Budismo
Tibetano. Por Miguel Berredo. Texto de Pico Iyer (1957- ), romancista britânico de origem indiana,
escrito para o jornal The New York Times, em setembro de 2013. Iyer descreve
uma passagem do Dalai Lama pelo Japão. Tradução Rafaela Batista. NARA,
Japão – Centenas de sírios foram aparentemente mortos por armas químicas, e
pela tentativa de proteger outras pessoas do fator que ameaça matar muitos
mais. Uma criança perece com sua mãe em um tornado em Oklahoma, um mês depois
que um menino de 8 anos de idade foi assassinado por uma bomba em Boston. Trens
descarrilhados reclamam dezenas de vidas, tanto no plácido Canadá, quanto na
Espanha. Pelo menos 46 pessoas foram mortas numa série de bombardeamentos
coordenados e direcionados à uma sorveteria, estação de ônibus e um famoso
restaurante em Bagdá. A enxurrada de sofrimento alguma vez cessa – e pode
alguém encontrar algum sentido no sofrimento? Homens sábios de todas as tradições nos dizem que o
sofrimento traz clareza, iluminação. Para o Budha, sofrimento é a primeira
regra da vida, mas, da mesma forma que alguma parte dele surge da nossa própria
ignorância –
nossa valorização do ego – temos a cura dentro de nós. Assim, em certos casos,
sofrimento pode ser um efeito, assim como uma causa, de nos levarmos
demasiadamente a sério. Eu conheci uma vez, no Japão, um pintor treinado na
tradição Zen, nos seus 90 anos, me disse que o sofrimento é um privilégio, pois
nos leva a pensar sobre coisas essenciais e nos sacode para fora de uma
complacência míope. Quando ele era um menino, disse ele, se acreditava que
deveria se pagar pelo sofrimento, como se fosse uma benção às escondidas. Mesmo
que nada disso comece a se aplicar à uma criança morta por gás (ou que nasceu
com AIDS ou atingida por um motim). A filosofia não consegue curar uma dor de
dente, e a pessoa que começa a falar sobre seus benefícios a longo prazo também
pode te induzir uma dor de cabeça. Qualquer pessoa que esteve por perto de
alguma pessoa querida que sofresse com a depressão sabe que o ciclo vicioso por
trás de sua condição significa que, por definição, ela não consegue entender a
lógica e reconforto que estendemos a ela; se ela pudesse, não estaria sofrendo
de depressão. Ocasionalmente, é verdade, eu irei conhecer alguém – eu mesmo – que
incorre repetidamente no mesmo erro, desatento ao que os amigos e sua própria
razão dizem a ele, incapaz de escutar até a si mesmo. Então, ele bate o carro,
ou sofre um ataque cardíaco, e, de repente, a calamidade o atinge como um
despertador. O violenta de modo nada gentil, e o sofrimento o parte ao meio e o
direciona a mudar seus modos. Ocasionalmente, também, eu verei que o sofrimento
pode estar no olho de quem vê, na nossa projeção ignorante. Uma tetraplégica
pede que não tenhamos pena dela; ela é feliz, mesmo que sua dor seja mais
visível do que a nossa. O homem de rua em Calcutá, Índia, ou em Porto
Príncipe, Haiti, derruba todas as nossas noções simplistas sobre a relação
entre as terríveis condições de vida e a alegria e energia, e nos pergunta se
nós apenas não trouxemos conosco nossas ideias preconcebidas de
pobreza. Mas isso muda todas as muitas vezes em que o sofrimento nos
abandona com nenhum benefício aparente, sobrando apenas o ressentimento com
aqueles que nos dizem para olhar pelo lado positivo, e contar nossas bênçãos e
lembrar de que o tempo cura todas as feridas (quando nós sabemos que não é
verdade)? É por isso que a sobrevivência nunca é garantida. Ou podemos colocar
como Kobayashi Issa (1763-1828), um mestre de haiku do século XVIII, fez: “Esse
mundo de orvalho é um mundo de orvalho”, ele escreveu num poema curto, e ainda,
é conhecido por suas palavras de afirmações constantes. Issa viu sua mãe morrer
quando tinha 2 anos, seu primeiro filho morrer, seu pai contrair febre tifoide,
seu outro filho e uma amada filha morrer. Ele sabia que o sofrimento era
um fato da vida, e poderia estar dizendo isso naquele verso curto; ele sabia
que a impermanência é nosso lar e a perda é a lei do mundo. Mas como ele
poderia não desejar, que isso pudesse ser de outra forma quando sua filha de 1
ano de idade contraiu varíola, e morreu? Depois de seu poema de luto relutante,
Issa viu outro filho morrer e seu próprio corpo ficar paralisado. Sua esposa
morreu ao dar luz à outra criança, que também morreu, talvez devido à uma
enfermeira descuidada. Ele se casou novamente e se separou dentro de semanas.
Casou-se pela terceira vez e sua casa foi destruída pelo fogo. Finalmente, sua
terceira esposa deu luz à uma menina saudável, mas o próprio Issa morreu, aos
64 anos, antes que pudesse ver a menina nascer. Meu amigo Richard, um dos meus
colegas mais próximos no ensino médio, criou um blog chamado “Esse mundo de
orvalho”, ao receber um diagnóstico de câncer de próstata três anos atrás. Eu
mandei a ele algumas informações sobre Issa – cujos poemas, até sua morte,
expressava quase nada além de gratidão pelas belezas da vida. Mas Richard
morreu rapidamente, e com dor, mal podendo andar na última vez que o vi. Meus
vizinhos no Japão vivem numa cultura que é baseada, em algum nível sutil, nos
preceitos budistas que Issa conhecia: que o sofrimento é a realidade, mesmo que
a infelicidade não seja nossa resposta a ele. Isso contribui para que a imagem
de seu povo seja o trabalho duro sem reclamar, estoicismo e uma sensação constante
do modo como a dificuldade nos une. Como a Grã-Bretanha sabia durante a blitz
(bombardeio surpresa dos nazistas a Londres na Segunda Guerra Mundial), assim
como outras culturas em momentos de estresse, embora duplamente aguçadas numa
cultura baseada na ideia de interdependência, em que o sofrimento de um é o
sofrimento de todos. “Eu vou fazer o meu melhor!” e “Eu vou colocar isso para
fora!” e “Isso não pode ser consertado” são as frases que você ouve a cada hora
no Japão. Quando um tsunami matou milhares de pessoas ao norte de Tóquio dois
anos atrás, eu ouvi muito mais lamentação e pânico na Califórnia do que entre
as pessoas que conheço em torno de Kyoto. Meus vizinhos não são filósofos
formais, mas o são devido à textura das vidas que estão acostumados a levar. O
culto nacional de coisas caindo no outono, o esplendor das flores de cereja
acompanhado por sua rápida partida. Os poemas semelhantes ao de Issa através
dos quais eles estão escolarizados, que fala por uma antiga cultura que é
treinada a dizer adeus às coisas e colocar a alegria e beleza dentro de um
quadro. A morte nos desfaz menos, às vezes, do que a esperança de que ele nunca
virá. Quando menino,
eu aprendi que é a palavra latina, e talvez grega, para “sofrimento” que dá
origem à nossa palavra “paixão”. Etimologicamente,
o oposto de “sofrimento” é, portanto, “apatia”; A Paixão de Cristo, por
exemplo, é um lembrete, e até mesmo uma prova, de que o sofrimento é algo que
algumas almas elevadas abraçam para tentar diminuir as dores dos outros. Paixão
pela situação dos outros é o que é a “compaixão”. Quase oito meses após o tsunami
japonês, eu acompanhei o Dalai Lama até uma vila de pescadores, Ishinomaki, que
havia sido devastada pelo desastre natural. Lápides
estavam inclinadas em ângulos disparatados, isso quando não tinham desmoronado
completamente. O que uma vez, um ano antes, tinha sido uma próspera rede de
escolas e residências, agora era apenas entulho. Três órfãos que mal haviam
saído do jardim de infância estavam em seus uniformes escolares azuis para
cumprimentá-lo, do lado de fora de um templo que milagrosamente sobreviveu à
catástrofe. Dentro do edifício de madeira, perto do altar, havia dezenas de
caixas coloridas contendo os restos mortais daqueles que não tinham parentes
vivos para reclamá-los, todos perfeitamente alinhados em uma fileira, atrás de
fotografias emolduradas, de jovens e velhos. Assim que o Dalai Lama saiu de seu
carro, ele viu centenas de cidadãos que se reuniram na rua, atrás de
cordas, para cumprimentá-lo. Ele aproximou-se e perguntou-lhes como eles
estavam. Muitos
desabaram em soluços. “Por favor, mude seus corações, seja corajoso”, disse
ele, enquanto abraçava alguns e abençoava outros. “Por
favor, ajude todos os outros e trabalhe duro. Essa é a melhor oferta que você
pode fazer para os mortos” Quando ele se virou, no entanto, eu o vi afastar uma
lágrima de seus olhos. Então ele entrou no templo e falou para as multidões
sentadas lá. Ele não esperava dar-lhes outra coisa senão a sua simpatia
presença, disse ele. Tão logo soube do desastre, ele sabia que tinha que vir
aqui, só para lembrar as pessoas de Ishinomaki que eles não estavam sozinhos.
Ele podia entender um pouco do que eles estavam se sentindo, continuou, porque
ele, como um jovem de 23 anos em sua casa em Lhasa na Índia, tinha sido
aconselhado, uma tarde, a deixar sua terra natal naquela noite, para tentar
evitar novos confrontos entre soldados chineses e tibetanos em torno de seu
palácio. Ele deixou seus amigos, sua casa, e até um cão pequeno, disse ele, e, em
52 anos nunca voltou. Dois dias depois de sua partida, ele ouviu que seus
amigos estavam mortos. Já havia tentado ver a perda como oportunidade e fazer
muitas inovações no exílio, que teria sido mais difícil se ele ainda estivesse
no velho Tibete. Para os budistas, como a si mesmo, ele apontou, dores
inexplicáveis são o resultado do karma, às vezes incorrido em vidas anteriores,
e, para aqueles que acreditam em Deus, tudo é divinamente ordenado. No entanto,
sua lágrima me lembrou, que ainda vivemos no mundo de Issa do “e ainda”. O
grande público japonês escutou em silêncio e, em seguida, voltou-se, à medida
em que seus membros eram capazes, para colocar as coisas juntas novamente no
dia seguinte. A única coisa pior do que supor que você pode tirar o melhor de
sofrimento, eu comecei a pensar (embora eu não seja budista), é imaginar que
você não pode fazer nada em seu rastro. E a lágrima que eu tinha testemunhado
me fez pensar que você pode ser forte o suficiente para testemunhar o
sofrimento, e ainda assim humano o suficiente para não fingir ser o mestre
dele. Às vezes, são essas coisas que nós menos entendemos que merecem a nossa
mais profunda confiança. Não é isso que o amor e o assombro nos dizem também? http://www.bodisatva.com.br. Abraço.
Davi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário