Cristianismo Oriental. RELATO
DE UM PEREGRINO RUSSO. I. APRENDIZADO DA ORAÇÃO. Pela graça de Deus, sou homem
e cristão; pelas ações, grande pecador; por estado, peregrino sem abrigo, da
mais baixa condição, sempre vagando de déu em déu (andar a procura de algo). De
meu, tenho às costas uma sacola de pão seco, na minha camisa a Santa Bíblia, e
eis tudo. No vigésimo quarto domingo depois da Trindade, eu entrei na Igreja
para rezar durante o ofício (1); estavam lendo a Epístola do Apóstolo aos
Tessalonicenses, na passagem que diz: Rezai sem cessar. Estas palavras
penetraram profundamente em meu espírito e eu me perguntei como era possível
rezar sem cessar quando cada um de nós tem de ocupar-se de muitos trabalhos
para seu próprio sustento. Procurei na Bíblia e li com meus próprios olhos
aquilo que ouvira: É preciso rezar (orar) sem cessar (ITs 5,17), rezar em todo
tempo, no Espírito (Ef 6,18), erguendo em todo lugar mãos santas (ITm 2,8). Por
mais que refletisse, não sabia o que decidir. O que fazer? pensava. Onde achar
alguém que possa explicar-me essas palavras? Eu irei às igrejas onde pregam
homens de renome e ai talvez eu ache o que procuro. E me pus a caminho. Ouvi
belos sermões sobre a oração. Mas todos eles instruíam sobre a oração em geral:
o que é a oração, porque é necessário rezar, quais são os frutos da oração.
Mas, como chegar a rezar (orar) verdadeiramente – sobre isso não falavam nada.
Ouvi um sermão sobre a oração em espírito e sobre a oração perpétua, mas n]ao
explicavam com chegar até lá. Assim, a frequência aos sermões não me dera o que
eu desejava. Deixei, portanto, de ir às pregações e decidi sair, com a ajuda de
Deus, à procura de um homem sábio e experimentado que me explicasse esse
mistério, pois era isso que atraía irresistivelmente o meu espírito. Caminhei
por longo tempo. Lia a Bíblia e perguntava se não existia em algum lugar um
mestre espiritual ou um guia sábio e cheio de experiência. Disseram-me certa
vez que, em uma aldeia, vivia há muito tempo um senhor (2) que se dedicava
exclusivamente à sua salvação: tinha uma capela em sua casa, nunca se mexia,
rezava sem parar a Deus e lia livros espirituais. Ao ouvir tais palavras, em
vez de andar, eu saí correndo em direção à aldeia; lá chegando, fui à casa do tal
senhor. O que desejas de mim? Perguntou ele. Eu soube que o senhor é um homem
piedoso e sábio; é por isso que lhe peço, em nome de Deus, que me explique o
que quer dizer esta palavra do Apóstolo: “Rezai (orai) sem cessar” e como é
possível, rezar assim. Eis o que quero compreender e, no entanto, não o
consigo. O senhor ficou em silêncio, olhou-me atentamente e disse: a oração
interior perpétua é o esforço permanente do espírito humano para atingir a
Deus. Para ter êxito nesse exercício benfazejo, convém pedir muitas vezes ao
Senhor que nos ensine a rezar sem cessar. Reza mais e com maior zelo: a oração
por si mesma te fará compreender como ela pode tornar-se perpétua; isso leva
muito tempo. Tendo dito essas palavras, ele mandou dar-me de comer, deu-me alguma
coisa para a viagem e me deixou. Mas ele nada tinha explicado. Retomei meu
caminho; eu pensava, lia, refletia como eu podia, sobre o que me dissera o
senhor e, entretanto, não conseguia entender. Mas tinha tamanha vontade de
entender que não podia dormir à noite. Depois de ter percorrido 1,067 Km,
cheguei a uma comarca do governo. Vi que aí havia um mosteiro. Na hospedaria me
disseram que nesse mosteiro vivia um superior piedoso, hospitaleiro e caridoso.
Fui procura-lo. Ele me recebeu com bondade, fez-me sentar e me ofereceu comida.
Meu santo pai, disse eu, não preciso de uma refeição, mas queria que o senhor
me desse um ensinamento espiritual: como chegar à salvação? (3) Como chegar à
salvação? Pois Bem! Vive segundo os mandamentos, reza a Deus e tu serás salvo!
Eu aprendi que é preciso rezar sem cessar, mas não sei como rezar sem cessar,
nem posso compreender o que significa a oração perpétua. Eu vos peço, meu pai,
que me explique isso. Meu irmão, não sei como te explicar melhor. Espera ai! Eu
tenho um livrinho que tem tudo isso. E ele me deu a Instrução Espiritual do
Homem Interior (4), de São Dimitri (1834-1907) – Toma, lê esta página. Eu
comecei a ler o que se segue: “Estas palavras do Apóstolo: É preciso orar sem
cessar, se aplicam à oração feita pela inteligência; com efeito, a inteligência
pode estar sempre mergulhada em Deus e rezar sem cessar”. Explicai-me de que
maneira a inteligência pode estar sempre mergulhada em Deus, sem distrações, e
rezar sem parar. Isso é coisa muito difícil, se Deus não conceder esse dom,
disse o superior. Mas, ele não tinha explicado nada. Passei a noite no mosteiro
e, agradecendo-lhe de manhã a sua acolhida cordial, retomei meu caminho sem
saber bem onde iria. Eu estava triste por não conseguir compreender e, para me consolar,
lia a santa Bíblia. Andei assim pela estrada durante cinco dias. Finalmente,
uma tarde, encontrei um velhinho que parecia ser um religioso. A minha
pergunta, ele me respondeu que era um monge e que o mosteiro onde ele vivia com
alguns irmãos, ficava a 10 quilômetros da estrada; convidou-me a fazer lá uma
parada. Em nossa casa, me disse, recebemos os peregrinos, cuidamos deles e lhes
damos alimento na hospedaria. Eu não estava com a mínima vontade de ir até lá e
lhe disse: Meu descanso não depende de um alojamento, mas de um ensinamento
espiritual; não é alimento que estou procurando. Tenho bastante pão seco na
minha sacola. Mas, que tipo de ensinamento tu procuras e o que é que desejas
compreender melhor? Vem, vem conosco, meu irmão! Nós temos monges (5)
experimentados que podem dar-te uma orientação espiritual e guiar-te no caminho
verdadeiro, à luz da Palavra de Deus e dos ensinamentos dos Padres da Igreja
(6). Vede, meu pai, faz mais ou menos um ano que, estando no ofício, eu ouvi
este mandamento do Apóstolo: Orai sem cessar. Não sabendo como entender essas
palavras, eu me pus a ler a Bíblia. E nela encontrei, em muitas passagens, o
mandamento de Deus: é preciso rezar sem parar, sempre, em todo lugar, em toda
ocasião, não somente durante os trabalhos cotidianos, não somente quando
acordados, mas também durante o sono: Eu durmo, mas meu coração vigia (Ct 5,2).
Isso me espantou muito e não posso compreender como se pode fazer tal coisa e
quais são os meios de chegar lá; um desejo violento e a curiosidade despertaram
em mim: de noite e de dia essas palavras não saem mais da minha cabeça. Então
comecei a frequentar as igrejas – ouvi sermões sobre a oração; mas por mais que
eu escutasse sermão e mais sermão, eu nunca aprendi como rezar sem cessar;
falavam sempre da preparação para a oração e de seu frutos, sem ensinar como
rezar sem parar e o que significa tal oração. Eu li muitas vezes a Bíblia e
nela encontrei o que tinha ouvido; entretanto, não consegui compreender o que
desejo. E desde então, sinto-me inseguro e inquieto. O monge fez o sinal da
cruz e tomou a palavra: Agradece a Deus, irmão querido, porque Ele te revelou
uma atração invencível em ti para a oração interior perpétua. Reconhece nisso o
apelo de Deus e acalma-te pensando que assim a concordância da tua vontade com
a palavra divina já foi devidamente provada; foi-te dado compreender que não é
a sabedoria do mundo nem um vão desejo de conhecimentos que conduzem à luz
celestial – a oração interior perpétua – mas, ao contrário, a pobreza do espírito
e a experiência ativa na simplicidade do coração. Por isso, não é de espantar
que tu nada tenhas ouvido de mais profundo sobre o ato de rezar e que não
tenhas podido aprender como chegar a essa atividade perpétua. Na verdade,
prega-se muito sobre a oração e sobre esse assunto há numerosos trabalhos
recentes, mas todos os critérios de seus autores se fundamentam sobre a
especulação intelectual, sobre os conceitos da razão natural e não sobre a
experiência alimentada pela ação; eles falam mais dos acessórios da oração do
que de sua própria essência. Um explica muito bem porque é necessário rezar;
outro fala do poder e dos efeitos benfazejos da oração; um terceiro, das
condições necessárias para rezar bem, isto é, do zelo, da atenção, do calor do
coração, da pureza de espírito, da humildade, do arrependimento, que é
necessário possuir para se pôr em oração. Mas o que é a oração e como aprender
a rezar – a essas questões, entretanto, essenciais e fundamentais – é raro
encontrar uma resposta nos pregadores de nosso tempo; pois são muito mais
difíceis que todas as suas explicações e exigem não um conhecimento escolástico
(teológico), mas um conhecimento místico. E, coisa mais triste ainda, essa
sabedoria elementar e vã conduz a medir a Deus com uma medida humana. Muitos
cometem um grande erro quando pensam que os meios de preparação e as boas ações
geram a oração, quando na realidade é a oração que é a fonte das boas obras e
das virtudes. Eles consideram erroneamente os frutos ou as consequências da
oração como meios de chegar até ela e assim diminuem a sua força. Trata-se de
um ponto de vista completamente oposta à Escritura, pois o Apóstolo Paulo assim
fala da oração: Eu vos recomendo antes de tudo rezar (ITm 2,1). Assim o
Apóstolo coloca a oração acima de tudo: Eu vos recomendo antes de tudo orar.
Muitas boas obras são pedidas ao cristão, mas a obra da oração está acima de
todas as outras, pois sem ela, nenhum bem pode ser feito. Sem a oração
frequente, não se pode achar o caminho que conduz ao Senhor, conhecer a
verdade, crucificar a carne com as suas paixões e desejos, ser iluminado no
coração pela luz de Cristo e unir-se a Ele na salvação. Eu digo frequente, pois
a perfeição e a correção de nossa prece não dependem de nós, como diz ainda o
Apóstolo Paulo: Nós não sabemos o que pedir como convém (Rm 8,26). Somente a
frequência foi deixada em nosso poder como meio de atingir a pureza da oração,
que é a mãe de todo bem espiritual. Adquire a mãe e tu terás uma descendência,
diz Santo Isaac, o Sírio (século VII) (7), ensinando que, em primeiro lugar, é
preciso adquirir a oração para poder pôr em prática todas as virtudes. Mas eles
conhecem mal essas questões e delas falam pouco, os que não estão
familiarizados com a prática e os ensinamentos dos Padres da Igreja. Conversando
dessa maneira, sem perceber, tínhamos chegado ao convento. Para não me separar
do sábio ancião e satisfazer mais cedo o meu desejo, apressei-me a dizer-lhe:
Eu vos peço, venerável pai, explicai-me o que é a oração interior perpétua e
como se pode aprender: vejo que tendes dessa oração uma experiência profunda e
segura. O monge acolheu meu pedido com bondade e me convidou a entrar: Vem a
minha casa, eu te darei um livro dos Padres que permitirá que compreendas
claramente o que é a oração e venhas a aprendê-la com a ajuda de Deus. Entramos
em sua cela e o monge me dirigiu as seguintes palavras: A interior e constante
oração de Jesus é a invocação contínua e ininterrupta do nome de Jesus, com os
lábios, com o coração e com a inteligência, no sentimento de sua presença, em
todo tempo, em todo lugar, mesmo durante o sono. Essa oração se exprime pelas
palavras: Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim! (8). Aquele que se habitua
a essa invocação sente uma grande consolação e a necessidade de rezar sempre essa
oração: depois de algum tempo, ele não pode passar sem ela e por si mesma a
oração brota nele. Compreendes agora o que é a oração perpétua? Compreendo
perfeitamente, meu pai! Em nome de Deus, ensinai-me agora como chegar até lá,
exclamei, cheio de alegria. Como se aprende a oração, nós vamos ver neste
livro. Chama-se Filocalia (9). Contém a ciência completa e detalhada da oração
interior perpétua, explicada por vinte e cinco Padres; é tão útil e perfeito
que é considerado como guia essencial da vida contemplativa e, como diz o
bem-aventurado Nicéforo (10), “ele conduz à salvação sem cansaço nem dor”.
Então ele é mais importante que a Santa Bíblia? Perguntei. Não, não é mais
importante nem mais santo que a Bíblia, mas contém explicações luminosas sobre
tudo o que ainda parece misterioso na Bíblia, por causa da fraqueza de nosso
espírito, cujos olhos não chegam a essas alturas. Eis uma comparação: o Sol é
um astro majestoso, brilhante e grandioso: mas não se pode olhar para ele a
olho nu. Para contemplar o rei dos astros e suportar seus raios inflamados, é
preciso usar um vidro artificial, infinitamente menor e mais frágil do que o
Sol. Pois bem. A Escritura é este Sol resplandecente e a Filocalia é o pedaço
de vidro. Escuta, agora eu vou ler para ti como se exercitar na oração interior
perpétua. O monge abriu a Filocalia, escolheu uma passagem de São Simeão, o
Novo Teólogo (11) e começou: “Permanece sentado no silêncio e na solidão,
inclina a cabeça, fecha os olhos; respira mais devagar, olha, pela imaginação,
para o interior de teu coração, concentra tua inteligência, isto é, teu
pensamento, da tua cabeça para teu coração. Dize, ao respirar: “Senhor Jesus
Cristo, tende piedade de mim”, em voz baixa, ou simplesmente em espirito.
Esforça-te para afastar todos os pensamentos, sê paciente e repete muitas vezes
esse exercício”. Referências do texto: (1). Ofício – celebração da Palavra de Deus conforme as sete
horas canônicas: Matinas, Laudes, Prima, Tércia, Sexta, Noa e Vésperas. (2).
Senhor – um gentil homem, um cavalheiro, que pertence à pequena nobreza rural
russa. (3). Chegar à salvação – pergunta tradicional feita pelo discípulo ao
seu mestre nos mosteiros e eremitérios do Oriente. (4). A Instrução Espiritual
do Homem Interior – pequeno tratado sobre a eficácia da oração, escrito por São
Dimitri de Rostov (1651-1709), monge e bispo. Foi ele também que escreveu o
Menólogo russo: calendário litúrgico que contém a vida dos santos na ordem de
suas festas. (5). Monges – eremitas ou monges que levam uma vida de ascese
(conjunto de exercícios praticados com vistas ao aperfeiçoamento espiritual) e
oração. São escolhidos pelos jovens monges e pelos leigos como “mestres
espirituais”. (6). Padre da Igreja – no caso, da Igreja Ortodoxa – foram
grandes mestres, bispos ou monges, cujos escritos são regra em matéria de fé,
constituindo a Tradição genuína da doutrina cristã, desde os primeiros séculos
até hoje, como fundamentação do magistério da Igreja. Existem Padres da Igreja
Oriental ou Grega, como por exemplo: São Basílio de Cesaréia (330-379), São
Gregório de Nissa (335-494), Santo Efrém, o Sírio (306-373), São João
Crisóstomo (347-407) e outros. (7). Isaac de Nínive (século VII) – asceta e
místico nestoriano, bispo de Nínive. Alguns trechos de suas obras foram
incluídas nas Filocalias gregas e eslava, chegando assim a Rússia. (8). Senhor
Jesus Cristo, tende piedade de mim! – essa invocação contínua do Nome de Jesus,
chamada “oração perpétua”, fundamenta a escola mística do hesicasmo e remonta
aos primeiros tempos da espiritualidade cristão do Ocidente. (9). Filocalia –
coletânea de textos de 25 Padres da Igreja sobre a oração espiritual e a guarda
do coração. A Tradição russa da Filocalia foi completada por Teófano, bispo de
tambov, em 1889. (10). Nicéforo – monge de Athos – Rússia, no século XIV, autor
de um tratado sobre a guarda do coração. (11). Simeão, o Novo Teólogo
(949-1022) – monge do século XI, um dos maiores místicos da Igreja Grega. Livro
Relato de Um Peregrino Russo. Abraço. Davi.
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