Leonardo
Boff (1938- ). “Toda encarnação do cristianismo nas culturas significa
concreção, mas também limitação e redução. Reducionismo na filosofia é uma tendência que consiste em reduzir os fenômenos complexos e seus componentes mais simples. Considerando esses últimos como mais fundamentais que os fenômenos complexos observados. Um dos principais inimigos da liberdade, no homem, é o reducionismo. Qualquer tipo de reducionismo é frustrante, principalmente os que reduzem o homem a um produto. Quanto do sonho de Jesus, de sua
prática, de sua mensagem e de sua ética suporta o paradigma grego romano
ocidental? Ele incorporou o cristianismo dentro de suas possibilidades, mas à
custa de notáveis limitações e lamentáveis reduções. Importa libertar a
experiência originária de Jesus e diminuir a arrogância institucional da Igreja
Católica Romana que pretende apresentar a integralidade da herança de Jesus sem
nenhum reducionismo e sem relativismo, pior ainda, condenando os reducionismo
dos outros sem se dar conta do seu próprio reducionismo. Por isso, precisamos
proceder a uma reflexão crítica. A questão não é o reducionismo. Ele pertence a todo processo de encarnação; não é
defeito, mas marca da história. A questão é estar cego a tal fato e
apresentar-se arrogantemente como quem nada reduziu, confundindo a parte com o
todo, como o seu reducionismo real, mas inconsciente fosse a totalidade do
Evangelho e do sonho de Jesus. Elenquemos alguns desses reducionismos, pois
desta forma libertaremos o cristianismo desta patologia a fim de que possa
desimpedidamente implementar outros ensaios encarnatórios futuros. O
cristianismo romano católico, ao invés de pregar o Deus Trindade, ficou no
monoteísmo vétero testamentário e pré trinitário. A doutrina de um só e único
Deus, dominante nas pregações e na própria reflexão teológica, se adequava e se
adequa melhor à cultura do poder autoritário e do pensamento único, reinante na
cultura patriarcal. Ao invés de prolongar o sonho de Jesus, do Reino de Deus,
anunciou a Igreja fora da qual não há salvação, não raro aliada aos poderosos e
distanciada dos pobres e oprimidos. Ao invés de pregar a ressurreição como o
evento maior da história, um verdadeiro tremendum na linguagem do Pierre
Teilhard de Chardin (1881-1955), preferiu o anúncio da imortalidade da alma,
crença platônica vastamente popularizada na cultura romana, grega e ocidental
até os dias de hoje. Ao invés de
apresentar o Jesus real, histórico, preferiu um Jesus definido em termos
filosóficos e teológicos dos Concílios de Niceia (325), de Constantinopla
(381), de Éfeso (431) e de Calcedônia (451) como aparece no atual credo. Nele é
professado como “Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
engendrado, não criado, da mesma natureza que o Pai”. E logo se diz que “se fez
homem e por nossa salvação foi crucificado sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi
sepultado”. Nada se diz de sua vida, mensagem, obra e por que o mataram. No
fundo apenas se diz que “nasceu e morreu”. Portanto, um reducionismo que
esvazia totalmente a realidade humana de Jesus, aquela que realmente importa,
sem perceber o altíssimo risco de esvaziar o Mistério da Encarnação. Ao invés
de reforçar a comunidade, na qual todos participavam de tudo, introduziu a
hierarquia de pessoas e a divisão das funções, criando dois corpos nas igrejas,
o corpo clerical (religiosos, teólogos e oficiantes dos ritos) que tudo sabe e
tudo pode e o corpo laical (o povo participante em geral) ao qual cabe apenas
ouvir e executar. Ao invés da comunhão dos bens, apanágio das comunidades
cristãs primitivas, atestadas pelos Atos dos Apóstolos (capítulos 2 e 4),
prevaleceu o espírito individualista pelo qual cada um vive para si e cuida de
salvar a sua alma. Mas há ainda um outro tipo de reducionismo, este ainda mais
profundo, que atingiu a substância da novidade trazida por Jesus. Assim, a
experiência do cristianismo de experimentar Deus como Trindade de Pessoas,
sempre em pericórese (é a relação entre a Santíssima Trindade, Triunidade; Deus
Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo), comunhão de vida e de amor mútuos, não
logrou impor-se historicamente. Esta intuição fundamental e original face às demais
religiões foi logo capturada por polêmicas derivadas do paradigma grego de
pensamento. Este se caracteriza, com raras exceções, por uma visão
substancialista, identitária e não processual da vida e da história, pouco
adequada a pensar a Trindade como jogo de relações entre as três divinas
Pessoas. Esta, por sua própria natureza, demanda um outro paradigma que vê a
realidade em permanente processo de realização e de emergência como é próprio
do Mistério, como o temos meditado anteriormente, e típico de fenômenos como a
vida, a natureza e o espírito. A maioria dos pensadores cristãos, incapaz de
captar a singularidade do modo cristão de dizer Deus, fez com que o discurso
pastoral das igrejas se mantivesse no clássico monoteísmo pré trinitário, comum
ao judaísmo e às religiões do mundo. A Santíssima Trindade ficou sendo o
símbolo do Mistério dos Mistérios e, por isso, tido como inacessível à razão
humana e objeto de pura fé. Os intentos de aprofundamento, nos quadros do logos
grego, produziram intrincadas discussões com inúmeras heresias, o que isolou
mais ainda esta verdade da vida e da prática dos cristãos. Restou sua presença
na liturgia mais de forma ritual do que existencial. Outro reducionismo diz
respeito ao eclipse da figura do Pai como Pai do Filho. No Credo se professa
que Ele é “Pai Todo Poderoso, criador do céu e da Terra”, onisciente e juiz
supremo, Senhor absoluto da vida e da morte. Ao lado de tal Pai não resta lugar
para um Filho, por isso não é vivido trinitariamente como o Pai do Filho, mas como
o Criador de todas as coisas. Esta religião do Pai serviu e continua servindo
de justificação ideológica a todo tipo de paternalismo e autoritarismo pelos
quais as pessoas são mantidas na dependência e no servilismo. Um Pai no céu,
Deus; um pai na Terra, o monarca ou o presidente; um pai na Igreja, o papa; um
pai na comunidade, o chefe; e um pai na família; o pai como a autoridade
máxima. Esta continua sendo a representação dominante. A exaltação excessiva da
figura do Filho. O esquecimento da visão trinitária ocasionou uma concentração
exacerbada da figura do Filho encarnado em Jesus Cristo. Surgiu o cristomonismo
(predominância exclusiva de Cristo), como se Cristo fosse a única e exclusiva
realidade e não houvesse junto com Ele o Pai e o Espírito Santo. Ele é visto
como o único Salvador universal, um líder libertador, solitário, ornado com
todos os símbolos do poder, sempre exaltado como Senhor e Cristocrator, tendo o
cetro numa das mãos, o mundo na outra e uma coroa de ouro e joias na cabeça,
coisa que o Jesus histórico, possivelmente, jamais teria visto com os próprios
olhos e rejeitaria, indignado, ser ornado com semelhante parafernália. A figura
do Servo Sofredor e companheiro na caminhada humana, o Cristo do casal de
caminhantes de Emaús é assim poderosamente ofuscada. A exacerbação da figura do
Cristo, cabeça invisível da Igreja visível,
reforça as figuras autoritárias e as instituições fundadas no poder
centralizador. Este tipo de cristologia reducionista criou seu oposto
compensatório que é a cristologia juvenil elaborada em função dos jovens. Ai
Jesus aparece como um formoso e entusiasta líder e um herói vigoroso, como qu
saído de alguma academia de ginástica, a ser seguido e exaltado. Mas esta
imagem hollywoodiana é quase sempre desvinculada dos conflitos inerentes à
vida e à história. Ou então,
romanticamente, emerge um Jesus da pastoral familiar, apresentado no meio de
Maria e José ou como o doce Jesus de Nazaré, abençoando crianças, ou como o Bom
Pastor, cercado de ovelhas em pastos verdejantes ou tristemente olhando para a
cidade de Jerusalém que o rejeitou. Uma religião só do Filho se encapsula sobre
si mesma como se nada mais existisse para além dela mesma. Torna-se incapaz de
ver a presença do Espírito e valores do Reino em outros caminhos espirituais
que não nos cristãos, e está a um passo do exclusivismo e do fundamentalismo
com referência a revelação e a salvação. O terceiro reducionismo concerne ao
esquecimento da figura do Espírito Santo. Tardiamente, na reflexão teológica, o
Espírito Santo foi admitido como terceira Pessoa da Trindade, ficando refém das
disputas teológicas entre a Ortodoxia e a Igreja Latina com referência ao
filioque, quer dizer, a relação de origem do Espírito. Ele é espirado
unicamente pelo Pai, assim como o Filho é gerado (Ortodoxia), ou é espirado
pelo Pai e pelo Filho ou através do Filho (o filioque da Igreja latina). Esta
discussão teológica que parece, no fundo, irrelevante, oculta, na verdade,
disputas de poder entre os dois polos da
Cristandade, o Ocidente e o Oriente, cindiu as duas igrejas fundamentais até os
dias de hoje. Tal fato produziu um deslocamento: no lugar do Espírito entraram
as igrejas. Ele acabou tendo uma função lateral e secundária. Quer queiram as
igrejas ou não, o Espírito é fonte de criatividade e de inovação, sopra onde
quer, antecipa-se ao missionário, pois se faz presente nos povos pelo amor,
pelo perdão e pela convivência solidária. As instituições, no entanto, o veem
como fator de perturbação da ordem estabelecida e, por isso, marginalizado e
até esquecido. Em razão desta compreensão conservadora e reducionista, os
homens e mulheres do Espírito, os místicos e fundadores de novos caminhos
espirituais, tiveram sempre dificuldade de reconhecimento por parte da
instituição eclesiástica que os manteve e ainda os mantém sob severa
vigilância, quando não os marginaliza e até condena. Esquecem a severa
advertência de Paulo: “não afogueis o Espírito” (I Ts 5:19). Uma comunidade
eclesial sem a presença consciente do Espírito, geralmente é dominada por
autoridades eclesiástica, ávidas de ordem e de poder, enrijecidas e
burocratizadas. Por outra parte, os movimentos carismáticos, que buscam
alimentar uma experiência pessoal de Deus, encontraram no Espírito Santo a sua
fonte de inspiração. Dai se explica a proliferação de igrejas carismáticas
populares, sejam evangélicas, sejam católicas, mas com formas muito afins de
piedade e de organização. Esta expressão carismática ajudou a socializar a
palavra na Igreja, reservada somente à hierarquia, abrindo espaço para a
criatividade ritual e simbólica, antes negada pela rigidez canônica da liturgia
oficial. Mas ela padece de clara insuficiência ao não articular os temas da
injustiça, dos pobres e da transformação social, como o Evangelho e com a
criatividade própria do Espírito. Por isso, uma religião só do Espírito
facilmente cai no sentimentalismo, no entusiasmo juvenil e na alienação face à
conflitividade da vida e até no fanatismo e na anarquia espiritual. A
Cristandade não encontrou até hoje um ponto de equilíbrio quanto a assunção das
divinas Pessoas como o verdadeiro Deus da experiência cristã. Distanciou-se de
sua identidade originária de um Deus comunhão amor que deveria se expressar na
história, por comportamentos e iniciativas que incentivassem o caráter
comunitário, a participação igualitária de todos e a compreensão da
cristianismo como uma realidade sempre aberta a novas manifestações e
encarnações nas mais diferentes culturas, mas não foi o que predominou. Na
Igreja Romana católica ocorreu uma inversão hilária: aquilo que na doutrina da
Trindade é verdade (a ausência de hierarquia, pois todas as Divinas Pessoas são
igualmente eternas, infinitas e onipotentes) se torna heresia na Igreja (não há
igualdade entre os cristãos, mas uma hierarquia só de homens, pretensamente
querida por Deus e uma diferença essencial entre clérigos e leigos). Do Livro
Cristianismo o Mínimo do Mínimo. Abraço. Davi.
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