Cristianismo Oriental. RELATO
DE UM PEREGRINO RUSSO. II. APRENDIZADO DA ORAÇÃO. Em seguida o monge me
explicou tudo isso com exemplos, e nós ainda lemos na Filocalia as palavras de
São Gregório, o Sinaíta (12) e dos bem-aventurados Calisto e Inácio (13). Tudo
o que nós líamos, o monge me explicava com suas próprias palavras. Eu escutava
com atenção e encantamento e me esforçava para fixar todas essas palavras na
minha memória com a maior exatidão. Assim passamos a noite inteira e fomos às
Matinas sem ter dormido. Ao mandar-me embora, o monge me abençoou e me disse
para voltar a falar com ele durante o meu estudo da oração, para confessar-me
com franqueza e simplicidade de coração, pois é vão lançar-se à obra espiritual
sem um guia. Na igreja, eu senti um zelo ardente que me levava a estudar
cuidadosamente a oração interior perpétua e pedia a Deus que me ajudasse.
Depois, pensei que seria difícil ir visitar o monge para me confessar ou
pedir-lhe conselho; na hospedaria, não deixariam ficar mais do que três dias e,
perto do convento, não há alojamento (...). Felizmente, soube que, a quatro
quilômetros dali, havia uma aldeia. Fui até lá para procurar um lugar e, para
minha felicidade, Deus me favoreceu. Pude ficar
como guardião na casa de um camponês, sob a condição de passar o verão
sozinho em uma cabana, no fundo da horta. Graças a Deus, eu tinha encontrado um
lugar tranquilo. Foi assim que comecei a viver e estudar, pelos meios
indicados, a oração interior, indo muitas vezes consultar o monge. Durante uma
semana, eu me exercitei, na solidão do meu jardim, no estudo da oração
interior, seguindo pontualmente os conselhos do monge. No começo, tudo parecia
correr bem. Depois eu senti um grande peso, preguiça, aborrecimento, um sono
irresistível e os pensamentos caíram sobre mim como nuvens. Fui falar com o
monge, cheio de tristeza, e lhe expus o meu estado. Ele me recebeu com bondade
e me disse: Irmão bem-amado, é a luta que o mundo obscuro está travando contra
ti, pois não há nada que o mundo tema tanto como a oração do coração. Ele tenta
te atrapalhar e te causar desgosto pela oração. Mas o inimigo age de acordo com
a vontade e a permissão de Deus, na medida em que isso nos é necessário. Sem
dúvida, é preciso que tua humildade seja provada: é cedo demais para atingir o
fundo do teu coração por um zelo excessivo, pois arriscarias cair na avareza
espiritual. Eu vou ler para ti o que diz a Filocalia a esse respeito. Meu
mestre procurou nos ensinamentos do monge Nicéfor e leu: “Meu irmão, se, apesar
dos teus esforços, tu não consegues entrar no fundo do coração, como te
recomendei, faze o que te digo e, com a ajuda de Deus, encontrarás o que
procuras. Sabes que a razão do homem está no seu peito (,,,). Retira, pois, dessa
razão todo pensamento (tu podes fazer isso, se queres), e dá-lhe o “Senhor
Jesus Cristo, tende piedade de mim”. Esforça-te para substituir outro
pensamento e, com o tempo, isso te abrirá certamente o fundo do coração; isso é
um fato comprovado pela experiência”. Vês o que ensinam os Padres nesse caso,
disse-me o monge. É por isso que deves aceitar esse mandamento com confiança e
recitar a oração de Jesus o mais que puderes. Eis um rosário com o qual
poderás, no começo, recitar três mil orações por dia. De pé, sentado, deitado
ou andando, diz incessantemente – Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim! –
docemente e sem pressa. E recita exatamente três mil orações por dia, sem
acrescentar nem diminuir nada. É assim que chagarás à atividade perpétua do coração.
Eu ouvi com alegria essas palavras e voltei para casa. Comecei a fazer exata e
fielmente o que ele me tinha ensinado. Durante dois dias, senti certa
dificuldade, depois isso se tornou tão fácil que, quando eu não rezava a
oração, sentia necessidade de recomeça-la e ela brotava fácil e suavemente, sem
o constrangimento do começo. Contei isso ao monge que me ordenou de rezar seis
mil orações por dia e me disse: Fica calmo e esforça-te apenas para manteres
fielmente o número de orações que te é prescrito: Deus te fará misericórdia.
Durante a semana inteira, eu permaneci na minha cabana solitária a recitar
diariamente minhas seis mil orações, sem me preocupar com mais nada e sem ter
de lutar contra os pensamentos; eu procurava apenas observar exatamente a ordem
do monge. O que aconteceu? Eu me acostumei tão bem à oração que, se eu parava
um instantinho, sentia um vazio como se tivesse perdido alguma coisa. Assim que
eu recomeçava a rezar, sentia-me de novo leve e feliz. Se eu encontrava alguém,
não tinha mais vontade de falar; queria apenas ficar na minha solidão e recitar
a oração, a tal ponto me habituara no fim de uma semana. O monge, que não tinha
estado comigo havia dez dias, veio pessoalmente saber de mim. Expliquei-lhe o
que estava acontecendo comigo. Depois de me escutar, ele disse: Já estás
habituado à oração. Vê, é preciso agora conservar esse hábito e fortifica-lo:
não percas tempo e, com o auxílio de Deus, toma a resolução de recitar doze mil
orações por dia; permanece na solidão, levanta-te um pouco mais cedo, deita-te
um pouco mais tarde e vem me visitar duas vezes por mês. Eu obedeci à suas
ordens e, no primeiro dia, quase não consegui recitar minhas doze mil orações
que só terminei bem tarde da noite. No dia seguinte, consegui fazê-lo com mais facilidade
e com gosto. No começo, senti cansaço, certo endurecimento da minha língua e
das minhas maxilas, mas sem nada de desagradável; depois senti o céu da boca um
pouco dolorido e também o meu dedo polegar da mão esquerda que desfiava o
rosário, ao passo que meu braço ficava quente até o cotovelo, produzindo em mim
uma deliciosa sensação. Isso me estimulava a rezar ainda melhor. Durante cinco
dias, eu cumpri fielmente a tarefa das doze mil orações e assim, ao mesmo
tempo, eu adquiri o hábito, o atrativo e o gosto pela oração. Um dia, bem
cedinho, eu acordei, ou melhor, fui acordado pela oração. Comecei a recitar as
orações da manhã. Mas minha língua emperrava e eu só tinha vontade de rezar a
oração de Jesus. Comecei então a rezá-la. Senti-me logo muito feliz: meus
lábios se moviam espontaneamente e sem esforço. Passei o dia todo muito alegre.
Eu me sentia como que afastado de tudo e em um outro mundo. Acabei minhas doze
mil orações sem dificuldade alguma, antes do fim do dia. Eu tinha muita vontade
de continuar, mas não ousava ultrapassar o número de orações indicado pelo
monge. Nos dias seguintes, continuei a invocar o nome de Jesus Cristo com
facilidade e sem me cansar nunca. Fui visitar o monge e lhe contei tudo, em
detalhes. Quando acabei, ele me disse: Deus te deu o desejo de rezar e a
possibilidade de fazê-lo sem dificuldade. Trata-se de um efeito natural,
produzido pelo exercício e pela aplicação constante, da mesma forma que uma
máquina: quando se roda a direção, ela continua girando sozinha: mas, para que
continue rodando, é preciso colocar óleo e dar-lhe novamente impulso. Agora vês
que faculdades maravilhosas nosso Deus, amigo dos homens, deu à natureza humana
que é sensível por si mesma; e conheceste as sensações extraordinárias que
podem nascer até mesmo em uma alma pecadora, em uma natureza impura que ainda
não foi iluminada pela graça. Porém, que grau de perfeição, de alegria e de
felicidade não pode o homem atingir quando Deus se digna revelar-lhe a oração
espiritual espontânea e purificar sua alma das paixões! É um estado inefável e
a revelação desse mistério é uma antecipação das doçuras do céu. É o dom que
recebem os que procuram o Senhor na simplicidade de um coração transbordante de
amor! Doravante, permito que rezes quantas orações quiseres; experimenta passar
todo o tempo da vigília em oração e invoca o nome de Jesus sem precisar contar,
entregando-te humildemente à vontade de Deus e esperando no seu auxílio. Ele
não te abandonará e dirigirá teu caminho. Obedecendo a essa regra, eu passei o
verão todo a rezar sem parar a oração de Jesus e me senti totalmente tranquilo.
Durante o sono, até sonhava que estava recitando a oração de Jesus. E durante o
dia, quando me acontecia de encontrar alguém, todos me pareciam tão amáveis com
se fossem da minha própria família. Os meus pensamentos se tinham apaziguado e
eu só vivia com a oração. Inclinava meu espírito a escutar e, às vezes, meu
coração sentia como que um calor e uma grande alegria. Quando me acontecia de
entrar na igreja, o longo ofício do mosteiro me parecia curto e não me cansava
como antes. Minha cabana solitária me parecia um magnífico palácio e eu não
sabia como agradecer a Deus o ter mandado para mim, pobre pecador, um monge
cujo ensinamento me fazia tanto bem. Mas, não tive bastante tempo para
aproveitar da direção do monge tão querido e sábio – ele morreu no fim do
verão. Despedi-me dele com lágrimas, e,
agradecendo-lhe seus ensinamentos paternais, pedi-lhe deixar comigo,
como uma bênção, o rosário com o qual ele rezava sempre. Assim fiquei sozinho.
O verão acabou, recolheram-se todos os frutos do jardim. Eu não tinha mais onde
morar. O camponês me deu dois rublos (moeda russa) de prata como salário,
encheu de pão a minha sacola para a viagem e eu retomei minha vida errante; mas
não estava mais tão necessitado como antes: a invocação do nome de Jesus Cristo
me alegrava ao longo do caminho e todo mundo me tratava com bondade; parecia
que todos gostavam de mim. Um dia, fiquei me perguntando o que fazer com os
rublos que o camponês me tinha dado. Para que me serviriam? Pois bem! Eu não
tenho mais o monge nem ninguém para me orientar. Vou comprar uma Filocalia e
nela vou aprender a oração interior. Chequei a uma comarca e comecei a procurar
nas lojas uma Filocalia; acabei achando uma, mas o comerciante queria que eu
pagasse três rublos e eu só tinha dois. Eu pechinchei o mais que pude, mas ele
não quis abaixar o preço. Finalmente me disse: Vai até à igreja, pede para o
sacristão (empregado que tem a seu cargo a limpeza, a ordem e a guarda de uma
igreja; também ajuda na missa e auxilia o sacerdote nos ofícios divinos); ele
tem um livro velho como este, que talvez possa ceder-te por dois rublos. Eu fui
até lá e, com efeito, consegui comprar por dois rublos uma Filocalia bem velha
e bastante estragada. Fiquei tão feliz! Consertei o livro como pude, com pano,
e coloquei-o na minha sacola junto com a Bíblia. É assim que vou agora, rezando
sem parar a oração de Jesus que me é mais doce e querida do que tudo no mundo.
Às vezes, faço mais de setenta quilômetros por dia e não sinto que estou
caminhando; sinto somente que rezo. Quando me pega um frio muito forte, eu rezo
com mais atenção e logo me esquento. Se a fome aperta, eu invoco mais vezes o
nome de Jesus Cristo e me esqueço que estava com fome. Se me sinto doente, com
dor nas costas ou nas pernas, eu me concentro na oração e não sinto mais dor.
Se alguém me ofende, eu só penso na oração de Jesus tão benfazeja;
imediatamente desaparecem a raiva ou o sofrimento e me esqueço de tudo. Meu
espírito se tornou muito simples. Não me preocupo com nada, não me prendem as
coisas exteriores; eu gostaria de ficar sempre na solidão. Por hábito, só tenho
agora uma necessidade: recitar a oração sem parar. E quando faço isso, me sinto
alegre. Sabe Deus o que se passa comigo. Naturalmente, não são mais do que
impressões sensíveis ou, como dizia o monge, o efeito da natureza e de um
hábito adquirido; mas ainda não ouso começar a estudar a oração espiritual no
interior do coração; eu sou indigno demais e estúpido. Espero a hora de Deus,
contando com a proteção do falecido monge, meu mestre. Assim, ainda não cheguei
à oração espiritual do coração, espontânea (14) e perpétua; mas, graças a Deus,
agora eu compreendo muito bem o que significa a palavra do Apóstolo que eu tinha
ouvido faz tempo: “Rezai (orai) sem cessar” (15). Referências do texto: (12).
Gregório, o Sinaita – monge de Athos (século XIV), restaurou a tradição do
hesicasmo e redescobriu a oração perpétua. (13). Calisto e Inácio Xantopoulos –
Calisto, patriarca de Constantinopla, em 1397, compôs um tratado sobre a vida
ascética, juntamente com seu amigo Inácio. (14). Oração espontânea –
literalmente automática. (15). Rezai sem cessar – o peregrino só conhece, por
enquanto, o primeiro grau de oração. Nos relatos seguintes, vai mostrar seus
progressos e a descoberta progressiva da “oração do coração”. Livro O Peregrino
Russo. Abraço. Davi.
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