visitar-me e terem vindo, você e sua esposa, em companhia dele. Para alegria dos dois, iniciou-os na prática KRYIA YOGA (9). Seu pai e eu, condiscípulos espirituais, temos sido amigos íntimos desde o memorável dia da visão. Lahiri Mahansaya manifestou particular interesse em seu nascimento, Mukunda. Sua vida estará certamente relacionada com a dele; as bênçãos do mestre nunca falham. Lahiri Mahasaya deixou este mundo pouco depois de eu nele haver entrado. Seu retrato, em moldura ornamentada, sempre honrou o altar de nossa família nas várias cidades para onde meu pai era transferido pelo escritório. Muitas manhas e noites nos encontraram, à minha mãe e a mim, em meditação ante o improvisado altar, oferecendo flores aromatizadas com pasta de sândalo. Juntando incenso e mirra às nossas devoções, honrávamos a Divindade que se manifestara plenamente em Lahiri Mahasaya. Sua fotografia teve influência extraordinária em minha vida. A medida que eu crescia, o pensamento focalizado no mestre crescia comigo. Em meditação, via com frequência sua imagem fotográfica destacar-se da pequena moldura e, assumindo forma vivente, sentar-se diante de mim. Quando tentava tocar os pés de seu corpo luminoso, ele voltava a se transformar em fotografia. Com o passar da infância para a adolescência, Lahiri Mahasaya deixou de ser em minha mente uma pequena imagem emoldurada, passando a ser presença viva e iluminadora. Eu frequentemente orava para ele nos momentos de provação ou confusão, encontrando em meu interior sua orientação confortadora. No início, sofria por ele não mais estar fisicamente vivo. Quando comecei a descobrir sua secreta onipresença, não me lamentei mais. Ele muitas vezes escrevia aos discípulos demasiadamente ansiosos em visita-lo: Por que vir me contemplar em carne e osso, quando estou sempre dentro do raio de visão de seu Kutastha (olha espiritual)? Aos oito anos de idade aproximadamente, fui abençoado com uma cura maravilhosa graças ao retrato de Lahiri Mahasaya. Essa experiência, intensificou meu amor. Quando estávamos na propriedade familiar de Ichapur, em Bengala, contraí a cólera asiática. Fui desenganado pelos médicos, que nada podiam fazer. A minha cabeceira, mamãe incitava-me freneticamente a olhar para a fotografia de Lahiri Mahasaya presa à parede, acima de minha cabeça. Curve-se diante dele mentalmente! Ela sabia que eu estava fraco demais, até para erguer as mãos em saudação. Se realmente mostrar sua devoção e se ajoelhar interiormente diante dele, sua vida será poupada! Olhei fixamente a fotografia e vi uma luz cegante, que envolvia meu corpo e o quarto inteiro. O enjoo e outros sintomas incontroláveis desapareceram: eu estava curado. Imediatamente senti força suficiente para inclinar-me e tocar os pés de minha mãe, em gesto de reconhecimento por sua fé incomensurável no guru. Minha mãe comprimiu a cabeça várias vezes contra o pequeno retrato: Ó Mestre Onipresente, agradeço-te por sua luz ter curado meu filho! Compreendi que ela também havia presenciado o resplendor luminoso que tinha me recuperado instantaneamente de uma doença quase sempre fatal. Um de meus bens mais preciosos é essa mesma fotografia. Dada a meu pai pelo próprio Lahiri Mahasaya, ela irradia uma santa vibração. O retrato teve origem miraculosa. Ouvi a história contada por Kali Kumar Roy, condiscípulo espiritual de meu pai. Parece que Lahiri Mahasaya tinha aversão a ser fotografado. Sob seus protestos, certo dia tiraram um retrato do mesmo com um grupo de devotos, inclusive Kali Kumar Roy. Foi com surpresa que o fotógrafo descobriu que a chapa, que continha nítida imagens de todos os discípulos, revelou apenas um espaço vazio no centro, onde ele logicamente esperava que aparecesse a figura de Lahiri Mahasaya. O fenômeno foi muito comentado. Ganga Dhar Babu, discípulo e fotógrafo perito, gabou-se de que o vulto fugidio não lhe escaparia. Na manhã seguinte, quando o guru estava em posição de lótus num assento de madeira com um biombo por trás. Ganga Dhar Babu chegou com seu equipamento. Tomando todas as precauções para ser bem-sucedido, sofregamente bateu doze chapas. Em todas, encontrou a impressão do assento de madeira com o biombo, mas de novo faltava a figura do mestre. Em lágrimas e com o orgulho despedaçado. Ganga Dhar Babu apelou ao guru. Passaram-se muitas horas antes que Lahiri Mahasaya quebrasse o silêncio com um significativo comentário. Eu sou Espírito. Pode sua câmera fotográfica refletir o invisível Onipresente? Vejo que é impossível! Mas, santo senhor, desejo amorosamente um retrato de seu templo corpóreo. Minha visão era limitada: até hoje não tinha percebido que o Espírito habita plenamente no senhor. Então regresse amanhã de manhã. Posarei para você. O fotógrafo novamente focalizou sua máquina. Desta vez a sagrada figura, não coberta de imperceptibilidade misteriosa, apareceu nítida na chapa. O mestre jamais posou para outro retrato; pelo menos, eu nunca vi outro. A fotografia é reproduzida neste livro (10). Os traços fisionômicos de Lahiri Mahasaya, de casta universal, dificilmente indicam a raça a que pertencia. A alegria da comunhão com Deus é ligeiramente revelada em seu sorriso enigmático. Seus olhos, semiabertos para indicar um interesse nominal pelo mundo externo, também estão semicerrados, revelando sua absorção na bem-aventurança interior. Alheio às insignificantes atrações do mundo, ele estava sempre plenamente alerta aos problemas espirituais dos que buscavam sua generosidade. Pouco depois de minha cura por meio do poder da fotografia do guru, tive uma visão espiritual que muito me influenciou. Sentado em minha cama certa manhã, entrei em profundo devaneio. Que haverá por trás da escuridão dos olhos fechados? Este pensamento inquiridor entrou com força em minha mente. Um imenso clarão de luz manifestou-se instantaneamente em minha visão interior. Divinas figuras de santos, sentados na postura de meditação em cavernas de montanhas, passavam, como imagens de um filme em miniatura na grande tela brilhante dentro de minha testa. Quem são vocês? Perguntei em voz alta. Somos iogues do Himalaia. É difícil descrever a resposta celestial; meu coração vibrava. Ah, como anseio ir ao Himalaia e tornar-me um de vocês!  A visão desapareceu, mas os raios prateados expandiram-se em círculos cada vez maiores, até o infinito. Que maravilhoso esplendor é este? Eu sou Ishwara (11). Eu sou Luz! A voz era de nuvens murmurantes. Quero unir-me a Ti! Do lento desvanecer-se do meu êxtase divino ficou-me um legado permanente de inspiração para buscar a Deus. Ele é Alegria Eterna, sempre renovada” Esta lembrança perdurou longamente após o dia do arrebatamento místico. Outra recordação de minha infância é literalmente marcante, tanto que carrego sua cicatriz até hoje. Certa manhã, bem cedo, minha segunda irmã mais velha. Uma, estava sentada comigo sob uma árvore em nossa casa de Gorakhpur. Ela me ajudava no estudo de minha primeira cartilha em bengali (idioma hindu), nos momentos em que eu consentia desviar minha vista de alguns papagaios que, ali perto, bicavam os frutos maduros da amargoseira. Queixou-se Uma de inchaço em sua perna e foi buscar um frasco de unguento. Untei meu antebraço com um pouco da pomada. Por que esfrega remédio num braço sadio? Bem, mana, sinto que amanhã vou ter um furúnculo. Estou experimentando o unguento no lugar onde a inflamação vai aparecer. Seu mentirosinho! Mana, não me chame de mentiroso até ver o que acontecerá amanhã. A indignação tomou conta de mim. Sem se deixar impressionar, Uma repetiu três vezes a ofensa. Uma resolução inflexível soou em minha voz quando lhe disse lentamente. Pelo poder da vontade em mim, afirmo que amanhã terei um enorme furúnculo exatamente neste lugar de meu braço. E o seu furúnculo estará duas vezes mais inchado que hoje! A manhã seguinte me encontrou com um robusto furúnculo no lugar indicado, o de Uma tinha duplicado suas dimensões. Com um grito, minha irmã correu para mamãe. Mukunda converteu-se em adepto da magia negra! Muito séria, mamãe instruiu-me a jamais usar o poder da palavra para fazer o mal. Sempre recordei seu conselho e o segui. Um cirurgião lancetou meu furúnculo. Uma cicatriz visível até hoje mostra onde o médico fez a incisão. Em meu antebraço direito existe um constante lembrete do poder existente na pura palavra humana. Aquelas frases simples e aparentemente inofensivas a Uma, pronunciadas com profunda concentração, tiveram suficiente força oculta para explodir como bambas e produzir efeitos definidos, embora prejudiciais. Mais tarde compreendi que o explosivo poder vibratório da fala poderia ser sabiamente dirigido para libertar nossa vida de dificuldades e, assim, operar sem deixar cicatrizes ou censuras (12). Nossa família transferiu-se pra Lahore, no Punjab (um estado a noroeste da Índia). Lá comprei uma gravura da Mãe Divina sob a forma de Deusa Kali (13), que santificou um pequeno altar informal na sacada de nossa casa. Fui tomado pela inequívoca convicção de que todas as orações que eu fizesse naquele lugar sagrado seriam atendidas. Certo dia, de pé na sacada, em companhia de Uma, observei dois meninos empinando pipas sobre o telhado de dois edifícios vizinhos, separados de nossa casa por uma rua extremamente estreita. Por que está tão quieto? Perguntou-me Uma, dando-me um empurrão de brincadeira.  Estou pensando como é maravilhoso que a Mãe Divina me dá tudo o que quero. Suponho que Ela lhe daria aquelas duas pipas! Minha irmã riu, caçoando de mim. Por que não? Inicie silenciosas orações para obtê-las. Na índia, os meninos fazem competições com pipas cujas linhas são recobertas de cola e vidro moído. Cada jogador procura cortar a linha de seu adversário. Uma pipa solta voa sobre os telhados, é muito divertido ir apanhá-la. Estando Uma e eu numa sacada interna, recoberta de telhas, parecia impossível que uma pipa solta viesse cair em nossas mãos; sua linha naturalmente passaria flutuando sobre o telhado. Do outro lado da estreita viela os competidores começaram o combate. Uma das linhas foi cortada, imediatamente a pipa flutuou em minha direção. Em razão de uma súbita ausência de brisa, a pipa permaneceu imóvel por um momento. Nessa pausa, a linha enroscou-se em um cacto que havia no terraço da casa em frente. Um longo e perfeito laço se formou para que eu a pegasse. Passei o troféu para Uma. Foi apenas um acidente fora do comum, não uma resposta à sua oração. Se a outra pipa vier até você, então acreditarei. Os olhos negros de minha irmã denunciavam mais assombro que suas palavras. Continuei a orar intensamente. Um puxão mais forte do outro jogador causou a brusca perda de sua pipa. Ela veio em minha direção, dançando com o vento. Meu prestativo ajudante, o cacto, novamente prendeu a linha da pipa com  o laço suficientemente longo para que meu braço a alcançasse. Apresentei o segundo troféu a Uma. Realmente a Mãe Divina o escuta! É tudo misterioso demais para mim! E minha irmã disparou a correr como uma corça assustada. REFERÊNCIAS: 1. Mestre Espiritual. O Guru Gita (verso 17) descreve de modo adequado o guru como “o que dissipa as trevas” (do sânscrito gu, “trevas” e ru “o que dissipar”). 2.  Praticante de yoga, “união”, antiga ciência de mediação em Deus. (Ver capítulo 26 “A ciência da KRYIA YOGA). 3. Meu nome de família foi substituído pelo de Yogananda em 1915, quando ingressei na antiga ordem monástica dos Swamis. Em 1935, meu guru conferiu-me um título religioso mais elevado, o de Paramahansa. 4. A segunda casta, tradicionalmente de governantes e guerreiros. 5. Esses antigos poemas épicos são um tesouro da história, mitologia e filosofia da Índia. 6. Este nobre poema sânscrito, que faz parte do épico Mahabharata, é a Bíblia hindu. Mahatma Gandhi (1869-1948) escreveu: “Aqueles que meditarem no Bhagavad Gita retirarão dele novas alegrias e novos significados todos os dias. Não há nenhum emaranhado espiritual que o Gita não possa desembaraçar”. 7. Babu (senhor) é colocado ao final dos nomes em bengali. 8. Os fenomenais poderes possuídos pelos grandes mestres são explicados no capítulo 30: “A lei dos milagres”. 8. Os fenomenais poderes possuídos pelos grandes mestres são explicados no capítulo 30 – A Lei dos Milagres. 9. Uma técnica iogue ensinada por Lahiri Mahasaya, acalma o tumulto sensorial, permitindo ao homem alcançar identidade crescente com a consciência cósmica. 10. Ver página 360. Quando foi à Índia em 1935-6, Sri Paramahansa Yogananda deu instruções a um artista bengali para que pintasse uma reprodução da foto original (ver página 392). Designando-a mais tarde como o retrato formal de Lahirir Mahasaya a ser usado nas publicações da SRF – Self Ralization Fellowship. Este quadro encontra-se em Mount Washington – Kentucky – USA, na sala de estar de Paramahansa Yogananda. 11. Nome sânscrito para indicar Deus em seu aspecto Regente Cósmico, da raiz is, reger. As Escrituras hindus contém milhares de nomes para designar Deus. Cada um correspondendo a um diferente matiz de significado filosófico. Deus, sob o aspecto de Ishwara, é quem cria e dissolve por sua vontade todos os universos, em ciclos regulares. 12. As potencialidades infinitas do som derivam do Verbo Criador. OM, o poder cósmico vibratório por trás de toda energia atômica. Qualquer palavra proferida com clara compreensão e concentração profunda tem valor materializante. A repetição oral ou silenciosa de palavras inspiradoras provou sua eficácia em sistemas psicoterápicos como o de Emile Coué (1857-1926). O segredo reside em introduzir um “crescendo” na frequência vibratória da mente. 13. Kali – é um símbolo de Deus sob o aspecto da Eterna Mãe Natureza. Livro Autobiografia de Um Iogue – Paramahansa Yogananda. Abraço. Davi

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