segunda-feira, 17 de outubro de 2016

OS OITO CAMINHOS DO TAO. II.



Taoismo. Texto do acadêmico Inty Scoss Mendoza. TAO COMO NÃO EXISTÊNCIA.  为无  A contrapartida da definição da existência da origem de todas as coisas é essa em  que o TAO só pode ser identificado com o VAZIO, a não­ existência. Wangbi  王弼 (226 - 249), pensador que representa um importante movimento surgido na crise do final da dinastia Han, o Xuanxue  玄学  (o “saber do mistério”,  o misticismo chinês), aponta a necessidade de “exaurir até atingir o extremo, o VAZIO”, pois o TAO é “serenamente sem  corpo, não está na manifestação”. Em relação ao “Um”, Wangbi em seu  comentário ao TAO TE KING coloca a seguinte questão: “As dez mil coisas  e as dez mil formas retornam todas ao Um. De onde vem esse sutil  UM? Da não ­existência surge o  Um, por isso o Um pode ser chamado de não­ existência”. Contudo tal colocação deixa em aberto o significado de uma passagem do TAO TE KING (o Livro das Mutações, escrito aproximadamente entre 350 AC 250), o “famoso” capítulo 25, em que Lao­ Tsé nomeia o TAO, e a contra­gosto, lhe dá ainda mais um nome: “GRANDE”, da  . Tal capítulo inicia da seguinte forma: “有物混成” (you wu  hun  cheng), onde a tradução literal de cada ideograma isoladamente nos  diria:  “ter”, “coisa”, “caos”, “realizar”. “Uma ‘coisa’ existe formada no caos”, seria uma possível tradução, e Lao­ Tsé prossegue: “antes  de nascerem o céu  e a terra. Silente! Apartado! (...) pode ser considerado a mãe sob  o céu. Eu não sei seu  nome, dou-­lhe a grafia:  DAO TAO. Forçado a nomeá-­lo digo: grande”. Essa “coisa” seria o “SUPREMO UM” citado na seção anterior e como Lao­ Tsé teria dito se tratar de algo que existe antes  do Céu e da Terra – ou seja, o Universo para o pensamento chinês – então não poderia ser tratado como uma não ­existência. Entretanto, esse movimento místico faz uma leitura sutil das palavras de Lao­ Tsé consolidando uma forte tendência ancestral do pensamento chinês: negar é a melhor maneira de alcançar a verdade. IDENTIFICANDO O TAO COM O VAZIO é possível desvencilhar­ se das  limitações  da palavra para, com isso, ter uma experiência direta dessa dimensão  além da forma. Por outro lado, essa se trata de uma tradição que se molda em “tempos de crise” –  a instabilidade social e política do final da dinastia Han  –  onde os  assuntos mundanos  não apresentavam qualquer princípio de harmonia e equilíbrio, e um saber afirmativo, ou seja, a erudição, não servia como  meio de buscar o Tao, pelo contrário, ecoava colocações de Lao­ Tsé como: “O saber não passa de ostentação do Tao e o início  da ignorância” (cap. 38). Ou seja, conceber definições não passa de vã tentativa, melhor seria permanecer no “não (...).” TAO como Li 为理. Essa identificação entre o Tao e o “princípio” (li ), para Zhang Liwen, se referia a duas  dimensões: ontológica e ética. A questão do conceito de “ontologia”, utilizado por ele, remete à correlação “óntos­ raiz”, isto é, a visão chinesa de uma estrutura metafísica que sustenta todas  as coisas, como mencionado anteriormente. No caso, a metáfora da “raiz” e suas funções  em relação ao resto da planta  (fixação, sustentação, nutrição e ancestralidade) são diretamente aplicadas  ao pensamento filosófico, isto é, a busca da raiz é a busca do que sustenta, nutre, etc. (Zhang D. 1997, p. 16) . O princípio, do ponto de vista ontológico, seria aquela dimensão sem som e sem  cheiro 13 que está, como o TAO, acima da “forma” e se relaciona com o sopro vital  [qi ], os instrumentos [qi  ] e todas as coisas que se encontram sob a “forma”, em posição de complementaridade. (Zhang L. org 1996 p. 2) As categorias “acima da forma” e “sob a forma” utilizadas pelo autor para definir o princípio, e por complementaridade o “sopro”, os “instrumentos” e as “coisas” remetem  a uma passagem do Livro das Mutações, o I CHING (Yijing): “O QUE ESTA ACIMA DA FORMA É O TAO; O QUE ESTÁ ABAIXO DA (sob a) FORMA É O INSTRUMENTO”. 形而上者谓之道,形而下 谓之器.  . Tal definição é a pedra fundamental onde se ergueram todas as  teorias  em torno da natureza primeira além da forma, e suas  implicações  no mundo da forma. Também atribui ao TAO sua condição nunca contestada: não ter forma definida. A  questão do “instrumento” é particularmente complexa, pois é uma tradução imprecisa de QI  , que quer dizer “pote”, e significa o nível da função, da aplicação específica, do  lugar que cada coisa ocupa na teia de relações universais. A forma é determinante nesse sentido, e por vezes foi relacionada ao conceito de QI (ou CHI), cuja tradução como  “energia” também é imprecisa e, portanto, opto pela palavra “sopro”, mesmo sabendo de suas conotações bíblicas. No que se refere ao princípio do ponto de vista ético:  O  TAO é o  princípio presente nas  relações  entre soberano e súdito, pai e filho, marido e mulher (...) são os valores éticos de benevolência do soberano, lealdade do  súdito, amor paterno, respeito filial, etc. A identificação entre essas duas dimensões, princípios universais e ação humana, é uma das  características  fundamentais  do pensamento chinês, e ambos  os  autores  apontam essa como uma das características  que mais  diferem o pensamento chinês  do  ocidental. Para Zhang Liwen, isso se traduz como uma união entre ontologia e ética, enquanto para Zhang Dainian isso se traduz em “união entre saber e ação” e “união  entre o Céu e o ser humano” (Zhang D. 1997, pp. 5 e 6). Historicamente a identificação entre o Tao e “Li” foi desenvolvida principalmente por Zhuzi  朱子 (1130 - 1200), que representa um movimento filosófico chamado  Lixue 理学 “o saber do princípio”, também conhecido como neo ­confucionismo. Uma das  características  desse movimento é apresentar os  conceitos  de TAO e LI como  sinônimos:  Entre o Céu e a Terra há o Princípio LI e o Sopro QI. O princípio é o TAO que está acima da forma, é a raiz de onde nascem as coisas. O Sopro é a ferramenta que está sob  a forma, é o instrumento do nascimento das coisas. O nascimento do ser humano e das  coisas  dependem desse princípio para depois  possuírem uma natureza; dependem desse sopro para depois terem forma. (Zhuxi, Da Huang Dao  Fu, in Zhang D. 1997, p. 58). Outro conceito que se mistura a esses  dois  é TAIJI 太极16 , que nesse sistema assume o mesmo  lugar cósmico do Tao enquanto princípio criador e ordenador que permeia, sem forma, todos os processos de mutação do Universo: O TAIJI é como a raiz de uma árvore que se ramifica em tronco e galhos, e mais  ainda em folhas e flores. Gera sem se exaurir até surgirem os frutos. Dentro desses  estão contidos os princípios de geração inesgotável de vida. Quando brotam, geram  incontáveis ‘TAIJI’. No campo da ética Zhuzi, a manifestação do TAO LI se dá na natureza (verdadeira, espiritual, metafísica) do ser humano, em chinês Xing  , e se expressa em princípios  éticos naturais em qualquer ser humano: “O que é igual na existência de todo ser humano  é sua natureza. Portanto, a conduta ética é igual para todos. Sendo assim, o Tao é também  igual para todos”. (Mengzi huowen, in Zhang L. Org. 1996, p. 192); “O TAO a que me refiro significa o verdadeiro princípio entre soberano e súdito, pai e filho, marido e mulher, irmão mais velho e irmão mais novo, e entre amigos” (Lunyu huo wen,). Tal posicionamento afirmativo era uma resposta a certas  abordagens  do  pensamento taoista e budista na China da dinastia Song do sul (1127 - 1279) em que o TAO era considerado além da dimensão humana, quer seja expresso pela não ­existência (wu  ) taoísta ou  pelo VAZIO (em chinês kong  , tradução do sânscrito  Śūnyatā). O  pintor e pensador Chenchun  陈淳 (1483 - 1544) apresenta da seguinte maneira o  problema dessas visões para um partidário do posicionamento do neo confucionismo:  Lao­ Tsé e Chuang­ Tsé falavam sobre o TAO como se esse não tivesse qualquer relação com o ser humano e com as coisas, considerando­ além e aparte do Céu, da Terra, das formas  e dos  instrumentos, o que quer dizer que antes de existirem  Céu, Terra e as dez mil coisas  só havia um Princípio Vazio, como nos  diz o  ensinamento: “O TAO é anterior ao TAIJI” (...). No Budismo, o TAO tem um sentido  semelhante. Entretanto, quando os  seguidores  de Lao­ Tsé consideram a não­ existência o ancestral das dez mil coisas, ou os seguidores de Budha, que igualmente consideram o vazio o ancestral das dez mil coisas, apresentam a minha natureza verdadeira como algo anterior a tudo e, portanto, tudo o que vem depois não passa de fantasmagorias, de ilusões. As  ações  humanas  se tornam pegadas  grosseiras, devendo ser todas extirpadas para se retornar ao vazio original. Isso seria atingir o  TAO. Não compreender o TAO seria um princípio da existência e da ação humanas. (in Zhang L. org 1996, p. 190). TAO COMO XIN  为心. O termo XIN  é mais um dos  quebra ­cabeças  conceituais  chineses que não se submetem aos esforços mais bem intencionados dos tradutores. Por vezes é traduzido por coração, pois é utilizado no chinês moderno tanto para falar do órgão quanto do “coração” no sentido figurado. Quando surge nas tradições meditativas como a instância interior que é lentamente cultivada e aprimorada para que adquira qualidades de atenção, concentração  e serenidade seria melhor traduzi­lo como “mente”. Entretanto, a “psicologia” quando  chegou à China foi traduzida como Xinlixue 心理学, isto é, “saber do princípio do XIN”, o  que remeteria tal termo ao conceito abrangente de “psique”. Para tornar a tradução das  citações  a seguir mais  acessíveis  ao leitor, optei por “coração”, mas fica aqui a ressalva das outras possibilidades. Com base nessas observações tomemos alguns exemplos citados  por Zhang Liwen e Zhang Dainian sobre o conceito de Tao como “coração”. Assim como cada definição da TAO citada aqui corresponde à interpretação de um  movimento filosófico específico, temos aqui o Xinxue 心学, “o saber do coração”, cujo  grande sistematizador foi Wang Yangming  王阳明 (1472 - 1528), que deu  continuidade ao pensamento de Lu Jiuyuan  陆九渊 (1139 - 1193) e Yang Jian  杨简  (1141 -  1226) (Zhang L. org 1996 p. 2). Algumas de suas definições:  O ser humano é o coração do Céu, da Terra e das dez mil coisas. O  coração é o  senhor de tudo. O coração é o Céu, e ao falar do coração o Universo inteiro está aí  mencionado. Da Limingde, in Zhang D. 1997, p. 69). Fora do coração não há coisa alguma. Fora do coração não há palavra alguma. Fora do coração não há princípio  algum. Fora do coração não há sentido algum. Para esse pensador há um saber original, uma consciência partilhada por todos os  seres  que manifesta o TAO a partir dessa subjetividade. Tal consciência é por vezes  chamada de liangzhi  良知 –  uma consciência originalmente boa –, e para Wang  Yangming o “TAO é liangzhi” (Zhang L. org 1996, p. 245). A consciência original (liangzhi) do ser humano é a consciência original das plantas  e pedras, pois sem essa consciência humana elas  não  existiriam. Não somente as  plantas e pedras obedecem a esse princípio. Sem a consciência humana não haveria nem o Céu e a Terra! O Céu, a Terra e as dez mil coisas são originalmente um só  com o ser humano, seu surgimento mais sutil, mais  essencial, é justamente essa  centelha espiritual do coração. O vento, a chuva, o orvalho, o trovão, o sol, a lua, as  estrelas, os animais, as plantas, as montanhas, os rios, a terra e as pedras são, em  princípio um só com ser humano. (Chuan feilu, in Zhang D. 1997, p. 70) Tal concepção é o ponto máximo da subjetividade no pensamento filosófico  chinês e um ponto de fusão total entre a busca dos grandes princípios universais (físicos e espirituais) com as tradições meditativas e introspectivas tanto chinesas quanto hindus. O  conhecimento verdadeiro, ou  seja, a possibilidade humana de “atingir” o TAO, só é possível quando se toca o ponto mais profundo e interior do coração humano, pois ali se encontra o poder que tudo gerou  e tudo governa, isto é, “fora do coração não há TAO  algum”, por isso “o coração humano é o TAO” (Zhang L. org 1996, p. 2). TAO COMO QI (Chi) 为气 Um pensador neo ­confucionista, Zhangzi  张子 (ou Zhang Zai  张载) (1020 - 1077), desenvolveu uma questão já colocada em outros momentos: o problema do status dos  princípios de YIN,YANG e do QI frente ao TAO. Ele, contudo, conduziu tal problema a uma consequência teórica radical: o abandono da separação clássica entre o que está acima da forma como a dimensão do TAO e o que está abaixo da forma como a dimensão do  “instrumento”. Aqui o Tao é o processo das transformações do QI no Universo, que passa por instantes materiais (com forma) e imateriais (sem forma). Seu postulado básico é: “a transformação provem do QI, e o nome é “Tao” (Zhang L. org 1996, p. 3). Outro pensador que desenvolveu  tais  concepções  foi Wang Yanxiang  王延相 (1474 - 1544) que definiu  a forma e a não­ forma como diferentes  estados do QI, ou  ainda, como momentos  diferentes  em que o Tao está manifesto (aparente) e recolhido  (oculto), tornando então o TAO e o QI como categorias filosóficas similares. Na análise de Zhang Dainian:  A natureza primordial é nessa concepção o QI, pois  possui o poder da manifestação. Além desse conceito haveria outros  quatro conceitos  complementares: TAO, Céu, Mutação e Li (princípio). O TAO é o processo das  mutações do QI. O significado atribuído por Zhangzi para o TAO é diferente daquele atribuído por Lao ­Tsé. Para esse último, o TAO é a causa e o princípio primeiro de todas as coisas, enquanto que para Zhangzi esse passa a ser o percurso da existência ou os processos da mutação. (Zhang D. 1997, p. 42) TAO COMO HUMANISMO. 为人.Essa é uma interessante definição apresentada por Zhang Liwen, pois remontando  aos  primórdios  do pensamento chinês  contido no “Livro das  Escrituras”, Shujing  书经 (compilado provavelmente entre os séculos XI AC VI ele aponta a divisão entre o TAO  celestial, TIANDAO  天道, e o TAO humano, RENDAO  人道, como duas  categorias  que remeteriam às dimensões divina e humana respectivamente (Zhang L. org. 1996, p. 24). Essa segunda englobaria as  questões  das  virtudes  da benevolência e da justiça, das  relações sociais, dos princípios morais e éticos . Contudo, esse autor apresenta  tal questão sob  a ótica de um movimento recente do pensamento chinês, iniciado no  século XIX  e que teve seu  ápice nos  movimentos  para a derrubada da última dinastia, ocorrida finalmente em 1911. A China, nesse período, incorpora conceitos  modernos  como “liberdade”, “socialismo”, “igualdade”, mas  como já havia ocorrido com outros  casos de conceitos  estrangeiros  em terra chinesa, eles foram rapidamente traduzidos  em  termos propriamente chineses, reconhecidos, até certo ponto, como sempre presentes no seu  repertório filosófico. O TAO não saiu ileso desse processo, e o conceito de “humanismo” na sua acepção moderna – e burguesa, para Zhang Liwen – foi traduzido como RENDAO, o TAO  humano: “aquele que comete um atentado à liberdade alheia, atenta  contra o princípio  celestial e contra o RENDAO humanismo” (Yanfu in Zhang L. org. 1996, p. 3). Sun Yat­sen (1866-1925) o “pai na nação” tanto para taiwaneses quanto para os chineses do  continente, e grande teórico da revolução anti­ imperialista – aqui entendido tanto como  Império chinês quanto imperialismo ocidental e japonês do século XIX – avança mais ainda na incorporação do conceito de humanismo às múltiplas faces do TAO:  O socialismo é um humanismo RENDAÕ. Esse se baseia no amor ao próximo, na liberdade e na igualdade. O socialismo não pode se afastar desses  três  princípios  pois essa é a sua verdadeira essência. É também, sem dúvida, a “boa nova” para a humanidade.(Partidos e métodos socialistas in Zhang L. org. 1996, p. 3) Tal conceituação é para Zhang Liwen uma “nova vida” para o TAO. Considerações finais A brevíssima sistematização do pensamento chinês  em torno do conceito do Tao  apresentada aqui padece de todas as mazelas das generalizações. Muito mais poderia ter sido dito, e muitas  das  sutis  facetas  desse tema complexo simplesmente foram  desconsideradas  ou  ignoradas, por isso talvez não faça jus  ao esforço teórico e metodológico dos  autores  em questão. Entretanto, acredito que possa com esse artigo  contribuir para o esforço de traduzir e disponibilizar a produção em língua chinesa, antiga e contemporânea, ou ainda, como é o caso aqui, apresentar as visões do antigo pelas lentes  da modernidade chinesa, movimento esse que conta ainda com escassos braços e cabeças  no Brasil, não por falta de interesse, mas devido, principalmente, à dificuldade da língua chinesa. Referências bibliográficas: LAO­ TSÉ. Os escritos do Curso e sua Virtude. São Paulo: Mandruvá, 1997. ZHANG, Dainian. 中国哲学大  Os  tópicos  da Filosofia Chinesa]. Beijing: Academia Chinesa de Ciências Sociais, 1997. ZHANG, Liwen. [Dao]. Beijing: Universidade Popular da China, 1996. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – São Paulo – SP – Brasil. Abraço. Davi.

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