segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

III. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. II. APRENDIZADO DA ORAÇÃO.



Cristianismo Oriental. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. II. APRENDIZADO DA ORAÇÃO. Em seguida o monge me explicou tudo isso com exemplos, e nós ainda lemos na Filocalia as palavras de São Gregório, o Sinaíta (12) e dos bem-aventurados Calisto e Inácio (13). Tudo o que nós líamos, o monge me explicava com suas próprias palavras. Eu escutava com atenção e encantamento e me esforçava para fixar todas essas palavras na minha memória com a maior exatidão. Assim passamos a noite inteira e fomos às Matinas sem ter dormido. Ao mandar-me embora, o monge me abençoou e me disse para voltar a falar com ele durante o meu estudo da oração, para confessar-me com franqueza e simplicidade de coração, pois é vão lançar-se à obra espiritual sem um guia. Na igreja, eu senti um zelo ardente que me levava a estudar cuidadosamente a oração interior perpétua e pedia a Deus que me ajudasse. Depois, pensei que seria difícil ir visitar o monge para me confessar ou pedir-lhe conselho; na hospedaria, não deixariam ficar mais do que três dias e, perto do convento, não há alojamento (...). Felizmente, soube que, a quatro quilômetros dali, havia uma aldeia. Fui até lá para procurar um lugar e, para minha felicidade, Deus me favoreceu. Pude ficar  como guardião na casa de um camponês, sob a condição de passar o verão sozinho em uma cabana, no fundo da horta. Graças a Deus, eu tinha encontrado um lugar tranquilo. Foi assim que comecei a viver e estudar, pelos meios indicados, a oração interior, indo muitas vezes consultar o monge. Durante uma semana, eu me exercitei, na solidão do meu jardim, no estudo da oração interior, seguindo pontualmente os conselhos do monge. No começo, tudo parecia correr bem. Depois eu senti um grande peso, preguiça, aborrecimento, um sono irresistível e os pensamentos caíram sobre mim como nuvens. Fui falar com o monge, cheio de tristeza, e lhe expus o meu estado. Ele me recebeu com bondade e me disse: Irmão bem-amado, é a luta que o mundo obscuro está travando contra ti, pois não há nada que o mundo tema tanto como a oração do coração. Ele tenta te atrapalhar e te causar desgosto pela oração. Mas o inimigo age de acordo com a vontade e a permissão de Deus, na medida em que isso nos é necessário. Sem dúvida, é preciso que tua humildade seja provada: é cedo demais para atingir o fundo do teu coração por um zelo excessivo, pois arriscarias cair na avareza espiritual. Eu vou ler para ti o que diz a Filocalia a esse respeito. Meu mestre procurou nos ensinamentos do monge Nicéfor e leu: “Meu irmão, se, apesar dos teus esforços, tu não consegues entrar no fundo do coração, como te recomendei, faze o que te digo e, com a ajuda de Deus, encontrarás o que procuras. Sabes que a razão do homem está no seu peito (,,,). Retira, pois, dessa razão todo pensamento (tu podes fazer isso, se queres), e dá-lhe o “Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim”. Esforça-te para substituir outro pensamento e, com o tempo, isso te abrirá certamente o fundo do coração; isso é um fato comprovado pela experiência”. Vês o que ensinam os Padres nesse caso, disse-me o monge. É por isso que deves aceitar esse mandamento com confiança e recitar a oração de Jesus o mais que puderes. Eis um rosário com o qual poderás, no começo, recitar três mil orações por dia. De pé, sentado, deitado ou andando, diz incessantemente – Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim! – docemente e sem pressa. E recita exatamente três mil orações por dia, sem acrescentar nem diminuir nada. É assim que chagarás à atividade perpétua do coração. Eu ouvi com alegria essas palavras e voltei para casa. Comecei a fazer exata e fielmente o que ele me tinha ensinado. Durante dois dias, senti certa dificuldade, depois isso se tornou tão fácil que, quando eu não rezava a oração, sentia necessidade de recomeça-la e ela brotava fácil e suavemente, sem o constrangimento do começo. Contei isso ao monge que me ordenou de rezar seis mil orações por dia e me disse: Fica calmo e esforça-te apenas para manteres fielmente o número de orações que te é prescrito: Deus te fará misericórdia. Durante a semana inteira, eu permaneci na minha cabana solitária a recitar diariamente minhas seis mil orações, sem me preocupar com mais nada e sem ter de lutar contra os pensamentos; eu procurava apenas observar exatamente a ordem do monge. O que aconteceu? Eu me acostumei tão bem à oração que, se eu parava um instantinho, sentia um vazio como se tivesse perdido alguma coisa. Assim que eu recomeçava a rezar, sentia-me de novo leve e feliz. Se eu encontrava alguém, não tinha mais vontade de falar; queria apenas ficar na minha solidão e recitar a oração, a tal ponto me habituara no fim de uma semana. O monge, que não tinha estado comigo havia dez dias, veio pessoalmente saber de mim. Expliquei-lhe o que estava acontecendo comigo. Depois de me escutar, ele disse: Já estás habituado à oração. Vê, é preciso agora conservar esse hábito e fortifica-lo: não percas tempo e, com o auxílio de Deus, toma a resolução de recitar doze mil orações por dia; permanece na solidão, levanta-te um pouco mais cedo, deita-te um pouco mais tarde e vem me visitar duas vezes por mês. Eu obedeci à suas ordens e, no primeiro dia, quase não consegui recitar minhas doze mil orações que só terminei bem tarde da noite. No dia seguinte, consegui fazê-lo com mais facilidade e com gosto. No começo, senti cansaço, certo endurecimento da minha língua e das minhas maxilas, mas sem nada de desagradável; depois senti o céu da boca um pouco dolorido e também o meu dedo polegar da mão esquerda que desfiava o rosário, ao passo que meu braço ficava quente até o cotovelo, produzindo em mim uma deliciosa sensação. Isso me estimulava a rezar ainda melhor. Durante cinco dias, eu cumpri fielmente a tarefa das doze mil orações e assim, ao mesmo tempo, eu adquiri o hábito, o atrativo e o gosto pela oração. Um dia, bem cedinho, eu acordei, ou melhor, fui acordado pela oração. Comecei a recitar as orações da manhã. Mas minha língua emperrava e eu só tinha vontade de rezar a oração de Jesus. Comecei então a rezá-la. Senti-me logo muito feliz: meus lábios se moviam espontaneamente e sem esforço. Passei o dia todo muito alegre. Eu me sentia como que afastado de tudo e em um outro mundo. Acabei minhas doze mil orações sem dificuldade alguma, antes do fim do dia. Eu tinha muita vontade de continuar, mas não ousava ultrapassar o número de orações indicado pelo monge. Nos dias seguintes, continuei a invocar o nome de Jesus Cristo com facilidade e sem me cansar nunca. Fui visitar o monge e lhe contei tudo, em detalhes. Quando acabei, ele me disse: Deus te deu o desejo de rezar e a possibilidade de fazê-lo sem dificuldade. Trata-se de um efeito natural, produzido pelo exercício e pela aplicação constante, da mesma forma que uma máquina: quando se roda a direção, ela continua girando sozinha: mas, para que continue rodando, é preciso colocar óleo e dar-lhe novamente impulso. Agora vês que faculdades maravilhosas nosso Deus, amigo dos homens, deu à natureza humana que é sensível por si mesma; e conheceste as sensações extraordinárias que podem nascer até mesmo em uma alma pecadora, em uma natureza impura que ainda não foi iluminada pela graça. Porém, que grau de perfeição, de alegria e de felicidade não pode o homem atingir quando Deus se digna revelar-lhe a oração espiritual espontânea e purificar sua alma das paixões! É um estado inefável e a revelação desse mistério é uma antecipação das doçuras do céu. É o dom que recebem os que procuram o Senhor na simplicidade de um coração transbordante de amor! Doravante, permito que rezes quantas orações quiseres; experimenta passar todo o tempo da vigília em oração e invoca o nome de Jesus sem precisar contar, entregando-te humildemente à vontade de Deus e esperando no seu auxílio. Ele não te abandonará e dirigirá teu caminho. Obedecendo a essa regra, eu passei o verão todo a rezar sem parar a oração de Jesus e me senti totalmente tranquilo. Durante o sono, até sonhava que estava recitando a oração de Jesus. E durante o dia, quando me acontecia de encontrar alguém, todos me pareciam tão amáveis com se fossem da minha própria família. Os meus pensamentos se tinham apaziguado e eu só vivia com a oração. Inclinava meu espírito a escutar e, às vezes, meu coração sentia como que um calor e uma grande alegria. Quando me acontecia de entrar na igreja, o longo ofício do mosteiro me parecia curto e não me cansava como antes. Minha cabana solitária me parecia um magnífico palácio e eu não sabia como agradecer a Deus o ter mandado para mim, pobre pecador, um monge cujo ensinamento me fazia tanto bem. Mas, não tive bastante tempo para aproveitar da direção do monge tão querido e sábio – ele morreu no fim do verão. Despedi-me dele com lágrimas, e,  agradecendo-lhe seus ensinamentos paternais, pedi-lhe deixar comigo, como uma bênção, o rosário com o qual ele rezava sempre. Assim fiquei sozinho. O verão acabou, recolheram-se todos os frutos do jardim. Eu não tinha mais onde morar. O camponês me deu dois rublos (moeda russa) de prata como salário, encheu de pão a minha sacola para a viagem e eu retomei minha vida errante; mas não estava mais tão necessitado como antes: a invocação do nome de Jesus Cristo me alegrava ao longo do caminho e todo mundo me tratava com bondade; parecia que todos gostavam de mim. Um dia, fiquei me perguntando o que fazer com os rublos que o camponês me tinha dado. Para que me serviriam? Pois bem! Eu não tenho mais o monge nem ninguém para me orientar. Vou comprar uma Filocalia e nela vou aprender a oração interior. Chequei a uma comarca e comecei a procurar nas lojas uma Filocalia; acabei achando uma, mas o comerciante queria que eu pagasse três rublos e eu só tinha dois. Eu pechinchei o mais que pude, mas ele não quis abaixar o preço. Finalmente me disse: Vai até à igreja, pede para o sacristão (empregado que tem a seu cargo a limpeza, a ordem e a guarda de uma igreja; também ajuda na missa e auxilia o sacerdote nos ofícios divinos); ele tem um livro velho como este, que talvez possa ceder-te por dois rublos. Eu fui até lá e, com efeito, consegui comprar por dois rublos uma Filocalia bem velha e bastante estragada. Fiquei tão feliz! Consertei o livro como pude, com pano, e coloquei-o na minha sacola junto com a Bíblia. É assim que vou agora, rezando sem parar a oração de Jesus que me é mais doce e querida do que tudo no mundo. Às vezes, faço mais de setenta quilômetros por dia e não sinto que estou caminhando; sinto somente que rezo. Quando me pega um frio muito forte, eu rezo com mais atenção e logo me esquento. Se a fome aperta, eu invoco mais vezes o nome de Jesus Cristo e me esqueço que estava com fome. Se me sinto doente, com dor nas costas ou nas pernas, eu me concentro na oração e não sinto mais dor. Se alguém me ofende, eu só penso na oração de Jesus tão benfazeja; imediatamente desaparecem a raiva ou o sofrimento e me esqueço de tudo. Meu espírito se tornou muito simples. Não me preocupo com nada, não me prendem as coisas exteriores; eu gostaria de ficar sempre na solidão. Por hábito, só tenho agora uma necessidade: recitar a oração sem parar. E quando faço isso, me sinto alegre. Sabe Deus o que se passa comigo. Naturalmente, não são mais do que impressões sensíveis ou, como dizia o monge, o efeito da natureza e de um hábito adquirido; mas ainda não ouso começar a estudar a oração espiritual no interior do coração; eu sou indigno demais e estúpido. Espero a hora de Deus, contando com a proteção do falecido monge, meu mestre. Assim, ainda não cheguei à oração espiritual do coração, espontânea (14) e perpétua; mas, graças a Deus, agora eu compreendo muito bem o que significa a palavra do Apóstolo que eu tinha ouvido faz tempo: “Rezai (orai) sem cessar” (15). Referências do texto: (12). Gregório, o Sinaita – monge de Athos (século XIV), restaurou a tradição do hesicasmo e redescobriu a oração perpétua. (13). Calisto e Inácio Xantopoulos – Calisto, patriarca de Constantinopla, em 1397, compôs um tratado sobre a vida ascética, juntamente com seu amigo Inácio. (14). Oração espontânea – literalmente automática. (15). Rezai sem cessar – o peregrino só conhece, por enquanto, o primeiro grau de oração. Nos relatos seguintes, vai mostrar seus progressos e a descoberta progressiva da “oração do coração”. Livro O Peregrino Russo. Abraço. Davi.

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