Teosofia.
Texto de Mary Anderson e tradução de Izar G. Tauceda. Muitas vezes ouvimos a
expressão: “NO MUNDO, MAS NÃO DO MUNDO” (no evangelho de João 17,15-16 é dito:
”Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo,
como eu do mundo não sou”), e perguntamos: Qual é a diferença? A diferença está
somente em duas pequenas palavras, duas preposições: “no” e “do” que fazem
muita diferença! Vejamos essas preposições. “Em” quer dizer em algum lugar. Alguma
coisa ou alguém pode estar temporária ou permanentemente em algum lugar. Em
certo sentido é um termo neutro, sem cor, sem paixão. Mas “do” indica posse,
pertencer a algo. Não é neutro, e pode até ter uma conotação de paixão. Até
mesmo uma criança fala de “meus brinquedos”, “meu ursinho”, “minha boneca” e os
defende como sua posse. Quando dizemos “no mundo”. Quando dizemos “no mundo” e
“do mundo”, como consideramos “o mundo”? A preposição “no” ou “do” muda o
significado de “mundo”. No “mundo” significa estar localizado no mundo físico,
o mundo material. Isso não é aviltante (desonroso). Não esqueçamos que a
matéria é tão divina como o espírito e não deve ser diminuída, como é ou era
por várias tradições ascéticas que dizem que “o mundo da carne e do demônio”
deve ser evitado e condenado. Por outro lado, “do mundo” significa a
identificação com certos valores chamados de “mundanos”, que não são materiais,
mas materialistas. Da mesma maneira, ao falarmos de “sabedoria mundana” que não
é sabedoria no sentido mais profundo, mas uma habilidade para descobrir a
melhor maneira, muitas vezes uma maneira impiedosa, de obter o que se quer ou
conseguir seus próprios fins, sejam eles materiais ou imaginados “espirituais”.
Quem aspira à espiritualidade pode pensar que o primeiro passo é afastar-se do
mundo e de suas tentações, retirar-se, tornar-se um ermitão (asceta) e viver
fora do mundo. Ainda assim essa pessoa ainda pode ser “do mundo”, assaltada por
tentações na solidão, mais ainda do que quando estava no mundo, porque ser “do
mundo” é um estado mental e não apenas um lugar. Às vezes é sábio abandonar
coisas e circunstâncias externas, como quando alguém está controlando o
alcoolismo e deve evitar frequentar bares. Mas, no fim, não podemos fugir de
nós mesmos. Certamente houve e ainda existem eremitas que foram ou são santos
genuínos. Contudo, não creio que evitar certos ambientes e buscar a solidão
possa ser condenado. Podemos estar em solidão, ainda que intimamente junto a
outros, solidários e não sozinhos. É um assunto de temperamento, de nosso
dharma pessoal, pelo menos nesta vida, se ficamos no mundo ou escolhemos a
solidão. Monges, monjas e ermitãos podem meditar em solidão, podem rogar pelos
outros e podem gerar impulsos de cura e de auxílio, formas pensamento, que
contribuem para mudar o mundo. Lembro-me de um poema de uma teósofa americana,
no qual ela descreve uma jovem que entra no mundo e pratica ativamente o bem.
Ela tem uma amiga que é monja e também faz o bem a sua maneira: “Seus
pensamentos, atravessando as montanhas, voavam para sua amiga, ela tremia sob o
hábito áspero enquanto meditava perto da fonte do convento. Somente eu sabia
por que, protegida por Deus, ela fazia isso. Seu amante cuspira nela e sua
família e amigos disseram: Tem medo da vida! É insensata como um morcego. Seria
melhor se estivesse morta! Ela sabia o que devia fazer nos difíceis dias
vindouros. Num mundo dedicado às ações, escravizado pelas máquinas, os supremos
dirigentes da coisa, somente uns poucos conhecem a terrível necessidade de
suprimento espiritual. Ela fará insistentes petições ao Trono enquanto durar
sua vida. Irei acima e abaixo no mundo, e onde eu for lançarei meu amor com os
ventos. Não saberemos onde cai a semente nem em quais sulcos vamos semear.
Nossa única esperança é acender lanternas semelhantes onde e, quando podermos,
e confiar que talvez, uma se torne uma estrela que brilhe na selva para
iluminar o homem que luta para voltar ao lugar de onde veio e procura o mapa do
Paraíso que perdeu em sua jornada. Uns poucos devem orar e planejar para as
enormes multidões de abandonados. Uns poucos, como lâmpadas, devem ser úteis na
escura clareira da floresta”. Evitar o mundo não deve ser uma forma de fuga.
Pois de qualquer maneira, não podemos fugir de nós mesmos. No outro lado da
balança, do ermitão que sai do mundo para não ser do mundo, ou que genuinamente
não é do mundo, temos o Avatar o Bodhisattva ou o Messias que não é mais do
mundo, que internamente é livre, mas que está no mundo, que limita sua
liberdade apenas exteriormente para ajudar e servir os outros e ser um farol
para eles. Até mesmo grandes instrutores espirituais, sem necessariamente serem
Avatares, Bodhisattvas ou Messias podem muitas vezes dar conselhos em assuntos
práticos de todos os dias. Ramakrishna, Ramana Mahasrshi e Krishnamurti muitas
vezes o fizeram. Conscientes ou inconscientemente, não ficaram cegos por
considerações pessoais como muitos de nós. Vem claramente, e seus corpos são
cheios de luz. Não devemos ter medo de permanecer no mundo. A verdadeira
sabedoria capacita-nos a agir sabiamente, de praticar karma-yoga como
habilidade em ação. E, vice-versa, levar uma boa vida abre caminho para a
sabedoria. Já foi dito: “Viva a vida e atinja a sabedoria”. Aldous Huxley
(1894-1963) coloca desta maneira: “A natureza da Realidade Uma é tal que não
pode ser direta e imediatamente apreendida, exceto por aqueles que escolheram
preencher certas condições, tornando-se amorosos, com coração e espírito
puros”. Fisicamente não agimos sozinhos. Todas as nossas ações físicas são
acompanhadas de pensamentos, sentimentos e motivos, que também são ações. O
verdadeiro artista trabalha na matéria física criando grande beleza, edifícios,
estátuas, pinturas, movimentos de dança, poemas, sinfonias entre outros.
Trabalha no mundo da matéria, vive no mundo, contudo seu maior trabalho é
conseguido no esquecimento do eu. E assim esse artista não é “do” mundo.
Qualquer trabalho físico pode ser arte, até um arte que não seja deste mundo. O trabalho
considerado penoso pode ser criativo. O Trabalhador que cava buracos na
estrada, somente para enchê-los novamente, o trabalhador industrial na linha de
montagem, a esposa ou a empregada que limpam, tiram o pó, levam a casa – todos
eles, nesse sentido, podem ser artistas. Muito depende de nossa atitude. O
poeta George Herbert (1593-1633) escreveu: “A empregada, em sua condição, torna
o penoso divino? Quem varre a sala, seguindo tuas leis, faz isto e a ação boas.
Esta é a famosa pedra que tudo transforma em outro”. É por isso que os monges zen
usufruem do trabalho físico. Diz o ditado de algumas ordens de monges cristãos;
“Laborare est orare (trabalhar é orar)”. Em AOS PÉS do MESTRE temos; “Pense
como faria um trabalho se soubesse que o Mestre viesse vê-lo”. Podemos fazer
coisas por amor a Deus ou por amor a alguém que amamos ou simplesmente por
amor. O que importa é esquecermo-nos de nós. Podemos, então, saber realmente o
que estamos fazendo. Ai não somos “do mundo”, mas certamente estamos “no
mundo”. Somos o mundo. Quem pratica o bem ativamente no mundo pode ser
considerado um guerreiro ou um paladino como foi Annie Besant (1847-1933). O
cavaleiro europeu na Idade Média tinha um código de honra ou de cavalaria,
provavelmente semelhante ao dos Kshatriyas: praticar o bem, lutar contra os
opressores, os injustos e maus, defender os fracos, especialmente as mulheres
que eram então, e, muitas vezes, são agora, vítimas de injustiça e crueldade.
Um sentido mais profundo pode ser acrescido, como no caso de Arjuna no Bhagavad
Gita. Os inimigos, os opressores cruéis, derrotados pelo cavaleiro, podem-se
referir não apenas a inimigos extremos, mas aos inimigos internos, isto é, à
própria fraqueza, aos traços negativos de caráter como ódio, covardia,
injustiça egoísmo. O espiritual não é o mundano. Não podemos prosseguir nos
reinos do espírito de acordo com meios mundanos. Como disse Jiddu Krishnamurti
(1895-1986): “Se quiser atingir a outra margem, não deve sair desta margem, mas
começar da outra margem”. Como pode ser isso, se tudo que conhecemos é esta margem?
Talvez esquecendo esta margem, esquecendo o eu, não esperar nada, estar aberto
a tudo que chegar. Se vamos atravessar a corrente, não ser mais do mundo, não
devemos deixar para trás, bem no fundo do coração, tudo o que sabemos, tudo o
que possuímos. Como disse Cristo a um homem rico que buscava o Reino dos Céus e
que já havia preenchido as qualificações de uma vida correta, dizendo que
sempre havia respeitado os mandamentos. Entretanto isso não foi suficiente,
disseram-lhe que vendesse tudo o que tinha e desse aos pobres, mas ele não
podia fazer isso “por que era muito rico” Mateus 19,20-22. Talvez rico não
apenas em bens materiais, mas talvez em conhecimento, popularidade e
autoestima. Mencionados como exemplos de quem verdadeiramente está no mundo, mas
não do mundo, citamos o Avatar, o Bodhisattva, o Messias. São seres que
evoluíram além do estágio humano, mas que por compaixão por aqueles que ainda
estão no estágio humano ou sub-humano ficam em contato com o mundo e até
retomam a encarnação no mundo. A tradição hinduísta fala de Avatares, e cito
Annie Besant: “(...) a mais sagrada das sagradas, essas manifestações de Deus
no mundo nas quais ele é divino, vêm para auxiliar o mundo que criou, brilhando
em sua natureza essencial, a forma e um fino filme que apenas esconde a
divindade de nossos olhos”. Contam que houve nove Avatares, os primeiros quatro
com a aparência de animais. Os mais conhecidos Avatares humanos foram o rei
Rama e Sri Krishna, embora o Budha também seja considerado um Avatar, o nono. No
Bhagavad Gita, Sri Krishna mostra qual é a função de um Avatar: “Sempre que
houve um declínio da retidão (...) e houver exaltação da corrupção, ai eu
apareço, de era a era, para proteger o bem, para destruir os malfeitores e para
estabelecer firmemente a retidão. Rama foi um rei perfeito, exemplo do
governante ideal, sendo puro, justo e forte. O Senhor Krishna foi e é
reverenciado como a adorável e travessa criança de uma mãe adotiva, o matador
dos demônios que aterrorizavam as pessoas, o amante irresistível das almas das
Gopis, o encantador tocador de flauta, o guia, o filósofo e amigo do guerreiro
Arjuna a quem ele revela ser a encarnação do Senhor do Universo. Como indicam
as palavras do Sri Krishna, os Avatares encarnam quando há necessidade de
reforma. Dizem que Sri Krishna deu uma lição para os Kshaltriyas, assim como o
Senhor Budha deu uma lição aos Brahmanes, que davam mais importância à forma, à
letra da Lei do que a seu espírito, esquecendo a necessidade de compaixão a
todos os seres. É dito que tanto Budha como Cristo não vieram para trazer uma
nova religião, mas reformar as que existiam, e que novas religiões surgiram em
ambas com o correr do tempo. No budismo do norte, o Bodhisattva é reverenciado
como um tipo de Avatar, alguém que chegou ao portal do Nirvana, mas recusou ter
essa felicidade até que todas as criaturas vivas também estivessem prontas para
entrar ai. Os Bodhissatvas permanecem no mundo embora não sejam do mundo. O
voto de Kwan yin diz: “Nunca procurarei ou receberei salvação individual, nunca entrarei sozinho na paz final, mas sempre e em toda parte
viverei e lutarei pela redenção de todas as criaturas em todo mundo”. Estar no
mundo não significa, no caso de um Bodhisattva, que ele seja nosso vizinho de
porta ou que possamos encontra-lo na rua. Na verdade, um Bodhisattva pode estar
entre nós e pode nos ajudar, mas não será reconhecido a não ser por aqueles que
tem “olhos para ver”. Entretanto seu auxílio sempre está presente. Cito Madame
Helena P. Blavatsky (1831-1891) em A Voz do Silêncio. “Condenado por ti mesmo a
viver por futuros kalpas sem o agradecimento e percepção dos homens; entalado
com uma pedra entre outras inúmeras pedras que formam a Muralha guardiã, este é
o teu futuro, se passares o sétimo portal (...) essa muralha guardiã construída
pelas mãos de muitos Mestres de Compaixão, erguida por seus tormentos,
cimentada com o seu sangue, ela defende a humanidade desde que o homem é homem,
protegendo-a de ulteriores e muito maiores misérias e aflições”. No judaísmo e
no cristianismo temos o conceito do Messias. Muitos judeus ortodoxos aguardam a
vinda do Messias. Muitos cristãos acreditam que Jesus Cristo foi o Messias em
sua encarnação na Palestina, no começo da era cristã, e algumas seitas cristãs
aguardam todos os dias seu retorno. Conheci uma moça que pertencia a essa
seita, e, aparentemente do apartamento de sua família, a qualquer hora,
ouvia-se uma voz entoando “Jesus está chegando”. Em anos recentes, foram
expostas descobertas interessantes a respeito do cristianismo, revelando que a
visão tradicional é certo tipo de “cobertura”. Na tradição judia, às vezes são
mencionados dois Messias: um Messias nobre, descendente do rei Davi, e um
Messias sacerdotal, descendente de Arão, o Primeiro Sacerdote. Algumas vezes
sugerem que os dois papeis sejam exercidos pela mesma pessoa. Eles são vistos
como dois pilares unidos por um arco, significando Shalom, paz, talvez, a paz
de Deus além do entendimento. Esses dois pilares refletiram-se e foram
deformados na última situação na Europa, onde o imperador reinava sobre o
chamado “Sagrado Império Romano”, representando o poder secular, e o Papa
representava o poder espiritual. E idealmente esse conceito corresponde ao
ideal hinduísta e budista do Chakravartin e do Budha. Cito de Filosofia da
Índia, de Heirich Zimmer (1890-1943): Existe um antigo ideal mítico – um sonho
idílico compensatório, nascido do desejo de estabilidade e paz que representava
um império totalmente universal de duradoura tranquilidade com um monarca justo
e virtuoso, o Chakraavartin (...) que conseguiu pôr fim à perpetua luta de
estados contendores”. De acordo com a concepção budista, o monarca universal é
a contraparte secular do Budha, o Iluminado, que dizem, “colocou em movimento a
roda da doutrina sagrada (...) sua roda, o dharma budista, não é apenas para as
castas privilegiadas, (...) mas para todo o Universo, a doutrina da libertação,
com o propósito de trazer paz a todos os seres vivos sem exceção”. O monarca do
mundo hinduísta, pacificando a humanidade sob sua única autoridade todos os
reinos próximos sob – “o grande rei (...) rei dos reis, que foi proclamado em
gradação igual aos Budhas redentores do mundo, que, através de suas doutrinas,
colocaram em movimento a roda”. O Sol, a luz e a vida do mundo brilham sobre
todos da mesma maneira sem distinção, e assim também brilha o verdadeiro
Chakravartin. Por quanto tempo teremos que esperar por este monarca, por este
Budha? Talvez até a próxima Idade do Ouro, que, certamente, não está logo ali
na esquina. E, enquanto isso, estaremos “no mundo”, mas não seremos “do mundo”.
Assim o mundo estará pronto no devido tempo. “Libertar-se do sentimento de
posse, quer a respeito das coisas, de pessoas, de pais, de raça, de religião e
até de nossas virtudes imaginárias, exige uma compreensão madura. Essa
libertação torna a vida simples, sem superficialidades e é eficiente na maneira
de manifestar a real beleza e natureza do Espírito em nós”. N. Sri Ram
(1889-1973). Loja Teosófica Jehoshua – Porto Alegre – RS – Brasil. Abraço. Davi
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