sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

II. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. I. APRENDIZADO DA ORAÇÃO.



Cristianismo Oriental. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. I. APRENDIZADO DA ORAÇÃO. Pela graça de Deus, sou homem e cristão; pelas ações, grande pecador; por estado, peregrino sem abrigo, da mais baixa condição, sempre vagando de déu em déu (andar a procura de algo). De meu, tenho às costas uma sacola de pão seco, na minha camisa a Santa Bíblia, e eis tudo. No vigésimo quarto domingo depois da Trindade, eu entrei na Igreja para rezar durante o ofício (1); estavam lendo a Epístola do Apóstolo aos Tessalonicenses, na passagem que diz: Rezai sem cessar. Estas palavras penetraram profundamente em meu espírito e eu me perguntei como era possível rezar sem cessar quando cada um de nós tem de ocupar-se de muitos trabalhos para seu próprio sustento. Procurei na Bíblia e li com meus próprios olhos aquilo que ouvira: É preciso rezar (orar) sem cessar (ITs 5,17), rezar em todo tempo, no Espírito (Ef 6,18), erguendo em todo lugar mãos santas (ITm 2,8). Por mais que refletisse, não sabia o que decidir. O que fazer? pensava. Onde achar alguém que possa explicar-me essas palavras? Eu irei às igrejas onde pregam homens de renome e ai talvez eu ache o que procuro. E me pus a caminho. Ouvi belos sermões sobre a oração. Mas todos eles instruíam sobre a oração em geral: o que é a oração, porque é necessário rezar, quais são os frutos da oração. Mas, como chegar a rezar (orar) verdadeiramente – sobre isso não falavam nada. Ouvi um sermão sobre a oração em espírito e sobre a oração perpétua, mas n]ao explicavam com chegar até lá. Assim, a frequência aos sermões não me dera o que eu desejava. Deixei, portanto, de ir às pregações e decidi sair, com a ajuda de Deus, à procura de um homem sábio e experimentado que me explicasse esse mistério, pois era isso que atraía irresistivelmente o meu espírito. Caminhei por longo tempo. Lia a Bíblia e perguntava se não existia em algum lugar um mestre espiritual ou um guia sábio e cheio de experiência. Disseram-me certa vez que, em uma aldeia, vivia há muito tempo um senhor (2) que se dedicava exclusivamente à sua salvação: tinha uma capela em sua casa, nunca se mexia, rezava sem parar a Deus e lia livros espirituais. Ao ouvir tais palavras, em vez de andar, eu saí correndo em direção à aldeia; lá chegando, fui à casa do tal senhor. O que desejas de mim? Perguntou ele. Eu soube que o senhor é um homem piedoso e sábio; é por isso que lhe peço, em nome de Deus, que me explique o que quer dizer esta palavra do Apóstolo: “Rezai (orai) sem cessar” e como é possível, rezar assim. Eis o que quero compreender e, no entanto, não o consigo. O senhor ficou em silêncio, olhou-me atentamente e disse: a oração interior perpétua é o esforço permanente do espírito humano para atingir a Deus. Para ter êxito nesse exercício benfazejo, convém pedir muitas vezes ao Senhor que nos ensine a rezar sem cessar. Reza mais e com maior zelo: a oração por si mesma te fará compreender como ela pode tornar-se perpétua; isso leva muito tempo. Tendo dito essas palavras, ele mandou dar-me de comer, deu-me alguma coisa para a viagem e me deixou. Mas ele nada tinha explicado. Retomei meu caminho; eu pensava, lia, refletia como eu podia, sobre o que me dissera o senhor e, entretanto, não conseguia entender. Mas tinha tamanha vontade de entender que não podia dormir à noite. Depois de ter percorrido 1,067 Km, cheguei a uma comarca do governo. Vi que aí havia um mosteiro. Na hospedaria me disseram que nesse mosteiro vivia um superior piedoso, hospitaleiro e caridoso. Fui procura-lo. Ele me recebeu com bondade, fez-me sentar e me ofereceu comida. Meu santo pai, disse eu, não preciso de uma refeição, mas queria que o senhor me desse um ensinamento espiritual: como chegar à salvação? (3) Como chegar à salvação? Pois Bem! Vive segundo os mandamentos, reza a Deus e tu serás salvo! Eu aprendi que é preciso rezar sem cessar, mas não sei como rezar sem cessar, nem posso compreender o que significa a oração perpétua. Eu vos peço, meu pai, que me explique isso. Meu irmão, não sei como te explicar melhor. Espera ai! Eu tenho um livrinho que tem tudo isso. E ele me deu a Instrução Espiritual do Homem Interior (4), de São Dimitri (1834-1907) – Toma, lê esta página. Eu comecei a ler o que se segue: “Estas palavras do Apóstolo: É preciso orar sem cessar, se aplicam à oração feita pela inteligência; com efeito, a inteligência pode estar sempre mergulhada em Deus e rezar sem cessar”. Explicai-me de que maneira a inteligência pode estar sempre mergulhada em Deus, sem distrações, e rezar sem parar. Isso é coisa muito difícil, se Deus não conceder esse dom, disse o superior. Mas, ele não tinha explicado nada. Passei a noite no mosteiro e, agradecendo-lhe de manhã a sua acolhida cordial, retomei meu caminho sem saber bem onde iria. Eu estava triste por não conseguir compreender e, para me consolar, lia a santa Bíblia. Andei assim pela estrada durante cinco dias. Finalmente, uma tarde, encontrei um velhinho que parecia ser um religioso. A minha pergunta, ele me respondeu que era um monge e que o mosteiro onde ele vivia com alguns irmãos, ficava a 10 quilômetros da estrada; convidou-me a fazer lá uma parada. Em nossa casa, me disse, recebemos os peregrinos, cuidamos deles e lhes damos alimento na hospedaria. Eu não estava com a mínima vontade de ir até lá e lhe disse: Meu descanso não depende de um alojamento, mas de um ensinamento espiritual; não é alimento que estou procurando. Tenho bastante pão seco na minha sacola. Mas, que tipo de ensinamento tu procuras e o que é que desejas compreender melhor? Vem, vem conosco, meu irmão! Nós temos monges (5) experimentados que podem dar-te uma orientação espiritual e guiar-te no caminho verdadeiro, à luz da Palavra de Deus e dos ensinamentos dos Padres da Igreja (6). Vede, meu pai, faz mais ou menos um ano que, estando no ofício, eu ouvi este mandamento do Apóstolo: Orai sem cessar. Não sabendo como entender essas palavras, eu me pus a ler a Bíblia. E nela encontrei, em muitas passagens, o mandamento de Deus: é preciso rezar sem parar, sempre, em todo lugar, em toda ocasião, não somente durante os trabalhos cotidianos, não somente quando acordados, mas também durante o sono: Eu durmo, mas meu coração vigia (Ct 5,2). Isso me espantou muito e não posso compreender como se pode fazer tal coisa e quais são os meios de chegar lá; um desejo violento e a curiosidade despertaram em mim: de noite e de dia essas palavras não saem mais da minha cabeça. Então comecei a frequentar as igrejas – ouvi sermões sobre a oração; mas por mais que eu escutasse sermão e mais sermão, eu nunca aprendi como rezar sem cessar; falavam sempre da preparação para a oração e de seu frutos, sem ensinar como rezar sem parar e o que significa tal oração. Eu li muitas vezes a Bíblia e nela encontrei o que tinha ouvido; entretanto, não consegui compreender o que desejo. E desde então, sinto-me inseguro e inquieto. O monge fez o sinal da cruz e tomou a palavra: Agradece a Deus, irmão querido, porque Ele te revelou uma atração invencível em ti para a oração interior perpétua. Reconhece nisso o apelo de Deus e acalma-te pensando que assim a concordância da tua vontade com a palavra divina já foi devidamente provada; foi-te dado compreender que não é a sabedoria do mundo nem um vão desejo de conhecimentos que conduzem à luz celestial – a oração interior perpétua – mas, ao contrário, a pobreza do espírito e a experiência ativa na simplicidade do coração. Por isso, não é de espantar que tu nada tenhas ouvido de mais profundo sobre o ato de rezar e que não tenhas podido aprender como chegar a essa atividade perpétua. Na verdade, prega-se muito sobre a oração e sobre esse assunto há numerosos trabalhos recentes, mas todos os critérios de seus autores se fundamentam sobre a especulação intelectual, sobre os conceitos da razão natural e não sobre a experiência alimentada pela ação; eles falam mais dos acessórios da oração do que de sua própria essência. Um explica muito bem porque é necessário rezar; outro fala do poder e dos efeitos benfazejos da oração; um terceiro, das condições necessárias para rezar bem, isto é, do zelo, da atenção, do calor do coração, da pureza de espírito, da humildade, do arrependimento, que é necessário possuir para se pôr em oração. Mas o que é a oração e como aprender a rezar – a essas questões, entretanto, essenciais e fundamentais – é raro encontrar uma resposta nos pregadores de nosso tempo; pois são muito mais difíceis que todas as suas explicações e exigem não um conhecimento escolástico (teológico), mas um conhecimento místico. E, coisa mais triste ainda, essa sabedoria elementar e vã conduz a medir a Deus com uma medida humana. Muitos cometem um grande erro quando pensam que os meios de preparação e as boas ações geram a oração, quando na realidade é a oração que é a fonte das boas obras e das virtudes. Eles consideram erroneamente os frutos ou as consequências da oração como meios de chegar até ela e assim diminuem a sua força. Trata-se de um ponto de vista completamente oposta à Escritura, pois o Apóstolo Paulo assim fala da oração: Eu vos recomendo antes de tudo rezar (ITm 2,1). Assim o Apóstolo coloca a oração acima de tudo: Eu vos recomendo antes de tudo orar. Muitas boas obras são pedidas ao cristão, mas a obra da oração está acima de todas as outras, pois sem ela, nenhum bem pode ser feito. Sem a oração frequente, não se pode achar o caminho que conduz ao Senhor, conhecer a verdade, crucificar a carne com as suas paixões e desejos, ser iluminado no coração pela luz de Cristo e unir-se a Ele na salvação. Eu digo frequente, pois a perfeição e a correção de nossa prece não dependem de nós, como diz ainda o Apóstolo Paulo: Nós não sabemos o que pedir como convém (Rm 8,26). Somente a frequência foi deixada em nosso poder como meio de atingir a pureza da oração, que é a mãe de todo bem espiritual. Adquire a mãe e tu terás uma descendência, diz Santo Isaac, o Sírio (século VII) (7), ensinando que, em primeiro lugar, é preciso adquirir a oração para poder pôr em prática todas as virtudes. Mas eles conhecem mal essas questões e delas falam pouco, os que não estão familiarizados com a prática e os ensinamentos dos Padres da Igreja. Conversando dessa maneira, sem perceber, tínhamos chegado ao convento. Para não me separar do sábio ancião e satisfazer mais cedo o meu desejo, apressei-me a dizer-lhe: Eu vos peço, venerável pai, explicai-me o que é a oração interior perpétua e como se pode aprender: vejo que tendes dessa oração uma experiência profunda e segura. O monge acolheu meu pedido com bondade e me convidou a entrar: Vem a minha casa, eu te darei um livro dos Padres que permitirá que compreendas claramente o que é a oração e venhas a aprendê-la com a ajuda de Deus. Entramos em sua cela e o monge me dirigiu as seguintes palavras: A interior e constante oração de Jesus é a invocação contínua e ininterrupta do nome de Jesus, com os lábios, com o coração e com a inteligência, no sentimento de sua presença, em todo tempo, em todo lugar, mesmo durante o sono. Essa oração se exprime pelas palavras: Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim! (8). Aquele que se habitua a essa invocação sente uma grande consolação e a necessidade de rezar sempre essa oração: depois de algum tempo, ele não pode passar sem ela e por si mesma a oração brota nele. Compreendes agora o que é a oração perpétua? Compreendo perfeitamente, meu pai! Em nome de Deus, ensinai-me agora como chegar até lá, exclamei, cheio de alegria. Como se aprende a oração, nós vamos ver neste livro. Chama-se Filocalia (9). Contém a ciência completa e detalhada da oração interior perpétua, explicada por vinte e cinco Padres; é tão útil e perfeito que é considerado como guia essencial da vida contemplativa e, como diz o bem-aventurado Nicéforo (10), “ele conduz à salvação sem cansaço nem dor”. Então ele é mais importante que a Santa Bíblia? Perguntei. Não, não é mais importante nem mais santo que a Bíblia, mas contém explicações luminosas sobre tudo o que ainda parece misterioso na Bíblia, por causa da fraqueza de nosso espírito, cujos olhos não chegam a essas alturas. Eis uma comparação: o Sol é um astro majestoso, brilhante e grandioso: mas não se pode olhar para ele a olho nu. Para contemplar o rei dos astros e suportar seus raios inflamados, é preciso usar um vidro artificial, infinitamente menor e mais frágil do que o Sol. Pois bem. A Escritura é este Sol resplandecente e a Filocalia é o pedaço de vidro. Escuta, agora eu vou ler para ti como se exercitar na oração interior perpétua. O monge abriu a Filocalia, escolheu uma passagem de São Simeão, o Novo Teólogo (11) e começou: “Permanece sentado no silêncio e na solidão, inclina a cabeça, fecha os olhos; respira mais devagar, olha, pela imaginação, para o interior de teu coração, concentra tua inteligência, isto é, teu pensamento, da tua cabeça para teu coração. Dize, ao respirar: “Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim”, em voz baixa, ou simplesmente em espirito. Esforça-te para afastar todos os pensamentos, sê paciente e repete muitas vezes esse exercício”. Referências do texto: (1). Ofício – celebração da Palavra de Deus conforme as sete horas canônicas: Matinas, Laudes, Prima, Tércia, Sexta, Noa e Vésperas. (2). Senhor – um gentil homem, um cavalheiro, que pertence à pequena nobreza rural russa. (3). Chegar à salvação – pergunta tradicional feita pelo discípulo ao seu mestre nos mosteiros e eremitérios do Oriente. (4). A Instrução Espiritual do Homem Interior – pequeno tratado sobre a eficácia da oração, escrito por São Dimitri de Rostov (1651-1709), monge e bispo. Foi ele também que escreveu o Menólogo russo: calendário litúrgico que contém a vida dos santos na ordem de suas festas. (5). Monges – eremitas ou monges que levam uma vida de ascese (conjunto de exercícios praticados com vistas ao aperfeiçoamento espiritual) e oração. São escolhidos pelos jovens monges e pelos leigos como “mestres espirituais”. (6). Padre da Igreja – no caso, da Igreja Ortodoxa – foram grandes mestres, bispos ou monges, cujos escritos são regra em matéria de fé, constituindo a Tradição genuína da doutrina cristã, desde os primeiros séculos até hoje, como fundamentação do magistério da Igreja. Existem Padres da Igreja Oriental ou Grega, como por exemplo: São Basílio de Cesaréia (330-379), São Gregório de Nissa (335-494), Santo Efrém, o Sírio (306-373), São João Crisóstomo (347-407) e outros. (7). Isaac de Nínive (século VII) – asceta e místico nestoriano, bispo de Nínive. Alguns trechos de suas obras foram incluídas nas Filocalias gregas e eslava, chegando assim a Rússia. (8). Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim! – essa invocação contínua do Nome de Jesus, chamada “oração perpétua”, fundamenta a escola mística do hesicasmo e remonta aos primeiros tempos da espiritualidade cristão do Ocidente. (9). Filocalia – coletânea de textos de 25 Padres da Igreja sobre a oração espiritual e a guarda do coração. A Tradição russa da Filocalia foi completada por Teófano, bispo de tambov, em 1889. (10). Nicéforo – monge de Athos – Rússia, no século XIV, autor de um tratado sobre a guarda do coração. (11). Simeão, o Novo Teólogo (949-1022) – monge do século XI, um dos maiores místicos da Igreja Grega. Livro Relato de Um Peregrino Russo. Abraço. Davi.

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