Budismo. Texto de Tenzin
Gyatso (1935- ) o Décimo Quarto Dalai
Lama. O CAMINHO DO BODHISATTVA. O GUIA PARA O MODO DE VIDA DO BODHISATTVA,
escrito pelo mestre indiano do século VIII, Shantideva, é a fonte primária da
maioria dos escritos sobre a atitude altruísta de colocar a felicidade dos
outros antes da sua própria. Recebi a transmissão oral desse texto pelo
falecido Khunu Rinpoche (1895-1977), um notável professor da cidade de Kinnaur,
no norte da Índia. Eu próprio tento aplicar esses ensinamentos o máximo
possível e também, quando surge a oportunidade, explica-los aos outros. Usando
o texto de Shantideva como guia, gostaria de explorar alguns dos principais
pontos dessa prática compassiva. PARA RECONHECER O INIMIGO INTERIOR. De modo a
priorizar o bem-estar dos outros, em primeiro lugar é preciso reconhecer o que
nos mantém presos à atitude autorreferente. No quarto capítulo, intitulado “A
consciência”, Shantideva explica que as ilusões dentro de nossas mentes, como o
ódio, a raiva, o apego e a inveja, são nossos verdadeiros inimigos. Como ele
afirma nos dois versos abaixo, esses inimigos não têm corpo físicos com pernas
e braços, nem tampouco têm armas nas mãos, pelo contrário, residem em nossas
mentes e nos atormentam. Controlam-nos e nos prendem como seus escravos.
Normalmente, no entanto, não percebemos essa ilusões como nossas inimigas, e
assim nunca as confrontamos nem as desafiamos. Já que não as desafiamos, elas
vivem sem correr perigo dentro de nossas mentes e continuam a nos prejudicar à
vontade. “Inimigos como o ódio e a cobiça não têm mãos nem pés, e não são
corajosos nem inteligentes. Como é possível que me tenha tornado escravo deles?
Emboscados na minha mente, Atacam-me a seu bel-prazer; e, no entanto, eu os
suporto com paciência e sem raiva. Mas este é um momento inadequado e
vergonhoso para a paciência”. Pensamentos e emoções negativos com frequência
são enganadores. Eles brincam conosco. O desejo, por exemplo, nos parece ser um
amigo digno de confiança, algo belo e querido para nós. Do mesmo, a raiva e o
ódio parecem ser nossos protetores ou guarda-costas confiáveis. Algumas vezes,
quando alguém está prestes a prejudica-lo, a raiva aumenta dentro de você como
um protetor e lhe dá uma espécie de força. Mesmo que você possa ser fisicamente
mais fraco do que seu agressor, a raiva o faz sentir-se forte. Ela lhe dá um
falso sentimento de poder e energia, e o resultado, nesse caso, é que você pode
levar uma surra. Já que a raiva e outras emoções destrutivas aparecem assim
disfarçadas, raramente as desafiamos de verdade. Existem muitas maneiras
semelhantes pelas quais os pensamentos e emoções negativos nos iludem. De modo
a perceber completamente a traição desses pensamentos e emoções negativos,
devemos primeiro alcançar alguma estabilidade mental. Só então começaremos a
ver sua natureza traiçoeira. Apesar de ser um monge e suposto praticante do
Guia Para O Modo de Vida do Bodhisattva, eu próprio às vezes ainda me irrito e
sinto raiva. Como resultado disso, uso palavras ásperas com os outros. Então,
poucos instantes depois, quando a raiva se dissipou, sinto-me envergonhado; as
palavras negativas já estão ditas e realmente não há como trazê-las de volta. Embora
as palavras em si já estejam pronunciadas e o som da voz tenha deixado de
existir, seu impacto permanece. Assim, a única coisa que posso fazer é me
aproximar da pessoa e me desculpar. Enquanto não tomo essa atitude, sinto-me
bastante tímido e envergonhado. Isso mostra que mesmo um pequeno rompante
(atitude irrefletida) de raiva e irritação cria uma grande quantidade de
desconforto e perturbação para aquele que fica com raiva, sem falar no dano
causado à pessoa alvo dessa raiva. Portanto, na realidade, esses estados de
espírito negativos obscurecem nossa inteligência e nosso bom julgamento,
causando assim grandes danos. Uma das melhores qualidades humanas é nossa
inteligência, que nos permite julgar o que é saudável e o que não é, o que é
benéfico e prejudicial. Pensamentos negativos, como a raiva e o apego
excessivos, destroem essa qualidade humana especial, isso é realmente muito
triste. Quando a raiva ou o apego dominam a mente, a pessoa fica quase louca e
tenho certeza de que ninguém quer ficar louco. Sob o domínio da raiva ou do
apego, cometemos todo tipo de atos prejudiciais – geralmente com consequências
extensas e destrutivas. Uma pessoa dominada por tais estados de espírito e de
emoção é como uma pessoa cega, incapaz de ver onde está indo. No entanto, não
ousamos desafiar esses pensamentos e emoções negativos que quase nos levam à
insanidade. Pelo contrário, muitas vezes os nutrimos e reforçamos! Ao fazer
isso, na verdade, estamos nos tornando presas de seu poder destrutivo. Quando
você refletir dessa maneira, perceberá que nosso verdadeiro inimigo não está
fora de nós mesmos. Deixe-me dar-lhe outro exemplo. Quando sua mente está
treinada para a autodisciplina, mesmo que você esteja cercado por forças
hostis, sua paz de espírito quase não será perturbada. Por outro lado, se sua
mente for indisciplinada, sua paz e
calma mental poderão facilmente ser interrompidas por seus próprios pensamentos
e emoções negativos. Então repito, o verdadeiro inimigo está dentro de nós, não
fora. Geralmente definimos nosso inimigo como uma pessoa, um agente externo
que, acreditamos, está nos prejudicando ou prejudicando alguém querido. Mas um
inimigo assim depende de muitas condições e é inpermanente. Num momento, a
pessoa pode agir como inimiga; no entanto, no momento seguinte, ele ou ela pode
se tornar seu melhor amigo. Isso é uma verdade que muitas vezes experimentamos
em nossas próprias vidas. Mas os pensamentos e emoções negativos, o inimigo
interior, sempre serão inimigos. São seus inimigos hoje, foram seus inimigos e
continuarão a ser seus inimigos enquanto estiverem morando dentro de sua mente.
Esse inimigo interior é extremamente perigoso. O potencial destrutivo de um
inimigo exterior é limitado quando comparado ao de seu equivalente interior.
Além disso, muitas vezes é possível criar uma defesa física contra um inimigo
exterior. No passado, por exemplo, muito embora tivessem recursos materiais e
capacidades tecnológicas limitadas, as pessoas se defendiam construindo
fortalezas e castelos com muitas muralhas. Com as armas poderosamente
destruidoras de hoje em dia, tais defesas estão, é claro, obsoletas. Numa época
em que qualquer país é alvo potencial das armas nucleares dos outros, os seres
humanos ainda continuam a desenvolver sistemas de defesa cada vez mais sofisticados.
O sistema antimísseis proposto pelos Estados Unidos é um exemplo típico de tal
iniciativa. Por trás de seu desenvolvimento ainda está a antiga crença de que
podemos acabar criando um sistema que nos dará proteção “total”. Não sei se um
dia será possível criar um sistema de defesa capaz de garantir proteção mundial
contra todas as forças externas de destruição. No entanto, uma coisa é certa,
enquanto esses inimigos interiores destrutivos da raiva e do ódio forem
deixados em paz e não forem desafiados, a ameaça da aniquilação física sempre
vai pairar sobre nós. Na verdade, no final das constas, o poder destrutivo de
um inimigo exterior deriva do poder dessas forças internas. O inimigo interior
é o gatilho que libera o poder destrutivo do inimigo exterior. Shantideva nos
diz que, enquanto esses inimigos interiores permanecerem em segurança dentro de
nós, há grande perigo. Shantideva prossegue dizendo que, mesmo se todas as
pessoas do mundo se opusessem a você como seus inimigos e o prejudicassem, contanto
que sua própria mente estivesse disciplinada e calma, não seriam capazes de
perturbar sua paz. No entanto, um só caso de ilusão que surgir em sua mente
terá o poder de perturbar essa paz e estabilidade interiores. “Mesmo que
tivesse como inimigos, todos os deuses e todos os semideuses; juntos não seriam
capazes de me arrastar para o inferno. Mas as emoções negativas, esses
poderosos inimigos, lançam-me, num piscar de olhos, num fogo tal que até a
rainha das montanhas derreteria sem a menor cinza”. Shantideva também afirma
que uma diferença crucial entre o inimigo comum e as ilusões é que, se você se
comportar de forma amigável e compreensiva com o inimigo comum, estão poderá
ser capaz de transformar esse inimigo em amigo, mas não pode se relacionar com as
ilusões de modo semelhante. “Quanto mais você tentar se associar a elas com o
objetivo de ser seu amigo, mais prejudiciais e desastrosas se tornarão. Se eu
honrar e confiar nos outros agradavelmente, eles me trarão benefícios e
felicidade. Mas se eu confiar nessas concepções perturbadoras, no futuro elas
só me trarão tristeza e danos”. Enquanto você continuar a ser dominado pelas
ilusões e pelos estados de ignorância que as sustentam, não terá nenhuma
possibilidade de alcançar uma felicidade genuína e duradoura. Isso, penso, é um
fato natural. Se você se sentir profundamente perturbado por essa verdade, sua
resposta deverá ser a busca de um estado de liberdade em relação a isso, ou
seja, o estado do Nirvana. Aqueles que se tornam monges e monjas fazem do alcance
do Nirvana, ou da verdadeira liberação, o foco de suas vidas. Assim, se você
puder se permitir dedicar-se inteiramente à prática do Dharma, então deverá
implementar em sua vida os métodos espirituais que levam ao alcance desse
estado de liberdade. Se, como no meu caso, você não tiver tempo suficiente,
isso é bem difícil, não é? Sei que um dos fatores que me impedem de me dedicar
totalmente a um modo de vida com tal compromisso é minha própria preguiça. Sou
um Dalai Lama bem preguiçoso, o preguiçoso Tenzin Gyatso! Mesmo que você não
possa levar uma vida na qual o único objetivo seja a prática do Dharma, é muito
benéfico refletir o máximo possível sobre esses ensinamentos e esforçar-se para
reconhecer a transitoriedade de todas as circunstâncias adversas. Como
ondulações na água de uma piscina, elas ocorrem e logo desaparecem. Na medida
em que nossas vidas são condicionadas por nossas ações iludidas do passado,
elas são caracterizadas por ciclos de problemas permanentes, que crescem e em
seguida diminuem. Um problema aparece e passa, e logo outro problema começa.
Eles vêm e vão em uma sequência incessante. No entanto, a continuidade de cada
uma de nossas consciências – por exemplo, da consciência de Tenzin Gyatso – não
tem começo. Embora seja um estado de fluxo constante, um processo dinâmico e em
constante mudança, a natureza básica da consciência nunca muda. Tal é a
natureza de nossa existência condicionada, e a percepção dessa verdade faz com
que seja fácil para mim me relacionar com a realidade. Essa visão realista me
ajuda a manter minha paz e minha calma. Esse é o modo de pensar do monge Tenzin
Gyatso. Por meio de minha própria experiência, sei que a mente pode ser
treinada, e graças ao treinamento podemos causar uma mudança profunda em nós
mesmo. Isso, eu sei, é bastante incontestável. Apesar de sua influência
penetrante e de seu potencial destrutivo, existe um aspecto específico sob o
qual o inimigo interior é mais fraco do que o inimigo exterior. No Guia Para O
Modo de Vida do Bodhisattva, Shantideva explica que para derrotar inimigos comuns são necessárias
força física e armas. Você pode até precisar gastar bilhões de dólares em armas
para enfrenta-los. Mas para combater o inimigo interior, as ideias perturbadoras,
você só precisa desenvolver os fatores que dão origem à sabedoria que permite
compreender a natureza fundamental dos fenômenos. Não precisa de nenhuma arma
material nem de força física. Isso é uma grande verdade. “Emoções perturbadoras
iludidas! Se abandonadas pelo olho da sabedoria, e expulsas da minha mente,
para onde iriam? Qual seria sua morada para serem capazes de me fazer mal
novamente? Mas, com a mente fraca, fui reduzido a não fazer nenhum esforço”. Na
verdade, quando estava recebendo os ensinamentos orais sobre esse texto do falecido
Khunu Rinpoche, observei que o Guia Par o Modo de Vida do Bodhisattva afirma
que as ilusões são humildes e fracas, o que não é verdade. Ele imediatamente
respondeu dizendo que não é preciso uma bomba atômica para destruir as ilusões!
Então é isso que Shantideva quer dizer aqui. Você não precisa de armas caras e
sofisticadas para destruir o inimigo interior. Precisa simplesmente desenvolver
uma determinação firme para derrota-lo, gerando sabedoria: um entendimento da
verdadeira natureza da mente. Você também deve compreender genuinamente tanto a
natureza relativa dos pensamentos e emoções negativos quanto a natureza
fundamental de todos os fenômenos. Na terminologia técnica budista, essa
compreensão é conhecida como verdadeira compreensão da natureza do vazio.
Shantideva menciona ainda outro aspecto sob o qual o inimigo interior é mais
fraco. Ao contrário de um inimigo exterior, o inimigo interior não pode se
reorganizar e conduzir uma revanche depois de ter sido destruído de dentro.
Livro A Vida de Compaixão. Ótimo fim de semana. Abraço. Davi.
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