Teosofia.
Texto de Jiddu Krishnamurti (1895-1986). Capítulo II. O APRENDER A CONHECER – A
SIMPLICIDADE E A HUMILDADE – O CONDICIONAMENTO. I. O APRENDER A CONHECER-SE. Se
você considera importante conhecer a si mesmo só porque eu ou outro disse que é
importante, receio então que esteja terminada toda comunicação entre nós. Mas,
se concordamos ser de vital importância compreendermos a nós mesmos,
totalmente, torna-se então diferente a relação entre você e eu e poderemos
explorar juntos, fazer com agrado uma investigação cuidadosa e inteligente. Eu
não lhe exijo fé; não estou me arvorando em autoridade. Nada tenho para
ensinar-lhe – nenhuma filosofia nova, nenhum sistema novo, nenhum caminho novo
para a realidade, não existe caminho para a realidade, como também não existe
para a verdade. Toda autoridade, de qualquer espécie que seja, sobretudo no
campo do pensamento e da compreensão, é a coisa mais destrutiva e danosa que
existe. Os guias destroem os seguidores, e os seguidores destroem os guias. Você
tem de ser seu próprio instrutor e seu próprio discípulo. Você tem de
questionar tudo o que o homem aceitou como valiosos e necessário. Se não segue
alguém, você se sente muito solitário. Fique solitário, pois. Por que tem medo
de ficar só? Porque você se defronta consigo mesmo, tal como é, e descobre que
é vazio, embotado, estúpido, repulsivo, pecador, ansioso – uma entidade
insignificante, sem originalidade. Enfrente o fato; olhe-o e não fuja dele. Tão
logo começa a fugir, começa a existir o medo. Ao investigar-nos não estamos nos
isolando do resto do mundo. Não se trata de um processo mórbido. O homem, em
todo o mundo, se vê enredado nos mesmos problemas diários, tal como nós, e,
assim, investigando a nós mesmos, não estamos de modo nenhum procedendo como
neuróticos, porque não há diferença entre o individual e o coletivo. Esse é um
fato real. Criei o mundo tal como sou. Portanto, não nos desorientemos nessa
batalha entre a parte e o todo. Tenho de estar consciente de todo o campo de
meu próprio ser, que é constituído da consciência individual e social. É só
quando a mente transcende a consciência individual e social, que posso
tornar-me a luz de mim mesmo, a luz que nunca se apaga. Pois bem, onde
começarmos a compreender a nós mesmos? Aqui estou eu, e como é que vou
estudar-me, observar-me, ver o que realmente está sucedendo em meu interior? Só
posso observar-me em relação, porque a vida é toda de relação. De nada serve
ficar sentado nm canto e meditar sobre mim mesmo. Não posso existir sozinho. Só
existo em relação com pessoas, coisas e ideias e, estudando minha relação com
as pessoas e coisas exteriores, assim como as interiores, começo a compreender
a mim mesmo. Qualquer outra forma de compreensão é mera abstração, e não posso
estudar-me abstratamente, não sou uma entidade abstrata, por conseguinte, tenho
de estudar-me na realidade concreta – assim como sou, e não como desejo ser. A
compreensão não é um processo intelectual. A aquisição de conhecimentos a seu
próprio respeito e o aprendizado de si mesmo são duas coisas diferentes, porque
o conhecimento que você acumula a seu respeito é sempre do passado, e a mente
que leva a carga do passado é uma mente lamentável. O aprendizado de si mesmo
não é como o aprendizado de uma língua, uma técnica ou uma ciência; neste
último caso, naturalmente, você tem de acumular e memorizar, pois seria absurdo
voltar sempre de novo ao começo. Mas, no campo psicológico, o aprendizado de si
mesmo está sempre no presente, ao passo que o conhecimento está sempre no
passado e, como a maioria de nós vive no passado e está satisfeita com o
passado, o conhecimento se torna sumamente importante para nós. É por essa
razão que endeusamos o homem erudito, talentoso, sagaz. Mas, se você está
aprendendo a todo momento, a cada minuto, aprendendo pelo observar e pelo
escutar, aprendendo pelo ver e atuar, verá
então que o aprender é um movimento infinito, sem o passado. Se você diz
que aprenderá a conhecer a si mesmo gradualmente, acrescentando sempre mais
alguma coisa, pouco a pouco, não estará estudando agora como você é, porém por
meio do conhecimento adquirido. O aprender requer muita sensibilidade. Não há
sensibilidade se existe alguma ideia, que é do passado, dominando o presente. A
mente já não é então ágil, flexível, alerta. A maioria de nós não é sensível,
nem mesmo fisicamente. Comemos em excesso, sem nos importarmos com o regime
mais adequado; abusamos do cigarro e da bebida, e, dessa maneira, o nosso corpo
se torna pesado e insensível; a capacidade de atenção do próprio organismo se
embota. Como pode haver uma mente muito alerta, sensível, clara, se o próprio
organismo está embotado e pesado? Podemos ser sensíveis a certas coisas que nos
atingem particularmente, mas, para sermos completamente sensíveis a tudo o que
decorre doas exigências da vida, não pode haver separação entre o organismo e a
psique. Trata-se de um movimento único. Para compreendermos qualquer coisa,
temos de viver com ela, observá-la, conhecer-lhe todo o conteúdo, a natureza, a
estrutura, o movimento. Você já experimentou viver consigo mesmo? Se
experimentar, começará a ver que “você” não é uma entidade estática, porém uma
coisa vigorosa, viva. E, para poder viver com uma coisa viva, a sua mente
também tem de estar viva. Não pode, porém, estar viva se está enredada em
opiniões, juízos e valores. Para observar o movimento da sua mente e do seu
coração, do seu ser inteiro, você necessita de uma mente livre, e não de uma
mente que concorda e discorda, que toma partido numa discussão, disputando por
causa de meras palavras, porém que acompanha a discussão com a intenção de
compreender. Isso é dificílimo, porque não sabemos olhar nem escutar o próprio
ser, assim como não sabemos olhar a beleza de um rio, ou ouvir o murmúrio da
brisa entre as árvores. Quando condenamos ou justificamos, não podemos ver com
clareza, e também não podemos fazer isso quando nossa mente está tagarelando
incessantemente; não observamos então o que é; só olhamos nossas próprias
“projeções”. Temos, cada um de nós, uma imagem do que pensamos ser ou deveríamos
ser, e essa imagem, esse retrato, nos impede inteiramente de vermos a nós
mesmos como realmente somos. Uma das coisas mais difíceis do mundo é olharmos
qualquer coisa com simplicidade. Como nossa mente é muito complexa, perdemos a
simplicidade. Não me refiro à simplicidade no vestir ou no comer, no usar
apenas uma tanga ou bater um recorde de jejum, ou qualquer outra das absurdas
infantilidades que os santos praticam, refiro-me àquela simplicidade que nos
torna capazes de olhar as coisas diretamente e sem medo, capazes de olhar a nós
mesmos sem nenhuma deformação, de dizer que mentimos quando mentimos e não
esconder o fato ou dele fugir. Outrossim, par compreendermos a nós mesmos,
necessitamos de muita humildade. Se começar dizendo: “Eu me conheço” – você já
travou o processo do auto aprendizado; ou, se diz: “Não há muito que aprender a
meu respeito, porque sou apenas um feixe de memórias, ideias, experiências e
tradições” – terá parado o processo de aprendizado a seu próprio respeito. No
momento em que alcança qualquer alvo, você perde o atributo da inocência e da
humildade; no momento em que chega a uma conclusão ou começa a examinar com
base no conhecimento, está tudo acabado, porque então estará traduzindo tudo o
que é vivo em termos do velho. Mas se, ao contrário, não tiver nenhum ponto de
apoio, nenhuma certeza, nenhuma perfeição, terá liberdade para olhar, e quando
se olha uma coisa com liberdade, ela é sempre nova. Um homem seguro de si é um
ente morto. Mas como ser livre para olhar e aprender, quando nossa mente, da
hora do nascimento à hora da morte, é moldada por uma determinada cultura, no
estreito padrão do “eu”? Há séculos vimos sendo condicionados pela
nacionalidade, pela casta, pela classe, pela tradição, pela religião, pela
língua, pela educação, pela literatura, pela arte, pelo costume, pela
convenção, pela propaganda de todo gênero, pela pressão econômica, pela
alimentação que temos, pelo clima em que vivemos, pela nossa família, pelos
nossos amigos, pelas nossas experiências – todas as influências possíveis e
imagináveis – e, por conseguinte, as nossas reações a cada problema são
condicionadas. Você percebe que está condicionado? Essa é a primeira coisa que
você deve perguntar a si mesmo, e não como se libertar do condicionamento. Pode
ser que você nunca se livre dele, e se disser “preciso livrar-me dele”, poderá
cair noutra armadilha, noutra forma de condicionamento. Assim, você percebe que
está condicionado? Sabe que até mesmo quando olha uma árvore e diz “aquela
árvore é um figueira” ou “aquela árvore é um carvalho”, o dar nome à árvore,
que é conhecimento botânico, de tal maneira lhe condiciona a mente que a
palavra se interpõe entre você e o real percebimento da árvore? Para entrar em
contato como a árvore, você tem de tocá-la com a mão, e a palavra não o ajudará
a tocá-la. Como você pode saber que está condicionado? Que é que lhe diz isso?
Que é que lhe diz que você está com fome? – não como teoria, porém o fato real
da fome? Do mesmo modo, como é que descobre o fato real de que você está
condicionado? Pela sua reação a um problema, a um desafio, não é? Você reage a
cada desafio segundo o seu condicionamento e, como seu condicionamento é
inadequado, reagirá sempre inadequadamente. Quando tom consciência dele, esse
condicionamento de raça, de religião e de cultura faz com que você se sinta
aprisionado? Considere uma única modalidade de condicionamento, a
nacionalidade, considere-a seriamente, com pleno percebimento, para ver se lhe
agrada ou se lhe causa revolta, e se lhe causa revolta, se sente vontade de
libertar-se de todo condicionamento. Se o seu condicionamento o satisfaz, é
obvio que você nada fará a respeito dele; mas, se não se sente satisfeito ao
tomar consciência dele, perceba que você nunca faz coisa alguma sem ele. Nunca!
Por conseguinte, você está sempre vivendo no passado, com os mortos. Você só
perceberá por si mesmo o quanto está condicionado quando um conflito se
manifestar na continuidade do prazer ou na fuga à dor. Se tudo ao redor de você
decorre de maneira perfeitamente feliz, a sua esposa o ama, você a ama, tem uma
bonita casa, filhos interessantes e dinheiro a fartar, nesse caso você não está
consciente do seu condicionamento. Mas, quando surge uma perturbação, quando a
sua esposa olha para outro homem, ou você perde sua fortuna, ou se vê ameaçado
pela guerra ou por qualquer outra coisa que cause dor ou ansiedade – então você
saberá que está condicionado. Quando luta contra uma perturbação qualquer ou se
defende de uma dada ameaça exterior ou interior, você sabe então que está
condicionado. E, como a maioria se vê perturbada na maior parte do tempo, seja
superficialmente, seja profundamente, essa nossa própria perturbação indica que
estamos condicionados. Enquanto um animal é mimado, reage agradavelmente, mas
no momento em que se vê hostilizado, toda a violência de sua natureza se
revela. Vemo-nos perturbados com a vida, com a política, com a situação
econômica, com o horror, com a brutalidade e com o sofrimento existentes tanto
no mundo como em nós mesmos, e essa perturbação nos revela o quanto estamos
condicionados. Que devemos fazer? Aceitar a perturbação e ir vivendo com ela,
como faz a maioria dos homens? Acostumar-nos com ela, assim como nos
acostumamos com uma dor nas costas? Conformar-nos com ela? É tendência de todos
nós conformar-nos com as coisas, acostumar-nos com elas, culpando-as pelas
circunstâncias. Dizendo, “há, se as coisas estivessem correndo bem, eu seria
diferente” ou “dê-me a oportunidade e eu ficarei satisfeito”, ou “a injustiça
de tudo isso me massacra” – sempre culpamos pelas nossas perturbações os
outros, o nosso ambiente ou a situação econômica. Se nos acostumamos com a
perturbação, isso significa que nossa mente se embota, assim como uma pessoa
pode acostumar-se de tal maneira com a beleza que a cerca, que nem a nota mais.
Tornamo-nos indiferentes, calafetados, insensíveis, a nossa mente se embota
mais e mais. Se não podemos nos acostumar com a perturbação, dela tratamos de
fugir, recorrendo a uma certa droga, ou ingressando num partido político,
bradando, escrevendo, assistindo a uma partida de futebol, indo a uma igreja,
templo, mesquita ou sinagoga; ou procurando algum tipo de divertimento. Por que
razão fugimos dos fatos reais? Temos medo da morte – isso apenas para exemplo –
e inventamos teorias, esperanças e crenças de toda espécie, para disfarçarmos o
fato da morte, mas esse fato continua existindo. Para compreendermos um fato
cumpre olhá-lo e não fugir dele. Em geral, temos tanto medo do viver como do
morrer. Temos medo da nossa família, da opinião pública, de perder nosso
emprego, nossa segurança, medo de centenas de outras coisas. O fato simples é
que temos medo, e não que temos medo isto ou daquilo. Mas por que é que não
podemos enfrentar esse fato? Só podemos enfrentar um fato no presente: mas, se
você nunca se deixa ficar no presente, porque está sempre fugindo dele, nunca
poderá enfrenta-lo, e, tendo criado uma verdadeira rede de fugas, você está
dominado pelo hábito da fuga. Ora, se for sensível, sério, por pouco que seja,
não estará consciente de seu condicionamento, mas também dos perigos dele
decorrentes, da brutalidade e do ódio a que ele conduz. Por que então, se está
vendo o perigo do seu condicionamento, você não age? É porque você é indolente?
Indolência é falta de energia; entretanto, não lhe faltará energia em presença
de um perigo físico imediato – uma serpente no seu caminho, um precipício, um
incêndio. Por que então você não age ao ver o perigo do seu condicionamento? Se
visse o perigo do nacionalismo para sua própria segurança, você não agiria? A
resposta é que você não vê. Por um processo intelectual de análise você pode
ver que o nacionalismo leva à autodestruição, mas nisso não há nenhum conteúdo
emocional. Só quando há esse conteúdo emocional, você tem vitalidade. Se vê o
perigo do seu condicionamento como um mero intelectual, você jamais fará coisa
alguma em relação a ela. No perceber um perigo como uma mera ideia, há conflito
entre a ideia e a ação e esse conflito tira-lhe a energia. Só quando vê o
condicionamento e o seu perigo imediatamente, tal como vê um precipício, é só
então que você age; portanto, ver é agir. A maioria de nós percorre a vida
desatentamente, reagindo sem pensar, de acordo com o ambiente em que fomos
criados, e tais reações só acarretam mais servidão, mais condicionamento; mas,
no momento em que aplica toda a atenção ao seu condicionamento, você se verá
inteiramente livre do passado; ele se desprenderá naturalmente de você. Livro
Liberte-se do Passado. Abraço. Davi.
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