quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

O Cristianismo submetido as Patologias do Poder.



Cristianismo. Cristianismo e História. Leonardo Boff (1938-  ). 4.13. Já que o tema é o poder, é pertinente uma comparação entre as duas atitudes, a de Jesus e a da Igreja Católica Romana concernente ao poder. Elas se contrapõem. Os evangelistas apresentam o poder sob a forma de três tentações diabólicas (Marcos 1:12-13; Mateus 4:1-11; Lucas 4:1-13). São postas logo no início dos Evangelhos, antes da pregação de Jesus como uma espécie de advertência e um portal de entrada para que os ouvintes entendessem corretamente a intenção de Jesus. Ele é sim o Messias, mas diferente, despojado de qualquer poder e feito Servo Sofredor. Nas tentações aparecem as três formas clássicas de poder: o profético, das palavras eficazes que transformam pedras em pão. O sacerdotal, que faz uma reforma dos costumes a partir do templo, o político, que domina os povos e cria impérios. Jesus é confrontado com estes poderes apresentados por satanás com projetos a serem escolhidos por ele. Jesus rejeita resolutamente todos os três. Seu caminho não é o do Messias que todos esperavam, portador de todos estes poderes. Mas o do Servo Sofredor e o do Profeta. Perseguido já anunciado por Isaías (53). Este é o núcleo fundamental da pregação dos Evangelhos. Com a Igreja, grande instituição hierárquica, ocorreu exatamente o oposto. Confrontada também com essas três tentações, não soube resistir e sucumbiu fragorosamente em todas elas. Assumiu o poder profético da palavra, monopólio das autoridades e o controle dos milagres. O poder sacerdotal, exercido de forma centralizada na figura do papa e distribuído ao corpo clerical com a completa exclusão dos leigos, homens e mulheres. O poder político, praticado de forma monárquica e absolutista configurada no Estado do Vaticano e na figura do papa.  Isso ocorreu especialmente quando os papas por muito tempo detinham em suas mãos todo o poder, secular e religioso, mantendo um Estado pontifício, com sua burocracia, seu banco central privado (diga-se de passagem com seus dirigentes envolvidos em crimes de lavagem de dinheiro e apropriação indébito do erário religioso), com exércitos e uma justiça que chegava até a condenar a morte (período da chamada Santa Inquisição século XII). Em sua estrutura básica, este tipo de organização se mantém até os dias de hoje, com todas as contradições que encerra. Dificilmente escapa da crítica que Jesus fez a Pedro, que não entendeu o caminho de sofrimento de Jesus e foi acusado de ser “um escândalo” e “tentação” Mateus 16:23. Sobre a pedra do atual Vaticano Jesus jamais construiria a sua Igreja. 4.14. Efetivamente, a história do papado revela grandes contradições. Estamos acostumados às figuras inspiradoras como Papa Pio X (1835-1914), Papa Pio XI (1857-1939), Papa Pio XII (1876-1958), Papa João XXIII (1881-1963), Papa Paulo VI (1897-1978), João Paulo I (1912-1978), Papa João Paulo II (1920-2005). A referência anterior menciona o nascimento e morte dos papas citados. Todos portadores de insignes virtudes. Por outro lado, houve épocas de papas mundanos e em frontal contradição à herança de Pedro e de Jesus.  O eminente Cardeal Cesar Baronius (1538-1607), historiador e bibliotecário do Vaticano, fala até na era pornocrática do papado que vai dos anos 900 até para dentro do ano 1000. Assim o Papa Sérgio (965-1012) assassinou seus dois predecessores. O Papa João XII (937-964), eleito com a idade de 20 anos, adúltero, foi morto pelo marido traído, e, pior ainda, o Papa Bento IX (1012-1056), eleito com 15 anos de idade, revelou-se como um dos mais criminosos e indignos da história dos pontificados papais, chegando a vender a dignidade papal por 1.000 liras de prata. O auge da decadência do papado foi alcançada com o Papa Estevão VI (850-897), que ordenou a exumação de seu antecessor, o Papa Formoso (816-896). Seu cadáver em decomposição foi revestido dos ornamentos pontifícios e instalado sobre a cátedra papal. Os cardeais nomeados por ele tiveram que fazer o beija mão. Um sínodo ( chamado de Sínodo do Cadáver), adrede eleito, em presença do cadáver, decidiu sua degradação de papa e condenação. Foram-lhe retiradas as insígnias, cortaram seus dedos da mão direita que serviam para a bênção papal. Por fim, seu cadáver foi entregue à população e jogado no rio Tibre, na Itália que corta a região da Toscana. Esta cena macabra acabou voltando-se contra Estêvão VI que foi lançado na prisão e, finalmente, estrangulado. Não obstante estas contradições nefastas, a figura do papa constitui permanente ponto de referência de unidade, de continuidade da tradição apostólica e de apelo às igrejas, de juntas constituírem o movimento de Jesus com um mínimo de organicidade, de mútua aceitação e de unidade para que o testemunho cristão ganhe credibilidade. O problema ecumênico não reside no fato do papado, mas na forma centralizada e autoritária como vem sendo exercido, deixando pouco espaço para as diferenças legítimas, presentes nas demais Igrejas cristãs. 4.15. O preço a pagar de uma instituição Igreja hierárquica que se articula sobre o poder é viver permanentemente em disputas, conflitosa, cruzadas e guerras com outros portadores de poder, ora aliando-se a eles, ora depondo-os de seu trono e excomungando-os, bem na lógica descrita por Thomas Hobbes (1558-1679) em seu livro Leviatan: “o poder quer sempre mais poder, porque não se pode garantir o poder senão buscando mais e mais poder”. Uma instituição Igreja de poder fecha as portas ao amor e perde os pobres. Aliada dos poderosos, ela se torna incapaz de evangelizar os marginalizados e os trabalhadores que forma a massa de fiéis, submissos e sem nenhuma participação nas decisões que dizem respeito à vida e à organização da Igreja. O pobre é visto com  o olhar do rico, e por isso sempre carente e objeto da caridade e da assistência. O trabalhador, com o olhar do patrão e por isso sempre submisso e feito carvão no processo produtivo. Raramente se viu o pobre com o lhar do pobre e então perceber sua força histórica, capaz de ser uma alternativa à sociedade dominante, portanto, com força transformadora da história. Da mesma forma pouco se viu o trabalhador a partir do trabalhador, de seus sindicatos e de sua capacidade de impor limites à voracidade do capital, e assim ator de um outro tipo de sociedade mais igualitária e justa. Ao marginalizar estas grandes maiorias a instituição se distancia do sonho de Jesus, mundaniza-se, perde o rosto humano e se faz insensível aos problemas existenciais, mostrando-se, não raro, cruel e sem piedade face às questões ligadas à família e à sexualidade. 4.16. No conjunto da cultura, a Igreja instituição se transformou num bastião de autoritarismo, conservadorismo e machismo, cada vez mais afastada do curso do mundo com imensas dificuldades de estabelecer um diálogo franco e aberto com outras realidades que não seja ela mesma. Sua arrogância institucional de ser a exclusiva portadora e intérprete legitima da revelação, de ser a única verdadeira Igreja de Cristo. Negando a todas as demais, exceto a Ortodoxa, o título de Igreja, e de apresentar-se como a portadora exclusiva dos meios de salvação a ponto de repetir a lição medieval de que “fora da Igreja não há salvação”, torna-se cada vez mais inaceitável pelas pessoas de bom senso, de espírito religioso ecumênico e com um mínimo de cultura teológica, com o risco de se transformar numa grande seita cristã ocidental. Mas há que se reconhecer que, apesar da estreiteza do quadro institucional, surgiram pastores proféticos e santos que assumiram a causa dos pobres e dos oprimidos, como ocorreu ao largo e ao longo da Igreja latino americana. Leigos, homens e mulheres, notáveis por sua inteligência e saber, fizeram de sua fé uma força política de transformação social, sendo muitos deles vítimas da violência dos próprios irmãos de fé e dos grupos sociais, em sua grande maioria católicos, mais interessados em defender seus privilégios do que fomentar a vigência dos direitos. 4.17. Os intentos de reconversão deste tipo autoritário de Igreja hierárquica, feitos pela Reforma no século XVI e pelo Concílio Vaticano II no século XX (1962-1965), deslocando os acentos do sacro poder para os sacro serviço, da hierarquia para o Povo de Deus, do templo fechado sobre si mesmo para o templo aberto em suas portas e janela para o diálogo com a Modernidade, com as demais Igrejas e religiões, foram frustrados e esvaziados pela burocracia vaticana, legitimada pelos papa João Paulo II (1920-2005) e Bento XVI (1927-  ). Eles reassumem e reforçam um modelo de Igreja com traços medievais, reintroduzindo o latim nas missas segundo o rito de Pio V (1504-1572) do século XVI, trataram com mão de luva os cismáticos seguidores do Bispo Marcel Lefebvre (1905-  ), enquanto com bastonadas aos aliados dos pobres, os bispos e os teólogos da libertação. Orientam-se no sentido da restauração e da volta à grande disciplina. O propósito é manifesto: fortalecer o sistema de poder sagrado, monossexual (só homens), celibatário, sacerdote, centralizado, autoritário, hierárquico e excludente. Dificilmente esta concepção de poder e seu exercício se compaginam com a utopia de Jesus do poder como serviço (hierodulia) e jamais como hierarquia (sacro poder). 7. O cristianismo na versão popular. 4.18. Ao lado da versão oficial do cristianismo encarnado na cultura letrada grego latina germânica moderna surgiu desde o início um vigoroso cristianismo popular, especialmente nas Igrejas periféricas, mas também nas Igrejas centrais, como se constata na Europa em geral, mas mais claramente na Itália e na Espanha. Ele não é uma forma decadente do oficial. Ao contrário, possui igual dignidade ao encarnar a mensagem de Jesus na cosmovisão popular. Expressa-se pela linguagem do imaginário, do coração e do afeto. Possui suas verdades e seu modo de dizer, de rezar a Deus e de viver o sonho de Jesus. Este tipo de cristianismo popular foi quase sempre menosprezado, submetendo os fiéis às doutrinas e aos ritos do corpo clerical. Sem confrontar-se e entrar em conflito direto com o modelo oficial, ele criou seu caminho próprio e desenvolveu um cristianismo da vida cotidiana, das virtudes pessoais e familiares, do seguimento de Jesus, geralmente do Crucificado no qual viam sua própria situação crucificada. Esses anônimos que tem em São José seu arquétipo de referência, guardaram o segredo do sonho de Jesus, feito de esperança, de muitas virtudes pessoais e familiares e de uma entrega confiante à vontade de Deus. Fora do poder não sofreram as patologias próprias dos portadores de poder que é o carreirismo, a bajulação, a dupla moral, o farisaísmo, a hipocrisia, a dureza de coração e a arrogância. Vivem um cristianismo puro e simples, os herdeiros autênticos da ética de Jesus e de seu sonho, de um mundo onde começam os bens do Reino e se antecipam as  promessas divinas. Como todas as coisas, ele contém seus limites e seus equívocos. Não raro mistura fé confiante com superstição, realiza um sincretismo nem sempre feliz e sobrenatural e vê como milagres, com demasiada facilidade, fatos naturais. Mas como as doenças remetem à saúde, também aqui tais desvios remetem à substância do Evangelho de Jesus com toda sua carga de esperança e de alegria que ele irradia. O cristianismo popular é festeiro, acompanhado de santos e santas protetores, cheios de cores, danças, bebidas e comidas. Do Livro Cristianismo o mínimo do mínimo. Abraço. Davi.

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