quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

I. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. INTRODUÇÃO.



Cristianismo Oriental. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. INTRODUÇÃO. Foi na Biblioteca das Línguas Orientais, em Paris – França, que descobri este livro, graças a uma pequena nota de Nícolas Berdiaev (1874-1948). Apesar da pressa por causa do período de exames, eu não larguei dele até à noite. De fato, mais que muitos romances, estudos e ensaios, ele revela o mistério do povo russo naquilo que há de mais secreto: suas crenças e sua fé. Não é de espantar a obscuridade em que permaneceram os Relatos de um Peregrino quando se pensa em que condições foram publicados. Apareceram pela primeira vez em Kazan – Rússia, por volta de 1865, sob uma forma primitiva, com muitos erros. Foi somente em 1884 que se estabeleceu uma edição correta e acessível. Em pleno movimento socialista e naturalista, essa edição não poderia ter muita repercussão. Depois em 1920, quando o coração de certos emigrados russos sentiu a nostalgia da pátria, surgiu a necessidade de uma nova edição. O livro foi reimpresso por iniciativa do professor Vycheslavtsev. A tradução em francês foi feita a partir desse texto. Os Relatos foram publicados sem nome do autor. De acordo com o prefácio da edição de 1884, o padre Paísius, abade (superior dos monges) do mosteiro de São Migues Arcanjo, em Kazan, teria copiado o texto de um monge russo de Athos, cujo nome ignoramos. Há indícios que fazem crer que os relatos foram redigidos por um religioso depois de suas entrevistas com o peregrino. Esta hipótese, porém, não afeta o caráter de autenticidade do livro. O peregrino, simples camponês de trinta e três anos, só está familiarizado com o estilo oral. A redação de suas aventuras lhe teria custado imensos esforços; expressões convencionais teriam substituído a linguagem arcaica e simples que faz o encanto de seus relatos. Por outro lado, um confidente inteligente terá podido reencontrar exatamente o tom do peregrino e transmitir ao leitor as suas palavras. Muitos místicos só comunicaram sua experiência espiritual com a ajuda de um cronista, cuja suprema arte consiste em apagar-se diante dos mistérios que revela. Este personagem talvez seja o eremita de Athos, ou talvez ainda o padre Ambrósio – mestre de Ivan Kireevski (1806-1856), amigo de Fiódor Dostoievsk (1821-1881), de Liev Tolstoi (1928-1910) e Alexei Leontiev (1903-1979) – em cujos manuscritos foram encontrados três outros relatos de tom mais didático, publicados em 1911. Os Relatos estariam assim relacionados ao movimento literário russo do século XIX (1801-1900), naquilo que tem de mais sereno e puro. Em meio ao tumulto dos escritos poéticos, romanescos, revolucionários, em que se chocam com violência as tendências radicais do caráter russo, faltava essa nota inocente e cristalina que é, sem dúvida, a tônica secreta. O peregrino faz o leitor penetrar no coração da vida russa, pouco depois da guerra da Crimeia (outubro de 1853 – fevereiro de 1856) e antes da abolição da escravatura, ou seja, entre 1856 e 1861. Por ele passam todos os personagens do romance russo: o príncipe que procura expiar sua vida dissipada, o chefe do correio, beberrão e briguento, o escrivão da província, incrédulo e liberal. Os forçados partem, em penosas etapas, para a Sibéria; os correios imperiais extenuam (debilitar) seus cavalos na planície imensa; os desertores rondam pelas florestas longínquas: nobres, camponeses, funcionários, membros das seitas, professores e padres, toda essa antiga Rússia de estrutura rural ressuscita com seus defeitos – dos quais a embriaguez não é certamente o menor – e suas qualidades, entre as quais a mais bela é a caridade, o amor espiritual ao próximo, iluminado pelo amor de Deus. Ao redor, é a terra russa, planície imensa a perder de vista, florestas desertas, hospedarias à beira das estradas, igrejas pintadas de novo, com sinos que cintilam. Entretanto, o camponês não se detém jamais para descrever as aparências sensíveis. Cristão ortodoxo, ele está à procura da perfeição, sua única preocupação é o absoluto. Para guia-lo em sua busca, o peregrino tem apenas dois livros: a Bíblia e uma coletânea de textos patrísticos, a Filocalia. Este nome é o único meio de se definir a escola à qual ele está ligado. Russo do século XIX, ele é um hesicasta (palavra cujas raízes significam: calma – silêncio – contemplação). O hesicasmo remonta aos primeiros séculos cristãos. Tem suas origens no Monte Sinai e no deserto do Egito. Na Igreja Oriental, aparece como a corrente mística que se opõe à tradição puramente ascética, originária de São Basílio (330-379), que dominou por muito tempo, após a condenação da doutrina de Orígenes de Alexandria (185-254) nos séculos V e VI. A mística oriental, inspirada em Orígenes e Gregória de Nissa (335-394), atribui à alma humana, como sua finalidade, a deificação. A natureza humana é boa, mas deformada pelo pecado. O caminho da salvação consiste em devolvê-la a sua virtude primitiva, restabelecer no homem – que é a imagem de Deus – a semelhança divina, obra da graça. Sob a ação da graça, o espírito – libertado das paixões pela ascese (exercícios praticados para o aperfeiçoamento espiritual) – se eleva para contemplar as razões das coisas criadas e chega, às vezes, até a chamada “nuvem luminosa”: a contemplação obscura da Santíssima Trindade. Tal é a meta à qual se consagram os solitários e os grandes místicos aos dez primeiros séculos ao cristianismo. Para fixar o espírito nas realidades invisíveis, alguns deles foram levados a adotar processos técnicos como a repetição frequente de uma curta oração: o Kyrie Eleison (invocação grega dos cristãos, usada na liturgia romana. Em português – Senhor, tende piedade de nós). Os católicos, que estão familiarizados com a recitação do terço, não se admirariam por isso. A ideia de uma participação do corpo na vida espiritual, que está ligada ao dogma da ressurreição futura, é em si mesma profundamente ortodoxa. Foi assim que, pouco a pouco, se desenvolveu, através de controvérsias acirradas, a doutrina que será qualificada como hesicasmo. A partir do século XI, essa doutrina tende a corromper-se. Sob a influência indireta de São Simeão (389-459), o Novo Teólogo, um valor exagerado é atribuído às visões e revelações sensíveis. Ninguém poderá ser considerado cristão se não tiver conhecido e experimentado concretamente a graça. Está é uma teologia inquietante, à qual se opõem as palavras de Joana D’arc aos doutores que lhe perguntavam se ela estava em estado de graça: “Se não estou, que Deus nele me coloque e, se nele estou, que Deus nele me conserve”. Joana D’arc (1412-1431), enviada por Deus para libertar a França, invadida pelos ingleses, ela obteve vitórias militares e conseguiu que Carlos VII (1403-1461) fosse sagrado Rei. Mais tarde, traída e abandonada, foi entregue aos inimigos e condenada à morte na fogueira por um tribunal eclesiástico, sendo canonizada em 1920. Além disso, o cristão não pode ir sem perigo. A ação de Deus na alma é essencialmente misteriosa, “transpsicológica”, para retomar a expressão de Anselmo Stolz (1900-1942). A procura das iluminações, com efeito, leva a desprezar a prática ascética e a buscar meios considerados mais eficazes para chegar as visões. Trata-se do perigo do “meio curto” e do quietismo, onde a alma se arrisca a ser fulminada. Por uma evolução paralela, dá-se uma atenção demasiada aos processos corporais, à postura do corpo, ao papel do coração na oração. O hesicasta do século XIV, que espera chagar à salvação “sem esforço e sem dor”, esquece que, na vida espiritual, tudo é graça e que ninguém pode dizer: Jesus é Senhor, a não ser no Espírito Santo (I Cor 12,3). É essa doutrina que, apesara das controvérsias do século XIV, é transmitida à Rússia pelo monge Nil Sorski (1433-1508), uma das figuras mais puras do monarquismo (relativo a vida no mosteiro ou convento) russo, aquele que queria proibir aos conventos a posse de bens materiais. Ela caiu no esquecimento, mas foi restaurada por um outro monge, Paísius Velitchkosvki, no fim do século XVIII. Os textos hesicastas, que ele reúne e publica em 1794, vão guiar os solitários e os místicos russos do século XIX. Comprometido na monótona cadeia de gerações, o peregrino encontra a doutrina do hesicasmo tal qual a deformaram os longos séculos de história. Mas sua espiritualidade é pura. Se, por momentos, ele parece acreditar que a prática da oração basta para leva-lo a conhecer “como o Senhor é bom” (Sl 34,8), seu amor de Deus é grande demais para não ser de origem sobrenatural. O ascetismo quase espontâneo da sua vida não deixa também de servir-lhe de guarda. Andando sempre de um lugar para outro, não tendo sequer uma pedra onde repousar a cabeça, a oração perpétua é para ele, antes de tudo, um meio para fixar a atenção sobre o mistério da fé e fazer a alma voltar-se para si mesma. Seu espírito permanece sempre ativo e sua fé é iluminada por uma busca ardente e sincera. A fé do peregrino não é uma respeitosa emoção diante de mistérios de poesia, ela se alimenta de ensinamentos teológicos. Aos que se lhe dirigem, oferece conselhos técnicos e explicações da doutrina, e não exortações generosas e vagas. Conhecendo o homem à luz de Deus, ele conhece também seu lugar e seu papel no Universo. A moral do peregrino não é um conjunto de regras que um dia aprendeu. Não é também apenas uma higiene interior. Todas as suas ações são orientadas pelo desejo de perfeição espiritual. O ascetismo é condição de contemplação. Não tem sentido em si mesmo. Assim a vida espiritual retoma sua unidade. Da fé vêm as obras, mas, sem as obras não há fé. Vindo o mundo da queda, da ignorância e da fraqueza, o peregrino caminha para a Nova Jerusalém, na qual entrará por inteiro, corpo e alma, na consumação dos séculos. Reunindo todas as forças de seu espírito para contemplar o Ser Absoluto, ele recebe, às vezes, de Cristo, o novo Adão, alguns dos privilégios do primeiro Adão. Ele chega a ignorar o frio, a fome, a dor, até a própria natureza lhe parece transfigurada: “Árvores, ervas, pássaros, Terra, ar, luz, tudo me dizia que tudo existe para o homem, que tudo testemunha o amor de Deus pelo homem, tudo reza, tudo canta a glória de Deus”. Esse otimismo que liberta não é um privilégio do Oriente cristão. É a tendência profunda do cristianismo. Que a criação seja boa e que, depois da queda, ela deva ser englobada inteiramente na via da salvação, disto Santo Agostinho (354-430) e, depois dele, os grandes doutores medievais, não duvidam mais que São Gregório de Nissa (335-394). Se na Idade Média no Ocidente está mais ligada sobretudo ao mistério do pecado e da Cruz, é porque as maravilhosas implicações da Encarnação já foram reveladas à consciência cristã pelos Padres da Igreja. Foram somente as crises e as rupturas do mundo moderno que obscureceram esse senso “cósmico” da Teologia patrística, sem o qual não se pode compreender o pensamento dos grandes doutores do Ocidente. É a essas perspectivas tão amplas que o peregrino pode levar aqueles que o escutam com sinceridade. Será isso roubar-lhe seu caráter russo? De maneira alguma, ao contrário. Pois ele é um perfeito tipo de piedade russa. Esta não formou uma Escola de Pensamento. Uma doutrina própria. Como um ícone de Novgorod – Rússia, de cores vivas e fortes , que renova os modelos recebidos de Bizâncio (cidade da Grécia antiga), a piedade russa deu, às doutrinas do Oriente cristão, um tom original e novo. O senso inato do mistério do homem, a compaixão, a piedade diante da dor e do pecado, a simplicidade de coração que purifica espontaneamente as doutrinas da Idade Média bizantina, a imitação direta e a quase mímica da vida de Cristo e das verdades evangélicas – tais são os traços fundamentais da piedade russa. Existe assim na Rússia um imenso potencial religioso, uma poderosa força popular que não chegou a exprimir-se em uma doutrina própria. Até ao século XIX não existe uma teologia russa: tudo é traduzido, decalcado (reproduzido) do grego ou, secundariamente, do latim. Com exceção talvez da Idade Média russa, a fusão, a síntese entre o pensamento religioso e a corrente da piedade popular só aconteceu em casos individuais, de que o peregrino é um exemplo. Na Vida da Igreja, essa ausência de unidade confere à ideia religiosa russa seu caráter trágico, fonte de crises violentas. Abandonada a si mesma, a Igreja russa logo veio a conhecer a ingerência do Estado. Por falta de apoio, ela sucumbiu, o cisma (separação, divisão) despedaçou-a, ela se desfez pouco a pouco. Nas florestas em que se erguera a meditação solitária de Nil Sorski, acendem-se no século XVII (1601-1700) as trágicas fogueiras dos (fundada pelo Papa Gregório IX o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição mandou para a fogueira milhares de pessoas que supostamente foram consideradas herege – praticantes de heresias; doutrinas ou práticas contrárias ao que era definido pela Igreja Católica – por imaginariamente praticarem atos considerados bruxaria, heresia, ou simplesmente por serem adeptos de outra religião que não o catolicismo) dos Velhos Crentes. A força espiritual se refugia nos eremitérios, junto aos monges; ela se irradia às vezes para o povo, mas a unidade orgânica está esfacelada. Os gigantescos esforços dos leigos para criar, no século XIX (1801-1900), uma doutrina religiosa russa, se apoiam apenas em uma realidade difusa, falta-lhes solidez e permanecem isolados. De certo a alma russa permanece sobretudo religiosa. Mas à fé sucede a religiosidade sobre a qual nascem terríveis abcessos (inchaço, tumor) de fanatismo obscuro, de niilismo total, de ateísmo militante, potência das trevas! Voltado para o absoluto, por uma misteriosa vocação, o povo russo – como todos os povos da Europa – falhou à sua missão histórica, a de uma civilização progressivamente impregnada pela Verdade, em um equilíbrio ativo entre os abismos do pecado e a infinita graça divina. A visão de uma Rússia que reconciliaria o Oriente com o Ocidente, por um instante entrevista por Wladimir Soloviev (1853-1900), parece ter desaparecido para sempre. Mas um bem infinito pode nascer de um mal radical. É no temor e no tremor que se prepara a ressurreição. “Chora, chora, povo miserável, canta o Inocente de Mussorgski, esse irmão do peregrino. Chora, povo faminto, Deus terá pena de ti”. Jean Gauvain. Genebra – Suíça, na festa da Ressurreição do Senhor em 25 de abril de 1943. Livro Relato de Um Peregrino Russo. Abraço. Davi.

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