Budismo.
Budavirtual.com.br. Texto de Padma Dorje é praticante budista e autor de
Filosofia Forma de Vida & Passarela de Egos. Saiba mais sobre seu trabalho
no site tzal.org. Muitas terapias e formas de ver o mundo parecem ensinar que
precisamos reconhecer e fazer amizade com o que seria nosso “lado negativo”, e
que isso seria parte da cura e de se tornar uma pessoa “inteira”. Para o
budismo, no entanto, toda a negatividade é aparente, e, portanto, inerentemente
falsa. Como podemos evitar cair no extremo de acatar o engano, ao mesmo tempo
sem desenvolver uma visão “poliana”, que esconde a sujeira para debaixo do
tapete? O budismo é um sistema bastante
flexível, uma vez que as necessidades dos seres são bastante diferentes. De
fato, nossas próprias necessidades podem variar bastante num só dia. Os ensinamentos são classificados de várias formas de acordo com
os contextos em que são empregados. Uma classificação inicial que se pode fazer
é a entre perspectivas duais e perspectivas não duais, ou, o que algumas vezes
se pode chamar de “de baixo para cima” e “de cima para baixo”, respectivamente.
Na primeira abordagem, olhamos para nossa realidade atual,
reconhecemos o sofrimento ubíquo da experiência condicionada e cíclica (a que
chamamos de samsara), e buscamos refúgio no Buda pelo treinamento
da mente, que essencialmente é a acumulação de méritos e sabedoria. Nossa
condição é a ignorância, nosso potencial é o estado de buda, e a prática é o
que revela esse estado. Nesta perspectiva, não há
possibilidade de confusão entre nosso lado dito “positivo” e nosso lado dito
“negativo”. Os aspectos ligados ao sofrimento e as causas do sofrimento são
negativos e devem ser evitados. Assim, evitamos ações negativas, e treinamos a
mente para que ela tenha menos visões errôneas da realidade, que projetam
confusão sobre os outros, e nos fazem agir negativamente. Na segunda perspectiva, porém, reconhecemos que, para a ignorância
ser dissipável, é necessário que a realidade seja livre de ignorância em
primeiro lugar; isto é, que a ignorância não seja algo real, mas uma
característica adventícia, temporária. Então entendemos tudo, do samsara até
o caminho que nos liberta do samsara, como fazendo parte de uma
ilusão. Mas nem mesmo “ilusão” se torna aqui um termo pejorativo, uma vez que a
realidade está sempre presente, quer a reconheçamos, quer não a reconheçamos.
Então falamos em “ilusão pura” e “ilusão impura”, as duas não fazendo diferença
nenhuma em termos da realidade – a natureza de buda – mas fazendo diferença em
termos de haver ou não reconhecimento e usufruto dessa natureza. Num sentido mais profundo, para o caminho dual ser verdadeiro, ele
precisa se embasar no caminho não dual, e, por outro lado, o caminho não dual
não poderia ter nenhuma má vontade ou a menor rejeição quanto a qualquer
dualidade, fosse ela pura ou impura. Apenas usamos esses conceitos de forma a
nos relacionarmos com nossa prática, bem como com nossa própria mente, que
oscila entre o reconhecimento quase fortuito de certas verdades, hábitos que
nos prejudicam e aos outros, e visões errôneas. Quando estabelecemos a ilusão
pura do caminho budista, treinamos sistematicamente no reconhecimento do que
realmente há, e os hábitos, visões errôneas e as oscilações no reconhecimento
da realidade começam a paulatina e naturalmente se dissipar. É esse aspecto não dual que muitas vezes é confundido com uma “reconciliação”
com nosso lado negativo, ou uma integração, uma totalidade, em que positivo e
negativo coexistem ou são mesclados. No entanto, essa é uma infeliz tentativa
da visão dual se imiscuir no que seria a visão não dual propriamente dita. Na
visão não dual, não existe negatividade alguma, ela é uma posição de uma
positividade que está além da dualidade, e não projeta nenhum tipo de sombra em
lugar algum. Assim, embora na não dualidade não faça
diferença alguma se estamos iluminados ou não, para nós e para os seres que nos
rodeiam dentro dessa ilusão temporária, isso faz bastante diferença. E se,
agindo de acordo com esse não reconhecimento da natureza inalterada da
realidade, acrescentamos camadas de dissociação dela, isso é o que
eventualmente rotulamos de “sofrimento”. Uma das mais insidiosas formas
de sofrimento e causa do sofrimento é exatamente a apropriação de ensinamentos
não duais pela mente dual. Isso é bastante comum, todos nós somos culpados
disso vez que outra, e assim, isto se torna um motivo para que atentemos a
isso, sem novamente jogar essa negatividade para baixo do tapete. E dizer que
“já que é assim mesmo, isso é natural, e faz parte”. Abandonamos esse tipo de
atitude, sem ficar excessivamente neuróticos, mas também sem achar que as coisas
estão resolvidas. O que fazemos quando cometemos esse erro é
assumir um relaxamento na “natureza última”, sem haver de fato um repouso nessa
natureza. Essa presunção não só efetivamente impede esse repouso, como cria
problemas mundanos também. Explico melhor. Geramos um
conceito, e talvez até algumas sensações, ligadas aos ensinamentos não duais.
Eles ocasionalmente nos assustam, mas também nos reconfortam. Afinal de contas,
tudo vai dar certo, está tudo correto desde o princípio sem princípio, nada que
possamos sofrer ou fazer vai macular em um átimo nossa natureza incorruptível.
Então jogamos a conta de nossa negatividade para dentro do saco desse conceito,
e dessas sensações boas que vinculamos a essa ideia. Só que, cedo ou tarde,
porque isso é um mero conceito sem poder algum perante a realidade. Quando
formos inexoravelmente atropelados um pouco mais intensamente pelas causas e
condições, nessa hora, podemos nem mesmo nos lembrar desse conceito. Ou, pior
ainda, podemos lembrar, e imediatamente reconhecer o quanto ele era fajuto – só
que nessa hora não pensamos “esse conceito é fajuto porque eu não o realizei,
eu tinha só uma ideia dele”, o que pensamos é “isso não existe, estava tudo
errado, e esses ensinamentos não servem de nada”. Nesse momento projetamos nossa negatividade sobre os ensinamentos,
e assim encobrimos nossa única possibilidade de um método sistemático para ir
além dos conceitos na direção da experiência. Quando somos assim desleixados
com esses ensinamentos, os usando de desculpa, e os diminuindo a conceitos e
umas poucas sensações momentâneas, o que ocorre é que perdemos aos poucos o
grande mérito que nos colocou em contato com essas ideias. Começamos a corroer
esse mérito como um filho pródigo, e quando vemos, o darma inteiro se torna
alguma outra bobagem qualquer que passa pelo Facebook. O que acontece, nesse caso, é que nosso ego se apropriou dos
ensinamentos, como lhe é natural. Ele pegou essas ideias todas de não dualidade
e, com sua “esperteza” costumeira, as usou para seu proveito. Ele justificou
ações errôneas, dizendo que estava tudo bem, porque carma é um ensinamento
expediente. Ele justificou não fazer prática, ou não seguir a receita cuidadosa
dos budas, que prescrevem extensivas práticas preliminares. Ele justificou o prazer
e o sofrimento até onde foi possível, sem nenhuma preocupação em transformar
essas ideias em experiência, e sem nem pensar em cultivar a pouca experiência
momentânea que porventura nosso mérito produzisse numa experiência estável. O
que ele obteve, ele fixou, e usou até onde deu. E agora, acabou. E a culpa é
dos ensinamentos. Claro que a culpa não é do ego. É aqui que precisamos parar com o jogo de Dr. Jekyl e (1) Mr. Hide
que temos jogado. Estamos sendo levados pelas experiências, porque geramos
conceitos sobre elas, e então, em nossa confusão, achamos esses conceitos
suficientes. Mas eles são remendos. Logo depois a poção mágica do nosso carma
nos agita, e de praticantes bonzinhos novamente nos transformamos em monstros.
Caso tenhamos um obstáculo realmente pernicioso, depois disso
acontecer algumas vezes, e ainda em contato com o darma, justificamos toda essa
bipolaridade novamente com alguma ideia tosca de não dualidade. Agora o Mr.
Hide tomou conta dos ensinamentos, o ego se torna o discurso da ausência de
ego, em que se pode ferir a todos, porque se está sendo “compassivo”. Fazer os
outros sofrer é ensinar a eles sobre o samsara, não é mesmo? No limite, nos
tornamos mestres falsos, sádicos. É como alguém que olha para as
deidades iradas e pensa que é ok cultivar a raiva. Então ela veste o ego com a
imagem irada, e sai por aí cometendo ações não virtuosas. Enquanto que o
budismo ensina o oposto: essa deidade é inerentemente boa, ela manifesta a
intensidade porque está “vestida com as roupas do ego”. Então, não há raiva
nenhuma, trata-se de uma expressão de compaixão. Porém, solidificamos a
aparência da deidade, atribuímos alguns conceitos errôneos a essa aparência, e
nos tornamos exatamente o que chamaríamos de “demônios”. Como corrigir esse tipo de confusão, antes que saia de controle? A
atitude de um praticante é sempre respeitar a dualidade. “Embora minha visão
seja ampla como o céu, meu discernimento se mantém com a precisão necessária
para identificar os grãos separados da farinha”, essa é uma paráfrase explicativa
do que foi dito por Guru Rinpoche. No mundo dual, entregamos as rédeas para Dr.
Jenkyl, e usamos o darma para evitar Mr. Hide. Reconhecemo-lo, mas não nos
identificamos com ele, e muito menos usamos a não dualidade como desculpa para
sua existência ou para suas ações. Historicamente, muitas visões
falam desse não dual que é uma espécie de mistura de bem e mal. A deidade
gnóstica Abraxas algumas vezes é entendida assim. Depois temos
aquela visão nietzschiana, em que se deveria estar “além do bem e do mal”, no
sentido de não estar preso a uma “moralidade covarde” ou “fraca”, de obediência
e caridade, digamos. Porém, a visão budista não é nem um pouco assim. Ela não
joga as coisas duais na não dualidade como uma desculpa para a dualidade: é
basicamente o contrário disso. Nós não salvamos Mr. Hide, porque, no fundo, ele
é não dual. O que fazemos é reconhecer que a dualidade não está em contradição
com a não dualidade; afinal de contas, se assim fosse, a não dualidade ainda
seria ainda sutilmente dual – como no caso das visões gnóstica e nietzschiana.
Assim é correto sistematicamente evitar a negatividade: essa é
a expressão da não dualidade em meio ao dual. Na outra perspectiva, haveria
ainda um comprometimento com o negativo, como se negativo e positivo fossem
apenas igualados ou ignorados, sem reconhecer que no fundo são filtros de uma
experiência transcendente e completamente positiva. A “totalidade perfeitamente boa” não admite a redenção da
negatividade, ou sua justificação. Não é como se peguemos a visão dual,
passemos cloro, e deixemos as duas coisas de uma cor só, meio sem cor. Não é
como se a visão dual possa se apropriar da não dualidade e dizer que está tudo
bem, porque sempre esteve tudo bem. Isso só é verdade da perspectiva realmente
não dual. Nessa perspectiva não há uma “negatividade” que foi integrada, nunca
houve, em nenhum momento, negatividade. A negatividade existe como algo a ser
combatido na perspectiva dual, que não é negada. A perspectiva errônea cria uma
dualidade entre dual e não dual, dizendo que o que é dual é errôneo, e que
praticar moralidade é uma perda de tempo. Sendo realmente não duais, a
dualidade é aceita, e assim a moralidade é uma expressão dessa não dualidade no
âmbito dual. A dualidade é assim plenamente integrada como
uma expressão de riqueza da não dualidade. Combater hábitos perniciosos,
participar de um caminho gradual, praticar ética e seguir o caminho budista no
que ele tem de dual, é efetivamente uma expressão dessa positividade íntegra
não dual se manifestando na dualidade. A ética transcendente se manifesta no
mundo através do treinamento da mente. O treinamento da mente só é possível
porque, num sentido fundamental, o fato da mente poder ser treinada indica uma
flexibilidade da mente, que em si, é completamente positiva. As práticas com
esforço são o próprio regozijo e exercício da visão sem esforço. Quando o darma
se torna difícil para nós, podemos ter certeza de que é um abandono dessa
perspectiva ampla, e mais um passeio pela experiência alucinante e perdida,
cheia de sofrimento e causadora de sofrimento, de Mr. Hide (1). Uma visão em
que o não dual se torna uma desculpa, um conceito, e não participa ativamente
do dual como riqueza inerente. Assim, muitas vezes a cultura
vai tentar nos convencer de que é “natural” ter raiva. São imperativos
biológicos. Sigmund Freud (1856-1881) disse que está tudo bem. “No fundo a
raiva revela nossas necessidades”. A última onda da autoajuda se torna algo
como “desperte seu psicopata interior”, nem que isso não represente atacar
alguém fisicamente, mas enchê-lo de “discussão de relação”, até o fim dos
tempos, numa passividade agressiva sem fim. Autocompaixão se torna a fonte da
compaixão, quando exatamente o oposto é a verdade. Na perspectiva do darma, onde nossa confusão é adventícia,
encontrar a lucidez é uma não dualidade de dualidade e não dualidade, que não
nega nada, e abarca tudo numa positividade infalível. Mas quem está se
apossando desses conceitos? Mr. Hide vai usar isso como desculpa para não fazer
prática, e até mesmo, não fazer nada – ou, no limite, para vender cursos e
manipular os outros. Dr. Jenkyl, por outro lado, é ponderado, sensato: ele vai
se engajar nos métodos duais até obter uma confiança inquebrantável nesses
métodos, que se tornará uma confiança inquebrantável em sua fonte, o Buda,
nossa verdadeira natureza. Sem desculpas, o darma é
simples: é encarar nossos obstáculos de frente, e através dos métodos
fornecidos pelo maior professor, vencê-los todos, sem nenhum senso de conquista
própria. O júbilo dos budas é a certeza não mitigável na própria natureza como
perfeitamente boa. Desfrutar essa riqueza é algo maior do que qualquer
experiência condicionada que possamos conceber. É maior do que todas elas
juntas. Todos os seres podem despertar para esse reconhecimento, mas muitas
vezes se enredam numa teia infinita de picuinhas e justificações. Que eles
todos encontrem, no meio desses fios todos, o fio deixado pelo Buda, o fio que
nunca produz nós, e que leva ao reconhecimento incessante da própria natureza
como liberdade espontânea. Que eles não larguem esse fio, e que eles reconheçam
seu valor, que eles persistam até o final, mesmo quanto todo resto ainda parece
ter algum apelo brilhante, ou parece ser intransponível. Budavirtual.com.br. (1). Mister Hyde – é um vilão do universo
Marvel, inimigo de Thor, Demolidor e do Homem-Aranha. Baseado no personagem do
mesmo nome, de um livro de Robert Louis Stevenson (1850-1894) chamado O Médico
e o Monstro. Abraço. Davi.
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