Espiritualidade. Texto de Leonardo
Boff (1938- ). A questão central no
século XXI. A questão de vida e morte que nos
vai atormentar durante o século XXI (2001-2100) será, seguramente, esta: Que
tipo de sociedade urge inventar na qual todos possam caber a natureza incluída?
Para uma resposta sustentável precisamos da sinergia de todos os saberes e
sistemas. O modelo não pode ser a sociedade vigente, estruturada pelo
capitalismo de mercado. Por ser extremamente competitiva e não cooperativa, ela
mais exclui que inclui. Confirma-o o Relatório sobre Desenvolvimento Humano da
ONU de 1999. A diferença entre os 5% mais ricos da população mundial e os 5%
mais pobres era em l960 de 1 para 30; em 1990, de 1 para 60 e em 1995, de 1
para 74. O conhecido biólogo da biodiversidade Edward Osborne Wilson
(1929- ) comenta: “para que o resto do
mundo atingisse o nível de consumo dos Estados Unidos com a tecnologia
existente, seriam necessários quatro planetas iguais à Terra”. (O futuro da
vida, Rio 2002, página 170). Mas dela devemos incorporar as muitas conquistas
que alcançou. Para uma alternativa viável, os economistas do sistema não são
conselheiros fiáveis. Eles trabalham com números que ocultam as contradições.
Para eles, a economia real, a de mercado, medida pelo PIB (produto interno
bruto das nações: representa a soma em valores monetários, de todos os bens e
serviços finais produzidos numa determinada região, durante um determinado
período) e pelo consumo per capita, produz riqueza que aumenta dia a dia. E
como vimos acima, aprofundando a desigualdade. Para a outra economia, a da
natureza, medida pelo Índice do Planeta Vivo e pelo estado geral da biosfera, a
riqueza está diminuindo dia a dia. O Fundo Mundial pela Natureza calculou que
entre 1970 e 1994 a economia natural caiu 30%. A partir de 1990 a taxa de queda
era de 3% ao ano. E esse nível persiste ainda ou piorou. Tais dados que para a
economia de mercado são chamados de “externalidades” têm pesadas consequências:
poderão ameaçar a biosfera e inviabilizar o futuro da humanidade e com ele a
economia dos economistas. Apesar disso, a maior colaboração para a humanidade
não vem da economia de mercado mas da economia da natureza. Há cálculos
macroeconômicos que calcularam o valor dos serviços prestados à humanidade pelo
conjunto dos ecossistemas. Em 1977 um grupo de ecologistas e de economistas
sensíveis a estas questões estimaram em 33 trilhões dólares/ano o valor da
contribuição da natureza. Isso representa quase duas vezes o produto mundial
bruto que foi da ordem de 18 trilhões de dólares. Em outras palavras: se a
humanidade quisesse substituir os serviços da natureza por recursos
artificiais, precisaria acrescentar ao PIB mundial pelo menos 33 trilhões de
dólares, sem dizer que esta substituição seria praticamente impossível. A
resposta à pergunta acima só poderá vir de um novo paradigma de sociedade
mundial, de uma nova ótica das coisas que dê origem a uma nova ética (vale o
trocadilho). Sobre isso voltaremos proximamente. Enquanto esse processo já em
curso não triunfar, precisamos cobrar do sistema imperante tudo o que ele pode
dar. E ele tem muito a dar, embora dê muito pouco, como se viu na Conferência
da ONU em Monterrey – México. Para ajudar os pobres que são maioria, o governo
norte-americano destina apenas 0,01% de seu PIB, enquanto os europeus, mais
“generosos” não chegam a 1%, exceto a Dinamarca com 1,06%. Em grande parte a
preocupação salvacionista está a cargo de grupos privados, as grandes agências
de proteção à natureza. Estima-se que existam atualmente mais de 30.000 ONGs
com engajamentos humanitários e ecológicos. Mas essa responsabilidade deveria
ser de todos, da humanidade e dos Estados. Por exemplo, para implementar uma
política de conservação global bastariam 30 bilhões de dólares/ano. Isso
representaria apenas um milésimo do PIB mundial. Um cientista Daniel H. Janzen
(1939- ) sugeriu a introdução do imposto
de um centavo por xícara de café, que seria suficiente para financiar a
conservação e a administração das reservas naturais existentes. Terminemos com
as palavras de otimismo de Edward Osborne Wilson (1929- ): “Uma civilização capaz de intuir a
existência de Deus e iniciar a colonização do espaço certamente encontrará um
meio de salvar a integridade deste Planeta e as formas de vida magníficas que
ele abriga”(obra citada, página 208). Bem haja! E se o ser humano
desaparecer? Poderia o ser humano desaparecer por causa de seu poder
destrutivo e de sua falta de sabedoria? Nomes notáveis das ciências não excluem
esta eventualidade. Stephen Hawking (1942- ) em seu recente livro O Universo numa casca
de noz reconhece que em 2600 a população mundial ficará ombro a ombro e o
consumo de eletricidade deixará a Terra incandescente. Ela poderá se destruir a
si mesma. O prêmio Nobel, Christian de Duve (1917-2013), em seu conhecido
Poeira Vital (1997) atesta que “nosso tempo lembra uma daquelas importantes
rupturas na evolução, assinaladas por extinções maciças”. E Theodore Monod
(1902-2000), talvez o último grande naturalista, deixou como testamento um
texto de reflexão com esse título: “E se a aventura humana vier a
falhar”(2000). Assevera: “somos capazes de uma conduta insensata e demente;
pode-se a partir de agora temer tudo, tudo mesmo, inclusive a aniquilação da
raça humana”. Se olharmos a crise social mundial e o crescente alarme ecológico
esse cenário de horror não é impensável. Edward Wilson atesta em seu último e
alarmante livro O futuro da vida: “O homem até hoje tem desempenhado o papel de
assassino planetário…a ética da conservação, na forma de tabu, totemismo ou
ciência, quase sempre chegou tarde demais; talvez ainda haja tempo para agir”.
Lógico, precisamos ter paciência para com o ser humano. Ele não está pronto
ainda. Tem muito a aprender. Em relação ao tempo cósmico possui menos de um
minuto de vida. Mas com ele, a evolução deu um salto, de inconsciente se fez
consciente. E com a consciência pode decidir que destino quer para si. Nesta
perspectiva, a situação atual representa antes um desafio que um desastre
possível, a travessia para um patamar mais alto e não um mergulho na
autodestruição. Mas haverá tempo para tal aprendizado? Na hipótese de que o ser
humano venha a desparecer como espécie, mesmo assim o princípio de
inteligibilidade e de amorização ficaria preservado. Ele está primeiro no
Universo e depois nos seres humanos. Emergiria, um dia, em algum ser mais
complexo. Theodore Monod tem até um candidato já presente na evolução atual, os
cefalópodes, isto é, os moluscos como os polvos e as lulas. Possuem um
aperfeiçoamento anatômico notável, sua cabeça é dotada de cápsula
cartilaginosa, funcionando como crânio e possuem olhos como os vertebrados.
Detém ainda um psiquismo altamente desenvolvido, até com dupla memória, quando
nós possuímos apenas uma. Evidentemente, eles não sairão amanhã do mar e entrarão
continente adentro. Precisariam de milhões de anos de evolução. Mas já possuem
a base biológica para um salto rumo à consciência. De todas as formas, urge
escolher: ou o ser humano e seu futuro ou os polvos e as lulas. Somos
otimistas: vamos criar juízo e aprender a ser sábios. Mas importa já agora
mostrar amor à vida em sua majestática diversidade, ter compaixão com todos os
que sofrem, realizar rapidamente a justiça social necessária e amar a Grande
Mãe, a Terra. Incentivam-nos as Escrituras judaico-cristãs: “Escolha a vida e
viverás”. Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder. Fim da
espécie e teologia. Sempre que uma cultura entra em crise, como a nossa,
faz suscitar mitos de fim do mundo e de destruição da espécie. Usa-se, então,
recurso literário conhecido: relatos patéticos de visões e de intervenções de
anjos que se comunicam para anunciar mudanças iminentes e preparar a
humanidade. No Novo Testamento esse gênero ganhou corpo no livro do Apocalipse
e em alguns trechos dos Evangelhos que colocam na boca de Jesus predições de
fim do mundo. Hoje prolifera vasta literatura esotérica (interna) que usa
códigos diferentes como passagem a outro tipo de vibração e comunicação com
extraterrestres. Mas a mensagem é idêntica: a viragem é iminente e há que estar
preparado. Importante é não deixar-se iludir por esse tipo de linguagem. É
linguagem de tempos de crise e não uma reportagem antecipada do que vai
ocorrer. Mas há uma diferença entre os antigos e nós hoje. Para os antigos, o
fim do mundo estava no imaginário deles e não no processo realmente existente.
Para nós está no processo real, pois criamos de fato o princípio de
autodestruição. E se desaparecermos, como se há de interpretar? Chegou a nossa
vez no processo de evolução já que há sempre espécies, desparecendo
naturalmente? Que diz a reflexão teológica? Rapidamente diria: se o ser humano
frustrar sua aventura planetária significa, sem dúvida, uma tragédia
inominável. Mas não seria tragédia absoluta. Essa, ele já a perpetrou um dia.
Quando o Filho de Deus se encarnou em nossa miséria, nós o assassinamos,
pregando-o na cruz. Só então se formalizou o pecado original que é um processo
histórico de negação da vida. Mas ocorreu outrossim a suprema salvação, creem
os cristãos, pois onde abundou pecado, superabundou também graça. Maior
perversidade que matar a criatura é matar o Criador encarnado. Mesmo que a
espécie mate a si mesma ela não consegue matar tudo dela. Só mata o que é. Não
pode matar aquilo que ainda não é: as virtualidades escondidas e que querem se
realizar. E aqui entra a morte em sua função libertadora. A morte não separa
corpo e alma, pois, no ser humano não há nada a separar. Ele é um ser unitário
com muitas dimensões. O que a morte separa é o tempo da eternidade. Ao morrer,
o ser humano deixa o tempo e penetra na eternidade. Caindo as barreiras
espaço temporal, as virtualidades aprisionadas podem irromper em sua plenitude.
Só então acabaremos de nascer como seres humanos plenos. Portanto, mesmo com a
liquidação criminosa da espécie, o triunfo da espécie não é frustrado. A
espécie sai tragicamente do tempo pela morte, morte esta que lhe concede
entrar, gloriosa, na eternidade. Alimentamos otimismo. Assim como o ser humano
domesticou outros meios de destruição como o primeiro deles, o fogo, (que
originou aos mitos de fim do mundo) assim agora domesticará os meios que nos
poderão destruir. Não acaba o mundo, mas acaba este tipo de mundo insensato que
ama a guerra e a destruição em massa. Vamos inaugurar um mundo humano que ama a
vida, dessacraliza a violência, tem cuidado e piedade para com todos os seres,
faz a justiça verdadeira, enfim, que nos permite estarmos no monte das bem
aventuranças e não, degradados, no vale de lágrimas. Cristianismo:
mínimo do mínimo. Se um imigrante coreano que nada sabe de
cristianismo me pegasse pelo colarinho e me perguntasse: “vem cá, me diga em
duas palavras, o que é o cristianismo”? Que diria? Não sei. Talvez para sair da
perplexidade o mandaria para uma favela onde trabalham as Irmazinhas de Jesus,
do Padre Charle de Foucauld (1858-1916), no meio dos mais pobres dos pobres. Ai
pelo menos veria o que pode o cristianismo em termos de amor e compaixão para
com os que mais sofrem. Ou os mandaria para Ouro Preto – Minas Gerais – Brasil para ver o que a fé cristã produziu em termos
de arte. Ou os mandaria ouvir a missa do Padre Maurício, cantada pelos
Canarinhos de Petrópolis para deixar-se tomar pelo enlevo espiritual que ela
suscita. Mas se ele me dissesse: “fora com tudo isso, pois você me apresenta
apenas expressões culturais. O eu quero é saber o mínimo do mínimo do
cristianismo. Que propõem, finalmente, os cristãos? Em duas palavras”!
Seguramente é possível dizer em duas palavras o que seja o cristianismo. Senão
que sentido teria para uma pessoa comum, que não é teóloga? É uma questão que
muitos colocam também os cristãos. As Igrejas complicaram tanto a resposta que
elas mesmas perderam o sentido do essencial. Geralmente anunciam a si mesmas ao
invés do cristianismo. Ou nos apresentam o Catecismo da Igreja Católica com 744
páginas e 2858 números. Ai, se crê que está todo o arsenal da fé cristã. Mas,
perdoa-me Deus, não vou castigar o coreano com esse Catecismo. Seguramente
sairia correndo, assustado, ou colaria arma sobre minha cabeça. Essa questão me
reporta ao primeiro século de nossa era, quando um dos torturadores de cristãos
perguntou de chofre a um mártir: “afinal o que é o cristianismo”? Esse
respondeu secamente: ”dico tibi mysterium simplicitatis”, “digo-te um mistério
de simplicidade”. Que mistério é esse? As Atas dos Mártires não recolheram a
resposta. Talvez porque era tão evidente que nem valia a pena registrá-la por
escrito. Mas nós que perdemos a inocência matinal, não sabemos mais nada. Por
isso, a questão do torturador e do coreano permanece ainda válida. Mas podemos
imaginar o que o mártir teria dito: “Deus nos amou tanto que se fez também um
de nós. E nos amou até o fim, mesmo quando nos fizemos seus inimigos. Pois, o
pregamos na cruz. Mas, por surpresa de todos, ressuscitou ao terceiro dia. E
agora está aqui em nosso meio. De sua boca ouvimos e de sua vida aprendemos:
quem tem o amor tem tudo, pois, o amor é o nome próprio de Deus. Por isso,
devemos amar a todos, incondicionalmente, como te amo a ti que me torturas e me
condenas à morte”. Bem, se sob “mistério da simplicidade” entendermos tal
coisa, podemos dizer que se trata do mínimo do mínimo. E essa resposta honra os
cristãos. Pena que não vivemos conforme esse minimalismo essencial. Teríamos
menos ódios e menos impiedade face aos pobres e excluídos. Hoje, depois de
tantos séculos, sentimos necessidade de dizermos a nós mesmos o que significa
esse “mistério de simplicidade”. Por minha parte, repetiria a mesma lição do
mártir: quem tem amor tem tudo, tem o próprio Deus. E mais não digo, pois seria
supérfluo e tagarelice de teólogo. www.leonardoboff.com.br.
Abraço. Davi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário