Judaísmo.
HOLOCAUSTO. Escrito por Zevi Ghivelder. INFERNO EM SOBIBOR. Há mais de 40 anos
fui procurado na redação da revista Manchete por um judeu baixinho, careca,
bigode fino, um tanto nervoso. Chamava-se Stanislaw Szmajzner, vindo de Goiás, estado brasileiro no planalto central,
onde era fazendeiro. Trazia um calhamaço de papéis, o manuscrito de um livro
que acabara de escrever. Queria saber se a Editora Bloch poderia editá-lo. Por
falta de tempo imediato para ler, encaminhei o manuscrito ao jornalista Macedo
Miranda, na época diretor do Departamento de Livros da empresa. Decorrido algum
tempo, ele me disse: “Do jeito que está, é impossível publicar. O livro está
cheio de erros de português, mas o conteúdo é fascinante, principalmente por
causa da revolta dos judeus confinados no campo de concentração de Sobibor”.
Convoquei o Stanislaw, transmiti-lhe o diagnóstico e perguntei se poderíamos
reescrever o livro. Aceitou na hora e deu-me carta branca. Não me lembro de
quem foi incumbido daquela tarefa, cabendo-me a revisão final. Assim nasceu o
livro Inferno em Sobibor, lançado em 1968 e que obteve fraca
repercussão tanto de crítica como de público, embora ainda seja um documento
histórico da maior importância e se trate, de fato, de um trabalho
extraordinário no segmento universal das obras memorialistas. Alguns excertos
do livro poderão ser lidos mais adiante. Até hoje não se sabe a razão pela qual
os nazistas fizeram de tudo para esconder a existência de Sobibor. Um
sobrevivente daquele campo, chamado Toivi Blatt (1927-2015), escreveu suas memórias e
entregou o manuscrito a um amigo polonês que lhe disse: “Você tem muita
imaginação. Eu nunca ouvi falar de Sobibor, muito menos de uma revolta que ali
teria acontecido”. Entretanto, a verdade é que Sobibor realmente existiu e
operou durante 18 meses a partir de abril de 1942. Nesse tempo, lá foram mortos
250 mil judeus, homens, mulheres e crianças. Sobibor era parte da chamada Ação
Reinhard que também compreendia os campos de Belzec e Treblinka. O
local do campo foi escolhido por se situar perto de uma aldeia polonesa do
mesmo nome, no distrito de Lublin, Polônia oriental. O local era conveniente
porque ficava numa região quase isolada e em cuja proximidade passava uma
ferrovia. Sua construção começou em março de 1942. Como as obras atrasaram, o
responsável foi substituído por Franz Stangl (1908-1971), que chefiou o campo
entre abril e agosto daquele ano, quando foi transferido para Treblinka, onde
se tornou o supremo comandante. Em Sobibor, no início, ele tinha como
subordinados 20 homens das tropas SS e uns 100 guardas ucranianos que se haviam
aliado aos nazistas. As vítimas eram desembarcadas na estação da estrada de
ferro e depois seguiam para o campo, conduzidas pelos ucranianos que vestiam
fardas negras. O aspecto mais bizarro daquele desembarque é que aqueles judeus
estavam quase todos bem vestidos e traziam volumosas bagagens, porque os
alemães os haviam enganado, dizendo que seriam apenas deslocados para a parte
oriental da Europa. Por cúmulo do cinismo, eram recebidos por prisioneiros
judeus que lhes entregavam tickets correspondentes às suas
bagagens. Alguns dos desembarcados inclusive não se furtavam a lhes dar
gorjetas. Um oficial das SS, chamado Gustav Wagner (1911-1980), separava os
recém chegados em dois blocos: de um lado, os homens, de outro, mulheres e
crianças. Os guardas começaram a perguntar quais dentre os cativos eram
ferreiros, agricultores, carpinteiros, alfaiates, costureiras e outras
profissões. Aqueles que se voluntariaram, jamais tornaram a ver seus filhos, ou
maridos e esposas. Stanislaw, então com quinze anos de idade, recordou:
“Como não chamaram a profissão de joalheiro, tomei coragem e aproximei-me de um
imenso alemão a quem expliquei o que sabia fazer e mostrei-lhe minha maleta de
ferramentas. Ele me tirou do bloco dos homens e eu acrescentei que ali também
estavam meus três irmãos, todos do mesmo ofício. O alemão nos separou dos
demais prisioneiros e disse que conversaríamos no dia seguinte”. Os quatro
jovens ganharam, dias depois, um pequeno espaço transformado em oficina onde
começaram a fazer joias e outros adereços para os nazistas. Um dos primeiros a
fazer-lhes a encomenda de um monograma de ouro foi Gustav Wagner, chefe do
Campo 1 (em Sobibor havia três campos separados), onde ficavam os judeus com
profissões definidas. À medida que Stanislaw se desdobrava como ourives,
milhares de seres humanos eram conduzidos para as câmaras de gás e, em seguida,
para os fornos crematórios. Os prisioneiros do Campo 3 eram levados por guardas
ucranianos para tarefas agrícolas e, enquanto caminhavam, alinhados em coluna
por um, eram obrigados a cantar hinos nazistas. Stanislaw escreve: “Um dia, eu
estava ajudando no trabalho do jardim, quando um SS chamado Karl Frenzel (1911-1996) puxou
seu revólver e atirou no homem que estava bem ao meu lado. Até hoje não sei o
motivo daquele assassinato a sangue frio”. A rigor, o campo de Sobibor estava
tão bem enquadrado nas normas nazistas, que os guardas alemães e ucranianos se
entediavam. Era quando se tornavam mais perigosos e, para passar o tempo,
inventavam “brincadeiras”. Uma delas consistia em colocar um rato dentro das calças
de alguém. Se este infeliz se movesse, era castigado com chibatadas. Na rotina
da morte nas câmaras de gás, os
judeus vindos dos trens eram guiados até um barracão onde se lia“
chuveiros”. Então,
um oficial da SS fazia o seguinte discurso Vocês
irão para a Ucrânia para trabalhar. É
preciso evitar qualquer tipo de epidemia e, portanto, vocês terão agora que
tomar um banho desinfetante. Tirem e dobrem suas roupas. Lembrem-se bem do
lugar aonde as deixarão porque depois eu não poderei ajudar. Os objetos de
valor devem ser entregues na entrada dos chuveiros. Stanislaw Szmajzner
(1927-1989) nasceu na cidade de Pulawi, Polônia, no dia 13 de março de 1927.
Seus pais eram judeus ortodoxos e, desde cedo, ele aprendeu o ofício de
ourives, ao mesmo tempo em que frequentava o ginásio numa escola judaica onde o
ensino era em hebraico. Quando Pulawi foi bombardeada pelos alemães, Stanislaw
fugiu sozinho para o Leste polonês, então ocupado pela União Soviética. Achou
que encontraria refúgio junto ao exército russo. Acabou se perdendo e voltou
para Pulawi, cidade de longa tradição antissemita, e ele foi apontado como
judeu, logo sendo preso. Conseguiu escapar e rumou para Walwonica, onde, num
chalé abandonado, encontrou os pais, um irmão e uma irmã. Foram descobertos e
fugiram para Kazimierz. Ali trabalharam num estábulo, mas, passando fome, se
deslocaram para o gueto da cidade de Opole. Foi dali que saiu, no dia 12 de
maio de 1942, o primeiro trem para Sobibor. A bordo estavam os Szmajzner, junto
com outros dois mil judeus. Stanislaw nunca mais reencontrou sua família. No
campo, o ouro que lhe davam para trabalhar era tirado dos dentes dos judeus
assassinados. Stanislaw trabalhava com afinco porque as encomendas na oficina
se multiplicavam. Terrível ironia: os SS exigiam adereços para ornamentar os
chicotes com que golpeavam suas vítimas. Em um de seus relatos mais pungentes,
Stanislaw escreveu: “A rotina em Sobibor foi mudando a olhos vistos. Começamos
a viver num verdadeiro regime militar. Às sete horas da manhã tínhamos que
estar formados para receber as instruções sobre as tarefas diárias. Antes,
porém, havia a contagem dos judeus na presença de Wagner. Se ocorria uma falta,
o responsável pelo bloco recebia a punição de 25 chibatadas. As contagens eram
repetidas na hora do almoço e antes de nos recolhermos, à noite. Começamos a
ver os repetidos castigos como simples incidentes”. Na verdade, os relatos de
Stanislaw parecem corresponder mais àficção do que à realidade. Durante o dia,
os nazistas se empenhavam no ritual das crueldades e das matanças. E à noite?
“No pátio destinado aos alemães, ergueu-se um cassino para os oficiais. Era lá
que eles comiam, bebiam e se divertiam. Muitas vezes organizavam verdadeiras
orgias para comemorar as vitórias dos exércitos nazistas. Nessas ocasiões
cantavam e bebiam até alta madrugada, promovendo uma algazarra infernal”.
Depois de um breve intervalo durante o qual menos trens chegaram a
Sobibor, foi retomado o ritmo acelerado dos transportes. Certa tarde, chegaram
ao campo centenas de judeus bem vestidos, até mesmo parecendo turistas, um
contraste com os usuais maltrapilhos oriundos dos guetos da Polônia. Tinham
vindo da Checoslováquia e foram alinhados no pátio até perto do anoitecer. A um
dado momento, todos se posicionaram na direção do Oriente, colocaram talitim (xáles
para orações) e começaram a rezar com intenso fervor. Pacientemente, os
nazistas esperaram que as orações terminassem e então os levaram para a câmara
de gás. Tanto em Sobibor quanto em outros campos de concentração, os alemães se
preocupavam em aprimorar a logística do assassinato em massa. Em Sobibor, por
exemplo, construíram uma extensão da estrada de ferro que começava bem em
frente aos “chuveiros” e terminava na boca do forno do Campo 3. Assim poupavam
o tempo de levar os mortos da câmara até as fornalhas. Em outra ocasião,
apareceu no barracão do Campo 1 um médico judeu. Era, porém, um pobre velho
quase inválido. Como não dispunha de nenhum recurso, era inútil para os
prisioneiros. Quando alguém adoecia, o carrasco Gustav Wagner vinha perguntar
há quanto tempo aquela pessoa estava na cama. Se dois dias tivessem decorrido,
o doente era enrolado num cobertor e levado para o Campo 3, o campo da morte.
Stanislaw assinala o dia 15 de maio de 1943 como o do início da rebelião. A
paisagem humana de Sobibor se havia modificado com a chegada de prisioneiros do
exército russo, a maioria judeus, todos fortes, arrogantes e inconformados. Seu
líder era o judeu Sasha Perchevsky (1909-1990), filho de um proeminente
advogado em Moscou. Foi ele quem começou a tramar a revolta. Testemunho de
Stanislaw: “Pensávamos num levante, porém faltava alguém para impulsioná-lo.
Ninguém melhor do que o Sasha para o liderar. Daquele momento em diante, ele
seria o nosso condutor junto com os judeus russos, que possuíam comprovada
experiência militar e isso nos dava ilimitada confiança”. Do lado judeu, Sasha
fez sólida parceria com o polonês Leon Feldhendler, filho de um rabino. (No
filme para a televisão, Fuga de Sobibor, de 1987, o russo é
interpretado por Rutger Hauer (1944- ) e
o judeu por Alan Arkin(1934- ). Ambos
conspiravam no mais absoluto silêncio e segredo porque achavam que alguns
covardes poderiam delatá-los aos alemães. A sugestão inicial de Sasha foi
escavar um túnel que fosse além da cerca de arame farpado do campo. Começaram a
trabalhar nessa tarefa, mas ele logo concluiu que não haveria tempo para que
todos os prisioneiros rastejassem pelo túnel em direção à liberdade. Além
disso, caiu uma forte chuva e o buraco desmoronou. A ideia foi abandonada.
Sasha e Leon reuniram, então, as pessoas em quem confiavam e ordenaram que
usassem todos os tipos de madeira e metal para fazer armas: facas, facões,
machados e furadoras, por mais rudimentares que fossem. No dia 12 de outubro,
Gustav Wagner foi transferido para outro campo e isso encheu de coragem os
revoltosos. Wagner era um homem inteligente, perspicaz, e tinha o hábito de
aparecer de forma inesperada nos lugares menos previsíveis. Sua ausência era um
bom sinal. Naquela noite o russo informou aos companheiros que a rebelião
estava em pleno andamento. O plano básico de Sasha e Leon consistia em atrair
os SS para locais onde diferentes atividades eram desenvolvidas em Sobibor. Na
adolescência dos seus 16 anos de idade, Stanislaw, que todos no campo chamavam
de Shlomo, foi designado para uma tarefa crucial: entrar no depósito de armas
dos ucranianos, retirá-las e fornecer a maior quantidade possível de rifles
para os revoltosos. Ele era o único que poderia se incumbir dessa missão porque
gozava de particular liberdade para circular pelo campo e tinha os alicates
capazes de romper os cadeados das estantes de armas. Enquanto isso, os
combatentes deveriam ir tomando as estratégicas posições que lhes haviam sido
designadas. O oficial Josef Niemann, um dos mais perversos de Sobibor,
desmontou de seu belo cavalo e entrou na alfaiataria onde encomendara um novo
uniforme. Enquanto provava a roupa, foi abatido com um golpe de machado na
cabeça. Arrastaram seu corpo às pressas para o fundo da alfaiataria porque o
chefe dos guardas ucranianos começava a cruzar a porta de entrada. Foi morto a
facadas. Em seguida entrou outro ucraniano, o guarda Klat, que teve o mesmo
destino. O oficial Goettinger, responsável pelo Campo 3, foi chamado à
sapataria para experimentar seu novo par de botas. Também morreu com um golpe
de machado na cabeça. O oficial Gaulstich foi emboscado e morto na carpintaria.
Outro nazista, chamado Beckman, foi eliminado por três prisioneiros em sua mesa
de trabalho. Como era corpulento para ser carregado ou escondido, deixaram seu
corpo ali mesmo. O oficial Walter Ryba entrou na garagem das SS e foi morto por
um mecânico que ali trabalhava. Os prisioneiros se reuniram no pátio às cinco
da tarde, meia hora antes da contagem. Às cinco e dez, Sasha faria soar um
apito depois do qual todos deveriam correr na direção das cercas e do portão.
Mas, ele percebeu que seria impossível que a fuga se desse de forma ordeira.
Subiu no capô de um veículo e gritou: “Nosso dia chegou! Os carrascos estão
mortos e nós vamos morrer com honra. Quem sobreviver, terá que contar ao mundo
o que aconteceu aqui”. Relato de Stanislaw: “O grosso da multidão corria para o
local que dava acesso ao pátio dos oficiais da guarda ucraniana. Naquele
instante vinha entrando um deles. Morreu esmagado, estraçalhado sob as centenas
de pés daquele rolo compressor. Enquanto os soldados de plantão atiravam sobre
nós com fuzis e metralhadoras, seguimos para as três cercas próximas à saída
principal de Sobibor. Passando sobre centenas de cadáveres, continuamos
avançando e logo começamos a pisar num terreno todo cheio de minas explosivas.
Mais mortes. A um certo momento, peguei meu fuzil de forma desajeitada e
disparei quatro vazes na direção de uma das torres de vigilância que nos
atingia. Soube depois que meus tiros acertaram no guarda ali postado”. Os
prisioneiros que conseguiram escapar chegaram a uma floresta adjacente ao campo
de concentração. O primeiro desejo de todos foi tentar encontrar parentes e
amigos. Poucos tiveram essa sorte. Decidiram, então, se dividir em pequenos
grupos que sairiam em busca de comida e abrigo. Sasha Perchevsy liderou um
grupo de cinquenta ex-prisioneiros e no dia 17 de outubro lhes disse que se
ausentaria para conseguir alimentos. Nunca mais voltou, nunca mais foi visto
pelos companheiros de rebelião. (Ele regressou à União Soviética onde foi
preso, acusado de ser um cosmopolita judeu. Depois de solto, continuou sendo
perseguido, levou uma existência obscura e morreu em 1990). Dos 300
prisioneiros que escaparam, 100 foram recapturados pelos nazistas. Os 200
restantes vagaram pela floresta em busca de esconderijos e muitos deles foram
assassinados ao longo dos seus percalços por poloneses civis e poloneses partisans.
Entre esses mortos estava Leon Feldhendler (1910-1945). Ao final da epopeia, sobreviveram
apenas de 50 a 70, entre os quais Stanislaw Szmajzner. “Andamos durante toda a
noite e achamos um lugar para descansar. Começamos a divagar e a fazer
perguntas a nós mesmos, pois estávamos completamente atordoados”. Ele se separou
dos demais companheiros e decidiu comandar a própria sorte. Depois da guerra,
enfrentou inúmeras e perigosas andanças pela Polônia, parando em cidades
pequenas e não tão pequenas e ganhando o sustento como ourives. Juntou-se
a um grupo de judeus que aguardava ser levado para a então Palestina em navios
ilegais. Julgou que já tinha assumidos riscos demais e desistiu da empreitada.
Sabia que tinha parentes no Brasil e, com o dinheiro poupado, chegou até a
Itália, embarcando em Gênova para o Rio de Janeiro. Em seguida, inesperadas
circunstâncias levaram-no a se estabelecer numa fazenda no estado de Goiás,
onde começou a escrever seu livro de memórias. Em 1967, o célebre caçador de
nazistas, Simon Wiesenthal (1908-2005), conseguiu detectar a presença de Franz Stangl na
capital de São Paulo. Stangl, nascido na Áustria em 1908, entrou para o partido
nazista em 1938, quando a Áustria foi anexada pela Alemanha. Revelou-se um
eficiente cumpridor de ordens e foi destacado para a Gestapo. Começou a atuar
no Centro de Eutanásia da cidade de Linz, onde eram sacrificados deficientes
físicos e mentais de toda sorte. Em 1942, recebeu a incumbência de acelerar a
construção do campo de concentração de Sobibor. Ali permaneceu de abril a
agosto daquele ano, deixando como legado um manual de instruções para o
sistemático extermínio de judeus. Foi transferido para Treblinka, onde a
matança de judeus obedecia ao ritmo de 22 mil por dia. Por sua eficiência,
recebeu a cobiçada “Cruz de Ferro” do exército alemão. Depois da guerra foi
preso pelos aliados que procuraram desvendar seu passado. Permaneceu durante
dois anos num campo de internação, de onde escapou rumo à Itália. Em Roma,
obteve com o notório bispo Alois Hudal documentos falsos, surpreendentemente
com seu verdadeiro nome, e viajou para a Síria, onde obteve emprego numa
indústria têxtil, sua especialidade anterior ao engajamento nazista. Em 1951,
resgatou a mulher e a filha, que se encontravam na Alemanha, e a família
embarcou para o Brasil. Segundo Wiesenthal, o paradeiro de Stangl lhe foi
informado no final de 1966, por um antigo oficial da Gestapo que queria ser
remunerado para colaborar. Ele fez uma conta assombrosa e repugnante. Como em
Treblinka haviam sido exterminados 700 mil judeus, queria um centavo por
cabeça. Assim, o total chegou a 7 mil dólares, que seriam pagos (como de fato
foram) se a informação fosse verdadeira e se Stangl fosse preso. Wiesenthal
passou a informação para o Mossad (serviço secreto de Israel), que acabou
encontrando Stangl como funcionário menor da fábrica Volkswagen, em São Paulo.
Era uma situação delicada porque a Volkswagen fora bem acolhida pelo governo
brasileiro, já era uma empresa de prestígio internacional e abrigava milhares
de trabalhadores brasileiros. A prisão do carrasco de Treblinka e Sobibor só se
consumaria se houvesse a concordância do governador Abreu Sodré, que, sem
titubear, encaminhou a questão à Secretaria de Segurança. A prisão foi efetuada
no dia 28 de fevereiro de 1967 e Stanislaw foi chamado para colaborar na
identificação. A então Alemanha Ocidental requereu a extradição de Stangl,
concedida pelo Brasil. Entretanto, foi levantada uma controvérsia
jurídica: por que ele seria julgado na Alemanha se os seus crimes haviam sido
cometidos na Polônia? O poder judiciário alemão discutiu o assunto durante três
anos até concluir que Stangl fora responsável pelo assassinato de 1 milhão e
200 mil pessoas e, assim, os crimes contra a humanidade se sobrepunham à
questão da jurisdição. O julgamento de Stangl teve início em Dusseldorf, no dia
13 de maio de 1970. O livro Inferno em Sobibor foi traduzido
para o alemão e serviu como um dos principais itens da promotoria, e Stanislaw
foi convocado como testemunha. Enviei um repórter e um fotógrafo da sucursal da
Manchete em Paris para cobrirem o julgamento. Numa das sessões do tribunal, o
inquieto Stanislaw saiu de seu lugar, caminhou até o banco dos réus e ofereceu
um cigarro a Stangl, dizendo: “Você nunca me deu nada, mas deixe eu lhe dar
alguma coisa”. O cigarro foi recusado e o fotógrafo captou aquele exato
momento, mostrando o Stanislaw com o braço estendido. Franz Stangl não
contestou a maioria das acusações que lhe foram imputadas e foi condenado à
prisão perpétua. Seis meses depois do julgamento ele morreu vítima de um
infarto na prisão, mas pouco antes concedeu uma entrevista histórica à
jornalista Gitta Sereny (1921-2012), um dos depoimentos mais contundentes
relativos ao Holocausto. Ele disse, entre outras informações, que tinha a
consciência tranquila porque via as pessoas desembarcando dos trens como se
fossem apenas um carregamento. Acrescentou que jamais teve ódio dos judeus, mas
que sentia orgulho pelo perfeito trabalho que havia implantado nos campos de
concentração e pelo fato de nunca ter matado alguém com as próprias mãos. Por
fim, assim como fez Eichmann em Jerusalém, insistiu que estava apenas cumprindo
ordens. No tribunal, Stangl revelou que um dos chefes de Sobibor, Gustav
Wagner, também se encontrava no Brasil e também no estado de São Paulo.
Wiesenthal informou o Mossad, que, agindo junto com a polícia paulista,
localizou o criminoso num lugarejo entre as cidades de Mairiporã e Atibaia. Ao
ser preso, no fim de maio de 1978, Wagner apresentou o nome falso de Gunther
Mendel, que usava há trinta anos, e negou que tivesse qualquer relação com o
regime nazista ou com Sobibor. Foi levado a uma delegacia na capital e ali
aconteceu um episódio em estilo de dramaturgia. Stanislaw estava sentado num
banco quando Wagner passou junto dele e seguiu em frente. Stanislaw gritou:
“Gustl!” (Seu apelido no campo). O carrasco virou a cabeça de imediato e deu de
cara com Stanislaw, que lhe disse: “Eu tinha quinze anos. Você me tirou do trem
a pontapés, lembra?” Wagner respondeu: “Sim, sim, você e mais três irmãos”.
Stanislaw: “Não eram meus irmãos, eram meus amigos”. A identificação do nazista
estava consumada. Mais uma vez a Alemanha Ocidental pediu a extradição, mas a
justiça brasileira negou, tendo em vista a controvérsia jurídica anterior. No
dia 12 de junho, preso na Polícia Federal, em Brasília - Brasil, Wagner amassou as
lentes de seus óculos e tentou suicidar-se, ingerindo os cacos de vidros. No
mesmo dia, as autoridades emitiram o seguinte comunicado: “O Departamento de
Polícia Federal informa que na madrugada de hoje, Gustav Wagner, após
fragmentar as lentes de seus óculos com o solado de seus sapatos, passou a
ingerir o vidro triturado, no que foi impedido pelo policial responsável por
sua guarda. O cidadão em referência continua submetido a assistência médica
diária”. Gustav Wagner morreu de infarto na prisão em outubro de 1980. A última
vez que me encontrei com Stanislaw foi no início de 1987. Estava eufórico.
Tinha chegado da antiga Iugoslávia onde atuara como consultor durante as
filmagens de Fuga de Sobibor. Garantiu que o filme, fora algumas
poucas licenças para efeitos dramáticos, é um retrato fidelíssimo dos
acontecimentos naquele campo de concentração. Voltou para Goiás, de onde me
mandou um saco de arroz e outro de feijão. Morreu dois anos depois. Desconheço
o motivo. www.morasha.com.br. Abraço.
Davi.
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